Acórdão 419/2002/T. Const. - Processo 51/01. - Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional:
1 - Notificado do despacho de fls. 668 e seguintes, que não admitiu o recurso por si interposto para o Plenário deste Tribunal, ao abrigo do artigo 79.º-D da Lei do Tribunal Constitucional, veio o recorrido no presente recurso de constitucionalidade, Pedro Alves da Silva Salgueiro, deduzir reclamação para a conferência.
No requerimento que apresentou invocou que "se verifica a contradição de decisões sobre a mesma norma (o n.º 5 do artigo 24.º do Código das Expropriações de 1991)" e que "contrariamente ao entendido no despacho reclamado, estamos perante um terreno onde a capacidade construtiva era contígua (parte do prédio tinha-a) e foi todo ocupado para o mesmo fim (construtivo) o que traduz manifesta conduta pré-ordenada da Administração manipuladora das regras urbanísticas".
Notificado para se pronunciar, respondeu o Ministério Público junto do Tribunal Constitucional:
"1 - É manifesta a inverificação dos pressupostos do recurso interposto para o Plenário, já que inexiste o conflito jurisprudencial que necessariamente tem de lhe estar subjacente.
2 - E sendo evidente que - para aferir da existência de um conflito jurisprudencial - tem necessariamente de se ter em conta os termos das decisões pretensamente em colisão.
3 - Na verdade, tal 'conflito' não decorre de um juízo subjectivo e discricionário das partes acerca das situações em causa, mas do teor e sentido do acórdão 'fundamento' e daquele que se pretende, por essa via, impugnar.
4 - Ora, como cabalmente se demonstrou na decisão ora reclamada, não existe contradição entre o acórdão proferido nestes autos e o invocado pelo reclamante, no que se refere à dirimição da questão de constitucionalidade normativa suscitada."
2 - Resulta dos autos que:
a) Em autos de expropriação, em que é expropriante LIPOR - Serviço Intermunicipalizado de Tratamento de Lixos da Região do Porto (adiante designada LIPOR) e expropriado Pedro Alves da Silva Salgueiro, relativa à parcela identificada como G-2, sita num terreno da Maia, foi proferida decisão arbitral, que fixou a indemnização ao proprietário em 45 360 000$ e ao rendeiro em 4 620 033$;
b) Quer a expropriante quer o expropriado recorreram de tal decisão para o Tribunal Judicial da Maia que, por decisão de 9 de Fevereiro de 2000, fixou a indemnização em 145 074 600$, quantia esta a actualizar, nos termos fixados na decisão;
c) Interposto recurso da sentença pela expropriante, o Tribunal da Relação do Porto, julgando inconstitucional a norma do n.º 5 do artigo 24.º do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei 438/91, de 9 de Novembro, negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida (Acórdão de 16 de Novembro de 2000, de fl. 551 a fl. 556);
d) O Ministério Público interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade da norma constante do referido n.º 5 do artigo 24.º do Código das Expropriações;
e) Através do Acórdão 155/2002, de 17 de Abril, (de fl. 626 a fl. 646) o Tribunal Constitucional, pela sua 1.ª Secção, decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 24.º, n.º 5, do Código das Expropriações de 1991, interpretada no sentido de excluir da classificação de "solo apto para a construção" os solos integrados na Reserva Agrícola Nacional (RAN) e na Reserva Ecológica Nacional (REN) expropriados para implantação de uma central de incineração de resíduos urbanos e respectivo aterro sanitário, e, consequentemente, conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.
Entendeu então o Tribunal que, no caso dos autos, a expropriação (e a desafectação) se destinou não à construção de um edifício urbano, mas sim e muito ao contrário, de um edifício que repele a urbanização, face à finalidade tida em vista - a construção de uma central de incineração de resíduos sólidos (lixos).
Considerou-se, portanto, que a potencialidade edificativa não existia antes, uma vez que o terreno se inseria na RAN/REN, e que a expropriação (e a desafectação) não gerou tal potencialidade edificativa, uma vez que nele não se edificou uma construção urbana.
Com tais fundamentos, o Tribunal Constitucional concluiu que a norma do artigo 24.º, n.º 5, do Código das Expropriações de 1991, interpretada no sentido de excluir da classificação de solo apto para a construção do solo integrado na RAN e na REN, expropriado com a finalidade de nele se construir uma central de incineração de resíduos sólidos (lixos), não é inconstitucional, pois não viola o princípio da justa indemnização, consagrado no artigo 62.º da Constituição;
f) Requerida a aclaração do Acórdão 155/2002 pelo recorrido Pedro Alves da Silva Salgueiro, foi tal pedido indeferido (Acórdão 211/2002, de 22 de Maio, de fl. 655 a fl. 658);
g) Notificado do Acórdão 211/2002, veio o mesmo recorrido Pedro Alves da Silva Salgueiro interpor recurso para o Plenário, nos termos do n.º 1 do artigo 79.º-D da Lei do Tribunal Constitucional (requerimento de fls. 664 e seguintes), invocando oposição com o decidido no Acórdão 267/97, de 21 de Maio, em que o Tribunal Constitucional se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade da referida norma;
h) Por despacho da relatora, de 24 de Junho de 2002 (de fl. 668 a fl. 678), decidiu-se não admitir o recurso para o Plenário, por não estar preenchido o pressuposto processual do recurso previsto no artigo 79.º-D da Lei do Tribunal Constitucional;
i) É desse despacho que o requerente vem agora reclamar para a conferência - certamente ao abrigo do disposto no artigo 700.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, sem todavia invocar tal disposição.
3 - O despacho reclamado é do seguinte teor:
"[...] no acórdão recorrido (Acórdão 155/2002), e na sequência do que tem assinalado a jurisprudência do Tribunal Constitucional, entendeu-se que "o que interessa para efeitos de 'justa indemnização' não é o facto de o terreno deixar de ser agrícola - como acontece quer na construção de um prédio urbano, quer com os terrenos nos quais se constrói uma auto-estrada - pois isso não afecta a necessidade da sua qualificação como 'solo para a construção'. Relevante para esse efeito é, sim, o facto de terem ou não uma muito próxima ou efectiva aptidão edificativa, que resulta do facto de o expropriante lhe dar uma utilização para construção" (neste mesmo sentido, v. os Acórdãos n.os 20/2000, 219/2001 e 243/2001).
Por força do disposto no n.º 5 do artigo 24.º do Código das Expropriações de 1991, no cálculo da indemnização a pagar pela expropriação de um terreno integrado na RAN ou na REN não pode portanto entrar em linha de conta o ius aedificandi, pois em tais terrenos não se pode construir, salvo quanto a obras de carácter exclusivamente agrícola (cf. artigos 25.º e 26.º do mesmo Código).
Assim, à questão de saber se a eventual desafectação dos terrenos expropriados da RAN/REN para efeitos de construção de uma central de incineração de resíduos sólidos e respectivo aterro sanitário - equipamento de interesse intermunicipal de relevante importância - é susceptível de gerar nesses terrenos uma 'muito próxima ou efectiva potencialidade edificativa', o Tribunal Constitucional deu, no caso dos autos, uma resposta negativa.
Com efeito, mesmo a admitir-se que tenha existido desafectação dos terrenos expropriados, o Tribunal entendeu que, 'desde logo, uma central de tratamento de resíduos sólidos - embora se trate de uma construção para fins diferentes dos fins agrícolas a que os terrenos se destinam ao ser integrados na RAN - não é uma construção que, só por si, seja susceptível de atrair para a sua órbita a construção de edifícios para habitação ou escritórios', pois que 'tal implantação é incompatível com quaisquer fins urbanísticos'.
Considerando que 'uma central de incineração de resíduos sólidos é um tipo de instalação que, por natureza, deve construir-se em zonas não habitadas e ver preservado o seu isolamento, não só para efeito de deposição de resíduos sólidos resultantes do tratamento dos lixos, mas também para evitar que como consequência da incineração resultem afectados quaisquer residentes', o Tribunal Constitucional concluiu que 'não se vê assim que a desafectação dos terrenos da RAN/REN para efeitos de expropriação com vista à construção de uma central de incineração de resíduos e respectivo aterro sanitário possa trazer a tais terrenos uma maior potencialidade edificativa'.
É que, como este Tribunal tem afirmado, "só a existência desta possível aptidão edificativa justificaria que os terrenos em causa pudessem ser qualificados como 'aptos para construção', com a consequente eventual violação da Constituição no caso de o não virem a ser".
Por tais razões se concluiu, no caso, que a expropriação se destinou não à construção de um edifício urbano, mas sim, e muito ao contrário, à construção de um edifício que repele a urbanização, face à finalidade a que se destina. Na verdade, está em causa no presente processo a expropriação para a construção de um equipamento público intermunicipal que, constituindo uma alteração da destinação agrícola do terreno, não gera uma potencialidade edificativa que seja relevante para a qualificação do solo como 'solo apto para a construção'.
Com efeito, a potencialidade edificativa não existia antes, uma vez que o terreno se inseria na RAN/REN, e a expropriação não gerou tal potencialidade edificativa, uma vez que nele não se edificou uma construção urbana.
Assim, o Tribunal concluiu que a norma do artigo 24.º, n.º 5, do Código das Expropriações de 1991, interpretada no sentido de excluir da classificação de solo apto para a construção o solo integrado na RAN e na REN, expropriado com a finalidade de nele se construir uma central de incineração de resíduos sólidos (lixos), não é inconstitucional, pois não viola o princípio da indemnização justa, a que se refere o artigo 62.º da Constituição.
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 24.º, n.º 5, do Código das Expropriações de 1991, interpretada no sentido de excluir da classificação de 'solo apto para a construção' os solos integrados na RAN e na REN expropriados para implantação de uma central de incineração de resíduos urbanos e respectivo aterro sanitário.
Por sua vez, no acórdão fundamento (Acórdão 267/97), o Tribunal Constitucional tinha julgado inconstitucional a norma do artigo 24.º, n.º 5, do Código das Expropriações de 1991, "enquanto interpretada por forma a excluir da classificação de 'solo apto para a construção' os solos integrados na RAN expropriados justamente com a finalidade de neles se edificar para fins diferentes de utilidade pública agrícola".
Por outras palavras, no Acórdão 267/97 decidiu-se julgar inconstitucional tal norma, na medida em que uma parcela de terreno, que faz parte da RAN, mas que dela foi desafectada para o efeito de ser expropriada, não poderia ser avaliada como terreno apto para a construção, ainda que dotada de todas as infra-estruturas, sendo a expropriação destinada à construção de um quartel de bombeiros.
No julgamento de inconstitucionalidade teve-se em conta a circunstância de a parcela em questão ter sido desafectada da RAN, para o mencionado fim, de tal modo que o direito de edificar não podia deixar de ser considerado no cômputo da indemnização da expropriação.
Como bem sublinhou o Sr. Procurador-Geral-Adjunto nas alegações que produziu no presente processo, ao ponderar a necessária comparação com o caso decidido no Acórdão 267/97:
'[...] a solução adoptada por este Tribunal no Acórdão 267/97 não pode ser desvinculada da especificidade do caso concreto ali em apreciação - não devendo, nomeadamente, generalizar-se irrestritamente a doutrina nele contida a todos os casos em que sejam expropriados para fins não estritamente agrícolas terrenos inseridos na RAN.
Na verdade, na situação versada no processo que originou a prolação daquele aresto, a parcela em causa fora desanexada da RAN, destinando-se a expropriação por utilidade pública à construção de um quartel de bombeiros.'
Ora, e como também chamou a atenção o Sr. Procurador-Geral-Adjunto nas mesmas alegações, as circunstâncias que estiveram na origem do presente processo nada têm que ver com as que justificaram a decisão do Tribunal Constitucional no processo em que foi proferido o Acórdão 267/97.
Na verdade, e citando de novo essas alegações:
"No caso dos autos, a expropriação efectivada destinou-se à construção de uma central de incineração de resíduos sólidos urbanos - sendo obviamente condição sine qua non para a implantação de tal equipamento social a inexistência de uma malha urbana densa no local.
Ou seja, como é facto notório - e decorre da própria 'natureza das coisas' - a escolha da área destinada ao empreendimento que gerou a expropriação dos autos assentou precisamente (como se alega, atrás, a fls. 176), em 'razões que se prendem com condições geológicas e com o afastamento de habitações.'
Não se trata, pois, de desafectar terrenos com vocação agrícola desta sua natural (e legal) finalidade para neles implantar edificações plenamente enquadráveis numa malha urbana, mas de desafectar tais terrenos da sua vocação agrícola para os destinar a uma finalidade de interesse público - visando, em última análise, preservar a própria ecologia e o direito a um ambiente equilibrado (que necessariamente pressupõe a implementação de centrais de tratamento de resíduos modernas e adequadamente situadas, evitando a dispersão e 'pulverização' de obsoletos e inadequados aterros sanitários)."
E, mais adiante:
"A nosso ver, a decisão tomada no Acórdão 267/97 - que não pode ser precipitadamente generalizada, como este Tribunal Constitucional já reconheceu no referido Acórdão 20/2000 - assenta em duas especificidades relevantes, que não ocorrem na situação sobre que versam os presentes autos.
a) Destinou-se, por um lado, a expropriação realizada no processo que originou a prolação do referido Acórdão 267/97 à edificação de um prédio urbano (quartel de bombeiros) precisamente no terreno que antes estava legalmente afectado à RAN; ou seja, a expropriação de tal terreno teve precisamente como fim a edificação de uma construção perfeitamente enquadrável na malha urbana de certa localidade, o que, de algum modo, significa que o terreno - que enquanto na titularidade do seu proprietário, não tinha legalmente aptidão edificativa - foi expropriado para nele se realizar uma construção que representa uma verdadeira ampliação da malha urbana.
No caso dos autos - e à semelhança do que ocorre com as expropriações destinadas à construção de vias de comunicação - a edificação a erigir mostra-se manifestamente incompatível com a sua inserção na malha urbana de certa localidade - sendo critério prioritário de escolha precisamente o afastamento em relação às habitações preexistentes.
b) Em segundo lugar, detectou o Tribunal - na situação analisada no citado Acórdão 267/97 - um comportamento da Administração que implicitamente considerou estar próximo da figura do 'abuso de direito' - o que transparece claramente do segmento em que se reconhece ter ocorrido alguma tentativa 'de manipulação das regras urbanísticas por parte da Administração', traduzidas na 'classificação dolosa' de um terreno como zona verde (ou reservada a uso agrícola), 'desvalorizando-o, para mais tarde o adquirir, por expropriação, pagando por ele um valor correspondente ao de solo não apto para construção' - como parecia estar indiciado, nomeadamente pelo facto de a expropriação ter ocorrido 'apenas a uma semana da publicação da Portaria 380/93, que veio libertar da RAN todo o terreno em que se situava a referida parcela'.
Não vislumbramos, na hipótese dos autos, qualquer vestígio de comportamento da Administração pré-ordenado a produzir a referida 'desvalorização artificiosa' do terreno - este estava situado na RAN, sendo perfeitamente normal que terrenos nela incluídos possam ser atravessados por vias de comunicação, ou destinados à implementação de equipamentos que carecem, em absoluto, de estar distanciados dos núcleos urbanos. E, como se referiu, não se procedeu a nenhuma desafectação da parcela do prédio inserida na área da REN."
Em conclusão, pois, não se vislumbra, no caso dos autos, qualquer actuação pré-ordenada da Administração, traduzida em 'manipulação das regras urbanísticas', com vista a desvalorizar artificiosamente o terreno, reservado ao uso agrícola, para mais tarde o adquirir por um valor degradado, destinando-o então à construção de edificações urbanas de interesse público, o que afasta decisivamente a aplicação da jurisprudência firmada no Acórdão 267/97.
É portanto evidente que o recurso ora interposto para o Plenário não pode ser admitido, pois não está verificado o pressuposto processual de que depende a sua admissibilidade - o pressuposto de que dois ou mais acórdãos do Tribunal Constitucional julguem uma questão de inconstitucionalidade ou ilegalidade em sentido divergente.
Dado que os acórdãos alegadamente em oposição não julgaram em sentido divergente a mesma questão de inconstitucionalidade, não está preenchido o pressuposto processual do recurso para o Plenário previsto no artigo 79.º-D da Lei do Tribunal Constitucional.
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefiro o requerido a fls. 664 e seguintes, não admitindo o recurso para o Plenário."
4 - Cumpre então decidir se está preenchido no caso dos autos o pressuposto do recurso para o Plenário previsto no artigo 79.º-D da Lei do Tribunal Constitucional.
Dispõe o n.º 1 do artigo 79.º-D da Lei do Tribunal Constitucional:
"Se o Tribunal Constitucional vier julgar a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade em sentido divergente do anteriormente adoptado quanto à mesma norma, por qualquer das suas secções, dessa decisão cabe recurso para o Plenário do Tribunal, obrigatório para o Ministério Público quando intervier no processo como recorrente ou como recorrido."
Tendo em conta a exigência constante do preceito transcrito, só poderá considerar-se preenchido o pressuposto processual do recurso para o Plenário se se concluir que, no acórdão impugnado nestes autos (o Acórdão 155/2002, de 17 de Abril), o Tribunal Constitucional decidiu a mesma questão de inconstitucionalidade em sentido divergente daquele que foi adoptado quanto à mesma norma no acórdão fundamento (o Acórdão 267/97, de 21 de Maio, publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36.º vol., pp. 759 e segs.).
5 - Como claramente resulta do despacho reclamado, o Tribunal Constitucional não julgou a questão de inconstitucionalidade suscitada nestes autos "em sentido divergente do anteriormente adoptado quanto à mesma norma".
A decisão proferida no presente processo não contradiz a jurisprudência deste Tribunal sobre a norma questionada - a norma contida no n.º 5 do artigo 24.º do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei 438/91, de 9 de Novembro.
Na verdade, a existência de oposição entre dois acórdãos quanto ao julgamento da mesma questão de inconstitucionalidade não pode aferir-se em função do teor literal das decisões, mas em função das razões de decidir num caso e no outro.
No acórdão fundamento (Acórdão 267/97), o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma do artigo 24.º, n.º 5, do Código das Expropriações de 1991, "enquanto interpretada por forma a excluir da classificação de 'solo apto para a construção' os solos integrados na RAN expropriados justamente com a finalidade de neles se edificar para fins diferentes de utilidade pública agrícola". No caso discutido nesse acórdão, estava em causa uma parcela de terreno, que fazia parte da RAN, mas que dela foi desafectada para o efeito de ser expropriada, e que não poderia ser avaliada como terreno apto para a construção, ainda que dotada de todas as infra-estruturas, sendo a expropriação destinada à construção de um quartel de bombeiros. No julgamento de inconstitucionalidade teve-se em conta a circunstância de a parcela em questão ter sido desafectada da RAN, para o mencionado fim, de tal modo que o direito de edificar não podia deixar de ser considerado no cômputo da indemnização da expropriação. Por outro lado, na situação analisada nesse processo, o Tribunal detectou um comportamento da Administração que implicitamente considerou estar próximo da figura do "abuso de direito" - o que transparece claramente do segmento em que se reconhece ter ocorrido alguma tentativa "de manipulação das regras urbanísticas por parte da Administração", traduzidas na "classificação dolosa" de um terreno como zona verde (ou reservada a uso agrícola), "desvalorizando-o, para mais tarde o adquirir, por expropriação, pagando por ele um valor correspondente ao de solo não apto para construção".
O alcance da decisão proferida no citado Acórdão 267/97 foi explicitado pela jurisprudência constitucional posterior no sentido de que o que interessa para efeitos de "justa indemnização" não é o facto de o terreno deixar de ser agrícola, pois isso não afecta a necessidade da sua qualificação como "solo apto para a construção", mas sim a circunstância de o terreno ter ou não uma muito próxima ou efectiva aptidão edificativa, que resulta do facto de o expropriante lhe dar uma utilização para construção urbana (cf. os Acórdãos n.os 20/2000, 247/2000, 219/2001, 243/2001, 121/2002, e 172/2002, bem como o Acórdão recorrido n.º 155/2002).
Segundo o critério defendido por este Tribunal, "só a existência desta possível aptidão edificativa justificaria que os terrenos em causa pudessem ser qualificados como 'aptos para construção', com a consequente eventual violação da Constituição no caso de o não virem a ser".
Ora, partindo deste critério, o Tribunal, nos casos que foram submetidos à sua apreciação, deu resposta diferente à questão da constitucionalidade consoante a potencialidade edificativa dos terrenos que, em cada processo, estavam em causa. Assim, o Tribunal entendeu que a desafectação dos terrenos da RAN/REN para efeitos de expropriação com vista à construção de vias de comunicação não traz a tais terrenos uma maior potencialidade edificativa (Acórdãos n.os 20/2000, 247/2000, 219/2001, 243/2001, 121/2002, e 172/2002). O mesmo se decidiu no acórdão recorrido (n.º 155/2002), em que a desafectação dos terrenos da RAN/REN para efeitos de expropriação se destina à construção de uma central de incineração de resíduos e respectivo aterro sanitário.
Em todos estes casos, considerou o Tribunal que a potencialidade edificativa não existia antes, uma vez que os terrenos se inseriam na RAN/REN, e que a expropriação (e a desafectação) não gerou tal potencialidade edificativa, uma vez que neles não se edificaram construções urbanas; antes se implantaram equipamentos que carecem, em absoluto, de estar distanciados dos núcleos urbanos.
6 - Em suma, sendo diferentes os contornos das situações controvertidas nos processos que deram origem ao acórdão impugnado nestes autos e ao acórdão fundamento, diferente foi a valoração feita nas duas decisões relativamente à norma questionada - a norma contida no n.º 5 do artigo 24.º do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei 438/91, de 9 de Novembro - não podendo portanto afirmar-se que existe julgamento em sentido divergente quanto à mesma questão de inconstitucionalidade, já que o critério que presidiu à decisão do Tribunal é o mesmo nos dois casos.
Aliás, quer no requerimento de interposição do recurso para o Plenário (requerimento a fl. 664), quer no requerimento agora apresentado (requerimento a fl. 680), o requerente não se preocupa sequer em demonstrar a existência de oposição entre os dois acórdãos. Na verdade, o que decorre do teor de tais requerimentos é a pretensão do requerente de obter um novo julgamento sobre a matéria discutida no processo, o que obviamente excede os poderes de apreciação do Tribunal Constitucional no âmbito do recurso previsto no artigo 79.º-D da Lei do Tribunal Constitucional.
7 - Não se verificando o pressuposto do artigo 79.º-D da Lei do Tribunal Constitucional do Acórdão 155/2002, proferido pela 1.ª Secção, não é admissível recurso para o Plenário do Tribunal.
Assim, o despacho reclamado, acima transcrito, não merece censura.
Há por isso que indeferir a reclamação deduzida e confirmar o despacho da relatora, de 24 de Junho de 2002, que não admitiu o recurso.
8 - Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Indeferir a reclamação apresentada;
b) Confirmar o despacho reclamado, que não admitiu o recurso interposto do Acórdão 155/2002;
c) Condenar o reclamante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC.
Lisboa, 15 de Outubro de 2002. - Maria Helena Brito - Alberto Tavares da Costa - Paulo Mota Pinto - Bravo Serra - Luís Nunes de Almeida - Artur Maurício - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - José de Sousa e Brito - Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) - Guilherme da Fonseca (vencido conforme declaração de voto da Ex.m.ª Conselheira Maria Fernanda Palma) - José Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto
Votei vencida por entender que existe uma analogia essencial entre a questão de constitucionalidade apreciada no Acórdão 155/2002, de 17 de Abril, e no Acórdão 267/97, de 21 de Maio e, por isso, que existe uma divergência entre estes arestos, no sentido do artigo 79.º-D, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional. Na verdade, em ambos os casos os particulares proprietários não podem, por força das respectivas classificações das áreas geográficas, edificar nos terrenos expropriados e as expropriações, nas duas situações, destinam-se precisamente à construção de edifícios nos quais se instalarão serviços de utilidade pública (num caso, um quartel de bombeiros, no outro, uma central de incineração de resíduos urbanos). A dimensão normativa apreciada no Acórdão 155/2002 (cuja aclaração foi indeferida pelo Acórdão 211/2002, de 22 de Maio) é, pois, substancialmente idêntica à apreciada no Acórdão 267/97.
O que acaba de se dizer não é infirmado pela circunstância de a parcela expropriada se destinar especificamente à construção de uma via de acesso à central incineradora a construir, interferindo esta (negativamente) na edificabilidade urbana dos terrenos circundantes. Na verdade, sendo o terreno expropriado composto por várias parcelas e destinando-se a área global à construção da referida central de incineração e das respectivas infra-estruturas, a expropriação que incide sobre a parcela para a qual está prevista, no plano geral, a construção da via de acesso à central ainda se destina, funcionalmente, à construção da referida central. E os terrenos que esta utilizou não deixaram de ser classificados como urbanos.
Trata-se, portanto, de uma situação diferente da que estava em causa no processo em que foi proferido o Acórdão 20/2000, no qual o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 24.º, n.º 5, do Código das Expropriações, interpretado no sentido de "excluir da classificação de 'solo apto para a construção' solos integrados na Reserva Agrícola Nacional expropriados para implantação de vias de comunicação". Com efeito, nesse aresto estava em causa a mera construção de uma via de comunicação (uma auto-estrada); nos presentes autos, trata-se da construção de uma central de incineração e das respectivas infra-estruturas.
A autonomização da parcela que se destina especificamente à construção da via de acesso à central de incineração é tão artificial quanto o seria a hipotética autonomização da parcela que se destinasse ao parqueamento das viaturas que transportam os resíduos ou das viaturas dos trabalhadores da central ou das parcelas referentes às áreas que imediatamente circundam as instalações da central onde, naturalmente, nenhuma construção existirá. No caso dos autos, diferentemente do decidido no Acórdão 20/2000, a via de acesso só é construída por necessidade e em função da edificação da central incineradora, não tendo nessa medida autonomia. A expropriação realiza-se, portanto, porque vai ser construída uma central incineradora e não especificamente para a construção de uma via de comunicação.
O Ministério Público sublinhou e o presente acórdão considerou relevante o argumento de que não houve qualquer desafectação da parcela do terreno expropriado, situado em área reservada pelo Plano Director Municipal a uso florestal, não adquirindo tal parcela qualquer capacidade edificativa, uma vez que nela será construído equipamento incompatível com a construção urbana. No entanto, a expropriação para a construção da central incineradora visou a realização de uma construção com utilidade pública e o terreno envolvente aqui em causa não chegou a adquirir qualquer capacidade edificativa precisamente por causa da natureza da construção que a entidade expropriante pretende realizar.
De resto, as referidas considerações não ponderam, conforme resulta do Acórdão da Relação do Porto de 27 de Junho de 2000 (que se debruçou sobre a mesma situação controvertida), que "o terreno em causa [...] é precisamente uma das parcelas de terreno que foram expropriadas com vista à construção da central de incineração [...] parcelas essas que, na sua quase totalidade, se encontravam integradas em zona classificada no Plano Director Municipal da Maia como área de equipamento estruturante, em relação à qual o artigo 26.º do respectivo regulamento prevê, para além da construção de instalações e edifícios de equipamento de interesse colectivo, a construção de edifícios residenciais, comerciais e de serviço".
Assim, independentemente da posição assumida quanto à questão de fundo, parece-me que existe, contrariamente ao que se afirma no presente acórdão, uma idêntica razão de decidir num sentido objectivo. E não se pode confundir a diferente qualificação jurídica das situações pelo Tribunal nos dois arestos com uma diferença da razão objectiva de decidir (necessariamente uma razão potencial e não assumida) determinada pelo caso - a única que pode ser invocada para negar contradições de jurisprudência. - Maria Fernanda Palma.