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Acórdão 359/2005/T, de 20 de Outubro

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Texto do documento

Acórdão 359/2005/T. Const. - Processo 81/2005. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - A causa. - 1 - A Caixa Geral de Depósitos, S. A., recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 9 de Dezembro de 2004 (fl. 342 a fl. 345), que desatendeu uma suscitação de inconstitucionalidade que aquela entidade bancária incluíra nas alegações do recurso que interpusera para aquele Tribunal (alegações constantes de fl. 317 a fl. 353).

Tal suscitação expressa-se, na parte conclusiva dessas alegações, nos seguintes termos:

"[...] 12.º [...], as normas - conjugadas - dos n.os 2 e 3 do artigo 442.º do Código Civil, ao permitirem que seja tido em conta - para efeitos de cálculo do valor da indemnização - o valor do imóvel em função do preço acordado pelas partes na data da celebração do contrato-promessa de compra e venda é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 13.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa na medida em que tal constitui uma clara violação do princípio da igualdade e do princípio da não expropriação injustificada e desproporcionada do património.

13.º O disposto nos artigos 442.º, n.º 3, e 755.º, alínea f), conjugado com o artigo 759.º -, todos do Código Civil, aprovados pelos Decretos-Leis 236/80, de 17 de Julho e 379/86, de 11 de Novembro, é inconstitucional, porque viola a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o disposto nos seus artigos 13.º, 62.º, 167.º e 168.º [...]" [Transcrição a fl. 35; a referência aos artigos 167.º e 168.º da CRP deve ser reportada (v. fl. 359), respectivamente, aos artigos 164.º e 165.º]

Para integral compreensão da situação, importa proceder a um relato sucinto da marcha do processo até à chegada a este Tribunal.

1.1 - Está em causa uma acção declarativa de condenação, proposta por Manuel Augusto Farias Ramalho, contra José Vasco Figueiredo Brochado e mulher, Ana Paula Silva Cardoso Brochado [estes últimos citados editalmente e, por isso, representados pelo Ministério Público, nos termos do artigo 15.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) - v. fl. 37] e a ora recorrente Caixa Geral de Depósitos.

Pediu-se nesta acção a condenação dos réus, nos seguintes termos:

"a) O José Vasco e mulher a verem resolvido o contrato-promessa celebrado entre o primeiro e o A. e, em consequência, a pagarem-lhe a quantia de 6 430 000$ [...] devendo declarar-se [...] que os aludidos créditos estão cobertos por direito de retenção sobre a fracção autónoma identificada [...];

b) A Caixa Geral de Depósitos a reconhecer os direitos de crédito do A. e respectiva garantia real, referidos na alínea precedente." (Transcrição da petição inicial a fl. 5.)

Originou esta acção, que foi contestada apenas pela ré Caixa Geral de Depósitos, a seguinte condenação em 1.ª instância, transcrevendo-se desta o trecho que apresenta relevância para o presente recurso:

"[...] condena[r] os réus, José Vasco Figueiredo Brochado e mulher, Ana Paula Silva Cardoso Brochado, a pagar ao A. [...], a quantia de 6 130 000$, acrescida de juros de mora [...];

[...] Declarar a existência do direito de retenção a favor do A. sobre a fracção prometida vender, como garantia do crédito referido [...], condenando a ré Caixa Geral de Depósitos, S. A., a reconhecer esse direito." (V. fls. 108 e 108 v.º)

1.2 - Apelou, então, a Caixa Geral de Depósitos desta sentença, incluindo nas respectivas alegações a seguinte conclusão:

"[...]

14.ª O disposto nos artigos 442.º, n.º 3, e 755.º, alínea f) - conjugado com o artigo 759.º -, todos do Código Civil, aprovados pelos Decretos-Leis 236/80, de 17 de Julho e 379/86, de 11 de Novembro, é inconstitucional porque viola a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o disposto nos seus artigos 13.º, 62.º, 167.º e 168.º [...]"

Foi esta pretensão da recorrente julgada insubsistente pelo Tribunal da Relação de Lisboa (trecho do Acórdão da Relação constante de fl. 273 a fl. 274), que, no essencial, confirmou o decidido na 1.ª instância.

1.3 - Surge, então, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, contendo a suscitação de inconstitucionalidade a fl. 351 acima transcrita e que originou a decisão que a Caixa Geral de Depósitos pretende impugnar através do presente recurso. Desta importa reter - porque se reporta aos aspectos de constitucionalidade - a seguinte passagem:

"[...]

A recorrente insurge-se, ainda, contra a falta de proporcionalidade da indemnização prevista no n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil para o incumprimento do contrato-promessa, em caso de tradição da coisa.

Cremos, pelo contrário, que o legislador pretendeu desencorajar o incumprimento, nas situações em que o pagamento do dobro do sinal se mostra economicamente vantajoso para o promitente vendedor.

A indemnização contra a qual se insurge a recorrente, por cujo pagamento não é sequer responsável, coloca o promitente comprador na situação económica em que ficaria se fosse cumprido o contrato, recebe o valor da coisa em lugar desta, descontado o preço e restituído o que houver pago.

A indemnização é justa, equilibrada e proporcional, pois atribui ao promitente comprador, não responsável pelo incumprimento, a mesma vantagem económica que gozaria com o cumprimento do contrato.

Não é a indemnização que está desequilibrada, mas antes o negócio que foi altamente vantajoso, face à extraordinária valorização da fracção objecto do contrato, nada podendo o Tribunal fazer quanto a este ponto, até porque os RR. vinculados pelo contrato não pediram a sua resolução com base na alteração anormal das circunstâncias em que contrataram (artigo 437.º do Código Civil).

O A não exerceu abusivamente o seu direito e não se percebe como é que o artigo 442.º, n.os 2 e 3, do Código Civil pode violar os princípios constitucionais consagrados nos artigos 13.º e 62.º da CRP, da igualdade perante a lei e direito à propriedade privada, respectivamente.

O direito de retenção de que goza o A. para garantia do seu crédito sobre os RR. José Vasco e Ana Maria Brochado resulta do artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil.

A recorrente não discorda propriamente do direito de retenção de que goza o eventual crédito do A., mas sim do preceituado pelo artigo 759.º, n.º 2, do CC, que o gradua à frente da hipoteca, mesmo que registada anteriormente.

É desta prevalência que a recorrente discorda, acusando o preceito em causa de inconstitucionalidade material e orgânica.

No entanto, o acórdão recorrido limitou-se, de acordo, aliás, com o pedido, a reconhecer o direito de retenção do A. para garantia do seu crédito sobre os RR. José Vasco e Ana Maria Brochado, sem o graduar em concorrência com a hipoteca voluntária de que goza o crédito da recorrente.

Não tem, pois, qualquer cabimento a pronúncia deste Tribunal sobre a constitucionalidade do artigo 759.º, n.º 2, do Código Civil, que não foi aplicado na decisão recorrida. [...]" (Transcrição de fl. 364 a fl. 365.)

1.4 - É a esta última decisão que se refere, como se indicou, o presente recurso de constitucionalidade, pretendendo a Caixa Geral de Depósitos (cf. o requerimento de interposição de fl. 378 a fl. 381) que este Tribunal aprecie "duas inconstitucionalidades", a saber:

"[...]

a) Uma, a referente ao disposto no artigo 442.º, n.os 2 e 3, do Código Civil, no que concerne ao facto de ser inconstitucional a fixação de uma indemnização derivada do incumprimento do contrato-promessa de compra e venda nos termos constantes de essas normas [...]; e

b) Outra, a referente ao 'direito de retenção' previsto no artigo 442.º do mesmo Código, norma esta conjugada com o disposto nos artigo 755.º, n.º 1, alínea f), e 759.º, ambos do mesmo Código [...]"

Estas normas infraconstitucionais violariam, e voltamos a citar o requerimento de interposição a fl. 379:

"[...] o disposto nos artigos 13.º, 62.º, 164.º (anteriormente 167.º), 165.º (anteriormente 168.º) da CRP, na medida em que violam,

a) Quanto à questão da primeira das referidas inconstitucionalidades o princípio da salvaguarda, garantia e não expropriação da propriedade privada (artigos 13.º e 62.º da CRP); e

b) Quanto à questão da segunda das referidas inconstitucionalidades - o princípio da igualdade, o princípio da salvaguarda, garantia e não expropriação da propriedade privada, o princípio da reserva absoluta e reserva relativa da competência legislativa [artigos 13.º, 62.º, 164.º (anteriormente 167.º) e 165.º (anteriormente 168.º) da CRP]."

1.5 - Foi, entretanto, o recurso admitido no Supremo Tribunal de Justiça (fl. 384) e, chegados os autos a este Tribunal, proferiu o ora relator o seguinte despacho:

"O processo prossegue para alegações.

Quanto ao objecto do recurso importa ter presente que o recorrente o reporta a duas questões: a da indemnização pelo incumprimento da promessa; a do direito de retenção.

A primeira questão tem que ver apenas com o artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil, o que exclui, por não ter sido objecto de aplicação no caso, o n.º 3 do mesmo preceito.

A segunda questão, a respeitante ao direito de retenção, prende-se em exclusivo com o artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil (relativamente ao qual, aliás, existe jurisprudência deste Tribunal), não estando em causa neste aspecto, por não terem sido aplicados os artigos 442.º e 759.º do Código Civil.

Fica, assim, advertida a recorrente do entendimento do ora relator de que, quanto à primeira questão, não ocorreu aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 442.º do Código Civil e, quanto à segunda, não ocorreu aplicação dos artigos 442.º e 759.º do Código Civil."

Alegou, de seguida, a Caixa Geral de Depósitos, formulando as conclusões que se transcrevem (omitem-se destas as que se limitam, sem relevância para o presente recurso, a descrever a situação factual subjacente à causa):

"[...]

6.ª Se o autor da acção, ora recorrido - promitente comprador - aplicasse, como um hipotético empréstimo, o valor que ele despendeu (400 000$ a título de 'sinal'), à taxa de juro legal vigente entre 5 de Março de 1987 e a data do incumprimento contratual (5 de Março de 1996) - a taxa de 15% ao ano vigente até Setembro de 1995, teria ele direito a receber (desse empréstimo) o valor de 540 000$, ou seja, os juros de nove anos à taxa de 15% sobre o 'capital' emprestado (de 400 000$), um valor correspondente a 940 000$, ou seja, 235% do que havia despendido e a uma 'retribuição' (juros) de 135% do capital investido (o 'sinal' pago);

7.ª O recebimento do valor de 6 130 000$ atribuído na douta sentença ora em questão, corresponde a 1532,5% do valor investido e a da 'retribuição' (juros) de 1432,5% do capital investido (o 'sinal' pago).

8.ª A indemnização derivada do incumprimento contratual de um contrato-promessa pelo valor indicado na conclusão antecedente, para além de constituir um manifesto 'abuso de direito', é manifestamente excessiva, desproporcionada e abusiva e lesiva dos interesses do promitente vendedor - e, reflexamente, do credor hipotecário - , não sendo nem justa, nem equilibrada, nem equitativa;

[...]

10.ª O dano efectivo sofrido pelo promitente vendedor é infinitamente inferior a indemnização que a lei permite fixar;

11.ª A atribuição dessa indemnização, nos termos alegados, constitui, em termos práticos e efectivos - ou seja, no sentido económico -, uma clara expropriação do direito de propriedade dos promitentes vendedores, na medida em que é estabelecida uma indemnização a favor do promitente comprador totalmente injustificada na perspectiva social das coisas; já que

12.ª O interesse da protecção dos promitentes compradores não é superior ao interesse dos promitentes vendedores; e

13.ª Ainda que o fosse, a 'medida' legislativa é manifestamente inadequada para a protecção dos interesses do promitente comprador, nomeadamente porque não tem em conta para o cálculo do valor da indemnização a ser fixada - o valor objectivo do bem imóvel à data da celebração do contrato-promessa de compra e venda;

14.ª Tanto mais que aqueles ónus e limitações são 'protegidos' com a atribuição aos promitentes vendedores de um 'direito de retenção' e no direito a um pagamento preferencial (mesmo em detrimento do credor hipotecário anterior);

15.ª Por isso, a disposição do artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil que prevê, em função do que nela se prevê, a fixação dessa indemnização é manifestamente violadora das mais elementares regras constitucionais, na medida em que viola os princípios da igualdade (artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa), da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da mesma CRP) e da tutela e protecção da propriedade privada (artigo 62.º da mesma CRP);

16.ª E essa violação corresponde, na situação dos autos e a outras de natureza idêntica - e em virtude de estar em causa 'a dignidade da pessoa humana' relativa ao direito à habitação própria permanente, a uma violação dos 'direitos, liberdades e garantias' dos cidadãos;

17.ª O Decreto-Lei 236/80, de 18 de Julho, e o Decreto-Lei 379/86, de 11 de Novembro - que aprovaram o teor do referido artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil -, violam as referidas normas constitucionais.

18.ª O Decreto-Lei 236/80, de 18 de Julho, e o Decreto-Lei 379/86, de 11 de Novembro - que aprovaram o teor do referido artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil - , violam ainda o disposto nos artigos 164.º e 165.º da CRP, na medida em que esses diplomas foram aprovados pelo Governo sem que o Governo dispusesse de competência legislativa para tanto, quer originária quer por autorização da Assembleia da República.

[...]

19.ª Os tribunais não deveriam ter, por inconstitucionalidade, invocado e aplicado o normativo constante do artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil e do Decreto-Lei 236/80, de 18 de Julho, e o Decreto-Lei 379/86, de 11 de Novembro.

[...]"

O Ministério Público (que intervém pelas razões indicadas supra no item 1.1) alegou, pugnando pela improcedência do recurso e formulando a seguinte conclusão:

"[...]

1.º A norma constante da actual redacção do n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil, ao estabelecer os critérios para cálculo da indemnização devida ao retentor/promitente comprador - assentes no valor actual e objectivo dos bens sobre que incide o contrato-promessa incumprido - não viola qualquer preceito ou princípio constitucional.

[...]"

II - Fundamentação. - 2 - Estava em causa aquando da interposição do presente recurso como já foi dito no despacho a fl. 388 - a suscitação perante o Supremo Tribunal de Justiça de dois grupos de questões de inconstitucionalidade. O primeiro destes tinha por referencial normativo, nos termos em que o recorrente o caracterizou de fl. 378 a fl. 379, os n.os 2 e 3 do artigo 442.º do Código Civil. O segundo grupo, reportado à questão do direito de retenção, seria formado pela conjugação dos artigos 442.º, 755.º, n.º 1, alínea f), e 759.º, todos do Código Civil (v. fl. 379).

Advertida a recorrente relativamente ao entendimento do ora relator sobre quais as normas que, por terem sido as efectivamente aplicadas, poderiam constituir objecto do presente recurso (e, concre tamente, que estariam excluídas, no primeiro grupo, o artigo 442.º, n.º 3, do Código Civil e, no segundo grupo, este mesmo artigo 442.º e o artigo 759.º do Código Civil), veio a recorrente, no seguimento de tal advertência, aceitar esse entendimento e restringir, nas conclusões das respectivas alegações (v. artigo 684.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do disposto no artigo 69.º da LTC), o objecto do recurso à questão da inconstitucionalidade orgânica (v. conclusão 18.ª, a fl. 466) e material do artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil.

Tendo presente esta delimitação/redução, importa apreciar o recurso, consignando-se estar em causa, exclusivamente, o trecho do artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil, que prevê a opção pelo chamado "valor da coisa" ("[...] ou, se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o do direito a transmitir ou a constituir sobre elas, determinado objectivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago").

2.1 - Preliminarmente, porém, é útil esclarecer a questão da legitimidade da recorrente Caixa Geral de Depósitos. Esta, com efeito, não foi a parte condenada a satisfazer o montante indemnizatório apurado com base no critério estabelecido no n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil. Tal prestação impende sobre os promitentes vendedores faltosos (que não contestaram nem recorreram). De qualquer forma, embora não constitua encargo da recorrente esse elemento da condenação, não pode deixar de se ter em conta que a existência do direito de retenção sobre a fracção predial objecto da promessa - direito este a cujo reconhecimento a Caixa Geral de Depósitos foi sucessivamente condenada - acaba por afectar a posição da recorrente, tornada entretanto proprietária dessa fracção, vendo-se o direito desta obstaculizado pela retenção, até satisfação pelos promitentes vendedores faltosos do montante indemnizatório determinado em função do preceito questionado.

Sublinha-se este aspecto para caracterizar a posição da recorrente em termos de interesse em recorrer e, consequentemente, de legitimidade ad recursum. Esta, de facto, "ao contrário do que é característico da legitimidade processual [...] não assenta numa relação da parte com o objecto da causa, mas antes nas consequências que uma decisão pode produzir na esfera jurídica de um sujeito: este sujeito pode recorrer se a decisão lhe for prejudicial e, portanto, se ele pretender afastar esse prejuízo através da revogação da decisão pelo tribunal de recurso" (Miguel Teixeira de Sousa, "Legitimidade e interesse no recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade", in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes, Coimbra, 2004, p. 948).

Neste caso, como facilmente se intui, a recorrente Caixa Geral de Depósitos tem um evidente interesse em esgrimir - aqui em sede de recurso de constitucionalidade - argumentos respeitantes à indemnização em que foram condenados os promitentes vendedores (terceiros relativamente à Caixa), porque a existência dessa indemnização - e o respectivo quantum - afecta, através do direito de retenção, a posição daquela entidade bancária aqui recorrente.

2.2 - Passando agora à apreciação da norma em questão - ou seja ao artigo 442.º, n.º 2, segunda parte, do Código Civil - e começando pela questão da alegada inconstitucionalidade orgânica desta (v. conclusão 18.ª, a fl. 466), remete-se, apontando no sentido da não verificação desse tipo de desconformidade constitucional, para a fundamentação constante dos Acórdãos n.os 374/2003, 594/2003 (respectivamente no Diário da República, 2.ª série, de 3 de Novembro de 2003, a pp. 16 522-16 557, e de 10 de Janeiro de 2005, a pp. 1921-1929), 22/2004 e 466/2004 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). Estes arestos, com efeito, entenderam que as intervenções legislativas das quais decorreu a disposição aqui questionada "não podem ser consideradas como atingindo o núcleo essencial do direito de propriedade privada, na dimensão que o torna análogo aos direitos, liberdades e garantias, em termos tais que justifique a extensão do regime orgânico típico destes" (citação do Acórdão 374/2003).

2.3 - Assim, resta agora encarar a mesma norma na perspectiva de uma eventual inconstitucionalidade material. Dir-se-á que tudo se prende, nesta vertente argumentativa, com a chamada indemnização pelo "valor da coisa", nos termos da redacção introduzida no artigo 442.º, n.º 2, segunda parte, do Código Civil, pelo Decreto-Lei 379/86, de 11 de Novembro, redacção esta que é caracterizada por Pires de Lima e Antunes Varela nos seguintes termos:

"[...] Se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o promitente adquirente, quando o incumprimento do contrato-promessa seja imputável à contraparte, pode, em vez de exigir o dobro do sinal ou de requerer a execução específica, reclamar o valor da coisa [...] 'determinada objectivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado', devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago (n.º 2, segunda parte)." (Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 1987, p. 422.)

Relativamente a este regime, traduz-se a argumentação da recorrente no sentido da inconstitucionalidade material, na imputação de uma violação do princípio da proporcionalidade e da garantia constitucional do direito de propriedade (v. a conclusão 15.ª, a fl. 466, onde são referidos os artigos 18.º e 62.º da CRP; note-se, porém, que a recorrente parece ter abandonado a questão do princípio da igualdade que antes referira; v. fl. 335 a fl. 336). Tal violação decorreria, se bem compreendemos a posição da Caixa Geral de Depósitos, da circunstância de a disposição referida permitir a fixação de um quantum indemnizatório, que, sublinha-se de novo, tem por medida o "valor da coisa", com determinadas deduções - superior ao que qualifica de "dano efectivo" (v. a conclusão 10.ª, a fl. 465).

A este propósito importa esclarecer, desde logo, que o controlo normativo cometido a este Tribunal exclui, como salienta o Ministério Público, qualquer apreciação do concreto valor alcançado pelas instâncias, designadamente em termos de saber se este foi o adequado ao valor real dos bens ou aos prejuízos efectivamente decorrentes do incumprimento da promessa. Aqui, em sede de jurisdição constitucional, está em causa (só pode estar) o critério normativo que subjaz a esse valor e nunca saber se ocorreu qualquer "abuso de direito" por parte do promitente comprador. Este - o "abuso de direito" tem que ver com exercício concreto de um direito ("abuso de direito é [...] uma mera designação tradicional para o que se poderia dizer 'exercício disfuncional de posições jurídicas'", António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, vol. I, Parte Geral, t. IV, Coimbra, 2005, p. 372), e o Tribunal Constitucional aprecia normas, e não a actuação concreta que, com base nessas normas, os sujeitos assumem no exercício das respectivas posições jurídicas. A discussão de tal exercício esgotou-a a recorrente no Supremo Tribunal de Justiça.

Ora, vistas as coisas nestes termos, quer encaremos a opção, conferida pelo artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil, pelo "valor da coisa", em detrimento do dobro do sinal, como actualização do "cálculo predeterminado do dano a indemnizar", quer a encaremos, diversamente, como reforço da "medida coercitiva indirecta sobre o promitente vendedor" (João Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, Coimbra, 1987, pp. 157-158), não oferece qualquer dúvida que o legislador de 1980 e o de 1986 (com as alterações ao regime do contrato-promessa introduzidas, sucessivamente, pelos Decretos-Leis n.os 236/80 e 379/86) teve em vista objectivos reportados a uma complexa realidade social (a aquisição de habitação própria mediante contratos-promessa), objectivos estes que, por serem constitucionalmente aceitáveis e traduzirem soluções equilibradas, não põem em causa as normas e princípios da lei fundamental indicados pela recorrente.

Embora referidas a um outro aspecto da realidade normativa aqui em causa (o direito de retenção do promitente-comprador), valem aqui, no sentido da legitimidade dos objectivos prosseguidos pelo legislador ao editar os Decretos-Leis n.os 236/80 e 379/86, o essencial das considerações constantes, por exemplo, do Acórdão 594/2003 deste Tribunal (v. especialmente o seu n.º 11). É o sentido desta jurisprudência, perfeitamente transponível para a presente situação, que aqui se reafirma, com a consequente improcedência do recurso.

III - Decisão. - 3 - Assim, pelo exposto decide-se negar provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade diz respeito.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.

Lisboa, 6 de Julho de 2005. - Rui Manuel Moura Ramos - Maria Helena Brito - Carlos Pamplona de Oliveira - Maria João Antunes - Artur Maurício.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2346281.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1980-07-18 - Decreto-Lei 236/80 - Ministério da Justiça

    Altera o Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei 47344, de 25 de Novembro de 1966.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1986-11-11 - Decreto-Lei 379/86 - Ministério da Justiça

    Altera o Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei 47344, de 25 de Novembro de 1966.

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NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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