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Acórdão 579/2001, de 15 de Fevereiro

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Texto do documento

Acórdão 579/2001. - Processo 543/2000. - I - O licenciado João António de Araújo Vale e Azevedo apresentou junto do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa denúncia contra Ana Paula Azevedo, Graça Rosendo, José António Saraiva, Pedro Guerra, Alexandra Tavares Teles, Constança Cunha e Sá, Inês Serra Lopes e incertos, imputando-lhes a prática de factos que subsumiu ao cometimento de cinco crimes de violação de segredo de justiça, previstos e puníveis pelos artigos 371.º do Código Penal e 86.º, n.os 1, a contrario, e 4, do Código de Processo Penal, e pelos artigos 30.º e 31.º da "lei de imprensa", aprovada pela Lei 2/99, de 13 de Janeiro, tendo solicitado a sua constituição como assistente nos autos.

Por despacho proferido pelo juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa em 25 de Novembro de 1999, não foi admitida a requerida constituição de assistente, motivo pelo qual o solicitante recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Na alegação adrede produzida, o licenciado João António de Araújo Vale e Azevedo defendeu que o crime de violação de segredo de justiça, a par de visar proteger o interesse do Estado na administração da justiça e de garantir o interesse da imparcialidade do poder judicial, visava ainda salvaguardar os princípios constitucionais da tutela dos direitos de defesa do arguidos, a sua presunção de inocência, os seus bom nome, reputação e privacidade e a tutela dos valores pessoais dos ofendidos, pelo que se "os 'ofendidos' no crime de violação de segredo de justiça forem os arguidos no processo criminal originário (em que a violação de segredo foi perpetrada) [...], o interesse constitucional da tutela dos direitos de defesa do arguido e o princípio da presunção de inocência [...] impõem uma tutela do 'ofendido' ao abrigo do tipo penal de violação de segredo de justiça", concluindo, assim, que "uma interpretação conforme aos artigos 1.º, 26.º, 32.º, n.os 1, 2 e 7, 202.º e 203.º da Constituição da República Portuguesa e ao disposto nos artigos 371.º do Código Penal e 68.º e 86.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, impõe o reconhecimento de um triplo fundamento para a incriminação da violação de segredo de Justiça e, consequentemente, legitimidade do denunciante, enquanto ofendido, para se constituir como assistente", sob pena de, perfilhando-se entendimento contrário, se chegar a uma solução que "padece de flagrante inconstitucionalidade".

O Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 21 de Junho de 2000, negou provimento ao recurso.

Disse-se nesse aresto, como fundamentação do decidido:

"B) - I - A questão que nos é posta no presente recurso consiste em saber se o recorrente, queixoso em processo por crime de violação de segredo de justiça (artigo 371.º do Código Penal), tem legitimidade para se constituir assistente no dito processo.

A norma aplicável será, assim, a constante do artigo 68.º, segundo o qual [n.º 1, alínea a)]:

'Podem constituir-se assistentes [...] os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos'.

Nestes termos, ofendido [no sentido que ora nos ocupa] será somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato da infracção, já que o objecto jurídico mediato é sempre de natureza pública.

Importa, por conseguinte, apurar aqui qual seja o objecto jurídico imediato da infracção, sem esquecer, por outro lado, que a própria lei ressalva a existência de lesados 'que não podem constituir-se assistentes' (cf. o artigo 74.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

II - Compulsado o artigo 371.º do Código Penal, verificar-se-á, de imediato, que a lesão de direitos e interesses particulares não faz parte do tipo legal.

Há manifesto equívoco na tese do recorrente, ao opor à recorrida que ela é redutora, por defender que o 'único' bem jurídico tutelado pela tipificação legal é o interesse do Estado na boa administração da justiça.

Efectivamente, o que a tese ora impugnada sustenta é que, com a incriminação, directa ou imediatamente apenas se visou proteger aquele dito interesse, todos os demais visados estando prosseguidos indirecta ou mediatamente.

Assim, a especialidade, de que fala o citado artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, não implica hierarquização dos vários interesses protegidos pela incriminação, mas tão-só a indispensável harmonização entre eles próprios, e com os demais também garantidos constitucionalmente (cf. adiante).

III - A argumentação expendida pelo recorrente tem cabimento, grosso modu, em relação à generalidade das infracções tipificadas na lei penal.

O que releva, contudo, é que o legislador pretendeu consagrar, e indubitavelmente consagrou, limites à intervenção no processo criminal por parte dos cidadãos, de acordo com a reserva que faz, para o Ministério Público, da titularidade da acção penal (cf. os artigos 48.º do Código de Processo Penal e 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).

Nesta ordem de ideias, resulta bem patente que uma das formas mais decisivas de que o legislador se serviu para realizar a necessária distinção entre as infracções [para o efeito do que ora nos ocupa] é justamente a da sua arrumação sistemática no Código Penal.

Afloramento e comprovação inequívocos da existência desses limites achamo-los no preceituado no artigo 74.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (que pela sua importância mencionámos introdutoriamente), ao afirmar que há lesados - com a infracção - que não podem constituir-se assistentes.

Ora, é precisamente por a acção penal ser - também por imposição constitucional - pública, consoante é comummente aceite, que aos interesses tutelados pela norma, alegadamente paralelos e de igual valor, vem juntar-se um outro, com idêntica dignidade, de acordo com o qual:

1 - As restrições à actuação do Ministério Público e a intervenção no processo por parte de particulares hão-de ter carácter excepcional (e como tal estão reconhecidas; cf. o artigo 48.º do Código de Processo Penal).

2 - O princípio é o de que, contrariamente ao sustentado, os lesados apenas dispõem do recurso à acção cível, enxertada ou não no processo penal (artigos 71.º e segs. do Código de Processo Penal).

Em conformidade, não pode falar-se em interpretação inconstitucional por banda da tese recorrida, já que é mister, como o próprio recorrente reconhece, proceder à harmonização de todos os interesses presentes, mas sem olvidar que entre estes figuram outros que não apenas os tutelados, directa ou indirectamente, pela previsão do artigo 371.º Código Penal:

Concluindo, tudo se traduz afinal no reconhecimento de que certos interesses do Estado (e este da 'realização da justiça' é dos mais salientes, por pôr em causa o próprio Estado - v. a epígrafe do título V e a do seu capítulo III, a que pertence o aludido artigo 371.º Código Penal) 'prevalecem' sobre os interesses dos eventuais lesados particulares, na medida em que estes últimos se acham prosseguidos (apenas) indirectamente pela norma penal, estando assim limitados ao recurso à acção civil (citado artigo 74.º, n.º1, do Código de Processo Penal)."

Do acórdão de que a parte acima se encontra transcrita recorreu o licenciado João António de Araújo Vale e Azevedo para o Tribunal Constitucional, o que fez ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, e dizendo que "a aplicação das normas previstas nos artigos 68.º, n.º 1, alínea a), e 371.º do Código Penal, sustentada pela Relação de Lisboa, é violadora dos artigos 1.º, 18.º, 26.º, 32.º, n.os 1, 2 e 7, 202.º e 203.º da Constituição da República Portuguesa, em especial os princípios constitucionais da tutela dos valores pessoais do ofendido pela prática da infracção, in casu, a tutela dos direitos de defesa do arguido e o princípio da presunção de inocência deste, do seu bom nome, reputação e privacidade, e ainda, violadora do princípio da imparcialidade do poder judicial, todos previstos naqueles normativos constitucionais".

Após ter sido admitido o recurso por despacho prolatado em 14 de Julho de 2000 pelo desembargador-relator do Tribunal da Relação de Lisboa, foram os autos remetidos ao Tribunal Constitucional.

Tendo o relator proferido decisão sumária, por intermédio da qual negou provimento ao recurso, e tendo o recorrente da mesma reclamado, a conferência, por via do Acórdão 36/2001, determinou o prosseguimento dos autos.

2 - Na sequência do decidido naquele aresto, o impugnante apresentou alegação, que rematou com as seguintes conclusões:

"a) Entende o recorrente que o artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal (articulado com o tipo penal de violação do segredo de justiça, previsto e punido pelo artigo 371.º do Código Penal), na aplicação que do mesmo foi feita na decisão recorrida, é inconstitucional.

b) Inconstitucional porque violadora das normas e dos princípios que tutelam os direitos fundamentais de presunção de inocência do arguido, as garantias de defesa do arguido (artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa) e o direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa).

c) O assistente nos crimes públicos tem essencialmente uma função de colaborador e de controlo sobre o acusador, constituindo a sua intervenção em sede penal uma manifestação do princípio do Estado de direito democrático e participativo dos cidadãos.

d) Entende o recorrente que, em sede de interpretação e aplicação do normativo constante do artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal (para efeitos de constituição como assistente em sede de investigação criminal por violação de segredo de justiça), tal normativo não poderá ser objecto de interpretação de tal modo restritiva que não reconheça legitimidade ao ofendido para se constituir como assistente (se for o arguido no processo em relação ao qual se verificou a violação), sob pena de tal interpretação acarretar uma desconformidade com a Constituição.

e) É certo que a consagração do segredo de justiça visa proteger o interesse do Estado na administração da justiça (garantir a boa administração da justiça) [...]

f) A par de tal interesse (mantendo a mesma dignidade e relevância penal e constitucional), a incriminação da violação do segredo de justiça visa também garantir o interesse da imparcialidade do poder judicial (cf. o artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa).

g) Tal norma incriminadora visa ainda salvaguardar os princípios constitucionais da tutela dos direitos de defesa do arguido e da sua presunção de inocência, o seu bom nome, reputação e privacidade, e a tutela dos valores pessoais do ofendido pela prática da infracção, ou seja, tutelam-se igualmente os particulares, v. g. o arguido e o ofendido (cf. os artigos 26.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa).

h) Os interesses protegidos pela norma incriminadora em causa são triplos e paralelos (i. e., a tutela dos interesses dos particulares não surge 'indirectamente', pois, quer por força da interpretação sistemática quer por força de um imperativo constitucional, os bens jurídicos referidos são protegidos em 'primeira linha' pela incriminação).

i) Defender-se que o bem jurídico protegido em primeira linha pela incriminação da violação do segredo de justiça, para efeitos de constituição como assistente, é apenas e exclusivamente o interesse estadual na administração da justiça constitui interpretação e aplicação restrita do artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, atentatória dos direitos fundamentais apontados pelas disposições constitucionais referidas.

j) Com efeito, se é certo que a boa administração da justiça é um fim ou interesse constitucionalmente protegido (por isso se pode admitir a incriminação das violações do segredo de justiça, pois tal segredo é um 'bem jurídico' constitucionalmente protegido), não menos certo é que a presunção de inocência, o bom nome, a reputação e a privacidade dos ofendidos encontram igual tutela constitucional.

k) Mas, mais, se os 'ofendidos' no crime de violação de segredo de justiça forem os arguidos no processo criminal originário (em que a violação foi perpetrada), o interesse constitucional da tutela dos direitos de defesa do arguido e o princípio da presunção de inocência (artigo 32.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa) impõem uma tutela do 'ofendido' ao abrigo do tipo penal de violação de segredo de justiça.

l) Ou seja, uma interpretação conforme aos artigos 1.º, 26.º, 32.º, n.os 1, 2 e 7, 202.º e 203.º da Constituição da República Portuguesa e ao disposto nos artigos 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e 371.º do Código Penal impõe o reconhecimento de um triplo fundamento para a incriminação da violação do segredo de justiça e, consequentemente, legitimidade do ofendido arguido no processo 'violado' - para se constituir como assistente.

m) Outra interpretação da norma constante do artigo 68.º do Código de Processo Penal - sobre a noção de ofendido titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação - e do artigo 371.º do Código Penal sobre qual o interesse protegido por este tipo penal - constitui interpretação restritiva dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos em geral e, máxime, dos cidadãos arguidos (titulares dos direitos fundamentais superiormente tutelados pelas normas constitucionais indicadas).

n) A interpretação restritiva sustentada pelas instâncias configura uma forma de restrição inconstitucional dos direitos fundamentais dos cidadãos, porque manifestamente desproporcionada face à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos - artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

o) A interpretação restritiva sustentada põe em causa a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais referidos - cf. o artigo 18.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (i. e., não se aceita tal aplicação dos artigos 68.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 371.º do Código Penal, porque violadora do conteúdo de direitos fundamentais, tais como do direito de defesa do arguido, do princípio constitucional da presunção de inocência e dos direitos pessoais do ofendido, como seja o direito ao bom nome, reputação e privacidade).

p) A interpretação e aplicação defendida pelas instâncias recorridas restringe de modo inadmissível o direito fundamental ao acesso ao direito e aos tribunais por parte do ofendido - cf. o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

q) Com efeito, ao ser recusado o reconhecimento da legitimidade para a constituição como assistente ao particular ofendido pela prática do crime de violação de segredo de justiça, este vê restringidos de modo inadmissível os seus direitos de intervenção processual (seja no sentido de colaborador com o Ministério Público seja no sentido de controlo da actividade deste).

r) O sentido da interpretação e aplicação normativa recorrida deixa o ofendido (arguido) - que presencia a violação de segredo de justiça, que vê prejudicados os seus direitos de defesa em sede penal, que vê ser posto em causa o seu direito fundamental à presunção de inocência e os demais direitos e valores pessoais protegidos constitucionalmente - sem qualquer direito de acção jurisdicional, não lhe sendo permitido intervir, colaborar ou mesmo controlar o exercício da acção penal do titular público de tal direito de acção.

s) Termos em que se conclui [sob pena de inconstitucionalidade da interpretação e aplicação do artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal] que a disposição normativa adjectiva constante do artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal é inconstitucional por não reconhecer legitimidade ao ofendido pelo crime de violação de segredo de justiça previsto e punido pelo artigo 371.º do Código Penal - para se constituir como assistente, quando tal ofendido seja o arguido no processo em relação ao qual se verificou a violação de segredo."

O representante do Ministério Público em funções junto deste Tribunal, na alegação que formulou, concluiu do seguinte jeito:

"1.º Não é inconstitucional a norma procedimental constante do artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, interpretada em termos de a legitimidade do assistente depender da titularidade pelo requerente de um interesse directa e imediatamente tutelado pela norma incriminadora em causa.

2.º Não viola os princípios da legalidade, da necessidade e da proporcionalidade a interpretação normativa do tipo legal de violação do segredo de justiça, plasmado no artigo 371.º do Código Penal, que se traduz em considerar como bem jurídico directa e imedia tamente titulado através de tal norma incriminadora o interesse público na boa realização ou administração da justiça.

3.º Na verdade, o legislador penal goza de uma ampla discricionariedade legislativa na construção dos diferentes tipos penais e na determinação dos bens ou valores jurídicos através deles essencialmente tutelados, só afrontando os referidos princípios constitucionais as soluções legislativas que se revelem manifesta e ostensivamente violadoras de tais princípios."

Cumpre decidir.

II - 3 - Está, no vertente recurso, em causa saber se a alínea a) do n.º 1 do artigo 68.º do Código de Processo Penal, conjugadamente com o artigo 371.º do Código Penal, é, ou não, desconforme com a lei fundamental, interpretadas que sejam aquelas disposições por forma a não permitir que o arguido num processo em que se indicia ter sido violado o segredo de justiça se constitua como assistente nos autos que têm por objecto a apreciação da indiciada violação.

Destarte, deparamo-nos, no caso em apreço, com um conjunto de normas, sendo uma de índole substantiva e outra de índole procedimental, sustentando o recorrente a desconformidade constitucional de ambas.

A primeira, no passo em que não deve ser defendido que o bem jurídico essencial ou primordialmente protegido pela incriminação - in casu a tipificação da violação do segredo de justiça - é o interesse do Estado na boa administração da justiça.

A segunda, por um lado - e ao conclui-se pela justeza da perspectiva seguida pelo impugnante, ou seja, a de, em primeira linha, os bens jurídicos protegidos pela incriminação deverem também ser considerados como incluindo a protecção da privacidade, do bom nome e reputação e a presunção de inocência do arguido indiciado no crime de violação do segredo de justiça -, no ponto em que se não deve deixar de admitir aquele arguido a intervir como assistente nos autos em que se averigua aquela violação; e, por outro, na medida em que uma interpretação mais restritiva do preceito ínsito na alínea a) do n.º 1 do artigo 68.º do Código de Processo Penal sobre a noção dos titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação se afigura como restritiva dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, em especial dos arguidos no tipo de crime em questão.

O aresto ora sob censura, como deflui da transcrição supra-efectuada, entendeu que a lesão dos bens jurídicos particulares que se pode surpreender pela tipificação consagrada no artigo 371.º do Código Penal apenas mediata ou indirectamente constitui a ratio daquele preceito. E, por isso, atendendo a que a alínea a) do n.º 1 do artigo 68.º do Código de Processo Penal dispõe que somente podem constituir-se como assistentes os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, tendo em conta que interpretou esta norma no sentido de que na mesma se não contemplam senão os casos em aquela "especial protecção" há-de ser imediata e directa, e como, na situação então em espécie, isso não ocorria, o recorrente não deveria ser admitido a intervir como assistente.

Vejamos, pois.

4 - Comecemos pela análise do que se consagra na alínea a) do n.º 1 do artigo 68.º do Código de Processo Penal, interpretada que seja numa dimensão normativa de harmonia com a qual somente é consentido aos titulares dos interesses imediata ou directamente protegidos pela incriminação constituírem-se como assistentes.

Neste particular, o Tribunal perfilha a óptica segundo a qual uma tal interpretação não enferma do vício de incompatibilidade com a lei fundamental.

Muito embora o n.º 7 do artigo 32.º da Constituição consagre que o ofendido tem o direito de intervir no processo, o que é certo é que as formas ou meios de intervenção são, pelo diploma básico, remetidas para a lei ordinária.

Em face de uma tal consagração, nem sequer se poderia talvez dizer que seria liminarmente de rejeitar, por se apresentar, desde logo e de todo em todo, como não curial uma posição que defendesse que, inclusivamente, na lei adjectiva criminal portuguesa (à semelhança de muitos outros sistemas processuais penais pertencentes a países em cujas respectivas leis fundamentais se lobrigam princípios e direitos fundamentais penais e processuais penais semelhantes aos que se descortinam na nossa Constituição), a figura do assistente não era algo que fosse imposto por esta.

Mas, seja como for, o que para o Tribunal resulta indiscutível é que a remissão que a Constituição faz para a lei ordinária quanto aos modos e formas como o ofendido tem o direito de intervir no processo permite ao órgão legislativo emitente dela que, na sua liberdade de conformação, venha a estabelecer que quem seja considerado como titular de direitos ou interesses reflexamente protegidos por uma dada infracção criminal não possa intervir como assistente (ainda que, por outras vias - verbi gratia, intervindo no processo deduzindo pedidos indemnizatórios, dando conhecimento ao titular da acção penal de material probatório tocante à demonstração do ilícito e podendo requerer a intervenção do imediato superior hierárquico daquele titular nos casos de arquivamento do inquérito - se lhe facultarem meios para uma intervenção processual).

E, nesta senda, é de considerar como não feridente da lei fundamental uma norma (ainda que alcançada por interpretação) que unicamente atenda, para os efeitos de permissão na constituição do ofendido como assistente, à circunstância de aqueles direitos ou interesses serem a razão directa e imediata (ou seja, o leit motiv situado em primeira linha) que levou o legislador à tipificação da infracção criminal.

Esta posição é, aliás, extraível da fundamentação carreada ao Acórdão deste Tribunal n.º 647/98 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 3 de Março de 1999), e da qual se extracta o seguinte passo:

"Mas, ainda que se entenda que o que o recorrente questiona é a constitucionalidade da norma, na medida em que não permite a constituição de assistente quando está em causa o crime público de desobediência - única norma que foi efectivamente aplicada nos autos - , a mesma não se mostra inconstitucional.

A norma em causa atribui a qualidade de ofendidos a 'titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação', reconhecendo a estes a legitimidade para agir, que é pressuposto processual geral. Não se reconhecem aqui específicos interesses particulares directamente decorrentes da actuação delituosa.

Ora, o crime de desobediência visa proteger interesses específicos do Estado, mais concretamente, como refere o Ministério Público nas suas alegações, 'no acatamento pelos particulares de certas decisões das autoridades públicas que os vinculam'. Assim, é o Estado o ofendido, porque legítimo titular do interesse ofendido pela prática do crime de desobediência.

E tal interpretação em nada briga com o disposto no artigo 202.º, n.º 2, da Constituição - correspondente, na versão, anterior à Lei Constitucional 1197, de 20 de Setembro, ao artigo 205.º, n.º 2 -, que determina que 'na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados', norma em que se não descortina qualquer imposição do reconhecimento de legitimidade a particulares para a constituição como assistentes em processo penal, em crimes como o de desobediência, em que o único titular do interesse protegido é o próprio Estado.

Na verdade, uma tese da qual decorresse que o diploma básico impunha a obrigatoriedade da constituição como assistente em todos os processos criminais em que se averigúem ilícitos criminais nos quais, indirecta, mediata ou reflexamente, podem ser atingidos bens, direitos ou interesses pessoais (não sendo estes, porém, aqueles que, primordialmente, foram os tidos em conta para a tipificação incriminadora), designadamente porque, assim, o ofendido deixava de colaborar e controlar o exercício da acção penal, não deixaria de ser perspectivada como tendo por base uma óptica de acordo com a qual isso representaria uma certa modelação 'privatizadora' - ou, outros dirão, 'participativa' - da acção penal, acção esta que aquele diploma básico quis que fosse prosseguida e cometida por uma entidade estadual pública própria - o Ministério Público (cf. o artigo 219.º, n.º 1, da Constituição).

De outra banda, não pode olvidar-se que nem por isso estão totalmente vedados aos titulares daqueles interesses formas ou possibilidades de intervenção processual com vista à respectiva prossecução, nos moldes acima exemplificados.

Há, desta sorte, que concluir que a interpretação normativa levada a efeito pelo aresto sob sindicância quanto à alínea a) do n.º 1 do artigo 68.º do Código de Processo Penal se não mostra constitucionalmente insolvente.

5 - A conclusão a que se chegou, todavia, não é, por si, suficiente para a dilucidação do problema.

Questão é que se conclua também que o artigo 371.º do Código Penal é contraditório com a Constituição, ao ser-lhe conferida uma dimensão interpretativa da qual resulte que a tutela dos direitos de defesa, de protecção da intimidade, do bom nome e reputação e da presunção de inocência de um arguido num processo relativamente ao qual se indiciou a violação do segredo de justiça não é de atender como um bem ou interesse imediata e directamente protegido por essa infracção.

Foi aquela dimensão normativa que, efectivamente, como se viu, foi adoptada pela decisão tomada no Tribunal da Relação de Lisboa e de que ora se cura.

Não cabe ao Tribunal Constitucional, como é claro, atentos os seus poderes cognitivos, aferir se essa interpretação é a mais consentânea do ponto de vista dogmático e tendo em conta o teor do preceito (cf., sobre o tema, por entre outros dados doutrinários e jurisprudenciais, Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, 2.ª ed., vol. 2.º, p. 1173, Artur Costa, na Revista do Ministério Público, n.º 66, p. 49, Agostinho Eiras, Segredo de Justiça e Controlo de Dados Pessoais Informatizados, pp. 13 e segs., Menezes Leitão, 'O segredo de justiça em processo penal', nos Estudos Comemorativos do 150.º Aniversário do Tribunal da Boa Hora, pp. 227 e segs., o parecer 121/80 da Procuradoria-Geral da República, publicado nos Pareceres da Procuradoria-Geral da República, vol. 7.º, pp. 62 e segs., e 'Parte Especial', in Comentário Conimbricence do Código Penal, t. III, pp. 642 e segs.).

O que lhe cabe, isso sim, é saber se, com uma interpretação como a que foi perfilhada, são 'tocados', em termos constitucionalmente censuráveis, preceitos ou princípios que defluem da lei fundamental.

5.1 - Desde logo há que sublinhar que, como este Tribunal tem realçado, o legislador ordinário dispõe de uma ampla margem de liberdade conformativa para estabelecer quais as condutas que devem ser tidas como constitutivas de um ilícito criminal, o que não deixa de implicar a liberdade de ponderação dos bens ou interesses que, em primeira linha, se quiseram proteger com o gizar da infracção, e isto independentemente de se não rejeitar à partida a possibilidade uma determinada vinculação do legislador ordinário àquilo que se pode designar como "conceito material de crime".

Ponto é que se não lobrigue uma patente desproporcionalidade na incriminação (o que o mesmo é dizer uma manifesta falta de dignidade punitiva) ou, por outro lado, que haja bens, direitos ou interesses cuja relevância até decorre da Constituição e cuja violação não pudesse deixar de impor ao legislador a incriminação das condutas deles violadoras (cf., de entre muitos e por mais recente, o Acórdão deste Tribunal n.º 290/97, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 15 de Maio de 1997).

Mesmo que seja certo que os direitos à privacidade, bom nome e reputação e o direito a não serem coarctados os direitos de defesa e de presunção de inocência dos arguidos reclamam, em nome da respectiva defesa, a consagração da previsão de ilícitos respeitantes às condutas que os ofendem - pois que só pela incriminação, que não seria então postergada pelo princípio da necessidade das respectivas penas, se atingiria uma sua eficaz protecção -, então, o que se não pode passar em claro é que, na legislação ordinária, como sabido é, tais incriminações se encontram consagradas.

O que vale por dizer que a defesa e protecção daqueles direitos, mesmo a ser reclamada constitucionalmente - pois só assim teria eficácia - através de uma criminalização, está assegurada.

Seria, aliás, legítima a interrogação no sentido de saber se, e em primeiro lugar, a Constituição impõe uma criminalização de condutas atentatórias de determinados direitos ou interesses pessoais e fundamentais, antes se "contentando" com a inequívoca possibilidade de os mesmos, no ordenamento jurídico ordinário, encontrarem adequada tutela por outros meios que não só o resultante da criminalização (cf., neste ponto, Roxin, Derecho Penal, Parte General Civitas, Madrid, 1997, pp. 49 e segs., Franco Bricola, Legalità e Crisi - L'art. 25, Commi 20 e 30 della Costituzione revisitato alla fine degli anni 70,1980, e Maria da Conceição Ferreira da Cunha, A Constituição e Crime, Uma Perspectiva da Criminalização e da Descriminalização, máxime, pp. 115 e segs.).

Mas, se isto é assim, e porque se não põe em causa que é lícito ao legislador consagrar (respeitados que sejam os parâmetros já assinalados) a existência de ilícitos que visem imediata e directamente ou em primeira linha outros interesses que não os acima indicados, mesmo que estes últimos se vejam, de modo mediato ou reflexo, "tocados", também lhe é lícito modelar a incriminação por forma a não atender aos segundos como aqueles que ditaram a finalidade da mencionada incriminação (isto é, não se lhe impõe que, aquando da consagração desses ilícitos, tenha, necessariamente, de considerar os interesses "de ordem pessoal" postados no mesmo plano, em paralelismo ou paridade com dos de "ordem não pessoal").

Uma tal modelação por parte do legislador, consequentemente, não se apresenta como afrontadora dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, antes se apresentando (tendo em atenção que os interesses de "ordem pessoal" do ofendido encontram tutela, quer através de incriminação das condutas que os lesem, quer através da instituição de mecanismos de ordem processual que não afastam a intervenção desse ofendido) como uma forma de compatibilização e harmonização de interesses - os de carácter meramente ou primordialmente público e os de ordem particular.

Não se vê, deste modo, em como é que uma solução como a decorrente da interpretação normativa levada a efeito pelo aresto sub iudicio poderia conduzir à postergação dos direito de defesa do arguido no processo em que se indicia a prática, por outrem, de comportamentos subsumíveis à violação do segredo de justiça - ou a uma restrição desnecessária ou desproporcionada dos respectivos direitos, liberdades e garantias (viu-se já que se trata de uma compatibilização ou harmonização de interesses, e não de uma restrição) que, de todo, não são "tocados" na sua extensão e conteúdo essencial, designadamente não sendo coarctado o direito de acesso aos tribunais, aqui se incluindo o denominado "direito de acção judicial" (como se expôs acima, o ofendido continua a ter ao seu dispor, para além de algumas formas de intervenção no processo instaurado pelo crime de violação do segredo de justiça, meios para desencadear "acção criminal" com vista à defesa dos seus direitos ao bom nome, reputação, privacidade e lesão do princípio de presunção de inocência).

III - Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em 15 unidades de conta.

Lisboa, 18 de Dezembro de 2001- - Bravo Serra (relator) - Maria Fernanda Palma - Paulo Mota Pinto - Guilherme da Fonseca (com declaração de voto junta) - José Manuel Cardoso da Costa.

Declaração de voto

1 - Votei o acórdão, mas com dúvidas sobre se a solução encontrada é a melhor com vista à protecção do ofendido e denunciante do crime de violação do segredo de justiça, que se quer constituir assistente nos respectivos autos.

Na verdade, no quadro legal da noção de "titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação", que deflui do artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, e fundando o direito do denunciante a constituir-se assistente no processo criminal, pode perfeitamente caber o direito de um arguido intervir como assistente nos autos em que se averigua o crime de violação do segredo de justiça, por ele denunciado.

Não se questionam os poderes do órgão legislativo a que se refere o acórdão quanto à regulação dos "modos e formas como o ofendido tem o direito de intervir no processo" e quanto a "estabelecer para as condutas que devem ser tidas como constitutivas de um ilícito criminal", domínio em que, talqualmente se diz no acórdão "o legislador ordinário dispõe de uma ampla margem de liberdade conformativa".

E também não se vai ao ponto, talqualmente regista o acórdão, de defender "uma tese da qual decorresse que o diploma básico impunha a obrigatoriedade da constituição como assistente em todos os processo criminais em que se averigúem ilícitos criminais nos quais, indirecta, mediata ou reflexamente, podem ser atingidos bens, direitos ou interesses pessoais (não sendo estes, porém, aqueles que, primordialmente, foram os tidos em conta para a tipificação incriminadora)".

2 - Mas já se pode duvidar seriamente do acerto constitucional de uma interpretação da questionada alínea a) do n.º 1 do artigo 68.º, "de harmonia com a qual somente é consentido aos titulares dos interesses imediata ou directamente protegidos pela incriminação constituírem-se como assistentes", excluindo-se do círculo desses titulares os arguidos atingidos nos seus interesses pela violação do segredo de justiça.

Muito embora o acórdão se esforce por afirmar, no quadro de um "direito de acção judicial", que "os interesses de "ordem pessoal" do ofendido encontram tutela, quer através de incriminação das condutas que os lesem quer através da instituição de mecanismos de ordem processual que não afastam a intervenção desse ofendido", a verdade é que acaba por secundarizar tais interesses, perfilhando a dita interpretação.

"Ao estabelecimento do segredo de justiça, em processo penal, preside fundamentalmente uma ordem tríplice de razões. Em primeiro lugar, o interesse no bom êxito da investigação que estiver em curso. É realista pensar-se que, ao suspeito ou arguido que tenha sido autor de um crime, não interessa, em regra, a descoberta da verdade. Interessar-lhe-á, sim, o maior benefício pessoal possível, o que pode passar pela destruição de provas ou por dificultar o acesso às mesmas. A justiça penal exigirá portanto a criação de condições para que a investigação seja eficaz. Ao denunciado, ao suspeito ou ao arguido pode interessar que certos factos que lhe imputam, ou em que se encontre mesmo envolvido, não sejam do conhecimento público, porque podem não vir a provar-se. E esta pretensão é tanto mais de atender quanto mais frágil for a base em que assenta a convicção da autoridade judiciária. O mesmo é dizer quanto menos avançado estiver o processo. A garantia de presunção de inocência tem aliás esta incidência extraprocessual: possibilitar que o arguido seja tratado, no seu relacionamento social, o mais possível da forma que seria tratado se não fosse parte num processo crime ("Comunicação social e segredo de justiça hoje", intervenção do Procurador-Geral da República na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em 12 de Outubro de 2001).

Ora, essa ideia de tratar o arguido, "no seu relacionamento social, o mais possível da forma que seria tratado se não fosse parte num processo crime" é suficientemente forte e densifïcada para concluir que ele, como cidadão que é, tem direito à protecção da sua dignidade e à protecção da intimidade da sua vida privada (é o direito à protecção em geral da privacidade das pessoas, que podem ser inocentes). O arguido, vendo publicamente postos em causa o bom nome, a honra e a reputação com a violação do segredo de justiça, é também titular dos interesses protegidos - interesses de "ordem pessoal" - pela incriminação dessa violação, e não haveria que distinguir de entre esses os interesses imediatos ou directos e os mediatos ou indirectos (a norma, aliás, não parece consentir tal distinção, mas é nela que se baseia o acórdão).

Fica, pois, a dúvida, e não queria de modo algum que ficasse silenciada para que se continue a reflectir sobre tudo isto. - Guilherme da Fonseca.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1981663.dre.pdf .

Ligações deste documento

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  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1999-01-13 - Lei 2/99 - Assembleia da República

    Aprova a Lei de Imprensa.

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