Processo 35495. - Autos de tribunal pleno vindos do Tribunal da Relação de
Lisboa.
Recorrente o Ministério Público e recorrido Amadeu Dias.Acordam, em pleno, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça:
Cumprido o determinado no artigo 669.º do Código de Processo Penal, o excelentíssimo representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa recorreu para o tribunal pleno do Acórdão de 7 de Fevereiro de 1979 (processo 9190-2.ª), cuja decisão diz estar em oposição com a do Acórdão de 2 do mesmo mês e ano (processo 9163-2.ª), ambos daquela mesma Relação.
Pretende-se ver fixada jurisprudência sobre a questão posta e por forma diversa resolvida em um e outro daqueles acórdãos, questão que consiste em saber se, rejeitada a acusação em processo correccional deduzida pelo Ministério Público e interposto recurso por este do respectivo despacho, deve ou não o acusado ser notificado do despacho que tal recurso admita para efeito de, se assim o entender, apresentar na devida altura a sua contra-alegação.
A secção criminal reconheceu, a fls. 23 e seguintes, que as decisões proferidas naqueles dois acórdãos estão em oposição e, em consequência, ordenou o prosseguimento do recurso.
Na sua alegação de fls. 27 e seguintes, o ilustre magistrado do Ministério Público conclui no sentido de que deve ser lavrado assento do teor seguinte:
Deve ser notificado ao arguido o despacho que recebe o recurso interposto pelo Ministério Público, em processo correccional, do despacho que não recebeu a sua acusação.
Com os vistos legais, cumpre decidir.
Há que verificar, antes de mais, e uma vez que a decisão da secção não vincula o tribunal pleno - artigo 766.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável por força do § único do artigo 668.º e § único do artigo 669.º do Código de Processo Penal -, se entre os acima apontados acórdãos há efectivamente oposição relevante, isto é, se, para além do mais que naquele artigo 669.º e no artigo 763.º do Código de Processo Civil é exigido, os dois acórdãos resolveram a mesma questão fundamental de direito e na sua decisão adoptaram soluções opostas.
De um e outro dos referidos acórdãos, que foram proferidos em processos diferentes, não era admissível recurso ordinário - artigo 646.º, n.º 6, do Código de Processo Penal.
Não vem posto em causa o trânsito em julgado do em primeiro lugar exarado.
Ambos foram proferidos no domínio da mesma legislação - entre outros, os artigos 370.º, 371.º e 390.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e 475.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
É manifesto que num e noutro estava em causa uma só e a mesma questão de direito, a acima já enunciada.
Como manifesto é que a essa mesma questão foram dadas soluções opostas, já que:
No de 2 de Fevereiro de 1979 se decidiu que, por aplicação ao caso do disposto no artigo 475.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (aplicação a fazer nos termos do disposto nos artigos 649.º e 1.º, § único, do Código de Processo Penal), o despacho a admitir o recurso interposto pelo Ministério Público do despacho de não recebimento de acusação sua formulada em processo correccional deve ser notificado ao arguido a fim de sobre o recurso interposto tomar a posição que entenda;
No de 7 do mesmo mês e ano, e ao contrário, se entendeu e decidiu que, em hipótese precisamente igual à antes referida, não havia lugar à notificação do arguido para os termos do recurso que o Ministério Público interpusera.
Face ao que, por haver entre os dois identificados acórdãos oposição relevante, se passa a conhecer do objecto do recurso.
O artigo 1.º do Código de Processo Penal, ao estabelecer que o exercício da acção penal se fará nos termos desse mesmo diploma, logo acrescenta no seu § único que, para os casos omissos que não possam ser resolvidos com a aplicação por analogia das suas disposições, se observarão «as regras do processo civil que se harmonizem com o processo penal», e, na falta delas, se aplicarão «os princípios gerais do processo penal».
Daí que, considerando a ordem de precedência naquele § único estabelecida, quando nos encontrarmos face a um caso omisso e sua regulamentação, se deva fazer recorrendo em primeiro lugar às disposições daquele diploma ou da sua legislação complementar que disciplinem casos análogos; em segundo lugar, pelo recurso às regras de processo civil que, no campo de aplicação do respectivo Código, prevejam e regulem para caso coincidente ou simplesmente análogo ao sem regulamentação na legislação de processo penal; em último caso, por aplicação dos princípios gerais de processo penal.
Anote-se desde já que, porém, o recurso ao processo civil só é admissível quanto a regras dessa natureza «que se harmonizem com o processo penal».
Enunciados estes princípios e aceitando, como se aceita, que a questão acima colocada e a resolver não está expressamente prevista na legislação de processo penal, pelo que nos encontramos frente a um caso omisso, vamos seguir portanto o percurso que o referido § único nos aponta, até onde for necessário, para se encontrar a solução apropriada.
Em primeiro lugar afigura-se-nos que, contrariamente ao entendido no acórdão recorrido (o de 7 de Fevereiro de 1979), o problema de saber se o despacho que admite o recurso da decisão que não recebe acusação pelo Ministério Público, deduzida em processo correccional, tem ou não de ser notificado ao arguido (o não pronunciado) não pode resolver-se por aplicação analógica «das disposições que regulam o recurso de não pronúncia em processo de querela», designadamente os artigos 370.º e 371.º do Código de Processo Penal. E isso porque analogia não há entre o caso aqui em apreço e as situações previstas e reguladas nesses preceitos legais.
O artigo 371.º, ao não incluir o arguido entre as entidades que podem recorrer do despacho de não pronúncia, tem como evidente explicação o facto de tal despacho não lhe ser desfavorável, sendo que não é lícito interpor recurso de decisões favoráveis. É o ensinamento que se colhe, quanto ao réu e ao assistente, como partes em processo penal, do artigo 647.º e seu n.º 2 e § 3.º do respectivo Código (em plena concordância, aliás, com o tal respeito estabelecido no Código de Processo Civil - artigo 680.º, n.os 1 e 2).
Por sua vez, o artigo 370.º ao mandar notificar o despacho de não pronúncia «aos arguidos que tenham intervindo no processo», não lhes conferindo, como não confere (pelas razões imediatamente antes apontadas), o direito de recurso, só pode ter como explicação a de lhes dar a conhecer, e apenas isso, e por terem tido intervenção no processo, o resultado deste (no qual foram postos em causa pela imputação feita de facto ou factos criminosos), a fim de poderem agir de seguida conforme entenderem ser de seu direito.
Uma segunda via para a resolução do problema será a do recurso às «regras do processo civil», com a chamada aqui do que se dispõe no artigo 475.º, n.º 3, do respectivo Código, onde, no caso de recurso do despacho de indeferimento liminar da petição inicial, se manda citar o réu «tanto para os termos do recurso como para os da causa», sendo ainda que, quer no artigo 742.º, n.º 1, quer no artigo 760.º, n.º 1, do mesmo diploma se ordena também a notificação «às partes» do despacho que admite o recurso.
Ora, foi precisamente por se entender que o despacho de não recebimento da acusação apresenta forte identidade com o de indeferimento liminar da petição inicial em processo civil que, no Acórdão de 2 de Fevereiro de 1979 - o apontado em oposição com o recorrido -, e por aplicação analógica com o estabelecido naquele artigo 475.º, n.º 3, se decidiu no sentido da obrigatoriedade da notificação ao arguido do despacho que admitiu o recurso do Ministério Público da decisão que não recebeu a acusação que formulara.
Aceitando, embora, que entre as duas situações se pode ver uma certa analogia, importa no entanto averiguar se aquela regra de processo civil «se harmoniza com o processo penal», condição da sua aplicabilidade ao caso omisso em causa, como expressamente o exige o acima citado § único do artigo 1.º do Código de Processo Penal.
Como argumento a considerar para a justificação daquele entendimento, para além, claro, de uma pelo menos aparente similitude entre os dois casos, invoca-se o de só daquele modo se respeitar e assegurar o direito de defesa do arguido e, bem assim, a regra da subordinação do processo criminal ao princípio do contraditório, um e outro aliás expressamente consagrados na Constituição da República.
Estabelece efectivamente o artigo 32.º da Constituição no seu n.º 1 que «o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa» e no seu n.º 5 que «o processo criminal terá estrutura acusatória, ficando a audiência de julgamento subordinada ao princípio do contraditório».
Só que, como é evidente, sempre e em qualquer caso aquelas «garantias de defesa» devem ser (só podem ser) concretizadas com respeito da lei processual penal e princípios que a enformam e não segundo um desenvolvimento incondicionado;
enquanto a regra do contraditório é imposta apenas para a audiência de julgamento.
Revertendo de novo à procura da solução para o caso em apreço, começará por se dizer que a decisão que não recebe a acusação - despacho de não pronúncia - não põe de modo algum em causa a pessoa do arguido, não o atinge nem prejudica, pelo que o mesmo não tem que se defender dela.
É certo que o Ministério Público, tendo formulado acusação, tem o direito de recorrer do despacho que a não receba - artigo 647.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Menos certo não é que, porém, a interposição do recurso, e seu consequente desenvolvimento, continua a não pôr em causa a pessoa do arguido, e isso porque, mesmo em caso de provimento do recurso, o acusado não fica desde logo pronunciado.
Tal provimento traduz-se apenas numa ordem, dirigida ao tribunal da 1.ª instância, para o recebimento da acusação nos termos em que foi formulada ou até noutros.
E enquanto essa ordem não for executada não há indiciação e, portanto, o processo continua na fase de instrução e o arguido impedido de nela intervir.
Isto por um lado, enquanto a simples interposição do recurso continua a não atribuir ao arguido a posição de parte no processo, qualidade que com o não recebimento da acusação precisamente lhe é negada.
Ora, é precisamente neste aspecto que a hipótese prevista e regulada no referido artigo 475.º, n.º 3, do Código de Processo Civil se afasta do que temos vindo a apreciar. E daí o ter-se dito acima que a analogia entre os dois casos era meramente aparente.
É que aquele preceito não se limita a mandar notificar [que seria o meio apropriado para o efeito (artigo 228.º, n.º 2, do Código de Processo Civil)] o réu para os termos do recurso. Antes ordena a sua citação «tanto para os termos do recurso como para os da causa», com o que, chamando-o assim e simultaneamente à acção, lhe confere desde logo a qualidade de parte no processo, dando-lhe por isso a possibilidade de se defender (n.º 1 daquele artigo 228.º).
Acresce que, enquanto não houver pronúncia, o processo tem de considerar-se na fase de instrução preparatória (ou de inquérito preliminar), tendo, como tal, carácter secreto (artigo 70.º do Código de Processo Penal e artigo 13.º do Decreto-Lei 35007, de 13 de Outubro de 1945).
O que também implica que nessa fase - enquanto não for proferida uma decisão que lhe seja desfavorável, concretizada num despacho de pronúncia - ao arguido não assista o direito de, como tal, interferir no desenvolvimento do processo, precisamente porque ainda não é sujeito da acção, não é parte.
Para o ser, indispensável se torna que contra ele se tenha estabelecido uma relação jurídica punitiva, o que só acontece com o proferir de um despacho de pronúncia.
Afastadas, assim, as duas primeiras vias para a resolução do problema em causa - aplicação por analogia de disposições da lei processual penal e recurso às regras de processo civil -, fica como última hipótese a do recurso aos «princípios gerais do processo penal».
Com o que, face ao antes exposto, isto é, considerando as razões aduzidas para a não aceitação da solução decorrente do estabelecido no artigo 475.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, fácil de ver é qual o entendimento a adoptar.
Pois, se é pressuposto necessário para que ao arguido assista o direito de exercício do poder de defesa a sua condição de parte no processo, por um lado;
Se o arguido só é sujeito da acção processual - parte no processo - quando contra ele se estabelece, através de um despacho de pronúncia, uma relação jurídica punitiva, por outro:
Daí se infere que não pode o arguido interferir no desenvolvimento do recurso interposto do despacho que não recebe a acusação pelo Ministério Público contra ele formulada, designadamente através da apresentação de contra-alegação, pelo que se não justifica que lhe seja notificado o despacho de recebimento de tal recurso.
Consequentemente, e face à conclusão a que antes se chegou, se lavra o seguinte assento:
Não recebida a acusação pelo Ministério Público formulada em processo correccional e interposto por esse magistrado recurso da respectiva decisão, não tem de ser notificado ao arguido o despacho que tal recurso recebe.
Não é devido imposto de justiça.
Lisboa, 8 de Abril de 1981. - Avelino da Costa Ferreira Júnior - Rocha Ferreira - Ruy Corte Real - Augusto de Azevêdo Ferreira - Sebastião de Barros e Sá Gomes - Daniel Ferreira - Abel de Campos - Manuel Arêlo Ferreira Manso - João Augusto Pacheco e Melo Franco - João Solano Viana - José F. Quesada Pastor - Orlando de Paiva Vasconcelos de Carvalho - José Luís Pereira - A. Campos Costa - Joaquim Augusto Roseira de Figueiredo - José dos Santos Silveira - Manuel Batista Dias da Fonseca - Rodrigues Bastos (vencido. Entendo que o arguido devia ser notificado nas circunstâncias referidas porque tem interesse directo na decisão do recurso e já lhe foi notificada a acusação, nos termos do artigo 352.º do Código de Processo Penal.) - Manuel dos Santos Victor (vencido pela mesma razão do voto que antecede) - Aníbal Aquilino Ribeiro (vencido por entender impor-se a notificação do arguido do despacho do não recebimento da acusação no processo correccional pelos fundamentos aduzidos no Acórdão de 2 de Fevereiro de 1979 e em conformidade com os princípios definidos na Constituição da República) - José Henriques Simões (vencido. Além das razões dos votos antecedentes, é de notar que a razão de ser do artigo 475.º do Código de Processo Civil - analogia jurídica - é perfeitamente aplicável em processo penal no caso posto no recurso. Porque será preciso evitar possa ser repetido o recurso pelo acusado no caso posterior do recurso do despacho de pronúncia.) - António Furtado dos Santos (vencido com base nos fundamentos expostos nos votos dos Exmos. Colegas que antecedem) - Moreira da Silva (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmo. Colega Furtado dos Santos) - Manuel do Amaral Aguiar (vencido pelas razões anteriormente expostas) - Augusto Victor Coelho (vencido pelas razões anteriormente expostas) - Pedro Augusto Lisboa de Lima Cluny (vencido. Para além das razões apontadas nas declarações antecedentes, afigura-se-me que a solução adoptada pode conduzir à situação aberrante que passo a expor: no caso de ser provido o recurso do Ministério Público e ordenado o recebimento da acusação e cumprido o decidido na 1.ª instância [...], ou o arguido fica impedido de novo recurso por a Relação já se ter pronunciado, ou, no mesmo caso concreto, a relação pode vir a ser colocada na contingência de proferir acórdãos contraditórios. É que, na óptica do assento - que consideramos inexacta -, não sendo ainda o arguido parte no processo ao ser interposto o primeiro recurso, o primeiro acórdão da Relação não faz caso julgado quanto a ele.) - Mário de Brito (vencido. Se ao arguido não for dada possibilidade de intervir no recurso através da notificação do despacho que o admite, pode mais tarde - se, é claro, o tribunal superior ordenar o recebimento da acusação - interpor de novo recurso, afinal sobre a mesma matéria, visto que a decisão anterior não constitui caso julgado para ele, com prejuízo da economia processual.) Está conforme.
Secretaria do Supremo Tribunal de Justiça, 29 de Abril de 1981. - O Secretário, Manuel Fernandes Júnior.