Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 203/2004/T, de 3 de Junho

Partilhar:

Texto do documento

Acórdão 203/2004/T. Const. - Processo 694/2003. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - Tiago de Melo Bouça Filipe Martins foi condenado, por sentença do Tribunal Judicial de Coimbra proferida em 21 de Março de 2002, como autor pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de Euro 5, num total de Euro 600, a que correspondem 80 dias de prisão subsidiária.

Foi ainda condenado a pagar ao ofendido Luís Manuel Fernandes Costa a quantia de Euro 498,80 de indemnização por danos de natureza patrimonial e Euro 2743,39 a título de indemnização por danos de natureza não patrimonial, o que perfaz a quantia total de Euro 3242,19, acrescida dos juros à taxa legal vigente, desde a notificação para contestar o pedido e até ao pagamento efectivo.

Após o depósito da sentença na secretaria, o mandatário do arguido, por requerimento de 25 de Março de 2002, diz ter sido "informado de que não tinha sido gravado o depoimento de uma testemunha presencial, ouvida por videoconferência, o Dr. Gonçalo Mexia, cujo depoimento é, no nosso ponto de vista, essencial para a descoberta da verdade material/processual.

Tal omissão é grave e afecta o próprio julgamento, inviabilizando o recurso do exponente e a apreciação da prova pelo Tribunal ad quem.

Assim sendo, invoca-se a respectiva irregularidade, devendo V. Ex.ª, atendendo ao direito do aqui interessado e aos princípios da economia e celeridade processual, ordenar a sua reparação nos termos do n.º 2 do artigo 123.º do CPP".

Por despacho de 10 de Abril de 2002 foi indeferida a arguição de irregularidade com fundamento na sua extemporaneidade.

Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo concluído como segue:

"a) Tendo a audiência decorrido perante o tribunal singular, as declarações nele prestadas oralmente são documentadas em acta, não tendo havido renúncia ao recurso em matéria de facto.

b) A disciplina e a direcção da audiência cabem ao juiz.

c) Se o Tribunal não dispuser de meios técnicos idóneos à reprodução integral das declarações, o juiz dita para a acta o que resulta das declarações prestadas.

d) Tendo sido ouvida uma testemunha por videoconferência, o seu depoimento não foi gravado.

e) Desconhecemos se por carência de meios técnicos.

f) Mas sabemos que a Sr.ª Juíza não ditou para a acta o que resultou das declarações prestadas.

g) O arguido, naturalmente, só no acto de levantamento das cassetes (22 de Março de 2002) com a gravação da prova soube que o depoimento não tinha sido gravado.

h) No dia 25 de Março de 2002, invocou a respectiva irregularidade grave, solicitando a sua reparação ex vi do n.º 2 do artigo 123.º do CPP.

i) Antes não podia adivinhar.

j) Em 10 de Abril de 2002, foi notificado do despacho que recaiu sobre a invocada irregularidade, considerando-a extemporânea.

k) A Sr.ª Juíza renunciou à reparação oficiosa.

l) Colocou o recorrente na situação de eficazmente exercer o direito ao recurso da matéria de facto.

m) Colocou o Tribunal ad quem numa situação que o impossibilita de apreciar tal prova.

n) Colocou o direito e garantias de defesa do arguido em xeque.

o) Omitiu ainda na sentença, sem qualquer razão, qualquer referência ao depoimento da testemunha presencial Pinto dos Santos.

p) Inviabilizando, assim, qualquer sindicância sobre o processo lógico e racional subjacente à formação da sua convicção.

q) Partiu de uma premissa falsa para concluir sobre a personalidade do arguido.

r) Nem sequer teve dúvidas sobre os pressupostos da legítima defesa (ou putativa), não as valorando a favor do arguido.

s) Considerou como não provado que o ofendido era segurança, contra as mais elementares regras de experiência.

t) Fez tábua rasa das contradições nos depoimentos do ofendido e das suas testemunhas, quanto às posições em que se encontravam o arguido e aquele aquando da ocorrência.

u) Não retirou nenhuma ilação do facto de o ofendido ter apresentado como testemunhas dois colaboradores do bar e nenhum dos amigos com quem se deslocou para não os chatear!

v) Fixou a indemnização com base num elemento desconhecendo-o - a situação económica do arguido.

[...]

Normas violadas: artigos 374.º, n.º 2, 379.º, alínea a), 410.º, n.º 2), e 127.º do CPP e 32.º, n.º 1, da CRP."

Por Acórdão de 15 de Janeiro de 2003, o Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso.

O arguido, por requerimento de 30 de Janeiro de 2003, pediu esclarecimento ao Tribunal da Relação de Coimbra sobre o referido acórdão, peça processual em que transcreveu o teor da gravação da videoconferência e de cuja transcrição resulta que o seu mandatário pediu várias vezes à Sr.ª Magistrada Judicial para se certificar de que a prova estava efectivamente a ser gravada e sem a ocorrência de quaisquer problemas técnicos (cf. de fl. 264 a fl. 271).

Por Acórdão de 2 de Abril de 2003, o Tribunal da Relação de Coimbra indeferiu o pedido de esclarecimento.

Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, tendo dito no requerimento de interposição de recurso:

"Assim, é a seguinte a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie:

A) A norma do artigo 123.º do CPP, na interpretação acolhida no acórdão recorrido, isto é, a de que, por se tratar de vícios de menor gravidade (???), para as situações em que os interessados assistem ao respectivo acto, como sucedeu no caso sub judice (videoconferência em audiência perante tribunal singular, em que não houve renúncia ao recurso em matéria de facto), qualquer irregularidade (no caso, omissão absoluta de gravação de depoimento) do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto.

Na verdade, diz a lei:

A disciplina e a direcção da audiência cabem ao juiz;

Caso não estejam à disposição do Tribunal meios técnicos idóneos à reprodução integral das declarações, o juiz dita para a acta o que resulta das declarações prestadas.

Da conjugação destes ditames legais ressaltou, in casu, prima facie, a ideia/presunção de normalidade técnico-funcional.

Sendo certo que não compete ao advogado intrometer-se na disciplina e direcção da audiência ou sequer sugerir o controlo inicial dos respectivos meios técnicos e final do resultado da gravação.

Ao considerar que o vício oculto tinha de ser invocado no próprio acto, o acórdão da Relação de Coimbra exige ao advogado conduta paranormal.

A interpretação assim feita do artigo 123.º do CPP, que escapa a todo o critério racional, é inconstitucional por violação da garantia de defesa do arguido, nos termos do artigo 32.º da CRP.

A norma processual penal referenciada, com a interpretação dada na decisão recorrida, viola o n.º 1 do artigo 32.º da CRP."

Admitido o recurso e no prazo fixado para alegações, veio o arguido/recorrente alegar, firmando as seguintes conclusões:

"a) A disciplina e a direcção da audiência cabem ao juiz.

b) Se o Tribunal não dispuser de meios técnicos à reprodução integral das declarações, o juiz dita para a acta o que resulta das declarações prestadas.

c) O que não ocorreu in casu, gerando a convicção da normalidade técnico-funcional.

d) Tratava-se de um depoimento da testemunha presencial por videoconferência, em audiência perante tribunal singular, em que não houve renúncia ao recurso em matéria de facto.

e) Não compete ao advogado intrometer-se na disciplina e direcção da audiência ou sequer sugerir o controlo dos respectivos meios técnicos e o controlo final do resultado da gravação.

f) O Tribunal entendeu a falta absoluta da gravação de depoimento de testemunha de vista como um vício de menor gravidade.

g) Como tal, deveria ter sido invocado no próprio acto.

h) Ao entender assim, exige do advogado conduta paranormal.

i) O advogado deve conhecer o oculto ou como o oculto se lhe revela, no entendimento do Tribunal recorrido, sendo certo que no caso sub judice não se tratava de oculto escondido com rabo de fora.

j) Os advogados compartilham, aos olhos de muitos, poder com o diabo e, aos olhos de poucos, como o tribunal recorrido, poderes com a divindade.

k) Só que, como alguém disse, 'O direito não é para heróis nem para santos, mas para gente medíocre (leia-se normal) que nós somos'.

l) E também, como dizia Virgínia Woolf 'Entre a normalidade e a loucura (visionária, no caso) existe apenas uma lâmina'.

m) O advogado não se quer cortar nela.

n) A interpretação que o tribunal recorrido, perante a situação concreta, faz do artigo 123.º do CPP escapa a todo o critério racional.

o) A norma processual penal referida, com a interpretação feita na decisão recorrida, viola o n.º 1 do artigo 32.º da CRP."

O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto em exercício neste Tribunal contra-alegou, concluindo:

"1.º É inconstitucional, por violação dos artigos 20.º e 32.º da lei fundamental, a interpretação normativa do n.º 1 do artigo 123.º do Código de Processo Penal que se traduza em cominar ao arguido e seu defensor o ónus de reclamar, no prazo ali especificado, uma irregularidade processual, cometida em audiência, sem que dela se pudessem ter logo apercebido, mesmo que agissem com a devida diligência.

2.º Termos em que deverá proceder o presente recurso."

Cumpre apreciar e decidir.

2 - O recurso vem intentado ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da norma constante do artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de impor ao arguido e ao seu defensor o ónus de arguir as irregularidades processuais cometidas em audiência no próprio acto ou nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado, ainda que não se tenham apercebido da existência dessa irregularidade, por facto que não lhes é imputável, por violação das garantias de defesa do arguido.

Segundo o entendimento do recorrente, a interpretação da norma no sentido de o ónus de arguir irregularidade processual resultante da falta de gravação de prova em audiência de julgamento (por videoconferência), no próprio acto - tendo o respectivo mandatário durante tal acto solicitado (sem êxito) à juíza que presidia ao julgamento que se certificasse do correcto funcionamento dos meios técnicos de gravação da prova, mas apercebendo-se da falta de gravação de depoimento em data muito posterior à referida audiência - viola as garantias de defesa do arguido consignadas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

3 - É do seguinte o teor da norma cuja inconstitucionalidade vem arguida pelo recorrente:

"Artigo 123.º

Irregularidades

1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.

2 - ..."

4 - O acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Coimbra pronunciou-se nos seguintes termos:

"A questão suscitada pelo recorrente neste recurso já foi desenvolvidamente tratada no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Junho de 2002, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 17 de Julho de 2002, nos termos do qual se fixou jurisprudência no seguinte sentido:

'A não documentação das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, contra o disposto no artigo 363.º do Código de Processo Penal, constitui irregularidade sujeita ao regime estabelecido no artigo 123.º do mesmo diploma legal, pelo que, uma vez sanada, o tribunal já dela não pode conhecer.'

Ora, a fundamentação constante desse douto acórdão, nomeadamente, no sentido de que 'nos casos em que a documentação é obrigatória, a omissão da mesma constitui uma irregularidade que afecta exclusivamente um direito disponível - o de interpor recurso versando matéria de facto -, não afectando, porém, a validade e eficácia da audiência de discussão e julgamento em si', aplica-se, sem dúvida, ao caso em apreciação - cf. artigos 318.º, n.os 5 e 6, e 364.º do Código de Processo Penal -, pelo que, com o devido respeito, aqui se dá por reproduzida.

Assim sendo, tendo o arguido e o seu ilustre defensor estado presentes no acto em que se verificou a irregularidade em causa, que consistiu na não documentação do depoimento de uma testemunha ouvida em audiência, por método de videoconferência, cf. acta de fl. 135 a fl. 137, e sem que no próprio acto a mesma tenha sido arguida pelos interessados, sendo certo que o acto decorreu no dia 7 de Março de 2002 e tal irregularidade só veio a ser arguida, pelo recorrente, no dia 25 de Março de 2002, cf. fl. 157, impõe-se concluir que a referida irregularidade se mostra sanada, sem que tenha determinado a invalidade do acto em causa.

[...]

É certo que o arguido, ora recorrente, invoca que só no dia 22 de Março de 2002 teve conhecimento da irregularidade em causa, quando se deslocou ao Tribunal a fim de levantar as cassetes com a gravação da prova, mas entendemos que este facto é irrelevante para a decisão da questão em apreciação, uma vez que o citado normativo também não prevê em circunstância alguma que o prazo de arguição de irregularidade decorra a partir do respectivo conhecimento pelo interessado.

Aliás, resulta claramente do texto do citado normativo legal que este conhecimento não releva para o caso, uma vez que, mesmo para as situações em que os interessados não tiverem assistido ao acto, estabelece o mesmo que a irregularidade tem de ser arguida 'nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado' - cf. ainda o n.º 1 do mesmo artigo 123.º

Ora, no caso em apreciação, sucedeu que, tendo o acto em causa ocorrido no dia 7 de Março de 2002, na presença do recorrente, a referida audiência veio a continuar ainda nos dias 14 e 21 de Março de 2002, cf. fls. 139 e segs. e 145, respectivamente, sempre na presença do seu ilustre defensor.

[...]

Pelo exposto e sem necessidade de mais considerações, no que ao mesmo respeita, impõe-se a conclusão de que este recurso não merece provimento."

Ora, uma leitura atenta do texto transcrito permite, desde logo, concluir que, em bom rigor, a interpretação questionada pelo recorrente não se ajusta exactamente à que foi acolhida no acórdão recorrido.

Com efeito, não competindo ao Tribunal Constitucional apreciar se, no caso, o recorrente (ou o seu defensor) dispunha ou não de meios que lhe permitissem aperceber-se da irregularidade em causa durante o acto de julgamento, agindo com a diligência devida, a verdade é que também se não vê, no acórdão recorrido, qualquer pronúncia sobre tal hipotética situação.

E isto pela simples razão de o aresto se ter limitado a considerar "irrelevante" o conhecimento posterior alegado pelo recorrente, acrescentando até, como fundamento desse juízo, que o preceito não prevê, "em circunstância alguma", que o prazo de arguição de irregularidade decorra a partir do respectivo conhecimento pelo interessado.

Daí que se deva entender que a interpretação adoptada não tem em conta o facto alegado pelo recorrente (só ter sido possível tomar conhecimento da irregularidade em momento posterior), pois ela prescinde de qualquer indagação sobre a cognoscibilidade da irregularidade.

O que vale por dizer que o Tribunal Constitucional só pode conhecer da constitucionalidade da norma ínsita no artigo 123.º do Código de Processo Penal na interpretação de que a arguição deve ser feita no próprio acto em que a irregularidade, por falta de documentação da prova produzida em julgamento por deficiência técnica de videoconferência, tenha ocorrido, independentemente da sua cognoscibilidade pelo arguido, agindo com a devida diligência.

5 - O Tribunal Constitucional já, por diversas vezes, foi chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da norma constante do artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

No seu Acórdão 61/88 (cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., pp. 611 e segs.), e com interesse para os presentes autos, ponderou:

"[...] A ideia geral que pode formular-se a este respeito - a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas nos n.os 2 e seguintes do artigo 32.º - será a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law, devendo considerar-se ilegítimos, por consequência, quer eventuais normas processuais quer procedimentos aplicativos delas que impliquem um encurtamento inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável das possibilidades de defesa do arguido (assim, basicamente, cf. Acórdão 337/86 deste Tribunal, Diário da República, 1.ª série, de 30 de Dezembro de 1986)."

No Acórdão 383/97, de 14 de Maio, este Tribunal entendeu que "uma interpretação do artigo 123.º do CPP que conduza a impor (sob pena de a mesma se dever ter por sanada) a arguição, em três dias, da nulidade decorrente da falta de junção ao processo de transgressão [...] da contestação que o arguido apresentou, regular e tempestivamente, e que, por via dessa omissão, não pôde ser tomada em consideração na sentença, atinge o núcleo essencial do direito de defesa".

Considerando ainda que tal interpretação limita de modo desproporcionado as possibilidades de defesa do arguido, o Tribunal julgou "inconstitucional - por violação do artigo 32.º, n.os 1 e 8, da Constituição da República - a norma do artigo 123.º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de conceder apenas três dias para se arguir a nulidade ou irregularidade da falta de junção aos autos da contestação apresentada pelo arguido em processo de transgressão fiscal, tendo essa omissão como consequência não terem os factos nela alegados sido apreciados na sentença final".

Mais recentemente, no Acórdão 208/2003, de 28 de Abril, este Tribunal decidiu, porém, que "a imposição ao arguido, necessariamente assistido no processo por um defensor, do ónus de invocar no decurso da audiência - que, no caso dos presentes autos, até se prolongou por vários meses - um vício procedimental que nela está precisamente a acontecer -, e que, portanto, não deveria passar despercebido a um acompanhamento diligente dessa fase processual, manifestamente não implica um cerceamento inadmissível ou insuportável das suas possibilidades de defesa que se tenha de considerar desproporcionado ou intolerável, em termos de consubstanciar solução constitucionalmente censurável, na perspectiva do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição".

Atendendo, em particular, a este último acórdão, importa salientar que decisivo para o juízo de não inconstitucionalidade ali formulado foi o entendimento de que impende sobre o arguido ou seu defensor, agindo com a devida diligência e boa fé, a obrigação de detectar o vício procedimental que ocorre no decurso da audiência de julgamento perante tribunal colectivo e consistente na omissão de documentação das declarações orais nela prestadas.

É diversa a situação no caso em que a omissão se traduz, como se disse, na não gravação de depoimento oral prestado em videoconferência durante uma audiência de julgamento que decorre perante juiz singular e onde não ocorreu renúncia ao recurso em matéria de facto.

E vale para iluminar essa mesma situação que dos autos resulta ter o defensor do recorrente solicitado - e com insistência - à juíza que presidia ao julgamento a verificação do efectivo registo da gravação em perfeitas condições técnicas, o que sempre foi recusado.

Ora, se a qualificação como "irregularidade", para efeitos do disposto no artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, pressupõe, como se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de fixação de jurisprudência, n.º 5/2002, in Diário da República, 1.ª série-A, de 17 de Julho de 2002, uma "violação de lei processual" que se reporta "a uma norma que tutela interesses de menor gravidade", tal não significa que seja sempre assim, podendo até a "irregularidade" pôr em causa a validade do acto processual, caso em que o n.º 2 do preceito permite a sua reparação oficiosa.

Não se quer com isto dizer que, no caso, a "irregularidade" afectasse a validade do julgamento. De todo o modo, ela pode afectar interesses ou direitos constitucionalmente protegidos dos arguidos.

O caso é, aliás, disso exemplo, pois, segundo o recorrente - que não tinha renunciado ao recurso em matéria de facto - era importante para a sua defesa, por via de recurso, o depoimento que não foi registado na gravação da videoconferência.

Mas, sendo assim, não pode deixar de se reconhecer que prescindir da indagação sobre a diligência e zelo do interessado no conhecimento da omissão verificada, tida como irregularidade, para decretar a intempestividade da arguição por não ter sido feita no acto, é modelar o processo penal com um unfair process, não equitativo, e, como tal, lesivo dos direitos de defesa do arguido garantidos pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Mesmo que a exigência de arguição de irregularidade no próprio acto seja eventualmente justificada por estarem em jogo "interesses de menor gravidade", sempre será desproporcionada a restrição daqueles direitos quando se considera irrelevante a cognoscibilidade do vício em causa.

6 - Decisão. - Pelo exposto e em conclusão, decide-se:

a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal interpretada no sentido de ela impor a arguição, no próprio acto, de irregularidade cometida em audiência de julgamento, perante tribunal singular, independentemente de se apurar da cognoscibilidade do vício pelo arguido, agindo com a diligência devida;

b) Em consequência, conceder provimento ao recurso, devendo o acórdão recorrido ser reformado em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.

Sem custas.

Lisboa, 24 de Março de 2004. - Artur Maurício - Rui Manuel Moura Ramos - Carlos Pamplona de Oliveira - Maria Helena Brito - Luís Nunes de Almeida.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2217926.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga ao seguinte documento (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1986-12-30 - Acórdão 337/86 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 61.º, n.º 4, do Código da Estrada, na parte em que atribui competência à Direcção-Geral de Viação para aplicar a medida de inibição da faculdade de conduzir ao condutor que, tendo cometido uma transgressão estradal, paga voluntariamente a multa.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda