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Acórdão 632/2005/T, de 29 de Dezembro

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Texto do documento

Acórdão 632/2005/T. Const. - Processo 540/2003. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

A - Relatório. - 1 - Intimidades, Lingerie e Confecções, Lda., melhor identificada nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 1, alínea b), ambos da Lei 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade do artigo 405.º do Código Civil, quando interpretado "no sentido de que o princípio da liberdade contratual abrange a liberdade de as partes optarem livremente, em alternativa, pelo modelo contratual típico de arrendamento comercial ou pelo modelo contratual atípico comummente designado de contrato de instalação de lojista em centro comercial", por violação do "princípio da confiança do cidadão, emanado do princípio do Estado de direito democrático na sua vertente de Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa".

2 - Perscrutando os autos, deles resulta que:

2.1 - Em 14 de Março de 2000, Sonae Imobiliária - Gestão, S. A., melhor identificada nos autos, propôs contra Intimidades, Lingerie e Confecções, Lda., e Arménia Maria Ferreira dos Santos Carvalho Fonseca acção com processo ordinário, pedindo que seja declarado extinto por caducidade um contrato, que denomina de utilização de loja em centro comercial, que vigorava entre a autora, como empresa gestora do centro comercial em que tal loja se integrava, e a primeira ré, a quem a autora cedera a respectiva utilização mediante retribuição, pedindo a condenação da dita primeira ré a entregar-lhe a aludida loja, livre e desimpedida de pessoas e bens, e a condenação de ambas as rés (sendo a segunda como fiadora da primeira), a pagarem-lhe a importância de 1 440 000$, acrescida de juros legais, a título de indemnização pelos danos que lhe têm causado com a ocupação não titulada da loja ou a título de enriquecimento sem causa, bem como a quantia mensal de 288 000$ relativa à mesma ocupação desde Março de 2000 até à efectiva desocupação e entrega da loja (acrescida de juros moratórios e eventual actualização de valores), e a quantia mínima de 8000$ por cada dia de atraso na devolução, a título de sanção pecuniária compulsória, e todos os montantes indemnizatórios, acrescidos de juros, que venham a ser liquidados em execução de sentença.

2.2 - O juiz do Tribunal Cível do Porto - 1.ª Vara - conheceu, logo no despacho saneador, do mérito da causa, tendo julgado a acção parcialmente procedente, condenando as rés no pedido (salvo quanto à quantia de 1 440 000$ que considerou já paga à autora e aos meses de Março a Maio de 2000 por já se encontrarem depositados) e reduzindo a quantia de 288 000$ a 287 471$, não condenando a segunda ré na sanção pecuniária compulsória, e, por fim, condenando ambas no pagamento de despesas comuns e remuneração percentual desde Outubro de 1999 até efectiva desocupação, ao invés da condenação em montante a liquidar em execução de sentença.

2.3 - Não se conformando com tal decisão, as rés interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que, por Acórdão de 28 de Outubro de 2002, confirmou a sentença recorrida.

2.4 - Novamente inconformadas, as rés interpuseram, para o Supremo Tribunal de Justiça, recurso de revista, considerando nas suas alegações, quanto "a [uma] violação da Constituição", que:

"A qualificação jurídica dada aos contratos celebrados entre [a]os lojistas e os promotores dos centros comerciais, como sendo estes contratos atípicos, leva a uma solução injusta e abusiva.

O lojista recebe do promotor a loja 'paredes vazias', como é o caso em apreço, instala nela o seu estabelecimento comercial, concluindo, à sua custa, as obras necessárias para tal, fazendo a sua decoração, adquirindo o equipamento, nomeadamente mobiliário, prateleiras, máquinas e mercadorias, contratando pessoal e com fornecedores, obtendo as necessárias licenças administrativas.

O referido lojista, se celebra com o promotor do centro comercial um contrato do tipo do contrato que a 1.ª ré celebrou, pelo prazo de seis anos e com um[a] retribuição mensal fixa acordada e, findo o prazo inicial do contrato, tem de desfazer o estabelecimento comercial que naquele espaço instalara, sem qualquer compensação e sem que tenha a possibilidade de se manter na loja por um novo período contratual, com ou sem negociação prévia, porque o contrato celebrado, apesar de ter os elementos tipo do contrato de arrendamento, não o é, deixando o lojista, dono do estabelecimento comercial, sem espaço físico para o exercício do seu comércio, certo é que, prevalecendo esta interpretação - plasmada na sentença - violado é o princípio da confiança do cidadão, emanado do Estado de direito democrático, na sua vertente de estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.

Mas, o acórdão em revista viola ainda a Constituição porque interpreta e aplica a norma do artigo 405.º do Código Civil (única disposição legal em que se baseou) no sentido de que não existem quaisquer limitações à liberdade contratual, sendo as partes livres de 'fixar o conteúdo dos seus contratos, incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver, reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente tipificados, ou até de celebrar contratos diferentes dos previstos no catálogo legal, conforme decorre do disposto no artigo 405.º do Código Civil'."

E concluíram a sua argumentação sustentando que:

"1.ª As rés continuam a atender que no caso em apreço existem verdadeiros e justificados fundamentos para se atribuir ao presente recurso efeito meramente devolutivo, como se deixou expresso no requerimento de interposição de recurso.

2.ª Com efeito, discute-se nos presentes autos se o contrato celebrado entre as partes é um contrato de arrendamento ou um contrato atípico, que tem por objecto um estabelecimento comercial, este instalado num imóvel propriedade da recorrida; atribuindo-se ao presente recurso efeito devolutivo, as recorrentes terão de entregar de imediato à recorrida o imóvel onde está instalado o seu estabelecimento comercial, livre e devoluto.

3.ª E, como é notório, com a saída do estabelecimento comercial do local onde actualmente está instalado as recorrentes perderão, natural e inevitavelmente, clientela, insusceptível de avaliação pecuniária; por outro lado, a suspensão dos efeitos do acórdão recorrido não trará à recorrida qualquer prejuízo patrimonial uma vez que as recorrentes continuarão a pagar-lhe, como sempre o têm feito, atempadamente, as rendas do imóvel e pelo mesmo montante que a recorrida auferiria se o entregasse a outra entidade, conforme a própria recorrida o confessou nos seus articulados.

4.ª Os centros comerciais são edifícios que integram vários estabelecimentos comerciais harmoniosamente distribuídos, autónomos entre si, com donos próprios e com ramos de comércio diversificados.

5.ª O aglomerado, harmonioso, formado pelo conjunto das lojas de um centro comercial, apesar de potenciador de clientela, não é necessariamente um espaço privilegiado; há neles lojas bem situadas e lojas mal situadas.

6.ª O contrato celebrado entre o proprietário (o promotor ou explorador das lojas) e um comerciante, através do qual aquele cede a este o gozo temporário de uma loja (espaço físico) de um centro comercial, com paredes vazias, em tosco, mediante o pagamento de uma retribuição convencionada, e na qual o comerciante instala uma actividade comercial, qualifica-se juridicamente, no actual ordenamento jurídico português, como um contrato típico de arrendamento, de acordo com os critérios de qualificação dos contratos em típicos e atípicos.

7.ª Critério esse a que a nossa jurisprudência adere com mais frequência, o chamado critério da essentialia: a procura no contrato da identificação dos elementos essenciais de cada espécie contratual.

8.ª Também o critério (mais seguido pela doutrina) da causa - todo o contrato nominado possui uma função económico-social própria que se reflecte numa estrutura jurídica - nos levará à mesma qualificação do contrato em apreço; a causa da locação está na concessão do gozo temporário de uma coisa mediante retribuição.

9.ª É de arrendamento para comércio o contrato celebrado entre a autora e a 1.ª ré, em Julho de 1993, através do qual aquela cedeu a esta o gozo temporário (pelo prazo de seis anos) da loja (vazia) n.º 232 (situada) no piso 2 do centro comercial denominado Coimbrashoping, na cidade de Coimbra, mediante uma retribuição acordada, para que a 1.ª ré, por sua conta e risco, nela implantasse, como implantou, um estabelecimento de venda de artigos de lingerie.

10.ª O facto de a loja cedida se integrar num centro comercial, composto por um conjunto de 60 lojas e outros espaços destinados a actividades complementares, não confere ao contrato qualquer característica que lhe retire o quid do contrato típico; se o centro comercial potencia a clientela da loja, não afasta do contrato os elementos essenciais, específicos ou típicos do arrendamento.

11.ª A loja n.º 232 foi cedida pela autora à ré, em tosco, por um determinado lapso de tempo, tendo como fim a actividade comercial, mediante uma remuneração; a lei chama a estes contratos de arrendamento para comércio.

12.ª O acórdão em revista, sufragando na íntegra os fundamentos da sentença recorrida, classifica o contrato celebrado entre a autora e a ré, consubstanciado no documento de fl. 22 a fl. 33 dos autos, como um contrato inominado ou atípico, fundamentando-se no artigo 405.º do Código Civil, fez uma errada interpretação e aplicação da citada norma.

13.ª Porquanto, a liberdade negocial prevista no artigo 405.º do Código Civil permite a livre opção de escolha de qualquer tipo negocial, com as limitações impostas pela lei, ou seja, com submissão às regras imperativas dos contratos tipos, sem pôr em causa a função sócio-económica assumida pelo respectivo tipo contratual.

14.ª A prevalecer a interpretação plasmada na sentença recorrida, então a norma contida no artigo 405.º do Código Civil está ferida de inconstitucionalidade, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança do cidadão, emanados do Estado de direito democrático na sua vertente de Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da CRP.

15.ª A sentença recorrida violou as normas dos artigos 405.º do Código Civil, 64.º, 66.º e 68.º, n.º 2, do RAU.

16.ª O acórdão em revista deve ser revogado, por errada interpretação e aplicação da norma do artigo 405.º, e, em sua substituição, deve ser proferido outro que julgue improcedente a acção, e na íntegra, por ser o contrato em apreço [...] um típico contrato de arrendamento para comércio, sujeito ao regime vinculístico e imperativo da renovação automática, só podendo caducar se denunciado ou resolvido nos casos e situações especialmente previstas na lei."

2.5 - O Supremo Tribunal de Justiça julgou improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida com base nos fundamentos que infra se transcrevem:

"As questões restantes consistem, por um lado, em determinar se o contrato em causa constitui um típico contrato de arrendamento para comércio, sujeito às disposições de carácter vinculístico próprias desse contrato, ou integra um contrato atípico de instalação de lojista em centro comercial, não sujeito a tais disposições, e, por outro, em saber se se verifica inconstitucionalidade do artigo 405.º do Código Civil na interpretação feita pelo acórdão recorrido.

Ora, essas questões mostram-se bem decididas no acórdão recorrido, - como, aliás, já a primeira o estava na sentença da 1.ª instância, pelo mesmo acórdão confirmada -, o qual fez adequada qualificação jurídica do contrato em causa e correcta interpretação e aplicação das disposições legais respeitantes aos factos em apreço, com ele, por isso, se concordando inteiramente, quer quanto à decisão nele tomada, quer quanto aos seus fundamentos, a que se adere e para que se remete ao abrigo do disposto nos artigos 726.º e 713.º referidos, este no seu n.º 5.

Entende-se, com efeito, que a nova realidade traduzida nos centros comerciais reveste tal complexidade que, pelas razões de forma exaustiva expostas no acórdão recorrido e na sentença da 1.ª instância, se torna incompatível com o regime próprio dos contratos de arrendamento de prédios urbanos para fins comerciais apesar da existência de elementos comuns, o que determina a qualificação dos contratos de instalação de lojistas nos respectivos espaços de tais centros, não por virtude da sua localização geográfica mas por força da organização em que ficam integrados, e precisamente face à sua característica de integração empresarial, inexistente nos contratos de arrendamento, como contratos atípicos, por se tratar de relações jurídicas ainda não legalmente regulamentadas de forma específica. É isto o que vem sido entendido maioritariamente na doutrina e na jurisprudência, com destaque para os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 12 de Julho de 1994 (comentado por Antunes Varela, em Centros Comerciais, 1995), de 24 de Outubro de 1996 (Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano IV, t. III, p. 72) e de 18 de Março de 1997 (Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça,, ano V, t. II, p. 26), do que resulta ter de se concluir não serem aplicáveis a tais contratos as normas legais respeitantes aos contratos de arrendamento, inclusive as que consagram a renovação automática após o termo do período acordado para a sua vigência, mesmo contra a vontade do senhorio (artigos 1054.º do Código Civil e 68.º, n.º 2, do RAU), tanto mais que se torna necessário que a entidade que administra ou explora o centro e celebra os contratos com os lojistas tenha liberdade de pôr rapidamente termo, no fim do respectivo prazo de duração, a algum contrato cuja subsistência, nomeadamente pela conduta do respectivo lojista ou pelo género de comércio a que se dedique, possa afectar o interesse geral do todo o orgânico que é o centro comercial, e portanto o interesse da sobrevivência dos demais que se integram na vasta organização que tal centro constitui.

Igualmente quanto à questão de inconstitucionalidade se concorda inteiramente com o decidido no acórdão recorrido e na sua fundamentação, pois a interpretação feita do artigo 405.º do Código Civil em nada colide com os princípios constitucionais da segurança jurídica e da confiança dos cidadãos, na medida em que estes, no exercício da faculdade de liberdade contratual naquele dispositivo consagrada, podem livremente optar pelos modelos contratuais que entendam desde que se mantenham dentro dos limites da lei, ficando por via disso titulares dos direitos e sujeitos às obrigações do modelo, típico ou atípico, adoptado; e, na hipótese dos autos, as rés limitaram-se a usar dessa faculdade, optando expressamente pela celebração do contrato atípico conhecido por instalação de lojista em centro comercial [...] e não pela celebração do contrato típico de arrendamento comercial. Foi apenas esse o resultado da interpretação que o acórdão fez daquele dispositivo, atendendo à vontade das partes declarada no contrato, e aplicando-o aos factos assentes, sem que se detecte na interpretação adoptada, que nitidamente obedece ao princípio da liberdade contratual, a mínima inconstitucionalidade."

2.6 - Notificadas da decisão, as rés/recorrentes interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, afirmando, no requerimento de interposição, que:

"O recurso é interposto ao abrigo do artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 1, alínea b), ambos da Lei 28/82, de 15 de Novembro.

Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 405.º do Código Civil, com a interpretação com que foi aplicada nas decisões de 1.ª instância, ainda assumida pelo Tribunal da Relação e seguida por este Supremo Tribunal, interpretação esta segundo a qual não existem quaisquer limitações à liberdade contratual, sendo as partes livres 'de fixar o conteúdo dos seus contratos, incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver, reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente tipificados, ou até de celebrar contratos diferentes dos previstos no catálogo legal, conforme decorre do disposto no artigo 405.º do Código Civil'.

Apelando aos ensinamentos do Professor Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, 2.ª ed., p. 215), 'Tal, porém, como a liberdade de contratar, também a regra de livre fixação do conteúdo do contrato está sujeita a limitações. Pode mesmo dizer-se que, uma vez destruídos os pressupostos fundamentais em que assentava o liberalismo económico e afastada pelo intervencionismo político-económico a relutância do Estado em se intrometer nas relações do comércio privado, essas limitações se têm multiplicado de forma acentuada nas modernas legislações, principalmente naqueles contratos (como o de trabalho, o arrendamento, o seguro, os negócios bancários, os transportes, etc.) em que afloram, com mais frequência ou maior intensidade, ponderosos interesses colectivos ao lado de meros interesses particulares.

Entre os fins visados por semelhantes restrições destacam-se o de garantir quanto possível a justiça real (não a simples justiça formal expressa pela igualdade jurídica dos contraentes) nas relações entre as partes, acima da desigualdade económica e da diversa condição social que muitas vezes as separa, e o de preservar a integridade de certos valores essenciais à vida de relação, como sejam a moral pública, os bons costumes, a confiança recíproca dos contraentes, a segurança do comércio jurídico e a certeza do direito.

Todas estas restrições se podem considerar englobadas genericamente nas palavras introdutórias do artigo 405.º, dentro dos limites da lei.'

Tal interpretação viola o princípio da confiança do cidadão, emanado do princípio do Estado de direito democrático na sua vertente de Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.

A questão de inconstitucionalidade foi suscitada quer pelas alegações de apelação dirigidas ao Tribunal da Relação do Porto quer nas alegações de revista dirigidas a este Supremo Tribunal.

Nestes termos [...] requer [...] que se digne admitir o presente recurso [...] e o julgamento da interpretação da norma do artigo 405.º do Código Civil inconstitucional por violação do artigo 2.º da CRP."

2.7 - Após deferimento de reclamação de decisão de não conhecimento do objecto do recurso (v. Acórdão 595/2004), a recorrente apresentou as suas alegações, sintetizando-as nas seguintes conclusões:

"1.ª Vem o presente recurso interposto para este venerando Tribunal ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 1, alínea b), da LTC, pretendendo as recorrentes ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 405.º do Código Civil com a interpretação com que foi aplicada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Maio de 2003.

2.ª A questão de fundo cinge-se à querela da qualificação jurídica dos contratos celebrados entre a entidade exploradora de um centro comercial e o comerciante que nele se instala com vista à exploração de um estabelecimento comercial num dos seus espaços físicos.

3.ª O acórdão recorrido (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Maio de 2003) classificou o contrato celebrado entre a recorrente Intimidades e a recorrida Sonae como sendo um contrato atípico ou inominado.

4.ª Pelo contrário, entendem as recorrentes que o contrato celebrado entre o proprietário (o promotor ou explorador das lojas) e um comerciante, através do qual aquele cede a este o gozo temporário de uma loja (espaço físico) de um centro comercial, com paredes vazias, em tosco, mediante o pagamento de uma retribuição convencionada, e na qual o comerciante instala uma actividade comercial, qualifica-se juridicamente, no actual ordenamento jurídico português, como um contrato típico de arrendamento, de acordo com o critério de qualificação dos contratos em típicos e atípicos.

5.ª Critério esse a que a nossa jurisprudência adere com mais frequência, o chamado critério dos essentialia: a procura no contrato da identificação dos elementos essenciais de cada espécie contratual.

6.ª Também o critério (mais seguido pela doutrina) da causa todo o contrato nominado possui uma função económico-social própria que se reflecte numa estrutura jurídica - nos levará à mesma qualificação do contrato em apreço; a causa da locação está na concessão do gozo temporário de uma coisa mediante retribuição (cf. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral).

7.ª Entendem as recorrentes que o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, interpretou o artigo 405.º do Código Civil no sentido de que o princípio da liberdade contratual abrange a liberdade de as partes optarem livremente, em alternativa, pelo modelo contratual típico de arrendamento comercial ou pelo modelo contratual atípico comummente designado de contrato de instalação de lojista em centro comercial.

8.ª Desta forma o acórdão recorrido viola a Constituição, uma vez que interpreta e aplica a norma do artigo 405.º do Código Civil no sentido de que não existem quaisquer limitações à liberdade contratual.

9.ª A liberdade negocial prevista no artigo 405.º do Código Civil, permite a livre opção de escolha de qualquer tipo contratual, com as limitações impostas pela lei, nomeadamente com submissão às regras imperativas dos contratos tipos, sem pôr em causa a função sócio-económica assumida pelo respectivo tipo contratual.

10.ª O RAU (Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro) regula o arrendamento para a habitação, comércio, indústria e profissões liberais, sendo a ideia subjacente a da protecção dos interesses dos arrendatários, parte entendida como mais fraca nas relações locatícias.

11.ª Tendo em vista a protecção daqueles interesses, o legislador retirou à livre estipulação das partes determinados aspectos do regime da relação locatícia, criando muitas normas de carácter imperativo e assim limitando nessa medida a liberdade contratual das partes.

12.ª Com efeito, confrontado com dois princípios fundamentais do direito civil - o princípio da liberdade contratual e o princípio da protecção da parte contratualmente mais fraca - o legislador optou, claramente, pela limitação da autonomia da vontade.

13.ª Ora, a celebração de um contrato denominado de 'atípico', com o conteúdo do contrato celebrado entre a recorrida Sonae e a recorrente Intimidades Lingerie, mais não significa que defraudar o RAU e os interesses que lhe estão implícitos, relegando para o plano secundário a protecção dos interesses dos arrendatários.

14.ª O acórdão recorrido, ao entender que as partes são livres de optar, em alternativa, entre o esquema típico do contrato de arrendamento e o contrato 'atípico' designado de instalação de lojista em centro comercial, violou o princípio da confiança do cidadão, emanado do princípio do Estado de direito democrático na sua vertente de Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.

15.ª Não se pode falar em contrato atípico quando se verificam todos os elementos essenciais de um contrato típico só com a finalidade de subtrair o contrato ao regime vinculístico do arrendamento!

16.ª Entendem as recorrentes que a doutrina que defende que o contrato em causa é um contrato atípico tem valor apenas como chamada de atenção para o legislador, no sentido de dever este regulamentar de forma particular este tipo de contratos, adaptando a regulamentação do contrato de arrendamento comercial às novas realidades do comércio jurídico.

17.ª Cabendo ao intérprete apenas a função de interpretar e aplicar a lei actual e não revogá-la ou alterá-la!

18.ª Em suma, a interpretação da norma contida no artigo 405.º do Código Civil plasmada no acórdão recorrido encontra-se ferida de inconstitucionalidade, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança do cidadão, emanados do Estado de direito democrático na sua vertente de Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa."

2.8 - A recorrida pugnou, nas suas contra-alegações, pela improcedência do recurso.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

B - Fundamentação. - 3 - O objecto do recurso consiste em sindicar se o artigo 405.º do Código Civil quando interpretado "no sentido de que o princípio da liberdade contratual abrange a liberdade de as partes optarem livremente, em alternativa, pelo modelo contratual típico de arrendamento comercial ou pelo modelo contratual atípico comummente designado de contrato de instalação de lojista em centro comercial", é inconstitucional por violação do "princípio da confiança do cidadão, emanado do princípio do Estado de direito democrático, na sua vertente de Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa".

3.1 - No artigo 405.º do Código Civil dispõe-se, sob a epígrafe "Liberdade contratual", que:

"1 - Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste Código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver.

2 - As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei."

3.2 - Por sua vez, o artigo 2.º, "Estado de direito democrático", da Constituição da República Portuguesa, de onde a recorrente extrai o "princípio da confiança do cidadão", tem a seguinte formulação:

"A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia representativa."

4 - O presente recurso de constitucionalidade tem subjacente, ao nível da questão jurídica decidida pelas instâncias, um nódulo problemático que não tem reunido um tratamento consensual, seja ao nível da dogmática juscivilística, seja ao nível da jurisprudência que sobre ele já se pronunciou.

O problema da qualificação dos "contratos de instalação de lojistas em centros comerciais" não é, ainda hoje, ultrapassado o "impacte" ou o "choque" do confronto com o pedaço da realidade recente que o postulou, uma matéria pacífica.

Uns defendem que a relação contratual estabelecida entre a entidade gestora de um centro comercial e o(s) lojista(s) se enquadra no âmbito do tipo legal do arrendamento para comércio (cf., na doutrina, inter alia, Galvão Telles, "Contrato de utilização de espaços nos centros comerciais", in O Direito, ano 123.º, t. IV, 1991, pp. 521 e segs., e "Utilização de espaços nos shopping centers - Parecer com a colaboração de Januário Gomes", in Colectânea de Jurisprudência, ano XV, t. II, 1990, pp. 25 e segs., Coutinho de Abreu, Da Empresarialidade - As Empresas no Direito, Coimbra, 1999, pp. 320 e segs., e Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 3.ª ed., Coimbra, 2001, pp. 259 e segs., e Os Centros Comerciais e o Seu Regime Jurídico, 2.ª ed., Coimbra, 1998, pp. 51 e segs.; v., também, ao nível da jurisprudência, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Abril de 1984, de 26 de Novembro de 1992 e de 14 de Outubro de 1997, publicados, respectivamente, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 122.º, pp. 59 e segs., no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 421, de 1992, pp. 435 e segs., e na Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano V, t. III, pp. 77 e segs.).

Outros sustentam que os contratos de instalação de lojistas em centro comercial se configuram como sendo legalmente atípicos, não estando, por isso, sujeitos ao regime vinculístico da relação arrendatícia [cf., neste sentido, Antunes Varela, "Anotação ao Acórdão do STJ de 26 de Abril de 1984", in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 122.º, pp. 62 e segs.; "Os centros comerciais (shopping centers)", in Estudos de Homenagem ao Professor Doutor A. Ferrer Correia, vol. II, Coimbra, 1989, pp. 43 e segs.; Centros Comerciais (Shopping Centers) - Natureza Jurídica dos Contratos de Instalação dos Lojistas, Coimbra, 1995; Oliveira Ascenção, "Lojas em centros comerciais; integração empresarial; forma - Anotação ao Acórdão do STJ de 24 de Março de 1992", in Revista da Ordem dos Advogados, ano 54.º, 1994, pp. 819 e segs.; Pedro Pais de Vasconcelos, "Contratos de utilização de lojas em centros comerciais - Qualificação e forma", in Revista da Ordem dos Advogados, ano 56.º, 1996, pp. 535 e segs.; Pedro Malta da Silveira, A Empresa nos Centros Comerciais e a Pluralidade de Estabelecimentos - Os Centros Comerciais como Realidade Juridicamente Relevante, Coimbra, 1999, pp. 186 e segs., e Rui Pinto Duarte, Tipicidade e Atipicidade dos Contratos, Coimbra, 2000, pp. 165 e segs.; na jurisprudência, vê-se reflectida esta posição, inter alia, nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Abril de 1994 e de 1 de Fevereiro de 1995, publicados, respectivamente, na Colectânea de Jurisprudência, ano XIX, t. II, pp. 59 e segs., e na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 128.º, n.os 3858 e 3859, pp. 307 e segs.].

Numa linha matizante destas posições, há também quem defenda, "constatando [...] uma deformação 'por excesso' do tipo legal arrendamento para o exercício de comércio", uma qualificação do "contrato de instalação de lojista em centro comercial como 'inominado impróprio' ou 'atípico misto'", uma vez que "os contraentes partem, é certo, da celebração de um contrato de cedência do gozo de um espaço para o exercício de uma actividade comercial, mas este é adaptado aos interesses e características específicas do centro comercial" - neste sentido, cf. Ana Isabel da Costa Afonso, Os contratos de Instalação de Lojistas em Centros Comerciais - Qualificação e Regime Jurídico, Porto, 2003, pp. 231 e segs.

Na decisão recorrida prevaleceu a tese da inaplicabilidade das normas do contrato de arrendamento para comércio aos contratos de instalação de lojistas em centro comercial, tendo o tribunal justificado esse entendimento com a consideração de que "a nova realidade traduzida nos centros comerciais reveste tal complexidade que, pelas razões de forma exaustiva expostas no acórdão recorrido e na sentença da 1.ª instância, se torna incompatível com o regime próprio dos contratos de arrendamento de prédios urbanos para fins comerciais apesar da existência de elementos comuns, o que determina a qualificação dos contratos de instalação de lojistas nos respectivos espaços de tais centros, não por virtude da sua localização geográfica mas por força da organização em que ficam integrados, e precisamente face à sua característica de integração empresarial, inexistente nos contratos de arrendamento, como contratos atípicos, por se tratar de relações jurídicas ainda não legalmente regulamentadas de forma específica. É isto o que vem sido entendido maioritariamente na doutrina e na jurisprudência, com destaque para os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 12 de Julho de 1994 (comentado por Antunes Varela, em Centros Comerciais, 1995), de 24 de Outubro de 1996 (Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano IV, t. III, p. 72) e de 18 de Março de 1997 (Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano V, t. II, p. 26), do que resulta ter de se concluir não serem aplicáveis a tais contratos as normas legais respeitantes aos contratos de arrendamento, inclusive as que consagram a renovação automática após o termo do período acordado para a sua vigência, mesmo contra a vontade do senhorio (artigos 1054.º do Código Civil e 68.º, n.º 2, do RAU), tanto mais que se torna necessário que a entidade que administra ou explora o centro e celebra os contratos com os lojistas tenha liberdade de pôr rapidamente termo, no fim do respectivo prazo de duração, a algum contrato cuja subsistência, nomeadamente pela conduta do respectivo lojista ou pelo género de comércio a que se dedique, possa afectar o interesse geral do todo orgânico que é o centro comercial, e portanto o interesse da sobrevivência dos demais que se integram na vasta organização que tal centro constitui".

E, com relevância para o presente recurso de constitucionalidade, o Supremo Tribunal de Justiça acrescentou que "a interpretação feita do artigo 405.º do Código Civil em nada colide com os princípios constitucionais da segurança jurídica e da confiança dos cidadãos, na medida em que estes, no exercício da faculdade de liberdade contratual naquele dispositivo consagrada, podem livremente optar pelos modelos contratuais que entendam desde que se mantenham dentro dos limites da lei, ficando por via disso titulares dos direitos e sujeitos às obrigações do modelo, típico ou atípico, adoptado; e, na hipótese dos autos, as rés limitaram-se a usar dessa faculdade, optando expressamente pela celebração do contrato atípico conhecido por instalação de lojista em centro comercial [...] e não pela celebração do contrato típico de arrendamento comercial. Foi apenas esse o resultado da interpretação que o acórdão fez daquele dispositivo, atendendo à vontade das partes declarada no contrato e aplicando-o aos factos assentes, sem que se detecte na interpretação adoptada, que nitidamente obedece ao princípio da liberdade contratual, a mínima inconstitucionalidade".

Vejamos, pois, se o critério normativo supra-identificado padece da invocada inconstitucionalidade.

4.1 - Começando por enquadrar e densificar o sentido jurídico-normativo subjacente ao reconhecimento, corporizado na norma em crise, da "liberdade contratual", pode dizer-se que, qua tale, estamos perante a afirmação de um princípio transpositivo - conformador, portanto, do universo juscivilista - que constitui, em si, expressão de uma ineliminável e suprapositiva autonomia privada.

De facto, perspectivado esse auto-nomos - que radica na pressuposição axiológica da pessoa humana, enquanto centro de imputação de uma inviolável dignidade ética -, como a essência de uma livre autodeterminação pessoal (v. Konrad Hesse, Derecho Constitucional y Derecho Privado, trad. de Ignacio Gutiérrez Gutiérrez, Madrid, 1995, p. 77), desenvolvida comunitariamente num "processo de ordenação que faculta a livre constituição e modelação de relações jurídicas pelos sujeitos que nelas participam, que ficam obrigados à observância dos efeitos vinculativos da regra por si criada" (cf. Sousa Ribeiro, O Problema do Contrato. As Cláusulas Contratuais Gerais e o Princípio da Liberdade Contratual, Coimbra, 1999, pp. 21 e segs.), não pode deixar de sublinhar-se a dignidade constitucional da autonomia privada, que, compreensivelmente, irradia a concreta manifestação desta como liberdade contratual (sobre o princípio da liberdade contratual e a autonomia privada, cf., entre outros, Pugliatti, "Autonomia privata", n.º 5, Enciclopedia del Diritto; Carlos Alberto Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed. por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra, 2005, pp. 102 e segs.; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 8.ª ed., pp. 240 e segs.; Capelo de Sousa, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, Coimbra, 2003, pp. 57 e segs.; v., também, sobre a "relação" desse princípio com a ordem constitucional, Konrad Hesse, Derecho Constitucional y Derecho Privado, cit., pp. 75 e segs., especialmente pp. 86-87; Francisco Neto, "A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica. Perspectivas estrutural e funcional", in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Ferrer Correia, cit., pp. 29 e segs., e Ana Isabel da Costa Afonso, Os contratos de Instalação de Lojistas em Centros Comerciais, cit., pp. 124 e segs.).

4.2 - Todavia, mesmo reconhecendo, na liberdade contratual, esse fundamento nuclear constitucionalmente comprometido, não pode ignorar-se que não nos encontramos perante um princípio absoluto e ilimitado. É, aliás, a própria norma do Código Civil que começa por afirmar que "Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver (itálico aditado)".

São conhecidos os motivos subjacentes à imposição, ex lege, de um conjunto de normas de carácter imperativo ou injuntivo que cerceiam, com uma geometria variável, o princípio da liberdade de contratar e de livremente fixar o conteúdo dos contratos. Desde razões de ordem pública, justificadas pela segurança do tráfego jurídico, até ao reconhecimento de uma diferenciada posição fáctica das partes, a justificar uma regulamentação de tutela dos interesses da "parte mais fraca" - não raras vezes, com a finalidade de realizar prático-normativamente a intenção material da liberdade contratual -, não é difícil encontrar no direito dos contratos exemplos típicos da imposição de um regime vinculístico, insusceptível de modelação ex voluntate dos particulares, sendo essas derrogações - recte, limitações - da liberdade contratual acopladas de um potencial sancionatório, determinante da invalidade de qualquer disposição contratual que se lhes oponha, assim se inviabilizando uma "fraude à lei" orientada a contornar as imposições legais.

4.3 - Considerou o Supremo Tribunal de Justiça que a qualificação do contrato celebrado pelas partes aqui em juízo se conformava e compatibilizava com os "limites da lei", estando, assim, abrangido por legítimo exercício da liberdade contratual.

Tal qualificação jurídica teve como base pressuponente a interpretação da vontade das partes, tal como esta se encontra espelhada no texto contratual, daí resultando, em consideração do conteúdo clausulado e atendendo à realidade disciplinada, a qualificação do contrato como de "instalação de lojista em centro comercial".

Note-se, a esse propósito, que, na economia da decisão recorrida, a "liberdade de opção" não vai configurada em termos puramente nominalísticos, de forma que o mesmo contrato pudesse ficar sujeito a dois regimes diferenciados, deixando de existir qualquer marca de contraste ou critério distintivo susceptível de recortar juridicamente as diferenças de um regime concretamente estabelecido.

O que aí se deixa em aberto é a possibilidade de as partes concluírem um contrato susceptível de ser qualificado como de arrendamento para comércio, ou um outro, em função da realidade que nele fosse vertida e da vontade contratual que se manifestasse - e, in casu, não pode ignorar-se que a qualificação operada arranca precisamente desse pressuposto.

Pelo que, segundo o critério do Tribunal, se a relação jurídico-contratual estabelecida entre as partes não pode caracterizar-se como uma relação arrendatícia, e se, nessa medida, elas não se encontram vinculadas pelo regime imperativo que rege os contratos de arrendamento, fica legitimada a possibilidade de livre fixação do conteúdo do contrato. Por outras palavras, dir-se-á que, segundo esse critério, o regime do arrendamento para comércio não pode ter-se como o regime próprio - e, por isso, vinculativo, imperativo - da instalação de lojistas em centros comerciais.

4.4 - Ora, este entendimento, onde se renova a qualificação jurídica operada pelas instâncias, é, na perspectiva do recurso de constitucionalidade, insindicável, não cabendo a este Tribunal qualquer pronúncia sobre o mérito jurídico da decisão recorrida, na aplicação que aí vai feita ao caso concreto.

Não cabe, assim, neste recurso - que é de fiscalização normativa - a produção de um qualquer juízo sobre a controvérsia de que se deu conta, designadamente quanto à questão de saber se existe ou deve existir - tal liberdade de opção entre os referidos modelos contratuais, mas apenas - e só - a sindicância do critério normativo mobilizado pelo Supremo Tribunal de Justiça para decidir, aceitando-se como "um dado" o juízo aplicativo determinado pela decisão recorrida, relativamente à qualificação do contrato celebrado entre as partes, cumprindo apenas apurar se, em tais circunstâncias, a liberdade de as partes poderem optar pela celebração de um contrato legalmente típico de arrendamento para comércio ou pela conclusão de um contrato - apenas socialmente típico, mas legalmente atípico ou inominado - de instalação de lojista em centro comercial, estando essa opção legitimada, na perspectiva do Supremo, pela liberdade contratual e ainda integrada "dentro dos limites da lei", há-de ter-se por violadora do princípio da protecção da confiança, materialmente ínsito na concepção de um Estado de direito democrático.

4.5 - Perante este quadro, pode afirmar-se que o critério normativo em crise não contraria o referido princípio da protecção da confiança do cidadão.

Na verdade, desde logo, esse princípio não tem a virtualidade de impor que seja recusada às partes a possibilidade de contratar em termos distintos dos que a lei prevê num contrato típico, como o do arrendamento, e nos casos em que se verificam as especificidades aludidas, e que, aliás, justificaram o debate doutrinal e jurisprudencial referido.

Assim, bem vistas as coisas, o que a "liberdade de opção" assumida pelo Tribunal a quo acaba por determinar não é mais que o cumprimento do clausulado pré-estabelecido e a vinculação a uma vontade manifestada por acordo, fazendo-se prevalecer o que foi, em concreto, contratado.

De facto, reconhecendo-se às partes liberdade de opção e escolha contratuais, as partes podiam - e deviam - contar, antes de mais, com o cumprimento das regras por elas estabelecidas na modelação do conteúdo do contrato, podendo mesmo sustentar-se, com ressalva das situações características de um autêntico venire contra factum proprium, que uma alteração do sentido contratual, por interposição de um regime legal imperativo, não deixa também de ir contra a vontade expressa pelo contraente que dela poderá aproveitar, porquanto determina o afastamento de uma norma à qual se deu prévio acordo.

Assim, admitindo-se, no âmbito de uma determinada relação jurídica, a existência de uma esfera de liberdade contratual, não se compreende como o resultado do seu exercício, em conformidade com uma vontade declarada, possa ser tido como surpreendente e inesperado, para um determinado contraente.

Tal só sucederia, justamente, na hipótese inversa em que não se reconhecesse a existência dessa margem de liberdade e se vinculassem as partes, ex lege, a um específico tipo contratual. Aí sim, poderia discutir-se a sorte das disposições do contrato que contendessem com o regime legal injuntivo.

Contudo, in casu, o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça foi, ao invés, o de reconhecer às partes, atendendo à realidade disciplinada, a liberdade de fixação do conteúdo do contrato. Pressuposta essa liberdade, hão-de as partes conformar-se com o regime convencionado.

Nem se diga, por isso, na lógica do discurso formulado pela recorrente, que sempre haveria de tutelar-se a confiança do contraente que, partindo da qualificação do contrato como de arrendamento, contaria com a aplicação do regime nele estabelecido e com as correspondentes limitações à liberdade contratual para fixar um regime diverso.

Na verdade, como se afirmou, uma tal hipótese acabaria por radicar no pressuposto de não se admitir a referida "liberdade de opção". Mas não foi esse o critério seguido pelo Tribunal.

Pelo que, impõe-se concluir que o artigo 405.º do Código Civil, quando interpretado no sentido de que o princípio da liberdade contratual abrange a liberdade de as partes optarem livremente pelo modelo contratual típico de arrendamento comercial ou pelo modelo contratual atípico comummente designado de contrato de instalação de lojista em centro comercial não é inconstitucional por violação do "princípio da confiança do cidadão, emanado do princípio do Estado de direito democrático na sua vertente de Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa".

C - Decisão. - 5 - Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.

Lisboa, 15 de Novembro de 2005. - Benjamim Rodrigues - Paulo Mota Pinto - Maria Fernanda Palma - Mário José de Araújo Torres - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2365296.dre.pdf .

Ligações deste documento

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  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1990-10-15 - Decreto-Lei 321-B/90 - Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

    Aprova o regime do arrendamento urbano.

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