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Acórdão 262/2001/T, de 18 de Julho

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Texto do documento

Acórdão 262/2001/T. Const. - Processo 274/2001. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1 - Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que figura como recorrente Joaquim Manuel dos Santos Pires e como recorrido o Ministério Público, a 6.ª Vara Criminal de Lisboa, por acórdão de 5 de Novembro de 1999, deu como provada a seguinte factualidade:

1) O arguido Joaquim Pires, em data não apurada, contactou com desconhecido, residente na Colômbia, combinando o envio de um livro com estupefacientes, via CTT;

2) Para tal o arguido Joaquim Pires forneceu a identidade de António João Mileu Branquinho e a morada de Rua de Inácio Pardelhas Sanches, pátio 123, porta 16, 1070 Lisboa;

3) O arguido Joaquim Pires sabia que o destinatário já havia falecido e que conhecera por ser irmão de sua cunhada Mónica Branquinho, continuando esta a morar naquele endereço, facto conhecido pelo arguido Joaquim Pires;

4) A referida encomenda, composta por um livro contendo dissimulado na respectiva capa 197,818 g de cocaína, chegou a Lisboa no dia 12 de Janeiro de 1999;

5) Com vista ao levantamento da encomenda foi deixado um aviso de levantamento no n.º 14 do pátio supra-referido, uma vez que no n.º 16 ninguém se encontrava;

6) Na posse desse aviso o arguido Joaquim Pires entregou-o ao arguido Francisco Pires, seu irmão, para que este procedesse ao levantamento da encomenda;

7) O arguido Francisco Pires solicitou a um colega seu, João Neto, também da Post Express, para proceder ao levantamento da encomenda que, uma vez na sua posse, entregaria ao seu irmão, o arguido Joaquim Pires, o que aquele fez;

8) O arguido Joaquim Pires conhecia a natureza estupefaciente do produto que destinava à venda, sendo o telemóvel Philips, modelo Twist, utilizado por este arguido nessa actividade;

9) O arguido Joaquim Pires agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei;

do arguido Joaquim Pires:

10) Vive com a mãe, uma irmã e um cunhado e tem um filho com 10 anos de idade;

11) Vive numa casa arrendada;

12) Fez a 4.ª classe;

13) Auferia cerca de 5000$00 por dia no exercício da sua actividade profissional;

14) Apresenta modesta condição social e precária situação económica; e

15) Foi julgado e condenado por acórdão do 4.º Juízo Criminal, 1.ª Secção, de Lisboa, processo 100/93, por factos praticados em 2 de Janeiro de 1992 e pela prática de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas agravado, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1, e 24.º, alínea c), do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de oito anos e seis meses de prisão.

Em consequência, condenou Joaquim Manuel dos Santos Pires como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível nos termos do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de nove anos de prisão.

2 - Joaquim Manuel dos Santos Pires interpôs recurso do Acórdão de 5 de Novembro de 1999 para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas alegações, o recorrente sustentou que o facto praticado devia ser qualificado como tentativa de tráfico de estupefacientes, uma vez que nunca chegou a ter a "disponibilidade sobre o produto" proibido. Não foi suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa.

O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 17 de Fevereiro de 2000, julgou-se incompetente para apreciar o objecto do recurso, uma vez que o recorrente havia suscitado "erro notório na apreciação da prova". Consequentemente, os autos foram remetidos ao Tribunal da Relação de Lisboa.

O Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 2 de Novembro de 2000, considerou o seguinte:

"Alega o recorrente que nunca teve disponibilidade sobre a droga que foi apreendida, já que a mesma nunca foi levantada dos CTT por ele ou por outrém a seu mando, daí extraindo a ilação que a falta de disponibilidade da sua parte sobre o produto estupefaciente impedia-o de exercer qualquer acto relativo ao mesmo, sendo que, consequentemente, não se pode ter por verificado o tipo objectivo do crime previsto no artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93.

Aduz ainda que se está perante um crime impossível, dado que a encomenda postal era feita em nome de pessoa já falecida e por essa razão não pode proceder ao seu levantamento.

Não lhe assiste, porém, razão.

Com efeito, decorrendo da factualidade apurada que o arguido e ora recorrente contactou com desconhecido residente na Colômbia, combinando o envio, via CTT, de um livro contendo estupefaciente, fornecendo para o efeito a identidade e morada de um indivíduo falecido, o que era do seu conhecimento, que a referida encomenda, composta por um livro contendo dissimulado na capa 197,818 g de cocaína, chegou a Lisboa no dia 12 de Janeiro de 1999, que na posse do aviso de levantamento entregou-o a seu irmão Francisco Pires para que este procedesse ao levantamento da encomenda, que por sua vez entregou a outrém, e que ele, Joaquim Pires, conhecia a natureza estupefaciente do produto que destinava à venda e que agiu livre e conscientemente, sabendo bem que a sua conduta era vedada por lei, mostram-se preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do mencionado ilícito.

Com efeito, da factualidade dada como provada resulta uma actuação, voluntária e consciente, desenvolvida para a importação de droga através de uma encomenda postal, conduta essa que o arguido sabia ser vedada por lei.

E a circunstância de o recorrente não haver tido qualquer contacto físico com a droga, que foi apreendida, não é caso de configuração do ilícito na forma de tentativa, antes havendo de considerar-se ter ocorrido a sua consumação.

É que o crime de tráfico de estupefacientes é um crime exaurido, ''designação que significa precisamente ilícitos criminais que ficam consumados através da comissão de um só acto de execução, ainda que sem se chegar à realização completa e integral do tipo legal preenchido pelo agente.

Os 'crimes exauridos' são aqueles a que, no direito alemão, se chama 'delitos de empreendimento' (cf. Jescheck, tradução espanhola, edição de 1981, t. I, p. 362, e t. II, p. 715), ou, noutra terminologia, 'crimes que se executem no resultado ou com o resultado', ou 'crimes excutidos', isto é, crimes que, como as falsificações e outros, ficam perfeitos com a comissão de um só acto gerador do resultado típico [...].'' (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Abril de 1996, in Colectânea de Jurisprudência - Supremo Tribunal de Justiça, 1996, t. II, 172).

E, como se refere ainda no citado aresto, ''Enquadram-se nesta figura criminal, por exemplo, os crimes de uso de documento falso, de 'contrafacção de moeda' [...], e de tráfico de estupefacientes, nas suas diversas modalidades, em que igualmente não é possível uma actuação enquadrável na figura da tentativa, visto que a previsão dos crimes de tráfico de estupefacientes engloba todos os actos possíveis que poderiam, teoricamente, corresponder a uma tentativa''.

O sentido deste tipo de delito é o de agravar a reacção jurídico-penal, equiparando tentativa e consumação e assim impedindo a atenuação da pena na tentativa (cf. Jescheck, obra referida, t. II, p. 715).

In casu, como refere o digno magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo, a consumação verificou-se no momento em que o recorrente, após a entrada da droga no País, recebe o aviso para levantamento da mesma.

É que a consumação produz-se no momento em que se preenchem todos os elementos do tipo não dependendo da concretização do fim visado alcançar pelo agente.

E também em decorrência do que já se deixou aflorado, dada a facilidade de preenchimento do ilícito típico, não se verifica in casu, ao invés do propendido pelo recorrente, uma situação de tentativa impossível em virtude da inaptidão do meio empregue.

'Inaptidão do meio é sinónimo de inidoneidade e de inadequação do meio e, por isso, a tentativa impossível é também denominada tentativa inidónea e tentativa inadequada [...]

A lei não exige apenas a idoneidade do meio para que haja tentativa, mas que o meio empregado não seja manifestamente inidóneo ou inadequado' (v. Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português - Parte Geral II, p. 248).

Modo manifesto de inaptidão do meio que tem de resultar evidente para a generalidade das pessoas.

Ora, atento um juízo ex ante de pronose póstuma era plausível e previsível o levantamento da encomenda, não obstante a mesma ser dirigida a um destinatário falecido, dado o recorrente ter em seu poder o aviso de levantamento e contar com os conhecimentos do irmão, funcionário da Post Express, para o levantamento da mesma.

Não ocorre, pois, inidoneidade do meio empregue."

Nessa medida, foi negado provimento ao recurso.

3 - Joaquim Manuel dos Santos Pires interpôs recurso do Acórdão de 2 de Novembro de 2000 para o Supremo Tribunal de Justiça.

Nas respectivas alegações, o recorrente afirmou o seguinte:

"Considerou-se na decisão recorrida que se devia ter como consumado o crime no momento em que o recorrente, após a entrada da droga no País, recebe o aviso para o levantamento da mesma.

O recorrente sabe que o crime do artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93 é um crime de perigo, em que a mera detenção já é punível.

Mas esta ideia não impede a consideração de para se ter como verificado o crime de tráfico ser necessário a disponibilidade do agente sobre a droga, quer directamente, quer por interposta pessoa a seu mando, ou seja, ter o agente a posse da droga, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Setembro de 1992, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 419, pp. 464 a 467.

Então há que estabelecer a fronteira entre crime consumado e crime não consumado, sendo certo, para nós, que o tipo objectivo do crime só fica preenchido quando o agente tiver disponibilidade sobre a droga.

No caso concreto, em nossa opinião, não se apurou que o agente tivesse tido a disponiblidade sobre o produto estupefaciente e muito menos a posse desse mesmo produto, tendo em consideração que o referido produto nunca passou para a esfera de disponibilidade do agente, já que não foi levantado dos Correios, nem pelo agente nem por interposta pessoa a seu mando.

Para o recorrente, ter o aviso postal para o levantamento ainda não lhe permite ter a disponibilidade sobre o produto estupefaciente, porque ainda não pode exercer qualquer acto sobre esse produto.

O crime só ficaria consumado se o agente levantasse, quer pessoalmente, quer por interposta pessoa a encomenda dos CTT.

Não se pode assim considerar que os actos de execução a que alude o artigo 22.º do mesmo diploma, se reconvertam em crime consumado, ou façam parte do tipo de crime, quando esteja em causa o ilícito do artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93, o que levaria à situação de não existir tentativa nos crimes de tráfico, o que de forma alguma se pode aceitar, pela discrepância operada, desde logo, em sede de medidas da pena por contraposição à gravidade das condutas.

Não se vislumbra na lei penal e no Decreto-Lei 15/93 qualquer tomada de posição por parte do legislador que impeça a aplicação da tentativa a determinados tipos de crime.

Assim, a decisão recorrida violou o disposto no artigo 22.º, n.os 1 e 2, alínea a), do Código Penal, ao não enquadrar a conduta do recorrente, na prática de crime sob a forma tentada.

Consequentemente seria também inconstitucional a interpretação da norma do artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93, no sentido de não ser aplicável a este tipo de crime o disposto no artigo 22.º, n.os 1 e 2, alíneas a), b) e c), do Código Penal, por se considerar que os actos de execução relacionados com este ilícito são elementos do tipo de crime ou correspondem a crime consumado, por violação do disposto nos artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Com efeito ao estabelecer-se na Constituição a proibição de condenação, senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção, não se pode deixar de verificar que a exclusão da figura da tentativa nos crimes do artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93, como circunstância atenuante, inculcaria neste caso a punição para além do que está estipulado legalmente.

Sendo que por outro lado o processo criminal deve assegurar todas as garantias de defesa, o que não se verificaria, caso se considerasse que nestes tipos de crime não há lugar a tentativa, o que acarreta um agravamento sensível da posição do agente."

O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 7 de Março de 2001, entendeu o seguinte:

Vejamos a 1.ª questão.

Argumenta o recorrente que, embora seja o crime de tráfico de estupefacientes um crime de perigo em que é punível a mera detenção, tal não impede que se possa verificar a simples tentativa - o que seria a situação concreta -, uma vez que não se tinha apurado que "o agente tivesse tido a disponibilidade sobre o produto estupefaciente e muito menos a posse desse mesmo produto, tendo em consideração que o referido produto nunca passou para a esfera de disponibilidade do agente, já que não foi levantado dos Correios, nem pelo agente nem por interposta pessoa a seu mando".

O Tribunal da Relação de Lisboa, cuja decisão ora se impugna, já dilucidou esta questão e cremos que sem margem para reparos.

Aí se escreve com efeito o seguinte:

"[...] da factualidade dada como provada resulta uma actuação, voluntária e consciente, desenvolvida para a importação de droga através de uma encomenda postal, conduta essa que o arguido sabia ser vedada por lei.

E a circunstância de o recorrente não haver tido qualquer contacto físico com a droga, que foi apreendida, não é caso de configuração do ilícito na forma de tentativa, antes havendo de considerar-se ter ocorrido a sua consumação", uma vez que, sendo um crime exaurido a consumação verifica-se "com a comissão de um só acto gerador do resultado típico."

Decidiu bem o Tribunal da Relação de Lisboa.

Na verdade, estamos em face mesmo de um "crime exaurido", "crime de empreendimento" ou "crime excutido", que se vem caracterizando como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no tipo.

Ou, como se escreveu no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Abril de 1996, Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, IV, n.º 2, pp. 170 e segs., crime exaurido é "uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de os mesmos corresponderem a uma execução completa"; ou seja, "aquele em que o resultado típico se obtém logo pela realização inicial da conduta ilícita".

Isto quer dizer que o "primeiro passo" dado pelo agente na senda do iter criminis já constitui o preenchimento do tipo, valendo os passos seguintes apenas para efeitos de estabelecimento da medida concreta da pena a impor.

Daí que não seja possível conceber para tais crimes - de que o tráfico de estupefacientes é um exemplo vivo - quer a tentativa, quer a desistência, "compensando-se" a falta desta com a figura do "arrependido", susceptível de conduzir à menorização da censura.

De resto, para além do citado acórdão, também se poderia indicar outro mais antigo, o Acórdão da Relação do Porto de 11 de Maio de 1983, onde, de forma lapidar, se escreveu:

"[...] o crime consumou-se tão-só com a realização do contrato entre os RR. e o expedidor, no estrangeiro, do produto em causa, e com a entrada deste no País, tal qual como quem, num estabelecimento comercial, escolhe um objecto que quer, o paga, e acaba por deixar, ou como o comerciante que se encarrega de mandar a coisa vendida a casa do cliente e aquela nunca é recebida, jamais ali chega. Se ninguém porá em dúvida que em qualquer destas hipóteses a compra se efectuou, tem de, do mesmo modo, aceitar que, no caso subjacente, a importação de estupefacientes teve lugar."

Face a tudo quanto dito fica é desde logo óbvio que nada há que censurar, nesse aspecto, à decisão recorrida.

Em consequência, considerou não haver lugar à qualificação dos factos como tentativa, procedendo apenas à redução da pena concreta, que fixou em cinco anos.

4 - Joaquim Manuel dos Santos Pires interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, afirmando o seguinte:

"Joaquim Manuel dos Santos Pires, notificado do mui douto acórdão proferido nos autos, pese embora esse facto, pretende recorrer do mesmo para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei 28/82.

O recurso deverá subir imediatamente, nos autos e com efeito suspensivo, nos termos dos artigos 75.º-A, n.º 1, e 78.º, n.º 3, da Lei 28/82.

O recorrente arguiu a inconstitucionalidade da norma do artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93, se interpretada no sentido de não ser aplicável a este tipo de crime o disposto no artigo 22.º, n.os 1 e 2, alíneas a), b) e c), do Código Penal, por se considerar que os actos de execução relacionados com este ilícito são elementos do tipo de crime ou correspondem a crime consumado, por violação do disposto nos artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, da Constituição da República Portuguesa, na motivação e conclusões do seu recurso para o Supremo Tribunal de Justiça."

Junto do Tribunal Constitucional o recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:

"1 - O recorrente foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 15/93;

2 - Nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e nas conclusões desse recurso o recorrente arguiu a inconstitucionalidade do artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93, se interpretado no sentido de não ser aplicável a este tipo de crime a figura da tentativa do artigo 22.º, n.os 1 e 2, alíneas a), b) e c), do Código Penal, por se considerar que os actos de execução relacionados com este ilícito são elementos do tipo de crime ou correspondem a crime consumado, por violação do disposto nos artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;

3 - Efectivamente a este propósito considerou-se na decisão recorrida que o crime do artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93 é uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de os mesmos corresponderem a uma execução completa;

4 - O Decreto-Lei 15/93, designadamente o artigo 21.º do mesmo diploma, não contempla qualquer derrogação à lei penal, em particular, no sentido da exclusão da tentativa nestes tipos de crimes;

5 - Aliás, a figura da tentativa vem expressamente consignada no Decreto-Lei 15/93, artigo 26.º, n.º 2, crime em que a moldura penal não excede três anos de prisão, pelo que a interpretação da norma do artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93, no sentido de não existir tentativa nos crimes de tráfico, é também inconstitucional por violação do disposto nos artigos 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa;

6 - Também não se afigura que seja impossível fazer a distinção entre crime consumado e crime tentado, tendo em consideração que a multiplicidade de condutas a que alude o artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93 permitem perceber que só há crime consumado quando o agente tenha disponibilidade de exercício ou actuação sobre o estupefaciente e não ainda quando este não entrou nessa esfera de disponibilidade;

6 - Por outro lado verifica-se, nos termos do artigo 29.º, n.os 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, que ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção... e que ninguém pode sofrer pena mais grave do que a prevista no momento da conduta, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido;

7 - Ora, a exclusão da tentativa nos crimes do artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93 constitui-se claramente na aplicação de um regime punitivo mais severo, decorrente da não aplicação da lei criminal, designadamente da tentativa, como figura mitigada do crime ou ilícito;

8 - Assim é inconstitucional o artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93, se interpretado no sentido, de neste tipo de crimes não ser aplicável a figura da tentativa do artigo 22.º, n.os 1 e 2, alíneas a), b) e c), do Código Penal por se considerar que os actos de execução relacionados com este ilícito são elementos do tipo de crime ou correspondem a crime consumado, por violação do disposto no artigo 29.º, n.os 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos e noutros de direito doutamente supridos, deverá ser dado provimento ao recurso e por via do mesmo, ordenar-se a reforma da decisão em conformidade com o decidido, sobre a questão da inconstitucionalidade, fazendo-se assim total justiça."

Por seu turno o Ministério Público contra-alegou, concluindo o seguinte:

1) Não constitui questão de inconstitucionalidade normativa, sindicável pelo Tribunal Constitucional, a que se prende exclusivamente com a exacta definição da natureza de certo tipo penal, com vista a determinar quais os precisos actos de execução que determinam a respectiva consumação - em termos de pretender sustentar que viola o princípio da legalidade ou da tipicidade a interpretação da fattispecie que se basta com a prática de um único acto de execução para considerar consumado o ilícito;

2) Gozando o legislador penal de ampla margem de discricionariedade na definição da natureza dos concretos tipos penais e na delimitação dos elementos que integram a respectiva fattispecie, em termos de ditarem a consumação do crime, não viola qualquer preceito ou princípio constitucional a previsão do crime de tráfico de estupefacientes como crime "exaurido", cuja consumação se verifica com a comissão de um só acto gerador do resultado típico;

3) Termos em que não deverá, por inidoneidade do objecto, conhecer-se do recurso ou se assim se não entender, deverá o mesmo ser julgado improcedente.

Em resposta à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, o recorrente sustentou a improcedência da mesma, afirmando que pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a dimensão normativa do artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93 que exclui a possibilidade de o crime aí previsto ser cometido na forma tentada.

Cumpre decidir.

II - Fundamentação

A) Questão prévia

5 - O Tribunal da Relação de Lisboa e o Supremo Tribunal de Justiça (que nessa parte confirmou o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa) consideraram que o recorrente consumou como autor um crime de tráfico de estupefacientes, uma vez que o arguido procedeu à importação de um produto proibido (sublinhe-se que o legislador penal parifica no tipo incriminador a importação e a detenção de estupefacientes). No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça afirma-se expressamente que o crime de tráfico de estupefacientes não admite a tentativa.

O arguido, nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, insurgiu-se contra a qualificação dos factos como crime de tráfico de estupefacientes na forma consumada, uma vez que, na perspectiva sustentada, a factualidade apurada apenas permitiria a qualificação como detenção na forma tentada, por não ter havido efectiva disponibilidade sobre o produto. Na sequência de tal argumentação, o arguido sustentou a inconstitucionalidade da norma do referido artigo 21.º, quando interpretada no sentido de não ser aplicável a este tipo de crime a figura da tentativa.

O Ministério Público, invocando jurisprudência do Tribunal Constitucional (nomeadamente, o Acórdão 674/99), considera, porém, que "não constitui verdadeira questão de constitucionalidade normativa, susceptível de ser sindicada no domínio da fiscalização da constitucionalidade de normas, a que se prende, em exclusivo, com a exacta determinação ou definição dos elementos de cada tipo penal, de modo a considerar se o resultado interpretativo alcançado pelo tribunal a quo em certo caso concreto se conforma ou não com o princípio da legalidade". Na perspectiva do Ministério Público, "o que o recorrente, em termos substanciais, sustenta é que a interpretação judicial daquele tipo legal excede o consentido pelo princípio da legalidade penal, estendendo ou ampliando o respectivo domínio de aplicação, ao realizar uma interpretação de cariz extensiva ou analógica da referida fattispecie.

Primeiramente, sublinhar-se-á que o Tribunal Constitucional tem procedido, para efeito de conhecimento do objecto do recurso, à distinção de várias situações em que se impugna, na perspectiva da constitucionalidade, dimensões normativas que são o resultado de um processo interpretativo e aplicativo constitucionalmente regulado. Com efeito, no Acórdão 205/99 (Diário da República, 2.ª série, de 5 de Novembro de 1999), o Tribunal considerou não poder "deixar de controlar dimensões normativas referidas pelo julgador a uma norma legal ainda que resultantes de uma aplicação analógica, em casos em que estejam constitucionalmente vedados certos modos de interpretação ou a analogia". O Tribunal Constitucional sublinhou ainda que "o resultado do processo de interpretação ou criação normativa (tanto de meras dimensões normativas como de normas autónomas), ínsito na actividade interpretativa dos tribunais, não pode deixar de ser matéria de controlo da constitucionalidade pelos tribunais comuns e pelo Tribunal Constitucional, quando a própria Constituição exigir limites muito precisos a tais processos de interpretação ou criação normativa, não reconhecendo qualquer amplitude criativa ao julgado".

Contudo, não é apenas essa a questão que o recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional. Na verdade, como resulta das várias peças processuais transcritas supra, o recorrente pretende também que o Tribunal Constitucional aprecie a dimensão normativa do artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93, segundo a qual o crime aí previsto não admite a forma tentada, dimensão essa que fundamentou de modo expresso a decisão recorrida. É, desse modo, submetida à apreciação do Tribunal Constitucional uma dada dimensão normativa devidamente identificada. Não se trata, aí, de uma questão relativa à determinação ou definição dos elementos do tipo penal, como pretende o Ministério Público; trata-se, sim, da interpretação do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 15/93, no sentido de os crimes nesse preceito tipificados não admitirem a forma tentada.

Improcede, pois, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, pelo que o Tribunal Constitucional tomará conhecimento do objecto do presente recurso.

B) Apreciação do objecto do recurso

6 - A norma questionada tem a seguinte redacção:

"Artigo 21.º

Tráfico e outras actividades ilícitas

1 - Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.

..."

O Supremo Tribunal de Justiça considerou tal crime "como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no tipo", pelo que entendeu não ser "possível conceber para tais crimes [...] a tentativa".

O recorrente insurge-se contra este entendimento, sustentando a inconstitucionalidade da dimensão normativa do artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93, segundo a qual o crime de tráfico de estupefacientes não admite a tentativa, por violação do princípio da legalidade penal e do artigo 32.º da Constituição.

7 - O preceito impugnado prevê o crime de tráfico e outras actividades ilícitas, equiparando vários comportamentos, que vão desde o cultivo ou a importação até à efectiva venda ou distribuição de substâncias proibidas. Qualquer um desses comportamentos típicos corresponde à consumação (formal) do crime em questão. No entanto, alguns desses comportamentos situam-se num momento anterior ao da consumação material do crime. Nessa medida, e de acordo com o entendimento do tribunal recorrido, a prática de tais actos não pode ser reconduzida ao cometimento do crime na forma tentada, uma vez que é a própria norma incriminadora que configura esses actos como modalidades de consumação do crime.

Não se discutirá no presente recurso se os factos provados no processo correspondem ou não a algum dos segmentos normativos do preceito impugnado. Tal averiguação implicaria uma apreciação da própria decisão recorrida e não da norma que ela efectivamente aplicou. Admitir-se-á, portanto, que os factos provados correspondem a um dos segmentos normativos do mencionado artigo 21.º (o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 2 de Novembro de 2000 - posteriormente confirmado, nessa parte, pela decisão ora recorrida -, afirma expressamente ter resultado provada uma actuação desenvolvida para a importação de substâncias proibidas).

Consubstanciará, então, a dimensão normativa identificada uma dimensão normativa inconstitucional?

8 - O direito penal visa a protecção de bens jurídicos fundamentais, prevendo e punindo os comportamentos que de uma forma mais intensa ou, se se preferir, mais grave afectem esses mesmos bens jurídicos. Trata-se do princípio da necessidade e do mínimo de intervenção, que resulta do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição.

A intervenção penal não tem, porém, de acontecer apenas nas situações em que o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é efectivamente lesado pela conduta proibida. Em várias situações o legislador procede a uma antecipação da tutela penal, punindo comportamentos que ainda não lesaram efectivamente esse bem jurídico. Tal acontece, quando o comportamento em questão apresenta uma especial perigosidade para bens jurídicos essenciais à subsistência da própria sociedade, sendo, por essa via, legitimada aquela antecipação.

No caso em apreciação, o preceito impugnado define o tráfico de substâncias proibidas por uma série de condutas conducentes à efectiva transmissão da substância. Assim, qualquer um dos comportamentos previstos implica a consumação do crime.

Ora, a esta concepção subjaz o cariz particularmente perigoso das actividades em questão e a ideia do tráfico como processo e não tanto como resultado de um processo. Na verdade, o tráfico de droga assume consequências pessoais e sociais devastadoras (cuja relevância afigura-se agora ocioso realçar), que justificam plenamente uma intervenção penal preventiva sobre o processo que conduz a tais consequências, abrangendo várias actividades relacionadas com a actuação no mercado onde a droga se transacciona.

Aliás, mesmo em situações onde se verifica uma particular perigosidade das condutas anteriores à consumação material do crime, "o que justifica a ilicitude (sem dúvida, também típica) é ainda a típica conexão com a actividade lesiva do bem jurídico, prosseguida pela 'preparação' do crime" (cf. Maria Fernanda Palma, A Justificação por Legítima Defesa como Problema de Delimitação de Direitos, vol. I, 1990, p. 324, referindo-se à punibilidade de actos preparatórios).

Questão diversa da que é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional seria a de averiguar a legitimidade da punição por crime de tráfico na forma tentada, pela prática de actos situados numa fase ainda mais remota relativamente à consumação material do crime. Essa questão não constitui, porém, objecto do presente recurso, uma vez que não foi essa a dimensão normativa efectivamente aplicada pela decisão recorrida.

A dimensão normativa impugnada encontra assim o seu fundamento na particular perigosidade das condutas que justifica uma concepção ampla de tráfico, desligada da obtenção do resultado da transacção. Porque se trata de condutas que concretizam de modo particularmente intenso o perigo inerente à actividade relacionada com o fornecimento de estupefacientes, o legislador antecipa a tutela penal relativamente ao momento da transacção. A não punição da tentativa tem por justificação o facto de este crime não ser um crime de dano nem de resultado efectivo. Assim, a não punição de tentativa é apenas consequência de não se pretender antecipar mais a tutela penal já suficientemente antecipada na descrição típica.

Ora esta construção normativa não viola qualquer disposição constitucional.

III - Decisão

9 - Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC.

Lisboa, 30 de Maio de 2001. - Maria Fernanda Palma - Bravo Serra - Paulo Mota Pinto - Guilherme da Fonseca - Luís Nunes de Almeida.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1921161.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1993-01-22 - Decreto-Lei 15/93 - Ministério da Justiça

    Revê a legislação do combate à droga, definindo o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas.

Aviso

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