Acórdão 114/2001/T. Const. - Processo 128/99. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - Amílcar Neto Contente e Constâncio Arnaldo Barros dos Reis, com os sinais dos autos, vêm, ao abrigo do disposto no artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição (doravante CRP) e no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei 28/82, de 15 de Novembro, interpor recurso para este Tribunal Constitucional do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ-2.ª Secção) de 28 de Janeiro de 1999, que desatendeu uma reclamação para a conferência e negou provimento ao recurso de agravo por eles interposto, pretendendo ver apreciada a questão de (in)constitucionalidade das normas que, nas conclusões das suas alegações, assim melhor se indicam (essa indicação consta também, embora de modo menos claro, do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade):
a) Normas contidas nos n.os 3 e 4 do artigo 490.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), por, no seu entender, ofenderem o disposto nos artigos 2.º, 13.º, 18.º, 61.º, n.º 1, 62.º, n.º 1, 168.º, n.º 1, alíneas b) e e), da CRP e ainda ofenderem "os princípios programáticos consignados nos artigos 9.º, alínea d), e 81.º, alíneas b) e e), do mesmo diploma".
b) Normas dos artigos 1024.º e 1025.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) "por violarem direitos a que se aplicam directamente normas constitucionais vinculativas para entidades públicas e privadas" e porque "interpretadas e aplicadas, como no caso o foram, com o efeito de violarem decisões anteriores dos tribunais sobre a mesma matéria".
c) Normas dos artigos 525.º e 706.º, n.º 2, do CPC, "interpretadas e aplicadas no sentido em que o foram, rejeitando a documentação de interpretações jurídicas, por eminentes técnicos do direito, de normas em apreço nos autos, e com incidência na própria matéria do recurso, sobre a sua conformidade constitucional, com fundamento em prematuridade", por violação do disposto no artigo 20.º, n.º 1, da CRP.
2 - O acórdão recorrido, que desatendeu as pretensões dos recorrentes, depois de considerar que "o agravo com subida diferida continua a ter interesse para o agravante, pois que do seu eventual sucesso dependeria a reformulação da tramitação do processo especial de consignação em depósito regulada nos artigos 1024.º e seguintes do CPC desencadeada pela A., Sonae Investimentos, Sociedade Gestora de Participações Sociais, S. A., contra os ora agravantes e outros, com eventual regresso dos autos à fase da passagem de guias para a efectivação da impetrada consignação em depósito", sendo de conhecer dele "por força do disposto no artigo 735.º do CPC", é do seguinte teor:
"5 - Reclamação para a conferência - a fl. 479, vieram os recorrentes reclamar para a conferência do despacho do relator inserto a fl. 476, na parte em que não admitiu a junção aos autos dos documentos pretendidos juntar com o requerimento de fl. 417.
Notificada, nada veio dizer a parte contrária.
Cumpre apreciar.
O que se encontra em causa no presente recurso é a apreciação da legalidade de um despacho ordenador da passagem de guias para depósito versus a sua admissibilidade ou recorribilidade; despacho esse meramente incidente sobre a relação processual e respectiva tramitação.
Nada tem pois o objecto do recurso a ver com a questão de fundo, controvertida no processo, qual seja a relativa ao bom ou mau fundamento da consignação em depósito oportunamente requerida pela agravada.
A junção de documentos terá pois a sua sede, lugar e oportunidade própria perante o tribunal que julgar tal questão.
A junção pretendida pelos reclamantes, ora agravantes, apresentava-se pois como manifestamente impertinente e desnecessária como tal meramente dilatória.
Bem indeferida, pois tal requerida junção, com a consequente ordem de restituição à parte, o que tudo encontra respaldo legal no disposto no artigo 543.º, n.º 2, aplicável ex-vi do artigo 706.º, n.º 3, do CPC.
Não merece pois o despacho do relator qualquer censura, pelo que vai indeferida a reclamação apresentada.
6 - O despacho que esteve na base da sindicância da Relação e ora objecto de agravo foi o proferido pelo M.mº Juiz de 1.ª instância a fl. 50, com data de 16 de Outubro de 1995, a ordenar a passagem de guias para a efectivação do depósito requerido pela ora agravada, Sonae, Investimentos [...] S. A., ao abrigo do disposto nos artigos 1024.º e seguintes do CPC.
Pretendem os agravantes, per summma capita, que tal despacho lhes deveria ter sido autonomamente notificado para efeitos de eventual impugnação. Sem qualquer razão, porém.
O artigo 1025.º do CPC é bem claro no sentido de que só depois de efectuado o depósito é que o credor é citado para contestar dentro do prazo legal (então de 20 dias e actualmente de 30 dias) - cf. o n.º 1 respectivo.
E os autos mostram que, efectivamente, três dias depois, ou seja por despacho judicial de 19 de Outubro de 1995, foi ordenada a citação dos ora agravantes para a acção, os quais deduziram contra o pedido oportuna contestação.
Tal despacho a ordenar a passagem de guias datado de 16 de Outubro de 1995 é juridicamente qualificável como 'de mero expediente', um simples acto-trâmite, ou despacho ordenador, destinado a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes, objecto do litígio - cf. o artigo 156.º, n.º 4, do CPC.
Não tinha pois tal despacho de ser desde logo objecto de notificação autónoma e expressa aos RR., ora agravantes.
E, como tal, seria mesmo irrecorrível ex-vi do artigo 679.º do CPC.
Bem andou pois a Relação ao coonestar o despacho da 1.ª instância, que, julgando procedente a questão prévia suscitada pela ora agravada, considerou inadmissível o recurso interposto do questionado despacho de 16 de Outubro de 1995."
3 - Nas suas alegações adiantaram, no essencial, os recorrentes a seguinte conclusão:
3 - ...
4 - ...
5 - ...
6 - As normas dos n.os 3 e 4 do artigo 490.º do CSC ofendem o disposto nos artigos 2.º, 13.º, 18.º, 61.º-1, 62.º-1 e 168.º-1, alíneas b) e e), da CRP, de então, e ainda os princípios programáticos consignados nos artigos 9.º, alínea d), e 81.º, alíneas b), e e), do mesmo texto.
7 - ...
8 - As normas dos artigos 1024.º-1 e 1025.º-1 do CPC, interpretadas e aplicadas como instrumento de exercitação dos pretensos direitos consignados nos supra-invocados números, como o foram, são inconstitucionais por violarem direitos a que se aplicam directamente normas constitucionais vinculativas para entidades públicas e privadas.
9 - As ditas normas são ainda inconstitucionais quando interpretadas e aplicadas, como no caso o foram, com o efeito de violarem decisões anteriores dos tribunais sobre a mesma matéria.
10 - As normas dos artigos 525.º e 706.º-2 do CPC, interpretadas e aplicadas no sentido em que o foram, rejeitando a documentação de interpretações jurídicas, por eminentes técnicos do direito, de normas em apreço nos autos, e com incidência na própria matéria do recurso, sobre a sua conformidade constitucional, com fundamento em prematuridade, é inconstitucional por violação do disposto no artigo 20.º-1 da CRP."
4 - Também apresentou alegações a recorrida, Sonae Investimentos, Sociedade Gestora de Participações Sociais, S. A., rebatendo, ponto por ponto, e exaustivamente, a posição dos recorrentes e concluindo que "não deverá conhecer-se do objecto do presente recurso no que respeita aos preceitos dos artigos 490.º do CSC e 525.º e 706.º, n.º 2, do CPC e deverá recusar-se a declaração de inconstitucionalidade das demais normas impugnadas pelos recorrentes, ou, se assim não se entender, deverá recusar-se a declaração de inconstitucionalidade de todas as normas impugnadas pelos recorrentes.".
5 - Ouvidos os recorrentes "sobre a questão prévia suscitada pela recorrida nas suas alegações e sintetizada na alínea b) da parte final das respectivas conclusões", vieram dizer, no essencial, que "seja o mesmo indeferido", sustentando que o "pedido de não conhecimento do objecto ora em apreço não constitui, como já se disse, síntese das alegações antecedentes: mas também não se encontra fundamentado nem de facto nem de direito".
6 - Com as alegações, e posteriormente a elas, juntaram as partes numerosos e variados documentos, que não interessa discriminar, pedindo reciprocamente e constantemente o desentranhamento e restituição deles ou de alguns deles, mas, por despacho do relator, entendendo-se não ser caso de impertinência ou desnecessidade, determinou-se sempre que ficassem todos nos autos.
7 - Tudo visto, cumpre decidir.
Dado o quase inextricável emaranhado processual, e com vista a perceber-se melhor o que está na base do presente recurso, há que enunciar desde já os factos relevantes que lhe subjazem, o que se passa a fazer nestes termos:
7.1 - A Sonae Investimentos, Sociedade Gestora de Participações Sociais, S. A., intentou em 11 de Outubro de 1995 contra os ora recorrentes, Amílcar Neto Contente e Constâncio Arnaldo Barros dos Reis, e outros, incluindo incertos, e nos termos do disposto no artigo 490.º, n.º 4, do CSC e nos artigos 1024.º e seguintes do CPC, acção especial de consignação em depósito de determinada quantia, como retribuição pelo pagamento de acções de que os mesmos recorrentes eram titulares e que pertenciam à INTERLOG - Sociedade Gestora de Participações Sociais, S. A.
A Sonae, conforme peticionou, depois de ter adquirido, de diversas entidades, acções adicionais representativas do capital da INTERLOG, passou a deter mais de 90% do capital social da mesma INTERLOG e, na sequência de tal detenção, fez aos restantes sócios, de entre eles os ora recorrentes, uma oferta de aquisição das suas participações, nos termos do artigo 490.º, n.º 2, do CSC.
Dado não ter obtido resposta, requereu, então, a Sonae, como ficou dito, nos termos do artigo 490.º, n.º 4, do referido Código e do artigo 1024.º do CPC, a consignação em depósito da quantia que entendeu devida aos recorrentes pelas acções de que eram titulares junto da INTERLOG, a fim de poder ser realizada a escritura pública de aquisição dos títulos em questão.
Na contestação, os então requeridos ou réus, e ora recorrentes, invocaram, de entre o mais, a inconstitucionalidade material e orgânica das normas dos n.os 3 e 4 do referido artigo 490.º do CSC por violação, essencialmente, do artigo 62.º da CRP, pois que o estatuído naqueles números viola o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte.
Ainda que a requerente - dizem os contestantes - visasse uma expropriação por utilidade pública - o que não é o caso visto pretender apenas servir o seu interesse privado -, sempre teria de fazê-lo com base em lei apropriada e mediante o pagamento de justa indemnização.
Ora, os referidos n.os 3 e 4 não satisfizeram esse comando constitucional.
7.2 - Entretanto, a SONAE havia requerido com a petição inicial a passagem de guias para efectuação do depósito entendido devido pela aquisição das referidas acções.
Do despacho a deferir tal requerimento, de 16 de Outubro de 1995, antes de apresentada a já referida contestação, recorreram então Amílcar Neto Contente e Constâncio Arnaldo Barros dos Reis, invocando que "tendo, acidentalmente, em 3 de Julho de 1997, compulsado os autos, se deram conta da existência" desse despacho e com o fundamento de que, requerida a emissão de guias para efectuação do referido depósito pela SONAE, ao abrigo dos artigos 1024.º e 1025.º do CPC, devia tal requerimento ser-lhes notificado antes da citação, o que não aconteceu, nem sequer com a realização daquela.
Ora, aduzem, visando a SONAE com o dito requerimento e respectivo depósito fazer lavrar a escritura prevista no n.º 3 do aludido artigo 490.º do CSC e sendo este normativo juntamente com o do n.º 4 do mesmo artigo material e organicamente inconstitucional, como já haviam alegado na contestação, as normas do artigo 1024.º e seguintes do CPC, quando interpretadas e aplicadas com o sentido e alcance de conferir o direito de efectuar o depósito referido naquele n.º 4 e de fazer lavrar a escritura no n.º 3, são também inconstitucionais.
Além de violadoras dos mesmos preceitos constitucionais que os n.os 3 e 4 do artigo 490.º violam (designadamente, recorde-se, o artigo 62.º da CRP) "o despacho recorrido, só porque visa a lesão de um direito análogo a um direito fundamental encontra-se sujeito à observância do princípio do contraditório", tendo feito pois "aplicação de norma inconstitucional, ao viabilizar, mediante consignação em depósito, a celebração de uma escritura de 'expropriação' dos agravantes, sem estes terem sido, sequer, previamente, ouvidos".
7.3 - Tendo o recurso de agravo de tal despacho sido julgado inadmissível e dele não se conhecendo, interpuseram, de novo, recurso de tal decisão para o STJ.
Este foi admitido por despacho do relator no Tribunal da Relação do Porto (a acção havia sido intentada no Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia), o qual lhe atribuiu subida diferida, a subir quando subisse também o recurso interposto do acórdão a proferir do despacho que determinou a suspensão da instância com fundamento na pendência de causa prejudicial (havia sido invocada excepção dilatória de incompetência territorial deduzida na contestação).
Porém, na sequência também de agravo interposto pela SONAE, veio a ser revogado aquele despacho que tinha suspendido a instância, ordenando-se a sua substituição por outro que desse seguimento ao incidente da incompetência relativa suscitada, sustentando, porém, os ora recorrentes que o agravo com subida diferida continuava a ter interesse para eles, uma vez que do seu eventual sucesso dependeria a reformulação da tramitação do processo especial de consignação em depósito regulado nos artigos 1024.º e seguintes do CPP, com eventual regresso dos autos à fase da passagem de guias para a efectivação da impetrada consignação em depósito.
É esta a posição da segunda instância:
O Tribunal da Relação do Porto considerou, no Acórdão recorrido de 11 de Dezembro de 1997, em resumo, que o despacho que admitiu a passagem de guias, não tendo carácter decisório, não afectava os interesses das partes, e que a autorização do depósito revelava apenas não ter-se julgado estar perante caso em que manifestamente se impusesse a rejeição liminar da acção ou convite à correcção do articulado inicial, não implicando julgamento sobre a validade ou subsistência do depósito.
Assim sendo, o poder jurisdicional do juiz relativamente à matéria da causa não ficava de modo algum esgotado com o dito despacho.
Ainda nas palavras do acórdão: "Destituído de autonomia, integrado na sequência do processo, e tão-só destinado a preparar eventual decisão final, esgota-se na sua função instrumental" e, como tal, é insindicável:
"Não são com evidência as normas processuais adjectivas - por definição instrumentais - dos artigos 1024.º e seguintes do CPC que, seja como for, conferem o direito de efectuar o depósito referido no n.º 4 do artigo 490.º do CSC.
Antes, e tão-só, implicando não ter-se considerado estar-se perante hipótese susceptível de indeferimento liminar ou petição carecida de correcção, não é a todas as luzes, da liminar autorização do depósito a que alude o artigo 1024.º CPC, que resulta a validade e subsistência da consignação em depósito efectuada.
E o contraditório é, a todas as luzes, perfeitamente garantido pelos artigos 1027.º e seguintes".
Sobre a questão de constitucionalidade dos n.os 3 e 4 do artigo 490.º do CSC, refere o citado acórdão que: "Manifestamente, só, enfim, possível se revelando colocar (com maior ou menor legitimidade) a questão da constitucionalidade relativamente à norma substantiva do n.º 4 do artigo 490.º CSC, já a esse respeito no n.º 6 supra, se adiantou quanto baste.
Não se tratando, como manifestamente se não trata, de despacho jurisdicional, decisório, descabelado resulta invocar, no que se lhe refere o disposto nos artigos 208.º, n.º 1, da CRP e 158.º, n.º 1, do CPC."
E no n.º 6 a que se alude nesta transcrição o acórdão apenas refere ser o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 474.º do CPC determinado pelo interesse geral da economia (aliás aludindo ao entendimento perfilhado pelo Prof. Raul Ventura).
7.4 - Não se conformando com o assim decidido, interpuseram os agravantes recurso para o STJ, como já ficou dito, em cujas alegações começaram por afirmar que o acórdão recorrido tinha dito "menos que zero" sobre a questão da inconstitucionalidade das normas dos n.os 3 e 4 do artigo 490.º do CSC, terminando, nas suas alegações, por dizer que ele fez "aplicação das normas feridas de inconstitucionalidade ao decidir, com os fundamentos invocados, não tomar conhecimento do recurso, e incorreu em nulidades do artigo 668.º-1, alínea c), do CPC, ao omitir pronúncia sobre várias questões submetidas à sua apreciação".
Vendo em tais alegações também um "requerimento ao abrigo do artigo 669.º, n.º 2.º, alíneas a) e b) (aplicável nesta instância por força do artigo 716.º, n.º 1), do CPC, de reforma 'da sentença' (sic, fl. 366) - leia-se do dito acórdão, ou, como expresso na última conclusão da alegação dos recorrentes, da decisão recorrida", o Tribunal da Relação do Porto proferiu novo acórdão, em 21 de Maio de 1998, considerando ter havido apreciação bastante da questão de constitucionalidade do artigo 490.º do CSC, e decidiu, por isso, "indeferir a pretendida reforma daquele acórdão" (o de 11 de Dezembro de 1997).
Com efeito, nele se refere que: "Pesados os custos do desprezo que ao 'meramente processual' se vote, por 'menos que zero' porventura será de ter, isso sim, a arguição ad terrorem de pseudo-inconstitucionalidade orgânica e material do artigo 490.º do CSC que, com base uma e outra no predito artigo 62.º da CRP, elementar bom senso liminarmente leva a rejeitar".
E mais uma vez traz o dito acórdão à colação o entendimento do Prof. Raul Ventura de que "Não se trata, no nosso caso, de retirar aos sócios maioritários um bem para dele fazer beneficiar os sócios maioritários, mas sim de permitir que a sociedade siga a sua vida sem os potenciais conflitos entre tão larga maioria e tão fraca minoria, designadamente que os interesses específicos desta minoria não se oponham à conjugação de interesse entre a sociedade dominante e a sociedade dependente", concluindo por nada haver a suprir, alterar ou censurar na decisão anterior.
Juntamente com este recurso para o STJ, requereram os agravantes a junção aos autos de vários documentos (peças processuais extraídas de outros autos) para, segundo eles, "valerem como pareceres relativamente à questão de direito suscitada" e que, segundo os mesmos, é, como vimos, a questão da invocada inconstitucionalidade das normas dos n.os 3 e 4 do artigo 490.º do CSC.
Tal requerimento foi rejeitado pelo relator no STJ com o fundamento de que o objecto do recurso de agravo pendente de decisão diz respeito exclusivamente à relação processual, nada tendo a ver com a discussão substantiva do mérito da acção, ainda por apreciar pelo tribunal de 1.ª instância.
Mandados, por essa razão, desentranhar pelo relator, reclamaram de novo os agravantes para a conferência com o fundamento de que, ao ordenar o desentranhamento dos documentos em causa, o despacho do relator fez aplicação de normas inconstitucionais (quais sejam as dos artigos 525.º e 706.º, n.º 2, do CPC), por violarem a garantia de acesso ao direito consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da CRP.
Na posse de todas estas questões, discretou assim o STJ, como atrás ficou transcrito e se vai recapitular:
O que se encontra em causa no presente recurso é a apreciação da legalidade de um despacho ordenado da passagem de guias para depósito versus a sua admissibilidade ou recorribilidade: despacho esse meramente incidente sobre a relação processual e respectiva tramitação.
Nada tem pois o objecto do recurso a ver com a questão de fundo, controvertida no processo, qual seja a relativa ao bom ou mau fundamento da consignação em depósito oportunamente requerida pela agravada.
A junção de documentos terá pois a sua sede, lugar e oportunidade própria perante o tribunal que julgar tal questão.
A junção pretendida pelos reclamantes, ora agravantes, apresentava-se pois como manifestamente impertinente e desnecessária como tal meramente dilatória.
Bem indeferida pois tal requerida junção, com a consequente ordem de restituição à parte, o que tudo encontra respaldo legal no disposto no artigo 543.º, n.º 2, aplicável ex vi do artigo 706.º, n.º 3, do CPC."
No que toca ao despacho que ordenou a passagem de guias para efectivação do depósito requerido, ao abrigo do disposto nos artigos 1024.º e seguintes do CPC, dissertou assim o acórdão do STJ, como também atrás se transcreveu já:
"Pretendem os agravantes, per summma capita, que tal despacho lhes deveria ter sido autonomamente notificado para efeitos de eventual impugnação.
Sem qualquer razão, porém.
O artigo 1025.º do CPC é bem claro no sentido de que só depois de efectuado o depósito é que o credor é citado para contestar dentro do prazo legal [...]
E os autos mostram que, efectivamente, três dias depois [...] foi ordenada a citação dos ora agravantes para a acção, os quais deduziram contra o pedido oportuna contestação.
Tal despacho a ordenar passagem de guias [...] é juridicamente qualificável como 'de mero expediente', um simples acto-trâmite, ou despacho ordenador, destinado a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes, objecto do litígio - cf. o artigo 156.º, n.º 4, do CPC.
Não tinha pois tal despacho de ser desde logo objecto de notificação autónoma e expressa aos RR. ora agravantes.
E, como tal, seria mesmo irrecorrível ex-vi do artigo 679.º do CPC.
Bem andou pois a Relação ao coonestar o despacho da 1.ª instância, que, julgando procedente a questão prévia suscitada pela ora agravada, considerou inadmissível o recurso interposto do questionado despacho de 16 de Outubro de 1995".
8 - Descrita do modo que se entendeu mais perceptível a tramitação processual, no essencial, recorde-se, mais uma vez, que foi suscitada a questão de inconstitucionalidade das normas contidas nos n.os 3 e 4 do artigo 490.º do CSC, as dos artigos 1024.º e 1025.º, n.º 1, do CPC (embora os recorrentes se tenham referido primeiramente à inconstitucionalidade do despacho, acabaram, em tempo, por arguir a inconstitucionalidade das normas em que o mesmo se baseou) e as dos artigos 525.º e 706.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.
Importa, prima facie, ponderar a verificação de pressupostos processuais no que toca às pretensas questões de inconstitucionalidade suscitadas pelos recorrentes e no modo como o fizeram.
Constitui pressuposto processual específico do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, de entre outros, que a decisão recorrida faça efectiva aplicação das normas cuja inconstitucionalidade é suscitada, apenas se podendo dizer que se aplica uma norma quando ela constitui a ratio decidendi da decisão, o fundamento normativo no seu próprio conteúdo, ou do julgamento da causa (de entre outros, cf. os Acórdãos n.os 1081/96, 524/97 e 674/99, publicados, respectivamente, no Diário da República, 2.ª série, de 14 de Dezembro de 1996, de 27 de Novembro de 1997 e de 25 de Fevereiro de 2000). Este o primeiro pressuposto processual específico a ser respeitado.
Por outro lado, dada a natureza instrumental do processo constitucional, o Tribunal Constitucional só deve conhecer do recurso quando o mesmo seja susceptível de se repercutir utilmente sobre a decisão da questão de fundo (cf. os Acórdãos n.os 463/94 e 366/96, publicados, respectivamente, no Diário da República, 2.ª série, de 22 de Novembro de 1994 e 10 de Maio de 1996).
Acresce ainda que a questão de inconstitucionalidade suscitada tem de ter o seu suporte em norma ou normas com a interpretação ou sentido que o tribunal recorrido lhe(s) atribuiu (cf. o Acórdão 178/95, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 21 de Junho de 1995, e o já referido Acórdão 674/99).
Tendo presentes estas exigências processuais, há desde logo a referir que o STJ não fez aplicação das normas contidas nos n.os 3 e 4 do artigo 490.º do CSC nem sequer a elas se referiu, muito menos a propósito da questão de constitucionalidade, a única de que este Tribunal poderia conhecer.
Aliás, mal se compreenderia que o fizesse, tendo em conta que, tendo tal questão sido levantada logo na contestação, a 1.ª instância, a quem caberia em primeira mão sobre ela pronunciar-se, não o fez, porque, entretanto, surgiram outros incidentes processuais que a impediram de sobre a mesma se pronunciar.
E, pela mesma razão, também o Tribunal da Relação do Porto não deveria, sobre ela, debruçar-se, não relevando aqui que o tenha feito (cf. n.os 7.3 e 7.4).
Terá, assim, de se concluir, desde logo, não se verificar o primeiro daqueles pressupostos.
Com o que, neste ponto, não pode tomar-se conhecimento do recurso, procedendo, assim, a questão prévia suscitada pela recorrida SONAE.
9 - No que toca aos artigos 525.º e 706.º, n.º 2, há que dizer desde logo que nem o primeiro foi aplicado pela decisão recorrida nem o segundo foi aplicado com a interpretação que pelos recorrentes lhes é dada. Por consequência, também neste ponto não pode igualmente tomar-se conhecimento do recurso, procedendo também a questão prévia suscitada pela recorrida SONAE.
O STJ entendeu, na verdade, que os documentos tinham sido indevidamente recebidos porque manifestamente impertinentes e desnecessários (algo que é contemplado no artigo 543.º do CPC, e que, efectivamente, este sim, foi aplicado pelo STJ).
Porém, no que toca a este normativo, nenhuma questão de constitucionalidade foi suscitada pelos recorrentes.
No que respeita ao artigo 706.º, n.º 2, foi ele, de facto, aplicado pela decisão recorrida.
Mas esta não o fez, porém, com a interpretação que dele fazem os recorrentes.
Com efeito, estes entendem que a rejeição dos documentos teve como fundamento a "prematuridade" da sua junção.
Todavia, não foi esse o fundamento invocado pelo STJ.
O que este Supremo Tribunal invocou para rejeitar a sua junção foi o facto de o objecto do recurso, que era, como vimos, o da apreciação da legalidade do despacho que ordenou a passagem de guias para a efectivação do depósito, nada ter a ver com a questão de fundo controvertida no processo, questão esta que ainda há-de vir a ser discutida e julgada em 1.ª instância, altura e local em que, porventura, poderiam vir a ser juntos pela primeira vez.
Foi por este motivo que o Supremo entendeu ser prematura a junção.
E, assim sendo, também por este lado não têm os recorrentes razão, não se apurando a dimensão interpretativa que pretendem fazer valer.
10 - No que respeita, finalmente, aos artigos 1024.º, na parte que aqui importa, e 1025.º, n.º 1, do CPC, convém transcrevê-los para melhor compreensão da falta de razão que também assiste aos recorrentes, agora no plano do mérito do recurso:
"Artigo 1024.º
1 - Quem pretender a consignação em depósito requererá, no tribunal do lugar do cumprimento da obrigação, que seja depositada judicialmente a quantia ou coisa devida, declarando o motivo por que pede o depósito.
Artigo 1025.º
2 - Feito o depósito, é citado o credor para contestar dentro do prazo de 30 dias".
Pela leitura destas normas, torna-se claro que a aplicação dos referidos preceitos não se repercute sobre a decisão da questão de fundo.
Esta tem a ver com o reconhecimento, ou não, do direito que a requerente SONAE pretende fazer valer, ou, como se diz nas palavras do acórdão recorrido, com "o bom ou mau fundamento da consignação em depósito oportunamente requerida pela agravada".
Efectivamente, não é por o processo poder voltar à fase de passagem de guias para efectivação do depósito nem o facto de tal despacho ser autonomamente notificado aos recorrentes que confere à agravada o direito de que se arroga.
Na verdade, quer ele fosse notificado antes ou depois do depósito, subsistiria sempre a questão de fundo: o reconhecimento do direito invocado pela SONAE.
Não se esqueça que, tendo os credores (aqui recorrentes) a possibilidade de impugnar o depósito por terem qualquer motivo legítimo para recusar o pagamento [cf. o artigo 1027.º, alínea c), do CPC], ao fazê-lo, caso lhes fosse dada razão, sempre impediriam que aquilo a que chamam de "expropriação" se concretizasse.
Assim sendo, também aos recorrentes falece razão no que toca à pretensa questão de inconstitucionalidade dos referidos preceitos, não se vislumbrando a alegada violação de direitos, nomeadamente no que toca ao princípio do contraditório, ou a violação de "decisões anteriores dos tribunais sobre a mesma matéria", suposto mesmo que tudo isso se pode reconduzir a questões de inconstitucionalidade normativa com relevo para o caso.
11 - Termos em que, decidindo:
a) Não se toma, em parte, conhecimento do recurso; e
b) Noutra parte, nega-se-lhe provimento;
c) Condenam-se os recorrentes nas custas, com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta, por cada um.
Lisboa, 14 de Março de 2001. - Guilherme da Fonseca (relator) - Maria Fernanda Palma - Paulo Mota Pinto - Bravo Serra - Luís Nunes de Almeida.