Acórdão 476/2002/T. Const. - Processo 449/2002. - Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - FUTOP, SGPS, S. A., sociedade comercial com sede em Lordelo do Ouro, Porto, veio, "com fundamento no artigo 76.º, n.º 4, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, interpor reclamação para o Tribunal Constitucional do douto despacho do Supremo Tribunal Administrativo de fls. ... e segs., datado de 30 de Abril de 2002, que indeferiu o requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional do douto acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de fls. ... e segs., de 30 de Janeiro de 2002", invocando que "a norma cuja inconstitucionalidade, na interpretação que lhes foi conferida pelo douto acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, se pretendia submeter à apreciação do Tribunal Constitucional, era a do artigo 234.º do Tratado Que Institui a Comunidade Europeia", por considerar que "tal interpretação violou o princípio do juiz legal (ou natural), consagrado nos artigos 32.º, n.º 9, 216.º, n.º 1, e 217.º, n.º 3, da Constituição, na medida em que implica a negação da competência exclusiva, atribuída ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE), para julgar de questões prejudiciais relativas à interpretação de normas do direito comunitário, quando as mesmas são suscitadas em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, como foi o caso", mas o despacho reclamado não admitiu o recurso de constitucionalidade "com fundamento de que '[...] a norma do artigo 234.º do Tratado de Roma não tem como padrão de validade a CRP'".
Depois, à luz do artigo 76.º, n.º 2, da Lei 28/82, a sociedade reclamante adianta que, por exclusão de hipóteses, aquele fundamento só pode radicar na consideração de ser o recurso manifestamente infundado, mas "o recurso não é infundado, e muito menos o é de forma manifesta", face às seguintes considerações:
"3 - A possibilidade de controlo da conformidade das normas de direito comunitário face à Constituição.
De acordo com o artigo 8.º, n.º 2, da CRP, '[a]s normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português'.
O invocado artigo 234.º faz parte de uma convenção internacional regularmente ratificada e publicada, e que continua a vincular internacionalmente o Estado Português: o Tratado Que Institui a Comunidade Europeia. Logo, a norma do referido artigo vigora na ordem interna.
Do artigo 207.º da lei fundamental resulta que, '[n]os feitos submetidos a julgamento, não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados'.
Por sua vez, no artigo 280.º indica-se claramente que a fiscalização concreta da constitucionalidade pode incidir sobre 'quaisquer normas'.
Também do artigo 281.º resulta que a fiscalização abstracta da constitucionalidade pode ser desencadeada a respeito de 'quaisquer normas'.
O mesmo se diga quanto à fiscalização preventiva - artigo 279.º - também aí encontramos o inciso 'qualquer norma', embora aí limitado pelo tipo de diploma que esteja em causa.
Mas, poder-se-ia questionar, estarão abrangidas pelos referidos processos de fiscalização as normas constantes de convenções internacionais?
A resposta é inequivocamente positiva.
Assim, o artigo 279.º postula que '[o] Presidente da República pode requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante de tratado internacional [...]'.
Por outro lado, e sobretudo, no próprio artigo 280.º da Constituição, no seu n.º 3, prevê-se a hipótese de a norma objecto do controlo de constitucionalidade ser uma norma constante de 'convenção internacional'.
Deve concluir-se que a fiscalização concreta da constitucionalidade pode versar sobre qualquer norma constante de convenção internacional, desde que se mostrem cumpridos os requisitos do artigo 8.º, n.º 2.
Com o que se demonstra que a norma do artigo 234.º do Tratado de Roma pode, à luz da Constituição Portuguesa, ser objecto de um controlo de constitucionalidade."
2 - No seu visto, o Ministério Público, sustenta que a "presente reclamação é manifestamente improcedente, por o objecto do recurso interposto se não incluir no âmbito da fiscalização de constitucionalidade de normas prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82".
Lê-se no visto:
"Note-se que, ao contrário do que se sustenta na reclamação deduzida, o que o reclamante verdadeiramente pretende questionar não é obviamente a constitucionalidade de uma norma de direito internacional convencional mas o invocado não acatamento de tal norma do Tratado de Roma pelo Tribunal a quo: toda a linha argumentativa expendida pelo reclamante visa, afinal, demonstrar que a interpretação que o Supremo Tribunal Administrativo fez do preceito contido no artigo 234.º do Tratado de Roma não é a que corresponde ao verdadeiro e correcto sentido de tal norma, já que deveria ter sido determinado o pretendido reenvio prejudicial que a decisão impugnada rejeitou.
Ora, como é evidente, não cabe no âmbito da competência do Tribunal Constitucional, no quadro do recurso tipificado na alínea b), sindicar da correcção com que os tribunais situados em cada ordem jurisdicional interpretam e aplicam as normas do direito internacional convencional.
O artificialismo da tese do recorrente está, aliás, bem patente na especificação das normas e princípios constitucionais que considera terem sido violados pela decisão recorrida, sendo verdadeiramente ininteligível a invocação a invocação do artigo 32.º da Constituição no âmbito de um processo que obviamente carece de natureza penal e não se entendendo minimamente qual a conexão que poderá haver entre a matéria do reenvio prejudicial e os princípios constantes dos artigos 216.º, n.º 1 (princípio da inamovibilidade do juiz), e 217.º, n.º 3 (regras atinentes à colocação, transferência, promoção e disciplina dos juízes)".
3 - Pelo Acórdão 384/2002, a fl. 25 dos autos, foi decidido "face ao parecer do Ministério Público, que não coincide inteiramente com o teor do despacho reclamado, [...] mandar ouvir o reclamante sobre esse parecer, querendo pronunciar-se".
4 - Acedendo ao convite, veio a sociedade reclamante responder, sustentando, no essencial, que, resultando da posição tomada no acórdão recorrido "o indeferimento do pedido de reenvio prejudicial, não é apenas isso que está em causa no recurso que [se] interpôs para o Tribunal de Contas", pois "o problema é que a interpretação que o Supremo Tribunal Administrativo fez da norma em causa é uma interpretação, não apenas errada mas, mais do que isso, inconstitucional".
E acrescenta-se depois na resposta:
"E é inconstitucional porque viola o princípio do juiz legal (ou natural), consagrado nos artigos 32.º, n.º 9, 216.º, n.º 1, e 217.º, n.º 3, da Constituição, na medida em que implica a negação da competência exclusiva, atribuída ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, para julgar de questões prejudiciais relativas à interpretação de normas do direito comunitário, quando as mesmas são suscitadas em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, como foi o caso. O direito fundamental a que uma causa seja julgada pelo tribunal previsto como competente por lei anterior, decorrente do princípio do juiz legal, é incompatível com a referida interpretação. Sucede que, assim sendo, o Supremo Tribunal Administrativo está a aplicar uma norma num sentido inconstitucional - com o que se cumprem os pressupostos do artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP e do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.
Tendo de se concluir que, como é óbvio, cabe no âmbito da competência do Tribunal Constitucional sindicar da forma como os tribunais situados em cada ordem jurisdicional interpretam as regras do direito internacional convencional, tendo em vista avaliar da conformidade dessa interpretação com a Constituição".
Segue-se a demonstração extensa de que rege para o processo tributário o princípio do juiz legal, citando-se nesse sentido a doutrina, e "um esclarecimento adicional sobre as razões pelas quais a recorrente, agora reclamante, considera ser a interpretação efectuada pelo Supremo Tribunal Administrativo do artigo 234.º do Tratado de Roma inconstitucional", na medida em que "não se encontra verificada a excepção à obrigatoriedade do reenvio consistente na existência de jurisprudência anterior do TJCE, versando sobre uma questão materialmente idêntica, e proferida em caso análogo" [por consequência, a "recorrente agora reclamante, tinha direito a que tal questão fosse analisada pelo TJCE, Tribunal considerado competente pela lei vigente (o artigo 234.º)", e se tal não acontece, "é porque é violado o direito ao juiz legal, consagrado na Constituição"].
A sociedade reclamante volta a insistir que a "interpretação inconstitucional do artigo 234.º era, assim imprevisível, uma vez que, por um lado, se apoia num pressuposto duvidoso e sem qualquer confirmação jurisprudencial, e, por outro, contraria a jurisprudência comunitária" e, se não suscitou anteriormente a questão de inconstitucionalidade, era "por não ter nunca julgado verosímil a hipótese da recusa do reenvio da questão prejudicial por parte do Supremo Tribunal Administrativo, face aos termos claros e inequívocos do artigo 234.º do Tratado de Roma, do qual resulta a obrigatoriedade do reenvio por aquele Alto Tribunal", terminando a resposta com este requerimento:
"Requer-se ainda, nos termos do artigo 234.º do Tratado de Roma, que a instância seja oportunamente suspensa, e formulada ao TJCE a seguinte questão prejudicial:
Para efeitos da verificação do preenchimento de uma excepção à obrigatoriedade de reenvio prevista no 3.º parágrafo do artigo 234.º do Tratado de Roma, consistente na existência de jurisprudência comunitária anterior sobre a mesma questão, poder-se-ão considerar como materialmente coincidentes, ou análogas, aquelas situações em que, no âmbito da invocação de uma violação do princípio comunitário da efectividade, os particulares têm à sua disposição:
1) Num caso, um prazo de restituição do indevido de três anos (tal como resulta do artigo 29.º da Lei italiana n.º 428/1990, de 29 de Dezembro, considerada nos Acórdãos do TJCE, C-228/96 e C-343/96); e
2) Noutro caso:
a) Um prazo de impugnação geral, previsto na ordem jurídica portuguesa, visando a restituição do indevido, de 90 dias; e
b) Um prazo de cinco anos (cf. artigo 94.º do CPT) em que a Administração pode rever oficiosamente o acto tributário, não resultando claramente da lei se o sujeito passivo tem, nesse prazo, direito de iniciativa e, em caso de insucesso, possibilidade de impugnar a recusa correspondente, e não se conhecendo exemplos em que dessa possibilidade tenha resultado judicialmente uma anulação do acto tributário?"
5 - Vistos os autos, cumpre decidir.
Por Acórdão datado de 30 de Janeiro de 2002, a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo decidiu negar provimento ao recurso jurisdicional interposto pela sociedade reclamante, confirmando "inteiramente a sentença recorrida", isto é, a sentença do 2.º Juízo do Tribunal Tributário do Porto que "julgou procedente a excepção de caducidade do direito de deduzir impugnação judicial e julgou-a improcedente".
Nesse acórdão, depois de se enunciar que a questão a decidir é a "a questão de saber se a decisão recorrida deve ser confirmada ou reformada, sendo certo o decurso do prazo de 90 dias contados do termo do prazo para pagamento voluntário", pode ler-se o seguinte:
"A recorrente solicita a este Supremo Tribunal Administrativo que faça um pedido de decisão a título prejudicial ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias a perguntar sobre a conformidade do prazo de 90 dias para deduzir impugnação judicial com o direito comunitário.
Neste Supremo Tribunal Administrativo, o reenvio prejudicial é obrigatório (artigo 234.º do Tratado de Roma), salvo se a questão for impertinente ou for muito clara ou se já existir jurisprudência do TJCE sobre a questão, nos termos do acórdão CILFIT.
Ora, temos jurisprudência do TJCE sobre o assunto, pelo que o Supremo Tribunal Administrativo está dispensado de fazer o reenvio."
Registada no acórdão essa "jurisprudência do TJCE", conclui-se - após a indicação dos fundamentos - que no caso dos autos "bem andou a M.ª Juíza a quo em julgar procedente a excepção de caducidade do direito de deduzir impugnação judicial", na base destas considerações:
"Acontece que a recorrente, em vez de pedir ao RNPC a revisão oficiosa do acto tributário, para o que tinha cinco anos, deduziu a impugnação judicial para além do prazo de 90 dias previsto na lei. Vai daí, a M.ª Juíza a quo, e muito bem, decidiu que esse prazo de impugnação judicial já tinha caducado. E, na verdade, os 90 dias já tinham passado quando foi deduzida a impugnação judicial.
No pedido, a recorrente pede a anulação da liquidação, o que já não podia pedir por se ter escoado o prazo para o efeito. No recurso jurisdicional para este Supremo Tribunal Administrativo, invoca a jurisprudência do TJCE sobre restituições de quantia indevidas.
Como é óbvio, por razões de processo, a pretensão da recorrente não podia proceder. Se a recorrente pretende a restituição do indevido, terá de o requerer à administração tributária respectiva, podendo recorrer para o Tribunal contra o acto que recuse a restituição. Mas se a recorrente pretendia tão-somente a impugnação judicial, teria de a deduzir no prazo de 90 dias.
Deste modo, temos de concluir que o prazo de 90 dias para impugnação judicial é suficientemente longo para pedir a anulação do acto tributário, e o prazo de cinco anos para pedir a restituição é suficientemente longo para o efeito, sem pôr em causa, quer o princípio da equivalência quer o princípio da efectividade do direito comunitário.
O que a recorrente não pode é aplicar ao prazo de restituição o prazo de impugnação. São coisas completamente diferentes".
Desse acórdão veio a sociedade reclamante interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos já atrás referidos, insistindo que "tinha o direito de ver a questão prejudicial de interpretação, [...], julgada pelo TJCE, e tal foi-lhe negado no douto acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, em virtude da interpretação inconstitucional da norma invocada" ("A recorrente não suscitou anteriormente a questão da inconstitucionalidade por não ter nunca julgado verosímil a hipótese da recusa do reenvio da questão prejudicial por parte do Supremo Tribunal Administrativo, face aos termos claros e inequívocos do artigo 234.º do Tratado de Roma, do qual resulta a obrigatoriedade do reenvio por aquele Alto Tribunal").
O recurso não foi admitido no despacho reclamado, adiantando-se nele que o "único meio legal de reagir será uma queixa à Comissão Europeia para efeitos de acção por incumprimento decorrente de responsabilidade internacional do Estado Português".
6 - Da transcrição feita resulta que o Supremo Tribunal a quo, à face do questionado artigo 234.º do Tratado de Roma, considerou ser obrigatório, em princípio, o reenvio prejudicial, mas que, havendo "jurisprudência do TJCE, sobre o assunto", estava "dispensado de fazer o reenvio" (seguiu-se indicação e a demonstração dessa jurisprudência).
Tal significa que se aderiu a uma interpretação não literal daquele artigo 234.º, que vem sendo, de resto, e de há muito, a generalizada corrente sufragada pelo TJCE.
Ora, o que a sociedade reclamante verdadeiramente contesta, como salienta o Ministério Público, é a correcção de tal entendimento e esta questão há-de encontrar resposta ao nível da própria interpretação daquele Tratado. Não tem qualquer sentido nem cabimento colocá-la face à Constituição de um Estado membro.
Ou seja - e parafraseando o Ministério Público - a questão posta pela sociedade reclamante não pode ser de "interpretação inconstitucional", mas tão-só de eventual "não acatamento de tal norma do Tratado de Roma pelo Tribunal a quo".
Por isso, e com este fundamento, tem de ser confirmado o despacho reclamado, com prejuízo do requerimento - apresentado na resposta - da suspensão da instância "e o reenvio para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, ao abrigo do artigo 234.º do Tratado de Roma, de questões prejudiciais", pedido, de resto, sem qualquer cabimento nos presentes autos de reclamação.
7 - Termos em que, decidindo, indefere-se a reclamação e condena-se a sociedade reclamante nas custas com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta.
Lisboa, 20 de Novembro de 2002. - Guilherme da Fonseca - Paulo Mota Pinto - José Manuel Cardoso da Costa.