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Acórdão 170/2002/T, de 1 de Junho

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Texto do documento

Acórdão 170/2002/T. Const. - Processo 132/2001. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - Nos autos de instrução 18 758/97 0TDLSB, a correr termos no 1.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, em que são arguidos Manuel Branco Ferreira Lima e outros e assistentes o Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil (SPAC) e outros, foi proferida decisão instrutória, de fl. 3495 a fl. 3534, na qual se decidiu não pronunciar os arguidos pelos crimes imputados.

O Ministério Público interpôs recurso da decisão instrutória, concluindo a respectiva motivação do seguinte modo:

"1.º Os factos em apreço são susceptíveis de integrar um crime de difamação, previsto e punível pelos artigos 180.º, 183.º, n.º 2, e 187.º, n.º 1, do Código Penal.

2.º Com a sua conduta, os arguidos pretenderam e lograram apresentar os assistentes como pessoas que trabalham de menos e ganham de mais e que sustentam tomadas de posição e reivindicações oportunistas em detrimento dos interesses dos contribuintes.

3.º As circulares, os comunicados, os anúncios publicados e os spots televisivos subscritos pelos arguidos devem ser analisados um por um e depois no seu conjunto, a fim de se verificar se existe, ou não, uma lógica de continuidade com determinada finalidade.

4.º Da análise global dos textos difundidos ressalta a intenção de se insinuar a falta de honorabilidade e seriedade dos assistentes, sendo certo que tal ofensa à honra dos assistentes não pode constituir meio tido como adequado ou razoável, quer para a resolução do conflito laboral quer para o esclarecimento do público.

5.º A difamação, por definição, pressupõe a atribuição a alguém de facto ou conduta que encerre em si uma reprovação ético-social.

6.º A ilicitude relevante e sempre contingente, em matéria de difamação, deve ser aferida por apelo à consciência ético-social da sociedade portuguesa em dado momento, sendo que a actual consciência social da sociedade portuguesa permite considerar como reprovável a conduta que os arguidos referem ter sido desenvolvida pelos assistentes.

7.º Ao entender de modo diverso, decidindo pela inexistência de lesão dos bens jurídicos em causa, o M.mº Juiz de Instrução Criminal violou o disposto nos artigos 180.º, n.º 1, 183.º, n.os 2 e 3, e 187.º do Código Penal.

8.º Aquelas normas foram interpretadas e aplicadas no exacto sentido em que veio a ser proferida a decisão instrutória.

9.º É outro o sentido em que o Ministério Público as interpreta, como, aliás, decorre da exposição que antecede.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, determinando-se a revogação e substituição da decisão recorrida por outra, em que se pronunciem os arguidos."

Os assistentes interpuseram igualmente recurso da decisão instrutória, concluindo o seguinte:

"1 - O presente recurso mostra-se interposto tempestivamente, para o tribunal competente, e por quem para tal tem plena legitimidade e interesse em agir.

2 - O despacho recorrido consubstancia uma interpretação e uma aplicação absolutamente erróneas da lei, máxime dos artigos 180.º e 187.º do CP.

3 - Isto, antes de mais, porquanto - ao invés do que formalmente afirma - esquece que o conceito de honra e consideração tem, por um lado, uma vertente pessoal ou 'interior' e outra social ou 'exterior' e, por outro lado, corresponde a valores constitucionalmente consagrados nos artigos 25.º e 26.º, n.º 1.

4 - Podendo estes ser lesados com a afirmação de factos ou realidades (inteiramente falsos, como aqui sucede, ou, até, pelo menos parcialmente, verdadeiros) ou com a formulação de juízos de valor (independentemente dos factos que lhes possam subjazer), mesmo de forma indirecta, insidiosa, dissimulada ou até irónica.

5 - O preenchimento do tipo criminal não é afastado por o agente usar tal tipo de técnicas, quando a sua conduta se traduz na sujeição do visado à condenação, execração e humilhação públicas, tal como aqui sucedeu com os assistentes.

6 - Como não é afastado por, alegadamente, a conduta imputada aos queixosos não ser, em si, 'ilegal', ou, quando o sendo, o juízo de censura da ordem jurídica alegadamente se esgotaria nessa mera ilegalidade.

7 - Acresce que são efectiva e subjectivamente atentatórias do bom nome e consideração devidas aos assistentes/pessoas individuais as condutas - a eles publicamente atribuídas pelos arguidos, no âmbito de uma gigantesca campanha de opinião pública, com a utilização de poderosíssimos meios, tudo isto visando desacreditá-los - de serem ou terem atitudes oportunistas, de se preocuparem exclusivamente em trabalhar menos e em ganhar mais, em conduzir desta forma à falência da empresa e ao desbaratar dos recursos públicos (como resulta dos textos e dos spots televisivos da autoria confessa dos mesmos arguidos).

8 - Como o é clarissimamente uma imagem, reportando-se a pilotos e suas associações representativas, de um avião a desaparecer em pleno voo, com toda a carga negativa que, ao menos subliminarmente, essa imagem contém para o cidadão médio.

9 - Mutatis mutandis, rigorosamente o mesmo se pode dizer - agora por referência mais directa ao artigo 187.º do CP - no tocante aos assistentes pessoas colectivas.

10 - Sendo mesmo de bradar aos céus a teoria de que nada teria de censurável a conduta (e logo nada teria de desonroso a respectiva atribuição a uma dada associação sindical ou representativa dos pilotos) consistente em convocar greves ilegais (susceptíveis de fazer os trabalhadores grevistas incorrer no regime de faltas injustificadas e, logo, de os lançar no desemprego, despedidos com justa causa) ou levar a cabo uma actuação que, levando a empresa à falência, lançaria os mesmos trabalhadores no desemprego, tudo isto por razões de mero, corporativo e mesquinho interesse de 'ganhar mais e trabalhar menos'.

11 - O despacho recorrido interpretou e aplicou, pois, erradamente os já citados artigos 180.º e 187.º do CP.

12 - Os quais deveriam, antes, ter conduzido ao resultado oposto, ou seja, à consideração da forte indiciação de terem sido violados pela conduta dos arguidos e, logo, à respectiva pronúncia.

13 - Mas se porventura assim se não entendesse, então os referidos preceitos legais, assim interpretados e aplicados, padeceriam de evidente inconstitucionalidade material.

14 - Por representarem uma postergação inaceitável infundamentada e injustificada do valor absoluto do direito à integridade moral e do direito ao bom nome e reputação, consagrados, respectivamente, nos artigos 25.º e 26.º, n.º 1, ambos da CRP, inconstitucionalidade que, ad cautelam, fica desde já aqui arguida.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se por inteiro o despacho de não pronúncia ora recorrido e determinando-se a pronúncia dos arguidos pelos crimes de que haviam sido acusados na acusação formulada pelos assistentes."

O Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 13 de Dezembro de 2000, afirmou o seguinte:

"A questão central do presente recurso circunscreve-se a saber se os textos elaborados pelos arguidos e por eles publicitados na imprensa e na televisão, as imagens inseridas nos spots televisivos e as declarações do arguido Ferreira Lima num programa de televisão indiciam suficientemente ter lesado a honra e consideração devida aos assistentes pessoas singulares, bem como a credibilidade, o prestígio ou a confiança devidos aos outros assistentes (SPAC e APPLA).

Temos por certo que a abordagem da matéria inerente aos elementos objectivos da tipicidade dos imputados crimes poderia passar pela citação, mais ou menos extensa, da pertinente doutrina e jurisprudência, elaborando-se um acórdão recheado de referências e transcrições. Porém, face à exemplar fundamentação do douto despacho recorrido, entendemos adequado expor o que de essencial nos determina a manter tal despacho na sua integralidade.

Com essa preocupação de síntese, logo verificamos que a factualidade imputada aos arguidos se enquadrou e desenvolveu no ambiente próprio de um conflito laboral surgido entre os pilotos da TAP Air Portugal e a administração desta empresa, que culminou numa greve convocada para 24/25 de Abril de 1997 pelo Sindicato (SPAC) representativo daqueles profissionais.

Num conflito laboral da magnitude do retratado nos autos, não surpreende, antes é compreendido e admitido pela generalidade das pessoas que se integram na colectividade, que os trabalhadores e as organizações representativas tivessem sido incisivos, agressivos e contundentes no anúncio da greve e na sustentação das suas reivindicações, utilizando expressões que, num outro contexto, poderiam ter a virtualidade de lesar a honra e consideração dos administradores da entidade patronal. Dentro dos mesmos parâmetros e dada a natureza desse mesmo conflito, também não é merecedor de censura penal que os referidos administradores tivessem respondido utilizando argumentação excessiva, despropositada ou mesmo não assente em factos reais.

Tendo em conta esse contexto de conflitualidade laboral, acompanhamos o douto despacho recorrido quando, após adequadas e exaustivas considerações, concluiu não ser susceptível de preencher a tipicidade dos crimes imputados aos arguidos a actuação destes quando qualificaram como 'ilegal' a referida greve dos pilotos da 'TAP - Air Portugal' ou quando afirmaram que os pilotos não querem voar nas mesmas condições que os outros pilotos europeus, provocando, com essa atitude, avultados prejuízos económicos aos contribuintes portugueses.

Numa discussão de natureza laboral, a interpretação e qualificação que uma das partes faz da legalidade ou ilegalidade da actuação da contra-parte, a análise das reivindicações face a outros profissionais, bem como a avaliação das repercussões económicas da greve, insere-se nos seus direitos de defesa, resposta e informação.

Quanto aos spots televisivos feitos difundir pelos arguidos, nos quais se faz desaparecer a imagem de um avião com as insígnias da TAP em pleno voo, ao mesmo tempo em que se diz 'na aviação comercial quem não se adapta desaparece', também entendemos que, observando as regras da experiência comum e a percepção esperada numa pessoa de mediana compreensão e inteligência, não se pode dali extrapolar a existência, mesmo que velada, de uma imputação aos pilotos da produção de desastres aéreos. Esta seria uma percepção desprovida de suporte lógico/racional, claramente anómala e despropositada num homem medianamente inteligente, normalmente diligente, sagaz e experiente.

Relativamente às declarações do arguido Ferreira Lima quando, relativamente à não realização de um determinado voo, lamentou o sucedido e acrescentou 'mas é preciso que todos entendamos que uma greve, a greve dos pilotos, tem consequências', também acompanhamos o entendimento vertido no douto despacho recorrido, quando considerou tal afirmação 'inócua do ponto de vista de uma eventual lesão da honra e consideração de qualquer dos assistentes, independentemente de tal imputação ter ou não substrato factual', tanto mais que as 'consequências' ali referidas, por não discriminadas, poderiam hipoteticamente abranger o descontrolo da própria administração na organização dos voos.

Do que acima sucintamente se expôs não pode extrair-se que a indiciada conduta dos arguidos não seja, eventualmente, censurável em termos éticos ou profissionais, mas sim que a mesma não é, seguramente, censurável em termos penais, ou seja, não integra a tipicidade de qualquer crime, nomeadamente os imputados pelo Ministério Público e pelos assistentes, ora recorrentes.

Determina o artigo 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que 'se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia'.

No caso dos autos, verificamos que até ao encerramento da instrução não foram recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os elementos objectivos dos crimes imputados aos arguidos pelas acusações deduzidas pelo Ministério Público e pelos assistentes, daí se impondo a não pronúncia.

Resta dizer que, ao contrário do que concluíram os assistentes, ora recorrentes, o douto despacho recorrido, ao interpretar os artigos 180.º e 187.º do Código Penal, nomeadamente no que tange à amplitude dos interesses jurídicos protegidos por tais normas penais, não violou a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o disposto nos seus artigos 25.º e 26.º, n.º 1."

2 - Os assistentes interpuseram recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição das normas dos artigos 180.º e 187.º do Código Penal, "tal como foram interpretados e aplicados pelo acórdão recorrido".

Os recorrentes produziram alegações que concluíram do seguinte modo:

"1.º O presente recurso mostra-se interposto tempestivamente por quem para tal tem plena legitimidade e interesse em agir e sem que nenhuma questão prévia obste ao seu conhecimento.

2.º O acórdão recorrido consubstancia uma interpretação e aplicação dos artigos 180.º e 187.º do CP absolutamente contrárias aos artigos 25.º e 26.º da CRP.

3.º Isto, antes de mais, porquanto - ao contrário do que nele se consagra - esquece que o conceito de honra e consideração, por um lado, tem uma vertente pessoal ou 'interior' e outra social ou 'exterior' e, por outro lado, corresponde a valores constitucionalmente consagrados nos já citados artigos 25.º e 26.º, n.º 1, da CRP.

4.º Podendo estes ser lesados - e mesmo gravemente lesados, como aqui sucedeu - com a afirmação de factos ou realidades (inteiramente falsos, como aqui sucede, ou, até, pelo menos parcialmente, verdadeiros) ou com a formulação de juízos de valor (independentemente dos factos que lhes possam subjazer), mesmo de forma indirecta, insidiosa, dissimulada ou até irónica.

5.º O preenchimento do tipo criminal lesivo daqueles valores constitucionalmente protegidos não é afastado por o agente usar tal tipo de técnicas, quando a sua conduta se traduz na sujeição do visado à condenação, execração e humilhação públicas, tal como aqui sucedeu com os assistentes.

6.º Como não é afastado por, alegadamente, a conduta imputada aos queixosos não ser, em si, 'ilegal', ou, sendo-o, por o juízo de censura da ordem jurídica alegadamente se esgotar nessa mera ilegalidade.

7.º Acresce que são efectiva e subjectivamente lesivas do bom nome e consideração constitucionalmente devidas aos assistentes/pessoas individuais as condutas - a eles publicamente atribuídas pelos arguidos, no âmbito de uma gigantesca campanha de opinião pública, com a utilização de poderosíssimos meios, tudo isto visando desacreditá-los - de serem ou terem atitudes oportunistas, de se preocuparem exclusivamente em trabalhar menos e em ganhar mais, em conduzir desta forma à falência da empresa e ao desbaratar dos recursos públicos (como resulta dos textos e dos spots televisivos da autoria confessa dos mesmos arguidos).

8.º Como o é clarissimamente uma imagem, reportando-se a pilotos e suas associações representativas, de um avião a desaparecer em pleno voo, com toda a carga negativa que, ao menos subliminarmente ou sob a forma indirecta, essa imagem contém para o cidadão médio, que assim bem a entende.

9.º Mutatis mutandis, rigorosamente o mesmo se pode dizer - agora por referência mais directa ao artigo 187.º do CP - no tocante aos assistentes pessoas colectivas.

10.º Sendo absolutamente inaceitável a teoria do acórdão recorrido de que nada teria de censurável a conduta (e logo nada teria de lesivo dos bens jurídicos constitucionalmente defendidos a respectiva atribuição a uma dada associação sindical ou representativa dos pilotos) consistente em convocar greves ilegais (susceptíveis de fazer os trabalhadores grevistas incorrer no regime de faltas injustificadas e, logo, de os lançar no desemprego, despedidos com justa causa) ou levar a cabo uma actuação que, levando a empresa à falência, lançaria os mesmos trabalhadores no desemprego, tudo isto por razões de mero, corporativo e mesquinho interesse de 'ganhar mais e trabalhar menos'.

11.º O acórdão recorrido interpretou e aplicou, pois, os já citados artigos 180.º e 187.º do CP de um modo que eles representam uma compressão e uma postergação, em absoluto inaceitáveis, infundamentadas e injustificadas, do valor absoluto do direito à integridade moral e do direito ao bom nome e reputação, consagrados, respectivamente, nos artigos 25.º e 26.º, n.º 1, ambos da CRP.

12.º Padecendo, assim, da inconstitucionalidade material que foi oportunamente arguida, por violação dos preceitos e princípios neles consagrados."

O Ministério Público alegou, concluindo, o seguinte:

1.º Os recorrentes não delinearam, nem no requerimento de interposição do recurso nem nas conclusões da sua alegação, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa idónea para suportar o recurso de fiscalização concreta interposto - limitando-se a divergir do entendimento das instâncias acerca da subsunção, em certo circunstancialismo concreto, de determinados juízos ou expressões, ao preenchimento do tipo penal de difamação;

2.º Termos em que não deverá conhecer-se do recurso.

Os recorridos também contra-alegaram, tirando as seguintes conclusões:

I - A tese dos recorrentes carece de fundamento, quer do ponto de vista jurídico quer do ponto de vista factual.

II - A conduta dos recorridos não é objectivamente susceptível de lesar a integridade moral, o bom nome ou a reputação dos recorrentes.

III - Bem como não são objectivamente lesivas dos bens jurídicos especialmente tutelados pelas normas que prevêem e punem os crimes de difamação e ofensa a pessoa colectiva.

IV - Como tais, foram consideradas inócuas quer pelo M.mº Juiz de Instrução Criminal quer pelo venerando Tribunal da Relação.

V - Posto que nem todo o facto que eventualmente afronte ou perturbe cabe na previsão das normas acima referidas.

VI - Acresce que, nos termos da lei, para que a imputação a outrem de determinado facto ofensivo da sua honra e consideração seja considerada como preenchendo um tipo criminal, é necessário que tal facto não seja verdadeiro.

VII - Os recorrentes lograram não indiciar sequer a falsidade das declarações dos recorridos nos autos instrutórios.

VIII - Atento o contexto em que se situam as condutas dos recorridos, não é credível que estes se tenham sentido afectados na sua integridade moral, bom nome ou reputação.

IX - Em conformidade com os ensinamentos da doutrina e da jurisprudência constantes, as declarações, os spots publicitários e os textos em apreço não têm a virtualidade das lesões arrogadas.

X - Em todo o caso, sempre estaríamos em face de um conflito de direitos com garantia constitucional.

XI - Os direitos fundamentais conhecem limites imanentes, ou seja, limitações ao respectivo exercício estabelecidas constitucionalmente.

XII - Estas limitações são apreendidas por interpretação quando o exercício de determinado direito possa afectar valores ou direitos também constitucionalmente garantidos.

XIII - Em conformidade com a doutrina autorizada, a solução deste tipo de colisões tem de buscar-se num juízo de ponderação, de acordo com um critério de proporcionalidade, no qual se procura encontrar e justificar a solução mais conforme ao conjunto dos valores constitucionais.

XIV - Assim, atribui-se ao juiz a competência interpretativa e restritiva dos direitos fundamentais em conflito.

XV - Em conformidade, as declarações, os spots publicitários e os textos em apreço, enquanto condutas que consubstanciam um direito à livre expressão, de resposta, de informação social e crítica, exercidas legitimamente, foram julgadas inócuas pelo Tribunal por insusceptíveis de afectarem o núcleo inviolável do direito à integridade moral, bom nome e reputação dos recorrentes.

XVI - Nestes termos, o acórdão recorrido interpretou e aplicou os artigos 180.º e 187.º do Código Penal, em conformidade com os artigos 25.º e 26.º da Constituição e integralmente em consonância com o conjunto dos valores constitucionais.

Em resposta à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, os recorrentes afirmaram o seguinte:

1.º É absolutamente lastimável a posição do Ministério Público, bem reveladora do estado a que se chegou neste País em matéria de fiscalização de constitucionalidade. Com efeito

2.º Tratando-se de verificação do respeito pela lei fundamental por parte das leis ordinárias - à semelhança do que tradicionalmente sempre sucedeu, na jurisdição administrativa, quanto à verificação da legalidade dos actos praticados pela Administração -, lógico seria que as custas, a divergirem do regime geral, fossem mais baixas do que aquele; que a trave mestra fundamental do respectivo processo fosse a do predomínio do conteúdo sobre a forma, com a consequente desvalorização das questões prévias e incidentais, e, em contraposição, a preocupação essencial com a decisão do mérito da causa; que, enfim, uma vez oportunamente suscitada a questão da inconstitucionalidade, a mesma não deixasse de ser devidamente apreciada, conhecida e decidida, muito menos sob pretextos de ordem formal;

3.º Este Tribunal Constitucional passou não apenas a ter um regime de custas especial, distinto de todos os outros tribunais, como a aplicar, de modo geral, uma medida extremamente pesada das respectivas custas, claramente desincentivadora da interposição pelos cidadãos com menos posses dos recursos de inconstitucionalidade; passaram a admitir-se "decisões sumárias" sobre o fundo da questão proferidas unicamente pelo conselheiro relator; e multiplicaram-se e aplicaram-se os entendimentos fortissimamente restritivos das possibilidades de recurso (desde o da necessária "imprevisibilidade" do entendimento consagrado pela primeira vez na última instância de decisão à teoria do "não abandono" da questão de inconstitucionalidade, por exemplo) e as questões prévias e incidentais susceptíveis de obstar ao conhecimento da causa;

4.º O próprio Ministério Público - tal como lamentavelmente sucede também na jurisdição administrativa, onde na esmagadora maioria dos casos sempre adopta a postura de pura e simplesmente sustentar e apoiar as posições da Administração e de buscar toda a sorte de "questões prévias" que obstem ao conhecimento do recurso -, em vez de pugnar pela defesa intransigente da constitucionalidade, passou, antes, a empenhar-se no suscitar de toda a sorte das já referidas questões prévias e incidentais;

5.º Deste modo, obstar-se-ia eventualmente à apreciação do mais ou menos complexo problema de fundo, possibilitar-se-ia uma das referidas decisões "sumárias" (e, logo, rápidas) e sujeitar-se-iam os recorrentes a uma condenação em custas suficientemente pesada para que não voltassem a ter a ousadia de interpor um recurso de constitucionalidade como o ora sub judice;

6.º Mas o que é que tudo isto, Srs. Juízes Conselheiros, teria que ver com um Estado de direito democrático, baseado na dignidade da pessoa humana e no respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e, consequentemente, empenhado no respeito escrupuloso pela sua lei fundamental e na fiscalização desse respeito por parte dos seus cidadãos?!

7.º Não tem o Ministério Público o menor vislumbre de fundamento na questão prévia que veio suscitar, com inegável brilho formal, mas com argumentação que rigorosamente em nada se aplica à questão sub judice. Aliás

8.º E muito significativamente, os próprios arguidos entenderam e consideraram como adequadamente suscitada a questão da inconstitucionalidade, doutamente contra-alegando relativamente a ela. E, na verdade

9.º Exactamente ao invés do que afirma o Ministério Público, os recorrentes deram perfeito e cabal cumprimento ao artigo 75.º-A da Lei 28/82 no requerimento de interposição do recurso. Como também nas alegações de recurso concretizaram e especificaram adequadamente a concreta interpretação normativa (operada pela decisão do Tribunal recorrido) colidente com os concretos preceitos e princípios constitucionais oportunamente invocados. Com efeito

10.º No presente recurso peticionou-se que as normas dos artigos 180.º e 187.º do Código Penal, se e quando interpretadas e aplicadas como o foram na decisão recorrida (ou seja, no sentido de não serem jurídico-penalmente valoradas a punidas condutas como as assumidas pelos arguidos), sejam declaradas inconstitucionais, exactamente por esvaziadoras e denegadoras dos bens e valores jurídicos tutelados pelos artigos 25.º e 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, consubstanciando, assim, uma ofensa, absolutamente desproporcionada e injustificada, à defesa constitucional da personalidade e da dignidade da pessoa humana;

11.º E, naturalmente, que, tratando-se de fiscalização sucessiva concreta, a determinação da existência dessa ofensa há-de ser feita em função do modo como, em concreto, na questão sub judice, os referidos normativos foram interpretados e aplicados (o que, isso sim, constitui jurisprudência reiterada e uniforme deste Tribunal Constitucional);

12.º Deste modo, a alegação do Ministério Público de que "o presente recurso carece manifestamente do objecto 'normativo idóneo', por pretensamente versar 'matéria absolutamente estranha ao controlo de constitucionalidade de normas'", não passa afinal de uma "blague", que tão-só visa desesperadamente evitar a apreciação da questão de fundo num processo em que a postura do mesmo Ministério Público está patente desde o primeiro momento;

13.º Srs. Juízes Conselheiros: VV. Exmas. são obviamente soberanos na decisão que irão tomar. Uma coisa, porém, em nada será alterada - é que nunca os recorrentes poderão admitir e aceitar que pudesse ser considerada como conforme à lei fundamental uma norma da lei penal que legitimasse as gravíssimas ofensas à integridade moral, ao bom nome e à reputação dos assistentes, que foram praticadas pelos arguidos.

Cumpre decidir.

II - Fundamentação. - Questão prévia. - 3 - O Ministério Público sustenta que os recorrentes não procederam à definição de uma questão de constitucionalidade normativa, uma vez que não identificaram a dimensão normativa que consideram inconstitucional. Apoia-se para tal conclusão em dois argumentos: a referência no requerimento de interposição do recurso a que as normas dos artigos 181.º e 187.º do Código Penal seriam inconstitucionais "tal como foram interpretadas pelo acórdão ora recorrido" e a suposta pretensão ilegítima do recorrente, nas alegações, de que o Tribunal Constitucional controlasse a "subsunção" de certas expressões usadas pelos arguidos nos tipos legais de crime previstos no artigo 186.º ou 187.º do Código Penal "por traduzir concreta e justificada lesão de determinados bens ou valores".

4 - Nunca coloca, porém, o Ministério Público, directamente, a questão de saber se durante o processo foi suscitada de modo compreensível uma questão de constitucionalidade e se tal questão foi entendida como tal pelo tribunal recorrido.

Porém, como resulta da jurisprudência do Tribunal Constitucional, a expressão formal utilizada pelos recorrentes suscitando a inconstitucionalidade das normas "tais como foram interpretadas pelo acórdão ora recorrido" não inviabilizaria, por si só, uma suscitação adequada da questão de constitucionalidade se ela ainda visasse uma remissão para uma dimensão normativa (distinta de uma perspectiva subsuntiva) em termos de ser susceptível de ser compreendida pelo tribunal recorrido ou se a dimensão normativa (e não meramente subsuntiva) da questão fosse perfeitamente identificável no acórdão recorrido, através da sua explícita fundamentação.

Assim, o problema da identificação de uma questão de constitucionalidade não é meramente uma questão do uso das palavras, mas de uma perceptível, em termos objectivos, delimitação de ideias.

Quando o Tribunal Constitucional considera que não foi suscitada adequadamente uma questão de constitucionalidade não o faz decisivamente por força da ineptidão das palavras, mas pela impossibilidade de poder concluir com objectividade, através do conjunto da argumentação, que foi suscitada uma questão de constitucionalidade durante o processo ou no recurso de constitucionalidade quando se trate de recursos de decisões surpreendentes.

5 - Já no que se refere ao segundo argumento utilizado pelo Ministério Público, é indubitável que as competências do Tribunal Constitucional não incluem o controlo do acerto da operação de subsunção de factos concretos nos tipos legais de crime. Porém esse facto não impede que o Tribunal Constitucional controle os critérios de interpretação do tipo legal de crime, nomeadamente qual o bem jurídico protegido, quem pode ser autor, a natureza de crime de perigo ou de dano, de mera actividade ou de resultado, etc. Tais aspectos interpretativos não são em si mesmos a operação subsuntiva, tradicionalmente definida como "sotoposição lógica do facto na norma" (cf. Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, 5.ª ed., 1979, pp. 78 e segs.), mas são pura e simplesmente a delimitação do conteúdo do proibido, de uma dimensão normativa. Assim, por exemplo, saber se um bem jurídico se identifica com um direito fundamental ou tem apenas dimensão supra-individual é um problema de interpretação jurídica, é a delimitação normativa pressuposta pela tradicional relação lógico-subsuntiva na decisão do caso concreto.

6 - O plano em que o Ministério Público coloca a questão prévia só é, assim, coincidente com a jurisprudência deste Tribunal na medida em que nenhuma das distinções agora referidas seja ultrapassada. Perguntar-se-á, então, se o caso sub judicio pelo seu contexto argumentativo (e não apenas por força da linguagem pouco rigorosa do ponto de vista de um recurso de constitucionalidade) e pela sua natureza (normativa ou subsuntiva) encerra, ou não, uma verdadeira questão de constitucionalidade. Ou, melhor dizendo, se uma eventual questão de constitucionalidade esteve em causa durante o processo e se está verdadeiramente em causa no recurso.

7 - Ora, analisada a questão desde as alegações de recurso da decisão instrutória para o Tribunal da Relação de Lisboa, verifica-se que os ora recorrentes, se porventura pretenderam formular uma questão de constitucionalidade normativa, isto é, situar-se no plano de critérios de determinação do âmbito do tipo legal de crime, da contestação de uma concepção de lesão da honra utilizada pelo Tribunal para interpretar os tipos legais de crime previstos nos artigos 180.º e 187.º do Código Penal, não lograram colocar de modo suficientemente perceptível a questão. Com efeito, embora tenham começado por tratar do problema como o de uma hipotética divergência entre uma tutela penal da vertente pessoal ou "interior" da honra e da vertente social ou "exterior", não demonstraram em que medida se deveria a uma concepção de tutela penal da honra diferente da que defendiam o resultado interpretativo da decisão instrutória. Apenas vieram desenvolver a sua argumentação no plano da demonstração da existência efectiva de uma conduta atentatória do bom nome e consideração devida aos assistentes (pessoas individuais e pessoas colectivas) - referindo, assim, a inconstitucionalidade nos n.os 12 a 14 das conclusões das alegações do recurso para a Relação ao resultado decisório. O critério do âmbito da tutela penal da honra que o Tribunal teria utilizado nunca foi explicitamente identificado pelo recorrente e contestado enquanto tal.

8 - Mas, ainda que se admitisse que tal critério foi incipientemente aflorado na conclusão n.º 6 do recurso para o Tribunal recorrido e no n.º 6 das alegações para o Tribunal Constitucional, em que os recorrentes contestam que a ilegalidade de uma conduta seja critério do seu carácter atentatório da honra - o que só com boa vontade poderia ser lido como uma dimensão normativa da tutela penal da honra -, o que é certo é que em nenhuma das decisões recorridas tal critério se manifestou minimamente. Com efeito, o tribunal recorrido acentuou como critérios decisivos da ofensa da honra e correspondentemente do âmbito da sua tutela penal os critérios de adequação social das afirmações num contexto laboral (a avaliação da legalidade das condutas entre as partes do conflito) e da "percepção esperada numa pessoa de mediana compreensão e inteligência" e o das "regras da experiência comum". Segundo esses critérios, a imputação aos pilotos de desastres aéreos será uma percepção "desprovida de suporte lógico/racional, claramente anómala e despropositada num homem medianamente inteligente, normalmente diligente, sagaz e experiente".

Estes foram os critérios normativos explícitos subjacentes à interpretação da lesão da honra e da justificação da sua tutela penal.

9 - Ora, estas dimensões normativas não foram afrontadas no recurso de constitucionalidade, ainda que se pudesse admitir, no limite lógico do entendimento das alegações de recurso para o tribunal recorrido, que teriam havido elementos de uma divergência de critérios normativos. Com efeito, não se poderá interpretar o acórdão recorrido como distinguindo entre comportamentos legais e ilegais ou entre vertentes interiores e pessoais ou exteriores e sociais de honra. O tribunal recorrido apenas considera, segundo os critérios referidos, que não se poderia "extrapolar" uma imputação de factos aos agentes ou que essa imputação seria adequada num contexto de conflito.

10 - Assim, não poderia o Tribunal Constitucional concluir, de acordo com as competências de controlo de constitucionalidade normativa que a Constituição e a lei lhe atribuem [artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição e 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, interpretados pela sua jurisprudência constante e uniforme], que teria sido suscitada, no recurso, a inconstitucionalidade de uma ou outra dimensão normativa aplicada pela decisão proferida pelo tribunal recorrido.

11 - De todo o modo, a análise anterior evidenciou repetidamente uma inadequada formulação de uma questão de constitucionalidade normativa durante o processo que, de resto, se manteve no próprio recurso de constitucionalidade e nas alegações aqui produzidas pelos recorrentes - o que impede que se verifique o pressuposto do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), no que se refere à suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa.

III - Decisão. - 12 - Ante o exposto, não pode o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do objecto do recurso interposto, dando assim provimento à questão prévia suscitada pelo Ministério Público.

Custas pelos recorrentes, fixando-se as respectivas taxas de justiça em 15 UC cada.

Lisboa, 17 de Abril de 2002. - Maria Fernanda Palma (relatora) - Paulo Mota Pinto - Bravo Serra - Guilherme da Fonseca - José Manuel Cardoso da Costa.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2021125.dre.pdf .

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  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

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