Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 346/2008
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
A - Relatório
1 - O presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, invocando o disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea g), da Constituição da República Portuguesa, requer a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade e da ilegalidade dos artigos 117.º e 118.º da Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2008).2 - O teor das normas em questão é o que se segue:
«Artigo 117.º
Necessidades de financiamento das Regiões Autónomas
1 - As Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira não podem acordar contratualmente novos empréstimos, incluindo todas as formas de dívida, que impliquem um aumento do seu endividamento líquido.
2 - Podem excepcionar-se do disposto no número anterior, nos termos e condições a definir por despacho do ministro responsável pela área das finanças, empréstimos e amortizações destinados ao financiamento de projectos com comparticipação de fundos comunitários.
3 - O montante de endividamento líquido regional, compatível com o conceito de necessidade de financiamento do Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais (SEC95), é equivalente à diferença entre a soma dos passivos financeiros, qualquer que seja a sua forma, incluindo nomeadamente os empréstimos contraídos, os contratos de locação financeira e as dívidas a fornecedores, e a soma dos activos financeiros, nomeadamente o saldo de caixa, os depósitos em instituições financeiras e as aplicações de tesouraria.
Artigo 118.º
Transferências orçamentais para as Regiões Autónomas
1 - Nos termos do artigo 37.º da Lei Orgânica 1/2007, de 19 de Fevereiro, são transferidas as seguintes verbas:
a) ............................................................................
b) (euro) 185 863 280, para a Região Autónoma da Madeira.
2 - Nos termos do artigo 38.º da Lei Orgânica 1/2007, de 19 de Fevereiro, são transferidas as seguintes verbas:
a) ............................................................................
b) (euro) 24 394 555, para a Região Autónoma da Madeira.» 3 - Fundamentando o seu pedido, o Requerente alegou, em síntese, o seguinte:
Os artigos 117.º e 118.º da Lei do Orçamento do Estado para 2008 padecem de inconstitucionalidade e de ilegalidade.
Foi violado o direito de audição dos órgãos de governo das Regiões previsto na Constituição e nos Estatutos e, no que especificamente respeita ao artigo 118.º da Lei do Orçamento, foram ainda violados o artigo 118.º, n.º 2, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira e o artigo 88.º, n.º 2, da Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado.
O Requerente tem legitimidade para pedir a declaração de inconstitucionalidade e de ilegalidade das referidas normas orçamentais, uma vez que está em causa a violação dos direitos das Regiões Autónomas e, ainda, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
A Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira não foi devidamente ouvida no processo de aprovação da Lei do Orçamento e houve, deste modo, ofensa do artigo 229.º, n.º 2, da Constituição, dos artigos 89.º e seguintes do Estatuto da Região Autónoma da Madeira e do artigo 4.º da Lei 40/96, de 31 de Agosto, que regula a audição dos órgãos de governo das Regiões Autónomas.
A votação final global da Lei do Orçamento ficou concluída a 23 de Novembro de 2007.
Ora a respectiva proposta só foi enviada para parecer da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira em 16 de Novembro de 2007, tendo a sua efectiva recepção apenas ocorrido no dia 19 de Novembro de 2007. Antes que tivesse oportunidade de se pronunciar foi drasticamente surpreendida com a votação final nos dias 22 e 23 de Novembro.
A Assembleia da República «no decurso do prazo concedido para a emissão de parecer por parte da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira e sem esperar por ele, inopinadamente efectuou a votação na especialidade e encerrou a sua participação no procedimento legislativo pela votação final global da futura Lei do Orçamento do Estado para 2008».
Deste modo, foi atribuído, à Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, um prazo de apenas 3 dias para se pronunciar, em manifesta violação do prazo de 15 dias, conferido pela Lei 40/96, de 31 de Agosto, que lhe permitiria exercer devidamente o seu direito de audição.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional é a este respeito clara. Os Acórdãos n.os 670/99 e 581/2007 postulam uma «consideração substancialista do direito de audição». E o Acórdão 130/2006 confirma que a obrigatoriedade do direito de audição não pode ser convertida numa «formalidade sem sentido útil».
O artigo 118.º da Lei do Orçamento do Estado viola a cláusula do não retrocesso financeiro, consagrada no artigo 118.º, n.º 2, do EPARAM, na redacção aprovada pela Lei 130/99, de 21 de Agosto.
De facto, o valor transferido em 2008, de (euro) 185 863 280, é inferior ao que foi transferido em 2006, (euro) 204 888 536. É verdade que tal valor é superior ao valor de (euro) 170 895 000 transferido em 2007, mas este valor era «também ele inconstitucional».
Nem sequer se diga que o único padrão aferidor das relações entre o Estado e as Regiões Autónomas é o constante da Lei das Finanças das Regiões Autónomas, Lei Orgânica 1/2007, de 19 de Fevereiro, que se aplicou retroactivamente - e também inconstitucionalmente - a partir de 1 de Janeiro de 2007.
É a própria Lei das Finanças das Regiões Autónomas que expressamente se subordina aos Estatutos Político-Administrativos.
O mesmo artigo 118.º da Lei do Orçamento para 2008 viola, ainda, o artigo 88.º, n.º 2, da Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado.
Na verdade, o Programa de Estabilidade e Crescimento não permite legitimar a redução do valor das transferências orçamentais para as Regiões.
Basta ver que, por um lado, as transferências para os Açores aumentaram. De facto, «enquanto que os Açores receberam, em 2008 (euro) 286 060 663 e em 2007 (euro) 223 436 000, contra os (euro) 210 066 776 de 2006, já a Madeira recebeu em 2008 (euro) 185 863 280 e em 2007 (euro) 170 895 000, contra os (euro) 204 888 536 de 2006».
Por outro lado, é manifesto que o próprio Estado não mostra capacidade para cumprir os parâmetros do Programa de Estabilidade e Crescimento, «bastando dizer, para o justificar, que para 2007 e em relação a 2006, as despesas de funcionamento do Estado aumentaram 9,4 %, as despesas sobem 3,1 %, o serviço da dívida aumenta 16 % e os encargos financeiros da dívida pública aumentaram 8,1 %».
Assim, a redução das transferências orçamentais para a Região Autónoma da Madeira não se pode justificar com base em tal Programa uma vez que o próprio Estado não reduziu o seu passivo orçamental de modo a cumpri-lo.
Conclui, pois, o Requerente, pedindo ao Tribunal que declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade e a ilegalidade dos artigos 117.º e 118.º da Lei do Orçamento do Estado para 2008 (Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro).
4 - Notificado, nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos, enviando, simultaneamente, cópia da documentação relativa aos trabalhos preparatórios da Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro - Orçamento do Estado para 2008 -, acompanhada de um índice detalhado.
5 - Discutido o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 63.º da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, procedeu-se à distribuição do processo, cumprindo agora dar corpo à decisão.
B - Fundamentação
6 - A questão da legitimidade do requerente.Nos termos do disposto na alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), os Presidentes das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas podem requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de normas, com força obrigatória geral, quando «o pedido de declaração de inconstitucionalidade se fundar em violação dos direitos das Regiões Autónomas ou o pedido de declaração de ilegalidade se fundar em violação do respectivo estatuto».
Este pressuposto está realizado, no que respeita ao pedido de declaração de inconstitucionalidade e de ilegalidade, agora formulado, com fundamento em violação do dever de audição das Regiões Autónomas, previsto na Constituição e no Estatuto Político-Administrativo.
O Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira é, também, parte legítima para pedir a declaração da ilegalidade do artigo 118.º da Lei do Orçamento para 2008, alegando violação do Estatuto Político-Administrativo da Madeira.
Todavia, não tem ele legitimidade processual para suscitar questões de ilegalidade com base em outras leis que não sejam o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira e, deste modo, não pode suscitar a questão de ilegalidade à luz do artigo 88.º, n.º 2, da Lei de Enquadramento Orçamental.
Foi o que explicou este Tribunal, no Acórdão 581/2007, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 8 de Janeiro de 2008, e disponível, também, em www.tribunalconstitucional.pt (onde se impugnava a norma do artigo 126.º da Lei do Orçamento do Estado para 2007, com base precisamente nos mesmos preceitos que agora se invocam, ou seja, o artigo 118.º, n.º 2, do EPARAM e o artigo 88.º, n.º 2, da Lei de Enquadramento do Orçamento):
«Quanto à regra do não retrocesso financeiro, é patente que ela se inscreve no EPARAM estando contida no seu artigo 118.º De um ponto de vista formal, não pode, pois, negar-se que esta norma é susceptível da qualificação habilitante do requerimento de declaração de ilegalidade apresentado.
Já o mesmo se não diga do disposto no artigo 88.º, n.º 2, da Lei de Enquadramento Orçamental. Ainda que este diploma seja uma lei de valor reforçado, com valência paramétrica da legalidade das normas constantes das leis anuais do Orçamento (artigo 106.º, n.º 1, da CRP), a verdade é que ele não cai dentro da esfera de legitimidade restringida, quanto a iniciativas de fiscalização abstracta da legalidade, consagrada na alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º da CRP.» Quando o Requerente pede a declaração de ilegalidade do artigo 118.º da Lei do Orçamento para 2008 com base no artigo 88.º, n.º 2, da Lei de Enquadramento do Orçamento, não formula nem um pedido de «declaração de inconstitucionalidade fundado em violação dos direitos das Regiões», nem um pedido de «declaração de ilegalidade fundado no respectivo estatuto».
Ora, só a violação da Constituição da República Portuguesa e do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira conferem ao presidente da respectiva Assembleia Legislativa legitimidade para impugnar a validade de normas legais, requerendo ao Tribunal Constitucional a declaração da sua inconstitucionalidade ou ilegalidade.
Ao pedir a declaração de ilegalidade do artigo 118.º da Lei do Orçamento com base no artigo 88.º, n.º 2, da Lei de Enquadramento do Orçamento, o Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira não se está a basear nem na Constituição da República Portuguesa nem no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
Não tem, portanto, legitimidade processual para o fazer.
7 - Da alegada violação do direito de audição das regiões autónomas.
É indiscutível que existe uma obrigatoriedade de audição das Regiões sempre que a Assembleia da República aprove leis que lhes digam respeito.
De facto o artigo 229.º, n.º 2, da Constituição estabelece peremptoriamente que «os órgãos de soberania ouvirão sempre, relativamente às questões da sua competência respeitantes às Regiões Autónomas, os órgãos de governo regional». Essa obrigatoriedade de audição surge também reiterada no artigo 89.º, n.º 1, do EPARAM, onde se prescreve que «a Assembleia e o Governo da República ouvem os órgãos de governo próprio da Região Autónoma sempre que exerçam poder legislativo ou regulamentar em matérias da respectiva competência que à Região digam respeito».
Este dever de audição dos órgãos próprios das Regiões, no que respeita às matérias que lhes digam respeito deve ser cumprido de modo a garantir que as Regiões Autónomas são efectivamente ouvidas num momento em que as sugestões que porventura façam possam ainda ser tidas em conta na discussão das propostas ou projectos de lei.
A este respeito é particularmente esclarecedor o Acórdão 130/2006 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se pode ler:
«Entende o Tribunal que - sob pena de se esvaziar o direito de audição, convertendo a obrigatoriedade de audição numa formalidade sem sentido útil - a oportunidade da pronúncia do titular do direito deve situar-se numa fase do procedimento legislativo adequada à ponderação, pelo órgão legiferante, do parecer que aquele venha a emitir, com a possibilidade da sua directa incidência nas opções da legislação projectada.
O cabal exercício do direito de audição pressupõe, assim, que, além de um prazo razoável para o efeito, ele se exerça (ou possa exercer) num momento tal que a sua finalidade (participação e influência na decisão legislativa) se possa atingir, tendo sempre em conta o objecto possível da pronúncia.» O Requerente entende que a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira não foi ouvida em tempo útil.
Vejamos se realmente assim foi.
A proposta de lei 162/X, que deu início ao processo de aprovação do Orçamento do Estado para 2008, entrou na Assembleia da República no dia 12 de Outubro de 2007.
Dessa proposta de lei constava um artigo 114.º, que se referia aos limites do endividamento líquido das Regiões e um artigo 115.º, que era relativo às transferências orçamentais para as Regiões Autónomas.
Estes artigos da proposta de lei correspondem, respectivamente, aos artigos 117.º e 118.º da Lei do Orçamento do Estado, que agora se impugnam por falta de audição.
O citado artigo 115.º manteve-se inalterado no decurso de todo o processo legislativo na Assembleia da República; o artigo 116.º, pelo contrário, foi objecto de uma rectificação referente aos valores em euros das transferências para as Regiões.
Em concreto procedeu-se a um aumento de tais valores face ao que constava da proposta que entrou na Assembleia da República.
Essa rectificação foi feita através do Ofício n.º 1789, de 12 de Outubro, que deu entrada no Gabinete do Ministro dos Assuntos Parlamentares no dia 17 de Outubro de 2007. Este Ministro encaminhou, no mesmo dia, tal rectificação (através do Ofício n.º 8299 MAP, de 17 de Outubro), ao Presidente da Assembleia da República. E este, por sua vez, enviou-a, no dia seguinte de manhã (18 de Outubro), por via electrónica, às 11 horas e 53 minutos, com a menção de «urgente», ao Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira.
Em resposta à proposta de lei 162/X (com a rectificação introduzida pelo Ofício n.º 1789, de 12 de Outubro), foi enviado à Assembleia da República, no dia 2 de Novembro de 2007, também por via electrónica, o parecer da 2.ª Comissão Especializada Permanente (Economia, Finanças e Turismo) da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira.
Era o seguinte o teor de tal parecer, na parte que agora importa:
«10.ª Proposta de alteração do artigo 114.º
Propõe-se a seguinte alteração ao artigo 114.º para permitir o aumento do endividamento líquido da Região Autónoma da Madeira em 50 milhões:
Artigo 114.º
Necessidades de financiamento das Regiões Autónomas
1 - As Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira podem acordar contratualmente novos empréstimos, incluindo todas as formas de dívida, que impliquem um aumento do seu endividamento líquido superior a 50 milhões de euros para cada Região Autónoma.
2 - ...........................................................................
3 - ...........................................................................
11.ª Aditamento de um artigo 115.º-A
Propõe-se o aditamento de um artigo referente ao IVA, de modo a garantir que as Regiões Autónomas receberão em 2008 o mesmo valor de receita de IVA que receberiam pela aplicação do método da capitação, em cumprimento do disposto no artigo 21.º, n.º 3, da Lei 13/98, de 24 de Fevereiro, conjugado com a alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Lei Orgânica 1/2007, de 19 de Fevereiro:
Artigo 115.º-A
Transferência a título de compensação do IVA
Fica o Governo autorizado, através do Ministro responsável pela área das finanças, a transferir para as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, as verbas necessárias para cumprir o disposto no artigo 21.º, n.º 3, da Lei 13/98, de 24 de Fevereiro, tendo como referência o valor que resultaria para cada Região da aplicação em 2007 e em 2008 do método da capitação.» Como se vê, o parecer da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira propõe uma alteração ao artigo 114.º da proposta de lei 162/X e sugere, ainda, que seja acrescentado um artigo 115.º-A (que, obviamente se seguiria ao artigo 115.º).
O debate na generalidade iniciou-se no dia 6 de Novembro (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 7 de Novembro).
No dia 8 de Novembro, terminou o debate na generalidade.
Foi enviada à mesa uma declaração de voto dos Deputados Jacinto Serrão, Maximiano Martins e Júlia Caré, do PS, que fazia referência à questão das transferências orçamentais para as Regiões Autónomas e à correcção feita nos valores, no sentido do seu aumento [pelo acima citado Ofício n.º 1789, de 12 de Outubro], «face a uma aparente divergência dos critérios da Lei de Finanças das Regiões Autónomas» (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 9 de Novembro, pp. 39-40).
Nesse mesmo dia, a proposta de lei 162/X foi aprovada na generalidade, com os votos a favor do PS e os votos contra dos restantes partidos. Baixou à Comissão para aprovação na especialidade.
No dia 23 de Novembro, os artigos 114.º e 115.º da proposta de lei 162/X foram aprovados na especialidade (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 24 de Novembro, p. 56) e, nesse mesmo dia, se procedeu à votação final global do Orçamento.
Destes factos, documentados nos trabalhos preparatórios, resulta claro que a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira teve oportunidade de se pronunciar sobre os preceitos constantes dos artigos 114.º e 115.º (com a rectificação introduzida pelo Ofício n.º 1789, de 12 de Outubro).
Fê-lo através do seu parecer de 2 de Novembro, elaborado pela 2.ª Comissão Especializada Permanente (Economia, Finanças e Turismo).
Esse parecer entrou na Assembleia da República 6 dias antes da aprovação da proposta de lei 162/X, na generalidade, e 21 dias antes da aprovação, na especialidade, das normas dos artigos 114.º e 115.º dessa proposta, que correspondem aos artigos 117.º e 118.º da Lei do Orçamento que agora se impugnam.
É certo que, no dia 16 de Novembro de 2007, foram enviadas à Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira alterações à proposta de lei 162/X para esta se pronunciar, e que, segundo o Requerente, só terão sido recebidas no dia 19.
E é também certo que, logo nos dias 22 e 23, decorreria a votação na especialidade do Orçamento.
Contudo, as alterações à proposta que estavam em causa não se referiam, em nada, aos artigos 114.º e 115.º da proposta de lei 162/X, que viriam a dar origem aos artigos 117.º e 118.º da Lei do Orçamento do Estado para 2008, agora impugnados por falta de audição.
A Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira teve, pois, oportunidade de se pronunciar, e pronunciou-se, efectivamente, sobre as normas que agora impugna.
E a audição realizou-se em termos constitucional e legalmente adequados. Foi-lhe concedido um prazo razoável que lhe permitiu pronunciar-se antes do início da discussão.
De facto, no Acórdão 670/99 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal considerou que o prazo de 15 dias é suficiente para garantir a efectividade prática do direito de audição, previsto no artigo 229.º, n.º 2, da Constituição da República e no artigo 89, n.º 1, do EPARAM, concluindo nestes termos: «Pode, então, tomar-se como medida razoável de prazo para a generalidade dos casos o que a Lei 40/96 definiu como regra - 15 dias.» Aí se entendeu também que, dado que a pronúncia das Regiões Autónomas só pode incidir sobre normas específicas (as que especificamente digam respeito às Regiões), o momento relevante para efeitos de direito de audição seria a discussão e aprovação na especialidade.
Esta doutrina viria depois a ser reafirmada no Acórdão 529/2001 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) e, mais recentemente, no referido Acórdão 581/2007.
Nesses arestos, o Tribunal reafirmou uma distinção básica quanto ao momento adequado para a audição das Regiões Autónomas, em função do âmbito ou da extensão do objecto dessa audição.
Assim, se a audição incidir «sobre a globalidade da proposta de lei ou sobre os respectivos princípios», o pedido de parecer há-de ser formulado «com a antecedência suficiente sobre a data do início da discussão na generalidade»; se respeitar apenas a normas específicas da proposta, a audição pode ser desencadeada antes do «início da discussão da proposta de lei na especialidade».
Ora, como vimos, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira foi chamada a pronunciar-se, e pronunciou-se, sobre as normas agora impugnadas, bastante tempo antes da sua discussão e votação na especialidade, tendo disposto para tal do prazo de 15 dias legalmente previsto (no artigo 6.º da Lei 40/96, que regula a audição dos órgãos de governo das Regiões Autónomas).
A Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira foi, portanto, devidamente ouvida sobre as normas constantes dos artigos 114.º e 115.º da proposta de lei 162/X que vieram a ser aprovadas, na especialidade, a 23 de Novembro de 2007.
A Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira não pode negar que teve oportunidade de se pronunciar sobre o conteúdo dos artigos 117.º e 118.º da Lei do Orçamento do Estado para 2008, nos exactos termos em que foram aprovados.
Note-se que não houve a mínima alteração entre as normas constantes da proposta de lei 162/X (devidamente rectificada) que foi apresentada à Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira para que ela se pronunciasse (e sobre a qual ela efectivamente se pronunciou) e a versão final dessas mesmas normas que veio a constar da Lei do Orçamento aprovada pela Assembleia da República. Os preceitos são absolutamente idênticos, seja nas palavras usadas, seja nos números apresentados.
É certo que as propostas de alteração formuladas no parecer não foram aprovadas pela Assembleia da República. Mas, como é evidente, o direito de audição das Regiões Autónomas não implica um direito à aprovação das propostas de alteração por elas apresentadas. Como se esclareceu no já citado Acórdão 670/99: «sem dúvida que o órgão de soberania não está vinculado aos termos da resposta dada [pela Região Autónoma].» Deste modo, não há qualquer violação do dever de audição da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira.
8 - A questão da violação da cláusula de não retrocesso financeiro do artigo 118.º, n.º 2, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
A Lei Orgânica 1/2007, de 19 de Fevereiro (Lei de Finanças das Regiões Autónomas), determina que será a Lei do Orçamento do Estado a fixar, anualmente, «as verbas a transferir para cada uma das Regiões Autónomas» (artigo 37.º, n.º 1).
O artigo 118.º da Lei do Orçamento do Estado para 2008 dá pois execução ao que o artigo 37.º, n.º 1, da Lei das Finanças das Regiões Autónomas determina.
O Requerente alega, contudo, que a norma da Lei do Orçamento para 2008 é ilegal, por violação do artigo 118.º, n.º 2, do EPARAM.
Essa disposição, recorde-se, determina que «[e]m caso algum, as verbas a transferir pelo Estado podem ser inferiores ao montante transferido pelo Orçamento do ano anterior multiplicado pela taxa de crescimento da despesa pública corrente no Orçamento do ano respectivo».
O Tribunal já afirmou, por mais de uma vez, que as normas relativas às «relações financeiras entre o Estado e as Regiões Autónomas» não estão abrangidas na «reserva de Estatuto» e não possuem por isso a força normativa própria de tal diploma.
De facto, já no Acórdão 567/2004 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal considerou que o artigo 85.º da Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado, ao admitir que a Lei do Orçamento do Estado pudesse «determinar transferências de montante inferior àquele que resultaria das leis financeiras aplicáveis a cada subsector», não violaria a reserva de Estatuto.
Aí se explicou que «não ocorre violação da "reserva de estatuto" sempre que uma norma o contrarie. E depois explica-se (começando por citar o Acórdão 162/1999):
" 'Não basta, pois, que uma determinada norma conste de um estatuto regional para que a sua alteração por um decreto-lei importe violação da reserva de estatuto [...] Essa violação só existirá se essa norma constante do estatuto pertencer ao âmbito material estatutário - ou seja: se ela regular questão materialmente estatutária'.
Ora, fora da reserva de estatuto está necessariamente 'o regime de finanças das Regiões Autónomas' - alínea t) do artigo 164.º da Constituição - e nomeadamente a matéria das 'relações financeiras entre a República e as Regiões Autónomas' - n.º 3 do artigo 229.º da Constituição - , que é matéria reservada à competência legislativa da Assembleia da República."» Também no Acórdão 238/2008 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), em que o Tribunal apreciou a conformidade das normas do artigo 37.º, n.os 2 a 7, da Lei de Finanças das Regiões Autónomas com o artigo 118.º do EPARAM, se concluiu:
«De tudo o que anteriormente se expôs decorre a necessária conclusão de que, por força da repartição constitucional de competências, os parâmetros de validade jurídica das normas relativas às relações financeiras entre o Estado e as Regiões Autónomas se devem procurar na Constituição e não nos Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas».
Além disso o Tribunal teve já oportunidade de se pronunciar sobre uma questão perfeitamente idêntica, nos seus traços essenciais, àquela que agora se suscita.
Tal sucedeu no referido Acórdão 581/2007.
O Requerente pede a declaração de ilegalidade da norma da Lei do Orçamento que se referia às transferências orçamentais para a Região Autónoma da Madeira (artigo 118.º da Lei do Orçamento do Estado para 2008), fundado no preceito constante 118.º, n.º 2, do EPARAM.
Ora, no processo que deu origem àquele acórdão, decidido no ano passado, o mesmo Requerente pediu a declaração de ilegalidade da norma da Lei do Orçamento que se referia às transferências orçamentais para a Região Autónoma da Madeira (o artigo 126.º da Lei do Orçamento do Estado para 2007), fundado no mesmo artigo 118.º, n.º 2, do EPARAM.
Como se vê, as questões são, essencialmente, idênticas.
No mencionado Acórdão 581/2007, o Tribunal apreciou pois, a pedido do ora Requerente, a questão da ilegalidade da norma contida no artigo 126.º da Lei do Orçamento do Estado para 2007 (Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro), que corresponde, no seu conteúdo essencial, à norma do artigo 118.º da Lei do Orçamento do Estado para 2008 (Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro).
O Tribunal começou, nesse acórdão, por reconhecer que compete à Assembleia da República «definir, em cada ano, na Lei do Orçamento do Estado, o montante a transferir para os Açores e para a Madeira», para, depois, ponderar o seguinte:
«A cláusula de não retrocesso consta da norma contida no n.º 2 do artigo 118.º (transferências orçamentais) do EPARAM, a qual é do seguinte teor:
"Em caso algum, as verbas a transferir pelo Estado podem ser inferiores ao montante transferido pelo Orçamento do ano anterior multiplicado pela taxa de crescimento da despesa pública corrente no Orçamento do ano respectivo."
Vem arguido que a Lei do Orçamento do Estado, ao determinar um montante de transferência financeira, para 2007, inferior ao do ano anterior, viola aquela norma estatutária, norma de legalidade reforçada, que não pode ser desvirtuada por uma lei comum, como o é a lei orçamental.
Em abono desta tese, desenvolvem-se considerações tendentes a demonstrar a prevalência hierárquica de cada Estatuto Político-Administrativo das Regiões Autónomas sobre a Lei de Finanças das Regiões Autónomas (Lei Orgânica 1/2007, de 19 de Fevereiro) e sobre a Lei de Enquadramento Orçamental (Lei 91/2001, de 20 de Agosto).
Importa reconhecer, na verdade, que uma definição rigorosa da natureza e âmbito normativo dos Estatutos das Regiões Autónomas é determinante do juízo a emitir sobre o facto de o n.º 2 do artigo 118.º do EPARAM não ter sido obedecido.
A Constituição não nos indica, pela positiva, quais as matérias que devem constituir objecto de reserva de lei estatutária. Mas daí não pode concluir-se que ganham necessariamente essa qualidade, à margem de qualquer predicado material objectivo do seu conteúdo, todas as normas que constam dos Estatutos, por simples decorrência dessa formal localização sistemática.» Depois continuou, ainda, o mesmo acórdão:
«Compete a este órgão de soberania [ou seja, à Assembleia da República] definir, em cada ano, na Lei do Orçamento do Estado, o montante a transferir para os Açores e para a Madeira. Por isso mesmo, no artigo 106.º, n.º 3, alínea e), da CRP, se determina que a proposta do Orçamento seja acompanhada de relatórios sobre "as transferências de verbas para as Regiões Autónomas".
Não pode, pois, uma regra formalmente integrada nos Estatutos impor um limite aos poderes parlamentares de fixação do montante das verbas a transferir, restringindo a competência da Assembleia da República para efectuar os ajustamentos anuais que entenda justificados.
A tese contrária implicaria uma constrição da competência parlamentar na regulação das relações financeiras entre o Estado central e as Regiões Autónomas que não estaria constitucionalmente sufragada.
Por isso mesmo, é seguro concluir que, seja qual for o significado a atribuir aos termos literais da proibição peremptória de retrocesso, cominada no n.º 2 do artigo 118.º do EPARAM, esta norma não pode prevalecer-se de um estatuto que não possui - o de integrante da reserva material de estatuto - para suplantar o regime instituído por uma Lei do Orçamento do Estado.
Daí que o facto de o comando contido naquela norma não ter sido observado não representa uma violação estatutária, inexistindo a ilegalidade que daí decorreria.» O Tribunal não encontra, nem foram apresentadas pelo Requerente, quaisquer razões que justifiquem que não aceite a fundamentação desenvolvida no citado Acórdão 581/2007, que, por isso, aqui se renova.
C - Decisão
9 - Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide:a) Não conhecer, por falta de legitimidade do requerente, do pedido de declaração de ilegalidade do artigo 118.º da Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2008), na parte em que se funda na violação do artigo 88.º, n.º 2, da Lei de Enquadramento Orçamental;
b) Não declarar a inconstitucionalidade nem a ilegalidade, com fundamento na preterição do direito de audição das Regiões Autónomas, dos artigos 117.º e 118.º da Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro;
c) Não declarar a ilegalidade da norma do artigo 118.º da Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro, por violação da cláusula de não retrocesso financeiro constante do artigo 118.º, n.º 2, do EPARAM.
Lisboa, 25 de Junho de 2008. - Benjamim Rodrigues - Carlos Fernandes Cadilha - Maria Lúcia Amaral - Maria João Antunes - Gil Galvão - João Cura Mariano - José Borges Soeiro - Ana Maria Guerra Martins - Joaquim de Sousa Ribeiro - Mário José de Araújo Torres - Carlos Pamplona de Oliveira, com declaração - Vítor Gomes (com declaração de voto idêntica à apontada no Acórdão 581/07) - Rui Manuel Moura Ramos.
Declaração de voto
Votei a decisão, mas devo precisar o seguinte: assevera-se, no acórdão, de resto em consonância com a jurisprudência do Tribunal, que os presidentes dos Governos Regionais não têm «legitimidade processual» para suscitar questões de ilegalidade com base em outras leis que não sejam os estatutos político-administrativos de cada uma das Regiões.Tal entendimento radica no disposto na alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição, preceito que fixa, no seu n.º 1, os poderes do Tribunal Constitucional em matéria de «fiscalização abstracta da constitucionalidade e da legalidade», e que, no n.º 2, identifica os órgãos e as entidades com competência para formular ao Tribunal Constitucional os correspondentes pedidos. Todavia, a alínea g) deste n.º 2, ao tratar especificamente dos órgãos e entidades de âmbito regional que selecciona para o efeito, não lhes confere competência irrestrita neste domínio, pois apenas permite a formulação de pedidos de declaração de inconstitucionalidade fundados na «violação dos direitos das Regiões Autónomas», e a formulação de pedidos de declaração de ilegalidade fundados na «violação do respectivo estatuto».
No que agora interessa, antes da 6.ª revisão constitucional o preceito autorizava as entidades regionais a formularem pedidos de declaração de ilegalidade fundados não só na violação do estatuto da respectiva Região, mas também na violação de «lei geral da República».
Afigura-se-me que a alteração desta norma traiu o pensamento do legislador constituinte que, não desejando limitar a competência das autoridades regionais nesta matéria, teria pretendido, apenas, adequar o texto constitucional à extinção das «leis gerais da República», como categoria própria de actos legislativos. Ora, sendo certo que antes da revisão de 2004 as autoridades regionais podiam indubitavelmente pedir a declaração de ilegalidade de quaisquer normas legais «com fundamento em violação de lei com valor reforçado» [alínea b) do n.º 1 do preceito] - por estas serem necessariamente «leis gerais da República» - , tudo indica que, a partir daquela lei de revisão, deixaram de poder pedir a declaração de ilegalidade de normas «com fundamento em violação de lei com valor reforçado» [a alínea b) do n.º 1 do preceito não sofreu alteração] por a sua competência, nesta área, ter ficado reduzida aos casos em que o pedido é formulado unicamente com fundamento na violação «do respectivo estatuto».
Esta circunstância tem consequências relevantes, uma vez que por força da actual redacção do n.º 3 do artigo 229.º da Constituição «as relações financeiras entre a República e as Regiões Autónomas» passam a ser reguladas por uma lei de valor reforçado, mas obrigatoriamente não estatutária [artigos 229.º, n.º 3, 164.º, alínea t), e 166.º, n.º 2, da Constituição].
Mantenho, todavia, o entendimento - que já expressei em declaração anexa ao Acórdão 581/2007 - de que a norma constante do n.º 2 do artigo 118.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira não pode ser considerada como parâmetro de legalidade por ser, ela própria, desconforme com o citado n.º 3 do artigo 229.º da Constituição. - Carlos Pamplona de Oliveira.