Acórdão 338/2005/T. Const. - Processo 596/2002. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - Em 30 de Abril de 2002, José Manuel Archer Galvão Teles apresentou reclamação do despacho de 10 de Abril de 2002 que lhe não admitiu o recurso que pretendeu interpor para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão proferido em 20 de Fevereiro de 2002 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que, por sua vez, o condenara a pagar 2 milhões de escudos a João Dias Borges e 1 milhão de escudos a Luís Filipe Bonina, a título de indemnização por danos não patrimoniais, pela prática de dois crimes de difamação, cujo procedimento criminal fora extinto por amnistia.
Como já fizera naquele recurso, o demandado e reclamante suscitou a questão da inconstitucionalidade do disposto no artigo 432.º, alínea b), do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretada no sentido de exigir, "para efeitos de recorribilidade da sentença relativa ao pedido de indemnização civil, a verificação cumulativa dos requisitos consagrados no artigo 400.º, n.º 2, do CPP e nos requisitos consagrados na alínea e) do n.º 1 do mesmo artigo processual", "nomeadamente por violação do disposto nos artigos 2.º, 13.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa".
Por despacho de 10 de Julho de 2002, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, invocando o Acórdão 1/2002 desse Tribunal (publicado no Diário da República 1.ª série-A, de 21 de Maio de 2002) e os Acórdãos n.os 201/94 e 525/98 do Tribunal Constitucional (publicados, respectivamente, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27.º vol., pp. 473-482, e no Diário da República, 2.ª série, de 30 de Junho de 1999), indeferiu a reclamação, considerando não se poder dizer "que a interpretação dada às normas em que implicitamente se funda o despacho reclamado desrespeita o princípio da igualdade ou qualquer outro preceito da lei fundamental".
2 - Inconformado, o reclamante veio interpor recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo obter a apreciação da conformidade com a Constituição da República "da norma constante do artigo 432.º, alínea b), do CPP [conjugada com o artigo 400.º, n.os 1, alínea e), e 2, do mesmo diploma], na interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça", que referiu como sendo a seguinte:
"No regime do CPP vigente - n.º 2 do artigo 400.º, na versão da Lei 59/98, de 25 de Agosto - não cabe recurso ordinário da decisão final do Tribunal da Relação relativa a indemnização civil se for irrecorrível a correspondente decisão penal. Ora, no caso em apreço, da decisão penal não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, atento o disposto no artigo 432.º, alínea b), do CPP, com referência ao artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do mesmo diploma legal."
Admitido o recurso, o recorrente encerrou assim as suas alegações:
"1 - O recurso interposto pelo ora recorrente do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em recurso, que o condenou no pagamento de uma indemnização no valor de Euro 14 964 é admissível, ao abrigo do disposto nos artigos 400.º, n.º 2, e 432.º, alínea b), do CPP.
2 - Sendo certo que se afigura inadmissível, desde logo porque contraria a lógica interna do sistema de recursos, penais e civis, e porque violadora dos princípios constitucionais da igualdade e do acesso ao direito e tutela jurisdicional, vertidos nos artigos 2.º, 13.º e 20.º da Constituição da República, a interpretação da norma constante do artigo 432.º, alínea b), do CPP no sentido de fazer depender a recorribilidade da decisão condenatória em matéria civil proferida pela relação da verificação conjunta dos requisitos constantes dos n.os 1 e 2 do artigo 400.º do CPP.
3 - Na verdade, a interpretação do artigo 432.º, alínea b), do CPP, conjugado com o artigo 400.º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma, que permita tratar de forma diferente, em termos de direitos e garantias processuais, dois demandados civis que se encontram numa situação material idêntica, pelo simples facto de um deles ter sido julgado em processo penal e o outro ter sido julgado em processo civil, ou pelo simples facto de ambos serem julgados em processo penal mas por crimes com diferentes molduras penais, introduzindo, dessa forma, uma distinção sem fundamento racional bastante e, por isso mesmo, discriminatória, importa a violação dos sobreditos princípios constitucionais.
4 - Acrescentando-se que, caso se admitisse que o recurso de uma decisão sobre o pedido de indemnização civil está dependente da medida abstracta da pena aplicável ao crime correspondente, então ficaria totalmente desvirtuado o critério da gravidade da causa, para aferir da recorribilidade das sentenças, uma vez que, no mais das vezes, os pedidos de indemnização civil mais elevados não estão associados aos crimes com as penas abstractas mais severas.
5 - O carácter tendencialmente facultativo do princípio da adesão, por aproveitar, apenas, ao demandante, e os benefícios de ordem processual que resultam do referido princípio, por não apresentarem qualquer correspondência prática ou dogmática com a questão da admissibilidade do recurso, não constituem fundamento material para o tratamento desigual dos demandados civis julgados em processo penal e dos demandados civis julgados em processo civil.
6 - O alegado carácter absurdo da admissibilidade do recurso da decisão civil, quando não se permite recurso da decisão penal, a existir, resultaria não da interpretação ora defendida do artigo 432.º, alínea b), do CPP mas sim do sistema global de recursos estabelecido no ordenamento jurídico português, sendo certo que a interpretação defendida no despacho ora recorrido implica incongruências e incoerências substancialmente mais graves, pelo que o eventual carácter absurdo da solução ora defendida não pode constituir fundamento material da distinção de tratamento anteriormente mencionada.
7 - No presente processo, não tendo havido qualquer decisão penal, não é possível invocar a estabilidade dessa mesma decisão penal como fundamento material da distinção de tratamento anteriormente mencionada.
8 - Por último, o princípio da adesão também não constitui fundamento material para a desigualdade de tratamento entre o demandado civil julgado em processo penal e o demandado civil julgado em processo civil, uma vez que: i) traduz uma distinção puramente conceptual; ii) a jurisprudência uniforme entende que, em caso de morte acidental do processo criminal, o respectivo processo civil continua a correr autonomamente, e iii) não existe, in casu, qualquer interesse público-criminal que justifique o sacrifício das garantias dos demandados civis julgados em processo penal."
Por sua vez, o Ministério Público concluiu as suas contra-alegações desta forma:
"1.º Não viola os princípios da igualdade e do acesso ao direito a vigência, quanto ao processo de adesão que prosseguiu os seus termos, após extinção do procedimento criminal por amnistia, exclusivamente para o efeito de apreciação jurisdicional da pretensão indemnizatória formulada pelo ofendido/lesado, das regras gerais que condicionam a admissibilidade do recurso em processo penal, a cuja tramitação se deve subordinar o referido enxerto cível.
2.º E inviabilizando tal regime processual - vigente no processo penal - a interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão da Relação que - em segundo grau de jurisdição - reapreciou a matéria litigiosa."
Importa apreciar e decidir.
II - Fundamentos. - 3 - Como se sabe, não compete ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre qual é a melhor interpretação do direito infraconstitucional aplicável ao caso, ou aplicado pelo tribunal recorrido (cf., por exemplo, os Acórdãos n.os 44/85 e 186/2000, publicados, respectivamente, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º vol., pp. 403-409, e 46.º vol., pp. 745-758). Também por esta razão não poderão ser ponderadas as razões aduzidas pelo recorrente (coerência global, adequação ao caso) na medida em que não relevem para a questão da constitucionalidade, e antes como fundamentos para a crítica à solução jurídica adoptada, por alegadamente não corresponder ao melhor direito.
Isto assente, pode partir-se do que se escreveu no Acórdão 201/94 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27.º vol., pp. 473-482):
"1 - No vigente diploma adjectivo criminal consagrou-se, por intermédio do seu artigo 71.º, a regra da obrigatoriedade de dedução em processo criminal do pedido de indemnização civil baseado na prática de actos ilícitos que revistam a natureza de crime, regra que só pode ser afastada nos casos reportados no artigo 72.º, sendo que se admite mesmo a dedução desse pedido no processo crime (cf. artigo 73.º) dirigido contra pessoas que, não sendo responsáveis criminalmente, o sejam já no campo meramente civil.
Por outro lado, estatui-se no n.º 1 do artigo 403.º do mesmo corpo de leis que é admissível a limitação do recurso de uma decisão a uma sua parte, e isto se for possível separar a parte impugnada da parte que o não for, de molde a aquela primeira ser objecto de uma apreciação distinta da segunda, tornando-se esta última autónoma, embora tal autonomia, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, não prejudique o dever de retirar da procedência do recurso da parte impugnada 'as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida'.
Perante a consagração, no citado artigo 71.º, do denominado 'princípio de adesão', compreende-se que na alínea a) do n.º 2 do aludido artigo 403.º se dê como exemplo de autonomia de parte da decisão, com a consequente recorribilidade dela, a 'matéria penal, relativamente àquela que se referir a matéria civil', compreendendo-se igualmente que no artigo 401.º, n.º 1, alínea c), se confira legitimidade para recorrer às partes civis 'da parte das decisões contra si proferidas', que no artigo 402.º, n.º 2, alínea c), se estabeleça que, salvo no caso de recurso fundado em motivos estritamente pessoais, o recurso interposto pelo responsável civil aproveita ao arguido, mesmo para efeitos penais, e no artigo 404.º se comande que, em caso de recurso interposto por uma das partes civis, a parte contrária possa interpor recurso subordinado."
Depois de transcrever as normas então em apreciação (o n.º 2 do artigo 400.º - na redacção anterior à Lei 59/98, de 25 de Agosto - e os artigos 427.º e 432.º do CPP), escreveu-se ainda no referido acórdão:
"4.1 - A consagração do sistema de adesão, em regra obrigatório, da acção cível à acção penal, não significa que, pela unidade da causa, se confundam as pretensões que fundamentam uma e outra ou que ambas deixem de ter autonomia (cf., sobre a questão, Figueiredo Dias, 'Sobre a reparação de perdas e danos arbitrada em processo penal', estudo publicado no Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1966, pp. 88 e segs., Direito Processual Penal, 1.º vol., pp. 540 e segs., e Jornadas de Direito Processual Penal, p. 15).
Simplesmente, a ritologia processual a que obedecerão ambas as pretensões é regulada pela lei adjectiva criminal, pelo que será esta a matriz a que deverão obedecer os trâmites destinados a fazer reconhecer em juízo, ou a tornar coercivamente realizada, a pretensão cível, sendo certo que em tal lei adjectiva é unitário o recurso ordinário, aí não se consagrando as figuras da apelação e revista.
Por isso, será de harmonia com as regras próprias daquela lei adjectiva que os recursos tocantes à pretensão cível hão-de obedecer, não se podendo, pois, dizer que - no que concerne a matéria cível objecto de pretensão processual deduzida em tribunal civil perante as regras da lei adjectiva civil e matéria da mesma natureza, fundada na prática de um acto ilícito de natureza penal, que terá, em princípio, de ser objecto de reconhecimento em juízo através do processo penal - haja uma identidade de situações reclamante de tratamento semelhante.
4.2 - O princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição, como sabido é, exige a dação de tratamento igual àquilo que, essencialmente, for igual, reclamando, por outro lado, a dação de tratamento desigual para o que for dissemelhante, não proibindo, por isso, a efectivação de distinções. Ponto é que estas sejam estabelecidas com fundamento material bastante e, assim, se não apresentem como irrazoáveis ou arbitrárias (cf., na jurisprudência deste Tribunal, por todos, o Acórdão 188/90, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990).
Sendo assim, há que saber se existe arbitrariedade, irrazoabilidade ou não há fundamento bastante para a diferenciação no que respeita ao regime de recursos respeitante à matéria cível, quando ela for objecto de pretensão deduzida em acção regulada no Código de Processo Civil, ou for objecto de pretensão fundada na prática de um acto ilícito de natureza penal, caso em que, em princípio, terá de ser deduzida no processo criminal.
A resposta a uma tal questão não pode, na perspectiva do Tribunal, deixar de ser negativa.
Efectivamente, viu-se já que da circunstância de se consagrar o sistema de adesão (e essa consagração, advinda da norma do artigo 71.º do CPP, não foi questionada pelo recorrente do ponto de vista da sua conformidade constitucional (resulta que a pretensão de pedido de indemnização derivado da responsabilidade civil conexionada com a prática de um acto ilícito de natureza criminal tem de ser efectivada jurisdicionalmente por intermédio da coorte de leis adjectivas penais, às regras destas se subordinando."
Importa explicitar o que estava em causa no caso que deu origem ao citado aresto: um pedido de indemnização civil contra um lesante e sua seguradora, julgado procedente (em parte) por decisão singular do tribunal de 1.ª instância, que foi confirmada por decisão do Tribunal da Relação e à qual o Supremo Tribunal de Justiça, já em fase de vistos, recusou reapreciação porque, "tratando-se de sentença de um juiz singular, não é permitido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, salvo se a lei previr especialmente o caso, o que não se dá na hipótese que nos ocupa".
O segmento das normas impugnadas que então foi julgado não inconstitucional não coincidiu, porém, exactamente com esta interpretação, uma vez que se entendeu que:
"Da concatenação dos transcritos textos legais e de acordo com a leitura que deles fez, in casu, o Supremo Tribunal de Justiça, resulta que, caso alguém com legitimidade para recorrer se não conforme com a parte decisória de um acórdão proferido pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo, mas unicamente na parte relativa a matéria civil, só poderá impugná-la se essa parte decisória lhe for desfavorável em mais de 250 000$ (metade da alçada daqueles tribunais - cf. artigo 20.º da Lei 38/87, de 23 de Dezembro), impugnação que terá lugar directamente perante o Supremo Tribunal de Justiça; se, por outro lado, alguém com legitimidade para recorrer se não conformar com a parte restrita à matéria civil constante de uma decisão proferida em processo criminal por um tribunal de 1.ª instância que não seja tribunal do júri ou tribunal colectivo, igualmente só poderá impugná-la, e perante o Tribunal da Relação, se essa parte lhe for desfavorável em mais do que a quantia acima indicada."
Mesmo com este sentido alargado para lá das circunstâncias do caso, todavia, estava ainda em causa apenas a limitação decorrente do valor do decaimento de quem pretendia recorrer, como, também, no caso julgado por este Tribunal pelo Acórdão 722/98 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt, proferido num caso em que eram partes um advogado e um magistrado judicial e em que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça foi vedado, não obstante o Tri bunal da Relação ter intervindo como tribunal de 1.ª instância), e no caso julgado por este Tribunal pelo Acórdão 100/2002, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 52.º vol., pp. 477-489 (em que, interposto recurso para o Tribunal da Relação, ele não foi admitido com fundamento no não preenchimento do duplo limite introduzido no artigo 400.º, n.º 2, do CPP pela Lei 59/98, de 25 de Agosto: valor do pedido superior à alçada do tribunal recorrido e decisão desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada).
Em ambas as situações, o procedimento criminal fora declarado extinto por aplicação da lei da amnistia antes da decisão judicial de que se pretendia recorrer. E a extinção do procedimento criminal também ocorrera no caso decidido por este Tribunal no Acórdão 94/2001 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 49.º vol., pp. 359-367), em que estava em causa a arguição de nulidades da sentença no recurso que se pretendeu interpor para o Tribunal da Relação, e não foi admitido.
Já no caso decidido pelo Acórdão 138/98 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), o que estava em causa era antes a articulação das normas dos artigos 400.º, n.º 2, 427.º e 432.º do CPP em termos tais que, não obstante se verificar a condição estabelecida pelo n.º 2 do artigo 400.º do CPP quanto ao montante do decaimento, não se admitia o recurso por falta de verificação das condições dos artigos 427.º e 432.º, ressalvadas no artigo 400.º do mesmo Código ("sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º [...]"). E a decisão então tomada foi fundamentada com remissão para os fundamentos do Acórdão 201/94, por a argumentação aí expendida ter sido considerada aplicável também neste caso.
Exactamente a mesma questão - "das decisões do Tribunal da Relação proferidas em recurso da decisão do tribunal singular de 1.ª instância, ainda que circunscritas ao pedido cível de valor superior à alçada do Tribunal da Relação, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos dos artigos 427.º e 432.º do CPP" - foi decidida do mesmo modo no Acórdão 429/99 (disponível também em www.tribunalconstitucional.pt), onde se escreveu o seguinte, depois de sintetizar a posição assumida no Acórdão 201/94:
"O Tribunal considera que, na sua essência, este entendimento se aplica ao caso sub judicio.
Com efeito, ao sistema de adesão subjazem razões de economia processual, de uniformização de julgados (ou, dito de outro modo, de coerência entre a decisão civil e a decisão penal) e de celeridade processual (cf., sobre esta matéria, Jorge Ribeiro de Faria, Indemnização por Perdas e Danos Arbitrada em Processo Penal - O Chamado Processo de Adesão, 1978, p. 117 e segs., e Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal, vol. I, 1993, p. 254). Mas, a apreciação num mesmo processo - no processo penal - da questão criminal e da questão civil funda-se, essencialmente, na existência de uma conexão entre os dois ilícitos, resultante da unidade do facto simultaneamente gerador de responsabilidade civil e de responsabilidade penal (cf. Jorge Ribeiro de Faria, ob. cit., pp. 59 e segs., e Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.º vol., 1974, p. 540 e segs., onde se refere como razão de ser do sistema de adesão a 'natureza tradicionalmente absorvente do facto que dá causa às duas acções'). É essa unidade que justifica um julgamento global do caso, fundamental para a coerência e racionalidade da decisão final.
Ora, o julgamento no processo penal do pedido de indemnização civil implicará a aplicação a este último das regras do processo penal quanto a recursos, exactamente para obter os resultados de coerência e celeridade processual referidos.
São alheias à lógica dos recursos em processo penal as regras de recurso do processo civil que se referem ao valor da acção. O facto de no processo penal prevalecer sobre a realização do interesse das partes uma dimensão, insusceptível de avaliação pecuniária, de reparação dos danos do crime, tanto no plano colectivo como no do ofendido, implica que a sujeição de uma causa ao processo penal, nomeadamente por opção do autor da queixa quanto ao pedido de indemnização civil (artigo 72.º, n.º 2, do CPP), tenha como consequência uma dimensão relativamente à qual não prevalece a afectação do sistema dos recursos pelo valor da alçada.
Esta dimensão distinta do objecto processual condiciona, consequentemente, os critérios do respectivo sistema de recursos. Porém, estes critérios não se encontram questionados em si mesmos neste processo, mas apenas na medida em que, quanto ao pedido de indemnização civil, não são adoptados os critérios do valor da alçada.
Assim, sob a pura perspectiva da igualdade, pela qual a recorrente pretende que seja apreciada a questão, não há, obviamente, qualquer tratamento diferenciado de situações idênticas. Com efeito, o pedido de indemnização civil deduzido no processo penal é processualmente tratado de modo idêntico à causa penal e sujeito aos seus critérios processuais de recurso, justificados pela dignidade pública da justiça penal.
Nessa medida, não é legítima a pretendida identidade entre as duas situações, dado que existem razões justificadoras de um diferente tratamento, em razão do facto gerador de eventual responsabilidade civil ter natureza criminal."
O mesmo se diga do caso decidido pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão 183/2001 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 49.º vol., pp. 667-679), em que estava em causa a inadmissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da condenação no pagamento de indemnização cível após a extinção do procedimento criminal (por descriminalização da conduta), então por força do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP. Invocou-se aí o que se escreveu no Acórdão 429/99 "depois de invocar a jurisprudência contida no Acórdão 201/94". E no Acórdão 320/2001 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50.º vol., pp. 753-770), em que estava em causa, também, a exclusão do recurso de uma decisão do Tribunal da Relação, que seria admitido em processo civil, com base no disposto nos artigos 400.º, n.os 1, alínea d), e 2, e 432.º do CPP, após extinção do procedimento criminal, por amnistia, anteriormente à decisão da 1.ª instância, considerou-se o seguinte, antes de remeter para a anterior jurisprudência do Tribunal sobre a questão e de se transcrever o mesmo Acórdão 201/94:
"5 - Tal como consta da decisão recorrida, era 'entendimento estabilizado' na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que, no regime de recursos anterior às alterações de 1998, face às disposições conjugadas dos artigos 400.º, n.os 1, alínea d), e 2, 427.º e 432.º do CPP, não poderia haver recurso de acórdãos das relações proferidos em recursos das decisões de 1.ª instância. Com efeito, entendia o Supremo Tribunal de Justiça que a norma do n.º 2 do artigo 400.º não constituía excepção à alínea d) do n.º 1, por forma a alargar a sua competência: de facto, o preceituado no artigo 432.º não comportava esse sentido e as implicações do sistema de adesão constantes dos artigos 71.º e seguintes do CPP contrariavam tal entendimento.
Segundo o Supremo Tribunal de Justiça, as alegações de se tratar de uma limitação injustificada do direito de recurso eram afastadas na medida em que o artigo 72.º, n.º 1, alínea d), do CPP permite a dedução do pedido de indemnização civil em separado do processo penal quando o valor permitisse a intervenção no processo civil do colectivo. O n.º 2 do artigo 400.º consubstanciava uma limitação do direito de recurso, na medida em que exigia que a decisão impugnada relativamente à indemnização civil fosse desfavorável ao demandante em valor superior a metade da alçada do tribunal requerido, para poder ser admitido o recurso.
Sobre este regime (muito sucintamente caracterizado, seguindo, de perto, a decisão recorrida) já este Tribunal Constitucional se teve de pronunciar, existindo várias decisões em que se apreciou a questão da constitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 400.º do CPP, na redacção anterior à Lei 59/98, exactamente na parte em que tal norma não permitia o acesso ao Supremo relativamente às decisões proferidas pelas relações em processos de adesão."
E depois dessa transcrição acrescentou-se:
"Esta fundamentação (a que se adere, no que tem de essencial (mantém inteira validade face à legislação anterior às alterações da Lei 59/98."
Estabilizada esta jurisprudência, este tipo de casos passou a ser decidido por decisão sumária, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional. Assim, na decisão sumária n.º 126/2003 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), de novo se transcreveu a fundamentação do Acórdão 201/94, agora a propósito da irrecorribilidade da decisão final do Tribunal da Relação relativa à indemnização civil, "se for irrecorrível a correspondente decisão penal, de acordo com a jurisprudência firmada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Março de 2002, proferido no recurso extraordinário n.º 2235/2001 (Assento 1/2002, no Diário da República, 1.ª série-A, n.º 117, de 21 de Maio de 2002)."
4 - O alargado grupo de decisões que se referiu demonstra que o Tribunal Constitucional já foi confrontado com as diversas particularidades constitucionalmente relevantes do caso que agora foi trazido à sua apreciação: já houve hipóteses em que as regras dos recursos penais obstaram ao conhecimento de recursos relativos a indemnizações cíveis, em situações em que não houve decisão penal por tal procedimento se ter extinto por amnistia, e em que os valores da indemnização fixada, de que se pretendia recorrer, não obstariam a esse conhecimento.
Assim, embora podendo aplicar-se integralmente o que anteriormente foi decidido sobre o assunto, ponderar-se-á apenas se, como invoca o recorrente, "os demandados civis julgados em processo penal e os demandados civis julgados em processo civil [se] encontram, objectiva e materialmente, em situação idêntica; a diferença é meramente formal e conceptual! Sustentar que a situação do demandado civil julgado em processo penal é diferente da situação do demandado civil julgado em processo civil, pelo facto de o primeiro se encontrar sujeito ao princípio da adesão e, como tal, se encontrar sujeito ao conjunto de normas processuais penais, traduz um argumento puramente conceptual e formal, baseado, apenas, no tipo de lei processual tendencialmente aplicável e no foro com competência decisória, sendo certo que tal competência, no mais das vezes, resulta de uma escolha do demandante. Pelo que se desatende, em toda a linha, à materialidade subjacente a ambas as situações!".
Ora, entende-se que a diferença entre as situações dos demandados referidos, ainda que resultante de uma opção do demandante civil, não é arbitrária, e antes possui uma justificação razoável: a circunstância de o princípio da adesão valer para as situações em que se cumulam pretensões penais e civis, incluindo as hipóteses em que, excepcionalmente - como são os casos de aplicação de amnistias -, possa, por vicissitudes do processo penal, vir a sobreviver apenas a pretensão civil. É certo que o legislador poderia, nesses casos, ter remetido o processo iniciado como penal para a esfera civil. Mas não está obrigado a fazê-lo, pois as razões (economia processual, uniformização de julgados, celeridade processual, conexão entre os dois ilícitos) que o levaram a estabelecer o princípio da adesão e a distinção do regime processual quando o processo penal não perdem todo o sentido (designadamente, quando o processo se veio a extinguir, como no presente caso, por amnistia), não valendo a objecção de que, num certo caso, nenhuma delas se verifica.
Aliás - e mesmo independentemente do juízo que se possa fazer quanto à verificação, no caso, das razões para afirmar a regra ou, antes, para apurar uma excepção -, a verdade é que o legislador não tem de prever todas as possíveis vicissitudes que venham a afectar um dos processos conexos, mormente quando elas resultam de outras intervenções legislativas supervenientes e excepcionais (como é o caso das leis de amnistia). Ora, estando a regra estabelecida bem fundada materialmente para a generalidade das situações, também não é a identificação de tal situação excepcional que destrói o seu suporte material.
E como a (alegada) improcedência das razões justificativas do princípio da adesão ao caso dos autos resultaria unicamente de uma intervenção legislativa - a lei da amnistia que, aliás, poderia até dizer-se, numa certa perspectiva, ter também já colocado o ora recorrente, demandado penalmente, numa situação de desigualdade em relação a outros demandados que por ela não foram abrangidos (designadamente em razão dos limites temporais fixados nessa lei) -, é também plenamente aplicável ao caso o que se escreveu no Acórdão 580/99 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 45.º vol., pp. 237-247) e se repetiu no Acórdão 183/2001 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 49.º vol., pp. 667-679):
"Importa ter presente que o legislador tem uma ampla liberdade no que respeita à alteração do quadro normativo vigente num dado momento histórico. Na verdade, o legislador, de acordo com opções de política legislativa tomadas dentro de uma ampla zona de autonomia, pode proceder às alterações da lei que se lhe afigurarem mais adequadas e razoáveis, tendo presente, naturalmente, os interesses em causa e os valores ínsitos na ordem jurídica.
Uma alteração legislativa para operar, consequentemente, uma modificação do tratamento normativo conferido a uma dada categoria de situações. Com efeito, as situações abrangidas pelo regime revogado são objecto de uma valoração diferente daquela que incidirá sobre as situações às quais se aplica a lei nova. Nesse sentido, haverá situações substancialmente iguais que terão soluções diferentes.
Contudo, não se pode falar neste tipo de casos de uma diferenciação verdadeiramente incompatível com a Constituição. A diferença de tratamento decorre, como resulta do que se disse, da possibilidade que o legislador tem de modificar (revogar) um quadro legal vigente num determinado período. A intenção de conferir um diferente tratamento legal à categoria de situações em causa é afinal a razão de ser da própria alteração legislativa.
O entendimento propugnado pela recorrente levaria à imutabilidade dos regimes legais, pois qualquer alteração geraria sempre uma desigualdade. Ora, tal posição não é reclamável pelo princípio da igualdade no quadro constitucional vigente."
Note-se, aliás, que, podendo embora ser da escolha do demandante a opção pela dedução do pedido de indemnização civil em separado [ao abrigo, por exemplo, do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP], em vez de no próprio processo penal, é absolutamente seguro que as regras que o ora recorrente põe em causa tanto restringem o recurso do demandado como do demandante. Não é, assim, procedente, do ponto de vista constitucional, a invocação de que o carácter facultativo da demanda civil neste caso aproveita apenas ao demandante.
5 - Também não procede a invocação de que a norma em causa viola os princípios de acesso ao direito e à tutela jurisdicional, mormente considerando que, como se disse, tal garantia de acesso ao direito já foi actuada, no presente caso, em mais de um grau de jurisdição (com um grau de recurso).
É, na verdade, reconhecido uniformemente na jurisprudência do Tribunal Constitucional que não pode inferir-se do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa qualquer irrestrita possibilidade de acesso, em via de recurso, ao Supremo Tribunal de Justiça. E é também pacífica e uniforme a jurisprudência que afirma a inexistência de um direito a um triplo grau de jurisdição (ou a um duplo recurso) - v. g. Acórdãos n.os 402/99, 215/2001 e 435/2001 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Assim, por exemplo, no Acórdão 189/2001 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50.º vol., pp. 285-294), escreveu-se:
"A Constituição da República Portuguesa não estabelece em nenhuma das suas normas a garantia da existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos das diferentes espécies.
Importa, todavia, averiguar em que medida a existência de um duplo grau de jurisdição poderá eventualmente decorrer de preceitos constitucionais como os que se reportam às garantias de defesa, ao direito de acesso ao direito e à tutela judiciária efectiva.
Não pode deixar de se referir que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem tratado destas matérias, estando sedimentados os seus pontos essenciais.
Assim, a jurisprudência do Tribunal tem perspectivado a problemática do direito ao recurso em termos substancialmente diversos relativamente ao direito penal, por um lado, e aos outros ramos do direito, pois sempre se entendeu que a consideração constitucional das garantias de defesa implicava um tratamento especifico desta matéria no processo penal. A consagração, após a Revisão de 1997, no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, do direito ao recurso, mostra que o legislador constitucional reconheceu como merecedor de tutela constitucional expressa o princípio do duplo grau de jurisdição no domínio do processo penal, sem dúvida, por se entender que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa.
Porém, mesmo aqui e face a este específico fundamento da garantia do segundo grau de jurisdição no âmbito penal, não pode decorrer desse fundamento que os sujeitos processuais tenham o direito de impugnar todo e qualquer acto do juiz nas diversas fases processuais: a garantia do duplo grau existe quanto às decisões penais condenatórias e também quanto às respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou a quaisquer outros direitos fundamentais (v., neste sentido, o Acórdão 265/94, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27.º v., pp. 751 e segs.).
Embora o direito de recurso conste hoje expressamente do texto constitucional, o recurso continua a ser uma tradução das garantias de defesa consagradas no n.º 1 do artigo 32.º (o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso). Daí que o Tribunal Constitucional não só tenha vindo a considerar como conformes à Constituição determinadas normas processuais penais que denegam a possibilidade de o arguido recorrer de determinados despachos ou decisões proferidas na pendência do processo (v. g., quer de despachos interlocutórios, quer de outras decisões, Acórdãos n.os 118/90, 259/88, 353/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vols. 15.º, p. 397, 12.º, p. 735, e 19.º, p. 563, respectivamente, e Acórdão 30/2001, sobre a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação particular quando o Ministério Público acompanhe tal acusação, ainda inédito), como também tenha já entendido que, mesmo quanto às decisões condenatórias, não tem que estar necessariamente assegurado um triplo grau de jurisdição, assim se garantindo a todos os arguidos a possibilidade de apreciação da condenação pelo Supremo Tribunal de Justiça (v., neste sentido, o Acórdão 209/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16.º v.º, p. 553).
Uma tal limitação da possibilidade de recorrer tem em vista impedir que a instância superior da ordem judiciária accionada fique avassalada com questões de diminuta repercussão e que já foram apreciadas em duas instâncias. Esta limitação à recorribilidade das decisões penais condenatórias tem, assim, um fundamento razoável."
Assim, a limitação do recurso ao Supremo Tribunal de Justiça, tendo em conta que a decisão recorrida já fora proferida em recurso pelo Tribunal da Relação de Lisboa, e, portanto, que o ora recorrente teve já acesso a dois graus de jurisdição, também não se afigura censurável do ponto de vista do princípio constitucional do acesso ao direito e aos tribunais.
III - Decisão. - Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional o artigo 432.º, alínea b), conjugado com o artigo 400.º, n.os 1, alínea e), e 2, do CPP, interpretado no sentido de que não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisão do Tribunal da Relação relativa à indemnização civil, proferida em 2.ª instância, se for irrecorrível a correspondente decisão penal;
b) Consequentemente, confirmar a decisão recorrida quanto a esta questão de constitucionalidade;
c) Condenar o recorrente em custas, com 20 UC de taxa de justiça.
22 de Junho de 2005. - Paulo Mota Pinto (relator) - Maria Fernanda Palma - Mário José de Araújo Torres - Rui Manuel Moura Ramos.