Acórdão 565/2005/T. Const. - Processo 806/2005. - Acordam em plenário no Tribunal Constitucional:
1 - José David Gonçalves da Rocha, na qualidade de candidato e representante da lista do Partido Socialista na eleição para a Assembleia de Freguesia de Avintes, interpôs recurso contencioso da deliberação da 1.ª assembleia de apuramento geral do município de Vila Nova de Gaia que indeferiu reclamação que apresentou contra a decisão de manter a qualificação de sete votos como votos nulos.
Alega, em síntese, que nos correspondentes boletins de voto - sendo dois na mesa n.º 1, dois na mesa n.º 2 e três na mesa n.º 6 da assembleia de voto daquela freguesia - os eleitores manifestaram, de forma clara e inequívoca, a vontade expressa de votar no Partido Socialista, pelo que ao não contá-los como votos válidos a assembleia de apuramento geral violou o disposto no n.º 2 do artigo 133.º da lei aprovada pela Lei Orgânica 1/2001, de 14 de Agosto (LEOAL). E que, se esses votos indevidamente considerados nulos fossem validados, a lista do Partido Socialista obteria a maioria absoluta no órgão a que a eleição respeita.
Notificados nos termos do n.º 3 do artigo 159.º da LEOAL, os representantes das forças políticas concorrentes à eleição para o órgão em causa responderam que o recurso deve improceder, em síntese útil, pelo seguinte:
A CDU - Coligação Democrática Unitária.
Não consta das actas de apuramento local da freguesia de Avintes a referência a reclamações ou protestos relativamente aos critérios usados na qualificação dos votos expressos.
No decurso dos trabalhos da assembleia de apuramento geral foi definido um critério de apreciação dos votos nulos, que foi aplicado com uniformidade, do qual resulta que a colocação da "cruz" em cima dos símbolos partidários não tornaria válidos os votos considerados nulos. A validação dos votos pretendida pelo recorrente só poderia ter lugar se fosse reformulado esse critério e no âmbito de uma reapreciação global de todos os votos e não apenas dos que beneficiam o Partido Socialista.
O grupo de cidadãos eleitores Movimento de Avintes Independente.
O recurso deve ser indeferido, confirmando-se a deliberação da assembleia de apuramento geral, que é órgão legítimo e considerou, face à lei e às boas práticas, nulos os votos reclamados. A pretensão do recorrente de ver validados os votos que favorecem a lista do Partido Socialista só seria legítima no âmbito de uma análise de todos os votos que, por aplicação do mesmo critério, foram considerados nulos, o que justificaria a convocação, para melhor esclarecimento do Tribunal, de todos os membros das mesas de voto e da assembleia geral, bem como dos delegados das listas.
A coligação eleitoral Gaia na Frente.
É inequívoco que deve considerar-se nulo o voto em que a "cruz" é colocada totalmente fora do quadrado, ainda que o seja em cima da própria sigla.
O grupo de cidadãos eleitores Avintes com Futuro.
Em cada mesa eleitoral, nomeadamente naquelas a que respeitam os votos que o recorrente quer ver considerados válidos, esteve presente, no momento da contagem dos votos, pelo menos, um representante do Partido Socialista, que não apresentou qualquer reclamação ou protesto.
Foram requisitados os boletins de voto em causa, bem como elementos sobre a data de afixação do edital contendo a publicação dos resultados do apuramento geral.
2 - Resulta dos elementos juntos aos autos o seguinte:
a) No início dos respectivos trabalhos, a assembleia de apuramento geral (1.ª assembleia) das eleições para os órgãos das autarquias locais da área do município de Vila Nova de Gaia, reunida entre os dias 11 e 13 de Outubro de 2005, convencionou "por unanimidade e mediante a interpretação do artigo 133.º da Lei Eleitoral, considerar válidos somente os votos que mostrassem por forma inequívoca a escolha feita pelos eleitores, escolha essa feita pela colocação do sinal respectivo (total ou parcial) no lugar próprio para manifestação da vontade".
b) Relativamente à eleição para a Assembleia de Freguesia de Avintes, a assembleia reapreciou e manteve a qualificação como "voto nulo" dos boletins que como tal haviam sido considerados no apuramento local das secções n.os 1, 2 e 6 da assembleia de voto da referida freguesia.
c) O ora recorrente apresentou a seguinte reclamação:
"O representante da candidatura do Partido Socialista de Vila Nova de Gaia, na 1.ª assembleia de apuramento geral das eleições autárquicas de 2005, vem reclamar das deliberações sobre a manutenção da nulidade dos votos já considerados nulos em diversas mesas de apuramento local, considerando que em sete votos para a Assembleia de Freguesia foi expressa uma inequívoca vontade dos eleitores em votar no Partido Socialista.
Os votos em causa encontram-se distribuídos pelas seguintes mesas de voto da freguesia de Avintes:
Mesa 1 - dois votos;
Mesa 2 - dois votos;
Mesa 6 - três votos.
Pelo que se requer que os referidos votos sejam considerados válidos."
d) Sobre a qual recaiu a seguinte deliberação:
"No que concerne à reclamação apresentada pelo representante da candidatura do PS, José David Gonçalves da Rocha, foi deliberado, por maioria de sete votos a favor e um contra, indeferir tal reclamação, porquanto, os votos nulos das mesas n.os 1, 2 e 6 da freguesia de Avintes já foram reapreciados segundo o critério uniforme definido no início dos trabalhos da presente assembleia, mantendo-se na íntegra tal reapreciação quanto ao número de votos nulos das mesas acima identificadas."
e) Segundo a respectiva certidão (fl. 114), a afixação do edital de publicação dos resultados do apuramento geral ocorreu, quanto à 1.ª assembleia, em 14 de Outubro de 2005.
f) A petição inicial do presente recurso e demais documentos que a acompanhavam foram recebidos no Tribunal, por telecópia, cuja transmissão decorreu entre as 16 horas e 33 minutos e as 16 horas e 43 minutos do mesmo dia 14 de Outubro de 2005.
3 - Atendendo a que, segundo a respectiva certidão (fl. 114), que não foi posta em causa, os resultados da 1.ª assembleia de apuramento geral foram publicados por edital emitido a 13 de Outubro, mas afixado a 14 de Outubro de 2005 (sexta-feira), o recurso é tempestivo. O termo do prazo estabelecido pelo artigo 158.º da LEOAL recaiu num sábado, pelo que se transferiu para o 1.º dia útil seguinte, dia 17 de Outubro [artigo 278.º, alínea e), do Código Civil]. Ora, o requerimento inicial foi recebido, por telecópia, no próprio dia de afixação do edital, portanto seguramente antes do termo do prazo, que ocorreria no dia 17 de Outubro (segunda-feira).
4 - As respostas da CDU e de Avintes com Futuro destacam, entre as razões para a pretensão do recorrente não ser atendida, o facto de, no apuramento local, não ter havido reclamação ou protesto contra a decisão aí tomada de considerar nulos os votos cuja validade agora se discute. Está assim colocada e tem de ser apreciada - independentemente da qualificação como obstáculo ao conhecimento ou ao provimento do recurso contencioso - a questão, que, aliás, também poderia ser conhecida oficiosamente, de saber se a existência de reclamação ou protesto no apuramento local é pressuposto do recurso contencioso de decisão da assembleia de apuramento geral que mantenha a qualificação como nulos de votos já como tal considerados no apuramento local.
A questão coloca-se porque o n.º 1 do artigo 156.º da LEOAL dispõe que as irregularidades ocorridas no decurso da votação e no apuramento local ou geral podem ser apreciadas em recurso contencioso, desde que hajam sido objecto de reclamação ou protesto apresentado no acto em que se verificaram, o que significa, segundo a jurisprudência corrente do Tribunal, que a ocorrência de reclamação ou protesto - sem que à economia da decisão interesse a distinção material destas duas figuras do direito eleitoral - constitui pressuposto do recurso contencioso. Poder-se-ia pensar que, mantendo a decisão da assembleia de apuramento geral o sentido de uma decisão tomada no apuramento local, foi neste primeiro momento que a situação de invalidade do voto foi definida, pelo que na falta de reclamação aí apresentada o interessado não poderia, mais tarde, reagir contenciosamente.
Há, todavia, que ter presente toda a disciplina do apuramento eleitoral relativo aos votos nulos para resolver esta questão, isto é, para saber qual é o acto em que a ilegalidade contra a qual se quer reagir deve considerar-se verificada, para efeitos da parte final do n.º 1 do artigo 156.º da LEOAL.
Dispõe o artigo 149.º da LEOAL, sob a epígrafe "Reapreciação dos resultados do apuramento geral", o seguinte:
"1 - No início dos seus trabalhos a assembleia de apuramento geral decide sobre os boletins de voto em relação aos quais tenha havido reclamação ou protesto e verifica os boletins de voto considerados nulos, reapreciando-os segundo critério uniforme.
2 - Em função do resultado das operações previstas no número anterior a assembleia corrige, se for caso disso, o apuramento da respectiva assembleia de voto."
A epígrafe do preceito, de que não se conhece declaração de rectificação, parece enfermar de um lapso manifesto. O que o preceito comete à assembleia de apuramento geral é o reexame e correcção, no âmbito que define, dos resultados do apuramento nas assembleias de voto, ou seja, a reapreciação dos resultados do apuramento local e não a reapreciação "do apuramento geral".
Independentemente disso, o texto do n.º 1 é claro ao impor à assembleia de apuramento geral duas tarefas, no âmbito do seu poder de reapreciação, que simultaneamente delimita: pronunciar-se sobre os boletins em relação aos quais tenha havido reclamação ou protesto e reapreciar os boletins de voto considerados nulos. Dito de modo breve: ainda que não tenha havido reclamação ou protesto que sobre eles incida, a assembleia de apuramento geral reaprecia sempre os votos que, nas assembleias de apuramento local, tenham sido considerados nulos. Na estrutura da norma, esta tarefa é distinta da apreciação da apreciação das reclamações ou protestos ("decide sobre ... e verifica ... reapreciando-os").
O legislador quis que a última palavra - na fase administrativa ou de procedimento eleitoral, entenda-se - sobre a nulidade dos votos coubesse à assembleia de apuramento geral, independentemente de provocação dos interessados. Há boas razões para que assim seja, isto é, para que o juízo das assembleias de apuramento local, rectius, de cada uma das mesas por que a assembleia de voto se distribui, seja subtraído ao princípio da aquisição progressiva dos actos. O juízo sobre se determinado boletim de voto contém um "voto nulo" implica ou pode implicar a desconsideração de uma manifestação de vontade do eleitor que, embora sujeito a uma enunciação legal taxativa (artigo 133.º da LEOAL), não está imune a erros de interpretação ou aplicação ou à ineliminável subjectividade do juízo de facto de cada observador. Essa vulnerabilidade aumenta pela multiplicação de decisores inerente à dispersão do apuramento local. O legislador quis reduzir esse risco, sujeitando sempre os boletins de voto classificados no apuramento local como comportado um "voto nulo" a reexame da assembleia de apuramento geral, em princípio única para cada circunscrição municipal (artigo 141.º da LEOAL), que os vai reapreciar segundo critério uniforme.
Deste modo, não pode dizer-se que a decisão da assembleia de apuramento geral seja um acto meramente confirmativo, uma vez que, embora repita o conteúdo da decisão anterior, o reexame dos pressupostos decorre de revisão imposta por lei.
É sobre o exercício deste poder legal - ou em perspectiva centrada na sua expressão, mas materialmente equivalente, sobre esta estatuição legalmente inovatória, - que vai incidir a recurso contencioso. É, portanto, este o acto em que se verifica a ilegalidade do apuramento que se quer sujeitar à apreciação judicial, porque é este o momento em que, segundo o procedimento legalmente ordenado, a decisão de considerar que determinado boletim contém um "voto nulo" se torna definitiva. Consequentemente, é relativamente a essa decisão e apenas relativamente a essa decisão que, em recurso contencioso interposto da deliberação de apuramento geral que mantenha a qualificação de determinado voto (já como tal qualificado) como "voto nulo", tem de verificar-se a existência de reclamação, como pressuposto do recurso contencioso.
Ora, relativamente à decisão da assembleia de apuramento geral foi oportunamente apresentada reclamação, que foi indeferida, pelo que nada obsta ao conhecimento do recurso contencioso quanto a tal matéria.
5 - Nos termos do n.º 4 do artigo 115.º, o eleitor expressa a sua vontade assinalando com uma cruz o quadrado correspondente à candidatura em que vota.
Esclarece o artigo 133.º, sob a epígrafe "Voto nulo", o seguinte:
"1 - Considera-se 'voto nulo' o correspondente ao boletim:
a) No qual tenha sido assinalado mais de um quadrado;
b) No qual haja dúvidas quanto ao quadrado assinalado;
c) No qual tenha sido assinalado o quadrado correspondente a uma candidatura que tenha sido rejeitada ou desistido das eleições;
d) No qual tenha sido feito qualquer corte, desenho ou rasura;
e) No qual tenha sido escrita qualquer palavra.
2 - Não é considerado voto nulo o do boletim de voto no qual a cruz, embora não sendo perfeitamente desenhada ou excedendo os limites do quadrado, assinale inequivocamente a vontade do eleitor.
..."
Sobre a matéria de votos nulos, o Tribunal Constitucional dispõe de uma jurisprudência firme e uniforme no sentido de que o boletim de voto, além da cruz marcada no quadrado correspondente à candidatura escolhida, não pode conter qualquer outro sinal (corte, desenho ou rasura), definindo-se a cruz como a intersecção de dois segmentos de recta, sendo considerado o voto válido se e quando a intersecção ocorrer dentro das linhas que delimitam o quadrado, não sendo considerado como voto nulo o do boletim de voto no qual a cruz, embora não sendo perfeitamente desenhada ou excedendo os limites do quadrado, assinale inequivocamente a vontade do eleitor (veja-se a este respeito o acórdão 614/89, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14.º vol., p. 635, e o acórdão 864/93, in Diário da República, 2.ª série, de 31 de Março de 1994).
Deste modo, o boletim para ser válido não pode ter, para além da cruz, qualquer outro sinal, corte, desenho ou rasura. Assim, um outro traço que assinale, de modo mais ou menos evidente, um outro quadrado que não o marcado pela cruz do boletim de voto ou quaisquer outras cruzes ou sinais noutro qualquer local do boletim não pode deixar de ser havido como "desenho", tornando nulo tal boletim, segundo a jurisprudência do Tribunal (veja-se os acórdãos atrás citados e ainda os acórdãos n.os 862/93 e 728/97, in Diário da República, 2.ª série, de 10 de Maio de 1994 e de 4 de Fevereiro de 1998).
No caso em apreço estão em causa sete votos - sendo dois na mesa n.º 1, dois na mesa n.º 2 e três na mesa n.º 6 da assembleia de voto daquela freguesia - que o recorrente pretender ver considerados como válidos e a favor do Partido Socialista, por entender que "nos correspondentes boletins de voto os eleitores manifestaram de forma clara e inequívoca a vontade expressa de votar no Partido Socialista".
Sucede que o recorrente não forneceu elementos que permitam identificar quais dos votos nulos apurados nas mesas 1, 2 e 6, para a eleição para a Assembleia de Freguesia de Avintes devem ser considerados como válidos para o Partido Socialista, pois não juntou fotocópia dos votos impugnados nem indicou outra forma de os individualizar, sendo que em cada uma dessas mesas foram considerados nulos mais votos do que aqueles que o recorrente quer ver contados a favor da lista que patrocina.
De todo o modo, da análise a que o Tribunal procedeu dos boletins de voto considerados como votos nulos nas mesas 1, 2 e 6, resulta que nenhum respeita os critérios acima enunciados para serem considerados como válidos para o Partido Socialista, quer por terem mais de uma cruz, quer porque, além de uma cruz mais ou menos perfeitamente desenhada e aposta no quadrado correspondente ao Partido Socialista, contêm marcas escritas noutros quadrados ou noutro local do boletim, quer porque a cruz foi aposta no símbolo do Partido e não no quadrado respectivo.
6 - Decisão.
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 24 de Outubro de 2005. - Vítor Gomes - Benjamim Rodrigues - Rui Manuel Moura Ramos - Carlos Pamplona de Oliveira - Maria João Antunes - Maria Fernanda Palma - Mário José de Araújo Torres - Gil Galvão (votei a decisão do acórdão, embora com dúvidas sobre a possibilidade de o Tribunal Constitucional conhecer do recurso, face à ausência de reclamação ou protesto, na assembleia de apuramento local, sobre a qualificação aí dada a determinados votos considerados nulos, qualificação essa mantida na assembleia de apuramento geral) - Bravo Serra (votei a decisão constante do presente aresto, embora me sobrem acentuadas dúvidas sobre a afirmação que dele se extrai no sentido de não ser de exigir, no apuramento local, a formulação de reclamação ou protesto sobre os votos que aí foram considerados nulos) - Maria Helena Brito (com declaração de voto, nos mesmos termos que os conselheiros Gil Galvão e Bravo Serra) - Paulo Mota Pinto (com declaração de voto idêntica à do conselheiro Gil Galvão) - Artur Maurício.