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Acórdão 427/2003-Processo n, de 20 de Novembro

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Texto do documento

Acórdão 427/2003 - Processo 195/2002. - Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - Por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Verde, foi julgada parcialmente procedente a acção de condenação proposta por Maria da Conceição Costa Azevedo e Silva Sá, Gil Rafael da Silva e Sá e Adriana da Silva e Sá contra a Sociedade Portuguesa de Seguros, S. A.

A ré foi, então, condenada a pagar aos autores a quantia de 28 210 000$, acrescida de juros à taxa legal desde a citação, a título de indemnização pelos danos, patrimoniais e não patrimoniais, decorrentes do atropelamento, ocorrido na EN 101 e causado pelo veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula RS-75-94, segurado pela ré, do marido e pai dos autores, o qual veio a falecer em consequência do mesmo.

Inconformadas, as partes recorreram para o Tribunal da Relação do Porto, Tribunal que, por Acórdão de 3 de Abril de 2000, a fls. 735 e seguintes, atendeu parcialmente o recurso dos autores e negou a apelação interposta pela ré.

Entendeu o Tribunal da Relação do Porto, que começou por observar que "[c]umpre dizer que apenas se questiona o montante dos danos patrimoniais sofridos pelos autores, mulher e filhos do peão sinistrado decorrentes da perda de ganho deste", que, uma vez que o n.º 3 do artigo 495.º do Código Civil "confere direito a indemnização às pessoas a quem o lesado directo prestava ou podia ser obrigado a prestar alimentos", "para que alguém tenha direito a uma indemnização pela morte do cônjuge ou de ascendente não é necessário que já esteja a receber da vítima uma prestação de alimentos, por carência efectiva de alimentos; basta que tenha a qualidade de que depende a possibilidade legal do exercício do direito a alimentos".

Considerou, então, terem tal direito quer a mulher quer os filhos do lesado - artigo 2009.º, n.º 1, alíneas a) e b) - que o quantitativo da indemnização se aferia pelo prejuízo que "para essas pessoas se mede pela sua [do lesado] falta e, portanto, há-de equivaler ao montante que aquele estaria obrigado a prestar. Daí que o valor da indemnização por danos patrimoniais dos que podiam exigir alimentos ao lesado não possa exceder a medida dos que este, lesado, teria de dar, se vivo fosse [...]"; e que havia ainda a ter em conta "o postulado nos artigos 562.º, 564.º e 566.º do CC, pois que a indemnização tem por fim reconstituir a situação que existiria se não fosse o facto danoso e atender-se-á no seu cálculo não só aos prejuízos causados como aos benefícios perdidos em consequência da lesão, incluindo os danos futuros previsíveis".

Assim, e uma vez que "para o cálculo dos danos patrimoniais devidos aos autores por força do estipulado no artigo 495.º, n.º 3, será conveniente, aliás, como se fez na sentença recorrida, tomar por referência as tabelas financeiras usadas na determinação do capital necessário à formação de uma renda periódica correspondente à perda de ganho, de tal forma que no final do período a considerar o próprio capital se esgote", o Tribunal da Relação do Porto condenou a ré a pagar aos autores, "a título de indemnizações por perda de alimentos" (e porque havia sido atribuído ao lesado a percentagem de 30% na culpa pelo acidente) "ao filho 11 316 666$, à filha 11 316 666$ e à viúva 16 916 666$".

2 - De novo inconformadas, as partes interpuseram recurso de revista.

Por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Junho de 2001, constante a fls. 832 e seguintes, foi decidido "revogar o acórdão recorrido na parte em que arbitrou à autora viúva uma indemnização a título de alimentos solicitados com base no disposto no artigo 495.º, n.º 3, do Código Civil" e, ainda, "revogar o acórdão recorrido na parte em que arbitrou aos AA. a indemnização por danos patrimoniais futuros resultantes do decesso do peão, a qual se fixa agora em 70 000 000$, operando-se, porém, se necessário, a respectiva redução de harmonia com o valor da respectiva parcela do pedido".

Para o que agora releva, o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se nos seguintes termos:

"11 - Recurso da ré Sociedade Portuguesa de Seguros, S. A.

Insurge-se a ré seguradora contra o acórdão revidendo em duas vertentes distintas: por um lado, não concorda com o arbitramento de indemnização à viúva da vítima a título de alimentos já que, atenta a respectiva situação económica e sócio-familiar, a mesma não carecia, nem era previsível que viesse a carecer, de tal 'amparo'; por outro lado, considera exagerados os montantes indemnizatórios a esse mesmo título atribuídos aos filhos menores do lesado imediato (11 500 000$ para cada um deles, depois reduzidos em função do grau de culpa do lesado), o qual deveria cifrar-se em apenas 9 100 000$, a dividir em partes iguais para cobertura das respectivas necessidades até perfazerem 24 anos de idade.

Que dizer?

Vem aqui à colação o estatuído no n.º 3 do artigo 495.º do CCIV, nos termos do qual 'têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado' e no n.º 2 do artigo 564.º do mesmo diploma, segundo o qual 'na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação correspondente será remetida para decisão ulterior'.

Não vem controvertido o direito dos filhos a beneficiarem jure proprio da indemnização por danos futuros, a título alimentar, e por mor de tais dispositivos legais (apenas se propugna a fixação de um valor inferior), sendo que o que vem totalmente questionado é a atribuição in concreto de tal direito ao cônjuge supérstite, que não também da susceptibilidade abstracta desse mesmo benefício.

Ora, não pode o tribunal prescindir do binómio possibilidade/necessidade e do critério da adequação e da proporcionalidade contemplados nos artigos 2003.º e 2004.º do CCIV, sendo pois de arredar a concessão de indemnização se se provar que o cônjuge sobrevivo, pelo seu desafogo económico, de todo em todo não necessita do dito 'amparo'.

O cônjuge da vítima com rendimentos próprios terá pois sempre de alegar e provar que o respectivo quantitativo é insuficiente actualmente e ou previsivelmente no futuro para prover às suas necessidades, por reporte aos parâmetros referenciais plasmados nos citados normativos.

Neste domínio das indemnizações ou pensões alimentares, o julgador terá pois sempre de fazer um juízo de prognose prévia concreta, não só para impor ou não a prestação de alimentos como também para fixar o seu concreto cômputo, não podendo este basear-se em dados meramente conjecturais ou hipotéticos.

Pois bem.

Trata-se esse reconhecimento a terceiros, nos casos de morte do titular dos rendimentos - lesado directo e imediato - de um direito excepcional de beneficiarem jure proprio de indemnização por danos patrimoniais futuros; por isso a lei circunscreve tal benefício às pessoas que face à lei podiam exigir alimentos do lesado ou àqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural - cf. citado no n.º 3 do artigo 495.º do CCIV.

Essa natureza excepcional foi, de resto, expressamente reconhecida nos recentes arestos deste Supremo Tribunal de 16 de Março de 1999, processo 22/99 - 2.ª Secção, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 485, p. 386, de 11 de Janeiro de 2000, processo 1052/99 - 6.ª Secção, e de 11 de Janeiro de 2000, processo 1030/99 - 6.ª Secção.

E, como norma excepcional, é a mesma, em princípio, insusceptível de aplicação analógica - cf. artigo 11.º do Código Civil.

Não bastará por isso, e de qualquer modo, a simples invocação da 'qualidade' ou status do cônjuge sobrevivo para, de pronto e de modo automático, ser atribuída ao invocante uma indemnização a esse título; e desde logo se aquando da decisão - data mais recente que possa ser atendida pelo tribunal (artigo 566.º, n.º 2, do CCIV) - nada fizer prever a 'necessidade' do vindicante em beneficiar (no futuro) de tal amparo.

[...]

Procede, por conseguinte, a pretensão da recorrente no sentido do não arbitramento de qualquer indemnização à autora viúva do lesado directo, a título de pensão alimentar, por manifesta e comprovada desnecessidade da mesma, a qual havia sido fixada em 19 500 000$x70%=13 650 000$.

Já quanto à indemnização arbitrada a tal título aos dois filhos menores da vítima, não se descortina qualquer motivo que leve a reputar de desajustado ou desproporcionado o critério de equidade (artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil) adoptado pelo tribunal a quo, assim devendo permanecer incólumes os respectivos cômputos parcelares e global, nesta parte improcedendo a revista da ré.

12 - Revista dos AA.

[...]

Já quanto aos quantitativos indemnizatórios arbitrados pela Relação, afastam-se os mesmos sensivelmente dos parâmetros e métodos de cálculo que vêm sendo geralmente seguidos nos tribunais em geral e particularmente por este Supremo Tribunal [...]

Tais métodos e critérios apontariam para a fixação de um montante indemnizatório, a título de danos patrimoniais futuros por morte da vítima, que rondaria os 99 000 000$. Assim, e porque a indemnização a esse título parcelar (lucros cessantes) deve também ser reduzida em 30% - grau de culpa do lesado - , fixa-se a mesma, com recurso à equidade, em 70 000 000$, verba essa a distribuir pelos AA. não já jure proprio mas jure hereditario, e segundo as regras da sucessão legítima, tendo sempre, contudo, em atenção o valor parcelar e global do pedido, sendo pois, se necessário e em conformidade, reduzida (cf., neste sentido, o Acórdão desta Secção de 30 de Novembro de 2000, in processo 3016/2000).

13 - Decisão:

Em face do exposto, decidem:

Conceder parcialmente a revista aos AA.;

Conceder parcialmente a revista à ré seguradora;

Revogar o acórdão recorrido na parte em que arbitrou à A. viúva uma indemnização a título de alimentos solicitados com base no disposto no artigo 495.º, n.º 3, do Código Civil;

Revogar o acórdão recorrido na parte em que arbitrou aos AA. a indemnização por danos patrimoniais futuros resultantes do decesso do peão, a qual se fixa agora em 70 000 000$, operando-se, porém, e se necessário, a respectiva redução de harmonia com o valor da respectiva parcela do pedido.

Confirmar, no mais, o decidido pela Relação."

3 - Notificada deste acórdão, a Sociedade Portuguesa de Seguros, S. A., veio requerer a sua aclaração, pretendendo ser esclarecida sobre "qual o fundamento legal para a atribuição, numa espécie de decisão surpresa, duma quantia como a que, no valor de 70 000 contos, foi agora fixada para os AA. mas com outra (e silente) base que não a consagrada no artigo 495.º, n.º 3, do Código Civil, ao invés do que fizeram e propugnaram as instâncias, nessa parte, bem como devem vir a ser esclarecidos quais os concretos 'quantitativos indemnizatórios arbitrados na relação' que, no caso (citamos:) 'afastam-se [...] sensivelmente dos parâmetros e métodos de cálculo que vêm sendo geralmente seguidos nos tribunais', como se diz no aresto aclarando (cf. pp. 28 e 29 do mesmo), mas não se consegue entender, dada a insuprível contradição que transparece dessa afirmação por contraponto com o facto de as instâncias apenas terem concedido o dano patrimonial em causa com base no já citado artigo 495.º, n.º 3, i. e., jure proprio - e não jure hereditario, como ora se faz, mas omitindo a respectiva fundamentação".

O pedido de esclarecimento foi indeferido por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Outubro de 2001, constante a fls. 878 e seguintes.

A Sociedade Portuguesa de Seguros veio igualmente arguir a nulidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça por, designadamente, a "parte final do aresto ora prolatado não conter nenhum fundamento de direito para a condenação da ré no pagamento da quantia de 70 000 000$ aos AA., duplicando os danos (na parte relativa aos filhos menores do lesado) que já estão a ser pagos por via alimentar, como foi decidido de acordo com o disposto ainda no referido artigo 495.º, n.º 3, do Código Civil".

Segundo a Sociedade Portuguesa de Seguros, o vício de falta de fundamentação de direito, para além de inquinar a decisão do recurso de revista nos termos do disposto no artigo 668.º, alíneas b) e c), do Código de Processo Civil, seria também "susceptível de censura segundo a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, por violação do disposto nos artigos 2.º, 202.º e 205.º da Constituição da República Portuguesa - inconstitucionalidade material que só agora pode ser arguida, face ao efeito novidade ou à surpresa da decisão".

Por Acórdão de 7 de Fevereiro de 2002, constante a fls. 903 e seguintes, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a arguição de nulidades.

4 - Entretanto, a Sociedade Portuguesa de Seguros, S. A., interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, "recurso esse que é interposto ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, e que tem por objecto a norma constante do artigo 495.º, n.º 3, do Código Civil, na interpretação de que basta a mera qualidade referida nessa norma protectora para que lesados terceiros familiares adquiram o direito de indemnização por lucros cessantes derivados da perda dos normais rendimentos que lhes eram proporcionados pelo lesado directo falecido com a eclosão do evento ilícito danosos, com violação do disposto nos princípios que estão consignados nos artigos 2.º e 13.º da Constituição da República Portuguesa, conforme se alegou na minuta de alegações de revista da ré recorrente (cf. as suas conclusões 10.ª a 14.ª, entre o mais), bem como face à violação cometida pelo aresto em crise do disposto nos artigos 202.º, n.º 2, e 205.º, n.º 1, da Constituição, como se alegou nos requerimentos de aclaração e de arguição de nulidades do acórdão proferido no tribunal a quo, com postergação do princípio da confiança e das legítimas expectativas jurídicas tuteladas, também, pelo artigo 2.º da Constituição".

5 - Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as respectivas alegações, que a recorrente concluiu da seguinte forma:

"1.ª O Supremo Tribunal de Justiça, no aresto recorrido, interpretou a norma constante do artigo 495.º, n.º 3, do Código Civil como conferindo aos terceiros familiares do lesado (e vítima mortal do sinistro que é causa da responsabilidade civil dos autos) o direito a auferir para si, jure hereditario e em medida proporcionalmente equitativa, dos proventos que aquele lesado direito poderia vir a auferir ao longo da sua vida laboral futura não fora o evento danoso;

2.ª Tal direito, nesse douto aresto, foi tido como sendo parte integrante do ressarcimento do dano patrimonial futuro que os lesados mediatos - i. e., os AA. da acção, viúva e filhos da vítima - teriam sofrido, independentemente das eventuais perdas alimentares sofridas (conferidas, por acréscimo, aos descendentes menores mas excluídas à viúva por não carecer de tais elementos);

3.ª Essa interpretação do disposto no citado artigo 495.º, n.º 3, se fosse válida, torná-lo-ia materialmente inconstitucional, por ofensa directa do disposto nos artigos 2.º e 13.º da Constituição, bem como dos princípios da confiança e da legítima expectativa jurídicas atinentes ao Estado de direito democrático e, ainda, da estabilidade e certeza jurídicas inerentes ao princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei;

4.ª Rectius, a norma constante do artigo 495.º, n.º 3, do Código Civil, se interpretada conforme o foi no aresto recorrido e no sentido acima aludido, é materialmente inconstitucional, pelo que não poderia ser aplicada pelo tribunal recorrido, pelo menos nessa interpretação ilegal e ofensiva dos princípios constitucionais inerentes às duas normas da Constituição acima citadas, as quais foram directamente violadas no aresto recorrido;

5.ª Deve, pois, ser declarada a inconstitucionalidade material da norma constante do n.º 3 do citado artigo 495.º do Código Civil, quando interpretada no sentido em que o foi no douto aresto recorrido e se acha referido nas antecedentes conclusões 1.ª e 2.ª supra, fazendo-se a sindicância que é imposta pelo disposto no artigo 204.º da Constituição."

Quanto aos recorridos, formularam as seguintes conclusões:

"1.ª A recorrente só podia recorrer quanto à inconstitucionalidade da norma do artigo 495.º, n.º 3, do Código Civil.

2.ª Mas afigura-se-nos que ela recorreu da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3.ª Daí que, cremos, nem tampouco se possa conhecer do recurso.

4.ª E, se a recorrente pretendia ver discutida a inconstitucionalidade do disposto no artigo 495.º, n.º 3, do Código Civil, devia tê-lo feito de forma clara e perceptível, invocando as suas razões, conducentes ao conhecimento dessa inconstitucionalidade.

5.ª Em vez disso, ela disse, em síntese: o meu entendimento sobre o disposto no artigo 495.º, n.º 3, do Código Civil é este. Se o vosso for diferente, então estão a aplicar uma norma materialmente inconstitucional.

6.ª A recorrente não apresentou uma questão objectiva, clara e perceptível de inconstitucionalidade para o STJ decidir, ou seja, não impugnou a inconstitucionalidade da referida norma.

7.ª Subsidiariamente, dir-se-á que o dispositivo do artigo 495.º, n.º 3, do Código Civil apenas nos diz quem pode ser titular de um direito de indemnização decorrente da morte ou lesão corporal: os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.

8.ª Esse dispositivo não tem nada, rigorosamente nada, a ver com o quantum indemnizatório.

9.ª O quantum indemnizatório e os seus parâmetros são fixados pelos artigos 566.º, n.º 2, 562.º, 563.º e 564.º todos do Código Civil.

10.ª E não indemnizar qualquer lesado de acordo com o consagrado nos referidos artigos, só porque é rico, estar-se-ia a prejudicar uma classe de cidadãos em razão da sua situação económica.

11.ª Aí sim, estar-se-ia a violar o disposto no artigo 13.º da Constituição, que a recorrente invoca em sentido contrário.

12.ª Um absurdo e uma imoralidade."

6 - A fl. 585 foi lavrado o seguinte parecer:

"1 - Nas alegações que apresentaram no Tribunal Constitucional, os recorridos colocaram a questão da impossibilidade de conhecimento do objecto do recurso. Cumpre, assim, notificar a recorrente para se pronunciar sobre os obstáculos ali suscitados, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 704.º do Código de Processo Civil.

2 - Para além disso, verifica-se que, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a recorrente Sociedade Portuguesa de Seguros, S. A., colocou duas questões que pretende ver apreciadas: por um lado, a da conformidade com os artigos 2.º e 13.º da Constituição da norma constante do artigo 495.º, n.º 3, do Código Civil, na interpretação ali descrita; por outro lado, 'a questão da violação cometida pelo aresto em crise do disposto nos artigos 202.º, n.º 2, e 205.º, n.º 1, da Constituição, como se alegou nos requerimentos de aclaração e de arguição de nulidades do acórdão proferido no tribunal a quo, com postergação do princípio da confiança e das legítimas expectativas jurídicas tuteladas, também, pelo artigo 2.º da Constituição'.

Todavia, nas alegações, a recorrente apenas abordou a primeira das mencionadas questões, abandonando a segunda.

Assim, e independentemente de saber se a recorrente havia ou não definido uma questão de constitucionalidade normativa, susceptível de ser apreciada no âmbito do recurso que interpôs, admite-se que se deva considerar que a mesma recorrente restringiu o objecto inicial do recurso à questão da inconstitucionalidade que se refere ao n.º 3 do artigo 495.º do Código Civil, como resulta do disposto no n.º 3 do artigo 684.º do Código de Processo Civil, aplicável de acordo com o artigo 69.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro.

3 - Finalmente, admite-se que ocorra outro obstáculo ao conhecimento do recurso.

Com efeito, não parece que se possa afirmar que o acórdão recorrido tenha aplicado o n.º 3 do artigo 495.º do Código Civil com o sentido que a recorrente considerou inconstitucional, dela extraindo a norma que definiu como integrando o objecto do presente recurso; a confirmar-se esta observação, faltaria uma condição para que o Tribunal Constitucional pudesse conhecer do recurso também nesta parte (cf., por exemplo, os Acórdãos n.os 187/95 e 366/96, publicados no Diário da República, 2.ª série, respectivamente de 22 de Junho de 1995 e de 10 de Maio de 1996).

4 - Nos termos do disposto no n.º 1 do mesmo artigo 704.º, convidam-se as partes a pronunciarem-se sobre os n.os 2 e 3 do presente parecer."

7 - Ambas as partes responderam.

A recorrente, começando por dizer que "não se ignorou a dificuldade ora apontada - v. g. n.º 3 do parecer sob resposta", "nem que o presente recurso roçava matéria e ou objecto muito próximo(a) da eventual sindicância do chamado caso julgado ilegal - a qual é, aliás, bem o sabemos, impossível no nosso país".

Porém, trata-se de uma dificuldade de mera aparência, pois que é resultante da apontada contradição (evidente na decisão do STJ) de no tribunal a quo se ter feito uso do disposto na norma a sindicar - artigo 495.º, n.º 3, do Código Civil -, debaixo de duas interpretações da mesma conducentes a efeitos diversos, a saber:

i) Primeiro, retirando à viúva do lesado directo qualquer parcela indemnizatória alimentar, fazendo uma interpretação do ali disposto que não sofre mácula, atenta a doutrina conexa;

ii) Mas concedendo-lhe depois, em conjunto com os demais beneficiários menores, o que se negara antes e em dose fortemente acrescida, agora sem fundamentação expressa mas que só pode ter por base a interpretação oposta, i. e., a que deixamos caracterizada nas alegações com vista à sindicância requerida.

Vale dizer que o fundamento dessa decisão, perscrutada a nossa lei civil implicada no caso, só pode estar no ali disposto, i. e., na norma que integra o objecto do recurso - na interpretação tácita visada pelas nossas alegações.

É que os lesados indirectos com direito a indemnização são apenas aqueles a que se refere a citada norma, os quais não poderão receber mais do que aquilo a que o próprio lesado estaria para com eles obrigado.

Ora, a interpretação contrária, concedendo-lhes uma indemnização como se fossem o próprio lesado, é claramente inconstitucional, por implicar violação do disposto no artigo 2.º da CRP.

No que toca aos recorridos, reiteraram a opinião de que o Tribunal Constitucional não pode conhecer do objecto do recurso.

8 - Cumpre começar por definir o objecto do presente recurso. Pelas razões constantes do parecer atrás transcrito, e recorrendo, para o efeito, ao requerimento de interposição de recurso, considera-se o mesmo delimitado à "norma constante do artigo 495.º, n.º 3, do Código Civil, na interpretação de que basta a mera qualidade referida nessa norma protectora para que lesados terceiros familiares adquiram o direito de indemnização por lucros cessantes derivados da perda dos normais rendimentos que lhes eram proporcionados pelo lesado directo falecido com a eclosão do evento ilícito danoso".

E cabe igualmente frisar que só cabe ao Tribunal Constitucional a apreciação de questões de constitucionalidade normativa. Não pode, pois, o Tribunal Constitucional apreciar as inúmeras considerações que a recorrente formula nas alegações de recurso, e que se prendem com a interpretação que deve ou não ser adoptada para o n.º 3 do artigo 495.º do Código Civil, do ponto de vista do instituto da responsabilidade civil.

9 - Colocada perante a questão de saber se o acórdão recorrido teria ou não aplicado o n.º 3 do citado artigo 495.º com o sentido que julga inconstitucional, a recorrente, como se viu, veio acusar o Supremo Tribunal de Justiça de ter aplicado tal preceito de forma contraditória ao julgar, por um lado, a questão do direito a alimentos da viúva do lesado e, por outro, a da "fixação de um montante indemnizatório, a título de danos patrimoniais futuros por morte da vítima" a atribuir, jure hereditario, aos autores.

A verdade, todavia, é que - admitindo que ambas as indemnizações decididas pelo Supremo Tribunal de Justiça se baseiam no n.º 3 do artigo 495.º do Código Civil -, não é contraditório definir de forma diferente o âmbito dos beneficiários consoante esteja em causa a determinação dos terceiros que, por direito próprio, adquirem o direito a ser indemnizados a título de alimentos e dos terceiros que, a título sucessório, vêm a repartir entre si a indemnização correspondente aos danos patrimoniais futuros calculados em função da morte da vítima.

Assim sendo, e admitindo que é a interpretação subjacente a esta última definição que a recorrente questiona, passa-se à apreciação do n.º 3 do artigo 495.º do Código Civil quando interpretado no sentido de que basta a qualidade nele prevista para poder adquirir, a título sucessório, o direito à indemnização agora em causa.

10 - Ora, a verdade é que é manifestamente infundada a inconstitucionalidade apontada pela recorrente, que sustenta que a norma assim interpretada viola os artigos "2.º e 13.º da CRP, bem como [...] os princípios da confiança e da legítima expectativa jurídicas ali tuteladas".

Não resulta das alegações apresentadas neste Tribunal qualquer justificação para tal afirmação. Com efeito, e deixando de lado tudo o que ali se refere ao "dano da perda ou privação de alimentos" (extraído das alegações de revista, como diz, aliás, a recorrente, e que, tendo em conta o que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça decidiu nesse âmbito, não vem ao caso no recurso de constitucionalidade), a recorrente limita-se a afirmar tal violação, que não sente necessidade de demonstrar. Note-se, aliás, que as referidas alegações, em rigor, discutem a interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão recorrido do ponto de vista da sua correcção, e não na perspectiva da sua constitucionalidade.

Não vislumbrando o Tribunal Constitucional qualquer justificação para a alegada violação dos referidos princípios constitucionais, resta negar provimento ao recurso, na parte em que se conheceu do respectivo objecto.

11 - Assim, decide-se negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC.

Lisboa, 24 de Setembro de 2003. - Maria dos Prazeres Beleza - Alberto Tavares da Costa - Bravo Serra - Gil Galvão - Luís Nunes de Almeida.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2166760.dre.pdf .

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  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

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NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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