Acórdão doutrinário
Processo 59791. - Autos de recurso para tribunal pleno, em que são: Recorrente, Tebe - Empresa Têxtil de Barcelos, Lda. Recorrida, Têxtil João Duarte, S. A. R. L.
Acordam, em conferência, os do Supremo Tribunal de Justiça em tribunal pleno:
A sociedade por quotas Empresa Têxtil de Barcelos, Lda., recorre para o tribunal pleno do Acórdão deste Supremo Tribunal de 8 de Março de 1963 que decidiu ser aplicável o artigo 2313.º do Código Civil, relativo à cessação de servidão de passagem, sòmente no caso de esta servidão ter sido constituída em benefício de um prédio encravado.
Alega a recorrente que este acórdão está em manifesta oposição com o de 17 de Dezembro de 1946, proferido em processo diferente, no domínio da mesma legislação e no qual se julgou que o referido artigo 2313.º se aplica a todas as servidões de passagem, mesmo em relação àquelas que não digam respeito a prédios encravados.
Da leitura dos dois acórdãos verifica-se a nítida oposição sobre esta questão fundamental de direito, justificando-se o presente recurso.
Tudo visto:
Examinada a questão, atenta e objectivamente, nos seus variados aspectos, julgamos que a solução mais legal é a que foi adoptada no acórdão recorrido.
Preceitua o artigo 2313.º do Código Civil que a obrigação de prestar passagem pode cessar a requerimento do proprietário do prédio serviente, cessando a necessidade da servidão ou se o dono do prédio dominante, por qualquer modo, tiver possibilidade de comunicação igualmente cómoda com a via pública por terreno seu.
O Decreto 19126 acrescentou o § único, o qual determina que a disposição do artigo 2313.º é aplicável às servidões de trânsito, qualquer que tenha sido o título da sua aquisição; no caso de ter havido indemnização, será esta restituída pelo desonerado.
Este § único não alargou o âmbito da aplicação do artigo 2313.º do Código Civil às servidões para prédios não encravados: veio sòmente esclarecer que a servidão podia cessar mesmo no caso de não ter havido indemnização.
A expressão «título de aquisição» indica a origem da servidão; não alude à natureza do prédio a favor do qual foi constituída a servidão.
O mencionado § único veio abranger, além das servidões constituídas coercivamente, as resultantes de negócio jurídico ou prescrição, tenha havido ou não indemnização.
A entender-se que nos termos do citado § único as servidões de passagem criadas por negócio jurídico em beneficio de prédios não encravados podem cessar, desde que se tornem desnecessárias ao prédio dominante, havia que ter-se como revogado o § único do artigo 2279.º do Código Civil, que, para as servidões constituídas para prédio não encravado, só admite que sejam declaradas extintas por desnecessárias as servidões constituídas por prescrição.
É norma de interpretação não alargar os preceitos especiais para além dos casos por eles regulados; este princípio seria posto de parte se fossem aplicadas as citadas disposições, que só regem para o caso de direito de acesso ou trânsito, às servidões em geral.
Além disso, a colocação do artigo 2313.º num capítulo referente à servidão de passagem sobre prédios encravados significa que não se trata de um preceito genérico, porque, neste caso, deveria conter-se entre as disposições gerais (Prof. Pires de Lima, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 77, p. 3).
O aludido § único reproduz textualmente a proposta de lei de 7 de Fevereiro de 1903, que o Prof. Guilherme Moreira (Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 36, p. 145) interpretou como não tendo resolvido o problema de saber se era aplicável às servidões de trânsito voluntárias.
O princípio de fazer terminar servidões inúteis, de restringir o menos possível a propriedade plena, não tem aplicação no campo das servidões contratuais para prédio que não era encravado à data da sua constituição. Seria a violação da liberdade contratual e da eficácia dos contratos.
Na servidão para prédios encravados, constituída por decisão judicial ou voluntàriamente, há um condicionalismo que a fez surgir: a encravação. É legítimo que a servidão cesse, quando cessar esse condicionalismo.
Nos outros casos, foi uma vontade autónoma que se obrigou; não havia na lei poder coactivo impondo a obrigação de contratar.
Esta orientação foi consignada no projecto do novo Código Civil (artigo 1561.º, n.os 2 e 3, livro III «Direito das Coisas», 1.ª revisão ministerial, Boletim do Ministério da Justiça n.º 124).
Pelo exposto, negam provimento ao recurso e formulam o seguinte assento:
O artigo 2313.º e § único do Código Civil são aplicáveis sòmente nas servidões de passagem em benefício de prédio encravado.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 7 de Maio de 1965. - Gonçalves Pereira - Alberto Toscano - Fragoso de Almeida - Albuquerque Rocha - Simões de Carvalho - Torres Paulo - Eduardo Tovar de Lemos - Ludovico da Costa - António Teixeira Botelho - Lopes Cardoso - Toscano Pessoa - Barbosa Viana - Joaquim de Melo - Henrique Dias Freire.
Está conforme.
Supremo Tribunal de Justiça, 24 de Maio de 1965. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.