Acórdão 201/2001/T. Const. - Processo 392/00. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - Miguel Neves Passarinho e mulher, Hermenegilda Monteiro Nascimento Passarinho, com os sinais identificadores dos autos, vieram "interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82 de 15 de Novembro", do Acórdão do Pleno da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo de 7 de Julho de 1999, que negou provimento ao recurso jurisdicional por eles interposto, "do acórdão da Secção que com fundamento na impossibilidade superveniente lide julgou extinta a instância do recurso no qual os mesmos impugnaram o despacho do Secretário de Estado da Educação e do Desporto, de 11 de Janeiro de 1995, que na sequência de processo disciplinar lhes havia aplicado a pena de inactividade por um ano, suspensa pelo prazo de dois anos".
No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade dizem os recorrentes que visam "apreciação da inconstitucionalidade do artigo 6.º ETAF, e bem assim do artigo 9.º, n.º 1, alínea f) da Lei de Processo [ou, se se quiser, do artigo 287.º, alínea e), do Código de Processo Civil], na interpretação que deles foi feita pelo douto acórdão recorrido e pelo douto Acórdão de 26 de Fevereiro de 1998 por aquele mantido, no sentido de que, objecto do recurso contencioso, seriam os efeitos do acto recorrido e não o próprio acto (no caso, seriam as penas disciplinares aplicadas e não a decido punitiva), pelo que se verificaria a inutilidade superveniente da lide desde que extintos aqueles, apesar de este não ter sido judicialmente anulado", esclarecendo depois, a convite do relator, neste Tribunal, que "consideram como normas constitucionais por essa forma violadas as constantes quer do artigo 26.º, n.º 1, quer dos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da lei fundamental, devendo aqueles preceitos da lei ordinária ser interpretados, não implicando uma denegação de justiça e a inexistência de uma tutela judicial efectiva, no sentido de possibilitarem e exigirem que seja objecto de recurso o próprio acto punitivo, acto que, independentemente da efectiva aplicação da pena, é um acto que afecta o bom nome e reputação de funcionários públicos".
2 - Nas suas alegações, concluem assim os recorrentes:
"a) No recurso de uma decisão disciplinar, o objecto do recurso é a anulação da decisão que considerou o arguido culpado, e não das penas que tenha aplicado;
b) Aplicação que pode, aliás, deixar de ocorrer, não obstante ter sido formulado um juízo de censura;
c) A anulação deste é assim o efeito primacial de uma decisão de provimento de recurso contencioso interposto;
d) Decisão de provimento que tem efeitos directos, independentes dos que podem ser obtidos em execução de sentença;
e) No domínio do direito sancionador é visível a preocupação legal em proporcionar meios de efectiva tutela judicial do bom nome e reputação de quem seja apenas, até, objecto de suspeitas;
f) Sendo assim impensável uma interpretação das regras do contencioso administrativo que conduzisse à inviabilidade do prosseguimento de um recurso contencioso, interposto de decisão disciplinar punitiva, para obtenção de sentença judicial que se pronunciasse sobre tal decisão punitiva;
g) Interpretação essa que seria inconstitucional, por ofensa dos preceitos dos artigos 20.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da lei fundamental;
h) Deve assim por esse Tribunal Constitucional ser julgado, com a consequente revogação do acórdão recorrido, que por este foi feita uma interpretação inconstitucional das normas do artigo 6.º da ETAF e do artigo 9.º, n.º 1, alínea f), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, por ofensa desses preceitos da lei fundamental".
3 - O recorrido Secretário de Estado da Educação e Inovação não apresentou alegações.
4 - Vistos os autos, cumpre decidir.
Os recorrentes reagiram ao citado acórdão da 1.ª Secção, que havia confirmado um despacho do relator [no sentido de julgar "extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide", nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 9.º da LPTA, por considerar ter decorrido "o prazo de suspensão de execução das punições disciplinares e estas não foram executadas, sendo eliminadas dos registos de cadastro dos funcionários], e nas alegações apresentadas perante o Pleno concluíram exactamente como aqui concluíram e acima ficou transcrito.
A tal alegação respondeu-se assim no acórdão recorrido:
"Dirigia-se assim o recurso interposto, através da pretendida anulação contenciosa do acto, a extinguir os efeitos das penas disciplinares que o mesmo havia aplicado.
Esse o efeito directo - resultante da eventual anulação do acto - pretendido pelos recorrentes, em consonância com a própria natureza do recurso de anulação, o qual se encontra funcionalmente ligado à erradicação da ordem jurídica de acto ou actos viciados de ilegalidade.
É certo que o recorrente contencioso, no caso, os ora recorrentes, pode ser portador de um específico interesse subjectivo, nomeadamente de ordem moral, ligado, como no caso das sanções disciplinares, à protecção do seu bom nome ou reputação profissional.
Só que esse possível interesse não é o directamente prosseguido pela figura do recurso de anulação.
Ora, num caso como o desenhado na espécie sub judicie, a decisão punitiva, ainda que podendo eventualmente padecer dos vícios de ilegalidade que os recorrentes lhe assacavam no recurso contencioso, extinguiu-se em virtude do posterior despacho - por sua vez não impugnado - que declarou sem efeito a anterior decisão punitiva pelo decurso do prazo da sua suspensão sem que os sancionados nesse prazo tivessem disciplinarmente prevaricado.
Significa isso que, no apontado circunstancialismo, a modificação jurídica operada face aos recorrentes pelo despacho punitivo, no âmbito da relação jurídica de especial subordinação, de cariz administrativo, que os ligava à Administração, desapareceu da ordem jurídica.
Com esse desaparecimento, o recurso contencioso perdeu supervenientemente o seu objecto.
E perdendo o seu objecto, a respectiva instância extinguiu-se [artigo 287.º, alínea e), 1.ª parte, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi o artigo 1.º da LPTA].
Aliás, em hipótese nuclearmente similar à agora ajuizada, decidiu no mesmo sentido o Acórdão deste Tribunal de 7 de Maio de 1996, recurso n.º 29 368 (v. ainda Acórdão da Secção de 9 de Julho de 1996, recurso n.º 37 219).
À conclusão acabada de chegar contrapõem os ora recorrentes que semelhante solução, baseada na interpretação acolhida, seria inconstitucional, já que através dela seriam seguramente ofendidos quer o artigo 26.º, n.º 1, quer os artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da Constituição.
Trata-se, porém, de alegação que se não tem por fundada.
Liminarmente é preciso recordar que, no caso sub judice e como mais acima se assinalou, no registo biográfico dos recorrentes, especialmente no seu cadastro disciplinar, nada consta.
Tudo se passa como se os mesmos não tivessem sido punidos através do referido despacho do Secretário de Estado da Educação e do Desporto de 21 de Janeiro de 1995.
Não se vê assim que o direito ao bom nome e reputação, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, tenha um alcance ou virtualidade de fazer ressuscitar uma decisão punitiva, que desapareceu entretanto da ordem jurídica, para o efeito de os recorrentes virem demonstrar em juízo que não praticaram a infracção ou infracções disciplinares que estiveram na base daquela punição.
Por outro lado não se vê como, no apontado circunstancialismo, a extinção da instância do recurso contencioso importe violação do direito ao mesmo recurso, garantido pela Constituição, artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4.
A garantia constitucional desse direito não exige que o mesmo se mantenha, quando ele, como no caso, perdeu o seu objecto.
E a instância competente para semelhante decisão quanto à perda do objecto por parte do presente recurso é no caso este Tribunal Pleno.
Improcede, deste modo, a matéria de todas as conclusões das alegações".
Não oferece dúvidas que o acórdão recorrido aplicou uma norma respeitante à extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, ao considerar que "o recurso contencioso perdeu supervenientemente o seu objecto", e desde logo o apontado artigo 287.º, alínea e), 1.ª parte, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi o artigo 1.º da LPTA" "[e se certo que aquele preceito só vem indicado pelos recorrentes no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, também é verdade que ele foi pela primeira vez referenciado no acórdão recorrido, reportando-se as anteriores decisões impugnadas pelo recorrentes apenas ao artigo 9.º, n.º 1, alínea f), da LPTA, prevendo também a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, o que significa que eles tiveram sempre presente a tal causa de extinção e questionaram-na sempre, na perspectiva de ser "impensável uma interpretação das regras do contencioso administrativo que conduzisse à inviabilidade do prosseguimento de um recurso contencioso, interposto de decisão disciplinar punitiva, para obtenção de sentença judicial que se pronunciasse sobre tal decisão punitiva"].
E é também indubitável que o acórdão recorrido, aplicando tal norma, aderiu a entendimento - e, por isso, assim interpretou essa norma - de que o recurso contencioso que havia sido interposto pelos recorrentes dirigia-se, "através da pretendida anulação contenciosa do acto, a extinguir os efeitos das penas disciplinares que o mesmo havia aplicado", mas no caso concreto "no registo biográfico dos recorrentes, especialmente no seu cadastro disciplinar, nada consta", tudo se passando "como se os mesmos não tivessem sido punidos através do referido despacho do Secretário de Estado da Educação e dos Desportos de 21 de Janeiro de 1995" (e não cabe nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional censurar estes pontos).
A tal entendimento contrapõem os recorrentes, no plano de (in)constitucionalidade, que devem "aqueles preceitos da lei ordinária ser interpretado {'apreciação da inconstitucionalidade do artigo 6.º do ETAF, e bem assim do artigo 9.º, n.º 1, alínea f), da Lei de Processo [ou, se se quiser, do artigo 287.º, alínea e), do Código de Processo Civil]' - na linguagem dos recorrentes}, não implicando uma denegação de justiça e a inexistência de uma tutela judicial efectiva, no sentido de possibilitarem, e exigirem, que seja objecto de recurso o próprio acto punitivo, acto que, independentemente da efectiva aplicação da pena, é um acto que afecta o bom nome e reputação de funcionários públicos", assim se respeitando as normas constitucionais indicadas.
Na prática, a situação é esta: aos recorrentes, então professores requisitados a serviço do ensino português na Suíça (área consular de Zurique), foi aplicada em processo disciplinar a mesma pena de inactividade graduada pelo mínimo de um ano e suspensa a sua execução pelo período de dois anos; vieram interpor recurso contencioso nestes autos do despacho ministerial sancionatório na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, mas a demora do processamento do recurso - os autos estiveram parados quase um ano entre a data da conclusão para julgamento, após os vistos, e o despacho do novo relator depois de redistribuição, a solicitar uma informação sobre a execução daquela pena - implicou que tivesse entretanto decorrido o período da suspensão e viesse a ser "declarado extinta" a pena disciplinar, por despacho do inspector-geral da Educação (noutras circunstâncias, o julgamento ter-se-ia realizado e, por acórdão da Secção, poder-se-ia até ter decidido pelo provimento do recurso, na linha do parecer do Ministério Público, com base em vício de forma, "por falta de audiência dos arguidos", antes de completados os tais dois anos, aferindo-se, assim, da (i)legalidade do acto administrativo impugnado).
Quid juris?
5 - O recurso contencioso é um direito fundamental contemplado no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição, agora, após a revisão constitucional de 1997, sob a fórmula de "impugnação de quaisquer actos administrativos" que "lesem direitos ou interesses" do administrados, conjugando-se com o princípio da tutela jurisdicional efectiva de direito fundamentais, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, e beneficiando, à luz do artigo 17.º, da vinculação e da força jurídica afirmadas no artigo 18.º (cf. os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 384/98 e 435/98, in Acórdãos, 40.º vol.).
São imperativos de uma eficaz tutela jurisdicional administrativa que promanam da Constituição de 1976, e neste plano pode afirmar-se que aí sempre se prosseguiu "a preservação tanto de um meio de impugnação que toma como objecto imediato a figura do acto administrativo como daquilo que este acto significa no tocante ao poder administrativo de definir imperativamente situações jurídico-administrativas" (nas palavras de Sérvulo Correia, Reforma do Contencioso Administrativo, Ministério da Justiça, vol. I, p. 126).
Para Jorge Miranda, a "sindicabilidade dos actos administrativos segundo o artigo 268.º" apresenta-se como um corolário "dos princípios do Estado de direito democrático" acolhendo a Constituição, desde a reforma de 1982, uma "linha de reforço e desenvolvimento", estando "sempre em causa uma acção, seja quem for que a proponha e sejam quais forem os tipos ou as categorias em que (tendo em conta as tramitações dos meios processuais e os efeitos das sentenças) ela haja de se desdobrar" (loc. cit., p. 286).
Barbosa de Melo, a propósito de "alguns princípios basilares hoje acolhidos na Constituição da República", refere, em primeiro lugar, o "princípio da jurisdicionalidade, da accionabilidade ou da justiciabilidade da actividade administrativa que contenda com a esfera dos particulares", significando isto que, "em geral, ninguém está sujeito a aceitar como fatalmente ineversíveis as decisões administrativas, favoráveis ou desfavoráveis, que toquem na sua esfera jurídica"; em segundo lugar, o princípio da efectividade da tutela jurisdicional dos direitos e interesses dos particulares, significando "desde logo que o particular tem de dispor de meios de defesa subjectivos - e não unicamente de meios para protecção da legalidade objectiva" (loc. cit., p. 303).
Neste quadro, toda e qualquer via mais ou menos redutora de uma "tutela jurisdicional efectiva", que o n.º 4 do artigo 268.º e o n.º 1 do artigo 20.º garantem aos particulares ou administrados, entra em colisão com tais normas constitucionais. Pois que, tal como se expressa Barbosa de Melo, só "a decisão jurisdicional possuirá, por princípio, a virtude de estabelecer definitiva e ineversivelmente o que é o direito para o particular em cada situação administrativa concreta" (loc. cit., p. 303).
6 - In casu, e com o circunstancialismo atrás referido, derivado da demora do processamento do recurso no Supremo Tribunal a quo, a interpretação da norma questionada do artigo 287.º, alínea e), 1.ª parte, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi o artigo 1.º da LPTA", a que aderiu o acórdão recorrido e com o qual ela foi aplicada, afronta os apontados artigos 268.º, n.º 4, e 20.º, n.º 1, da Constituição.
É que o entendimento seguido nesse acórdão de que, "num caso como o desenhado na espécie sub judice, a decisão punitiva, ainda que podendo eventualmente padecer dos vícios de ilegalidade que os recorrentes lhe assacavam no recurso contencioso, extinguiu-se em virtude do posterior despacho - por sua vez não impugnado - que declarou sem efeito a anterior decisão punitiva pelo decurso do prazo da sua suspensão sem que os sancionados nesse prazo tivessem disciplinarmente prevaricado", pelo que "o recurso contencioso perdeu supervenientemente o seu objecto", reduz ou restringe, na óptica do artigo 18.º, da Constituição, aquele direito fundamental aqui em causa, sendo certo que se está no domínio do direito sancionatório público (cf. o voto de vencido que acompanha o acórdão recorrido).
Com efeito, aos recorrentes foi assim eliminada a possibilidade de acesso à justiça administrativa para obterem uma decisão jurisdicional que fizesse caso julgado em relação aos seus direitos e interesses subjectivos, radicando na declaração de ilegalidade do próprio acto punitivo ministerial (o que não significa o mesmo que "extinguir os efeitos das penas disciplinares que o mesmo havia aplicado", tal-qualmente se expressa o acórdão recorrido). E só sem entraves, reduções ou restrições se pode chegar ao asseguramento do princípio da plena jurisdição, decorrente do contexto constitucional, obrigando hoje a que se reconheça ao juiz administrativo todos os poderes - para definir "o que é de direito para o particular em cada situação administrativa concreta - sempre que esteja em causa a legalidade ou (agora vai-se mais longe) a juridicidade da actuação administrativa".
Com o que assiste razão aos recorrentes quando concluem ser "assim impensável uma interpretação das regras do contencioso administrativo que conduzisse à inviabilidade do prosseguimento de um recurso contencioso, interposto de decisão disciplinar punitiva, para obtenção de sentença judicial que se pronunciasse sobre tal decisão punitiva", quando ela se mantém na ordem jurídica (independentemente de os efeitos das penas disciplinares que a mesma havia aplicado terem ou não desaparecido da ordem jurídica).
7 - Termos em que, decidindo:
a) Julga-se inconstitucional, por violação dos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da Constituição, o artigo 287.º, alínea e), do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do disposto no artigo 1.º da LPTA, quando interpretado no sentido de que em processo de contencioso de recurso directo de anulação, se verifica a impossibilidade superveniente da lide desde que sejam declarados extintos os efeitos da decisão disciplinar punitiva, que é objecto do recurso, pelo decurso do prazo da sua suspensão;
b) Em consequência, concede-se provimento ao recurso, devendo ser reformado o acórdão recorrido, em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 9 de Maio de 2001. - Guilherme da Fonseca - Maria Fernanda Palma - Bravo Serra - Paulo Mota Pinto - José Manuel Cardoso da Costa.