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Acórdão 212/2000/T, de 12 de Outubro

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Texto do documento

Acórdão 212/2000/T. Const. - Processo 596/99. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - O Ministério Público recorre para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei 28/82, do despacho proferido pelo juiz do Tribunal de Círculo de Santa Maria da Feira a fls. 340 e seguintes que recusou a aplicação da norma do artigo 101.º, n.º 2, do Código de Processo Penal com o sentido de ela impor, nos casos de documentação da audiência de julgamento mediante gravação magnetofónica ou áudio-visual, a transcrição da respectiva gravação para a acta.

Nas suas alegações, formula as seguintes conclusões:

"1.º A interpretação normativa do n.º 2 do artigo 101.º do Código de Processo Penal, traduzida em considerar que - para permitir uma correcta e efectiva reapreciação da decisão sobre a matéria de facto tomada em 1.ª instância - os depoimentos gravados no decurso da audiência devem ser oficiosamente transcritos não viola o direito ao recurso (que visa, aliás, potenciar), nem afecta as garantias de defesa do arguido em processo penal.

2.º Os inconvenientes que, em termos de celeridade e eficácia, podem decorrer de tal transcrição oficiosa dos depoimentos gravados mediante sistema sonoro não radicam propriamente em tal regime jurídico, em si mesmo considerado, mas numa eventual e deficiente dotação, em meios humanos e materiais, dos tribunais para realizarem tal tarefa.

3.º Não podendo, deste modo, assacar-se a tal regime jurídico, emergente da interpretação normativa feita pela decisão recorrida, a violação de um preceito ou princípio constante da lei fundamental - e não se situando obviamente no âmbito da fiscalização da constitucionalidade a apreciação da conveniência e da praticabilidade dos regimes instituídos pelo legislador infraconstitucional -, deverá proceder o presente recurso."

Não houve contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

2 - No decurso da audiência final, em processo comum, a decorrer perante o tribunal singular da comarca de Santa Maria da Feira, em que figuravam como arguidos José Gomes Loureiro e outro, o mandatário da assistente declarou não prescindir da documentação da audiência.

Foi então proferido o despacho ora impugnado onde se decidiu que as declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento seriam documentadas através de gravação áudio, mas não seriam transcritas para a acta respectiva.

Para uma tal decisão, o despacho ponderou uma interpretação do n.º 2 do artigo 101.º do Código de Processo Penal em sentido adverso ao decidido e que vinha sendo adoptada por certa corrente jurisprudencial.

Recusou-a, porém, por razões de ordem constitucional e infraconstitucional.

Em termos conclusivos, expressou-se assim o mesmo despacho:

"Pelo exposto, nos termos dos artigos 18.º, n.º 1, 204.º e 277.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, não aplico, por inconstitucional, a norma constante do n.º 2 do artigo 101.º do Código de Processo Penal com o sentido de a mesma, nos casos de documentação da audiência de julgamento mediante gravação magnetofónica ou áudio-visual, impor a transcrição do teor da respectiva gravação para a acta porquanto tal interpretação viola o disposto nos artigos 20.º, n.º 5, e 32.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, o que, desde já, declaro."

Como se disse, resulta da acta de audiência de julgamento que o mandatário da assistente declarou não prescindir da documentação da audiência.

Foi esta a razão de ter sido proferido o despacho ora impugnado.

Nele se decidiu que as declarações prestadas oralmente na audiência seriam documentadas através de gravação áudio, mas não transcritas para a acta da audiência de julgamento.

Para fundamentar tal decisão, na parte em que determinou a não transcrição em acta das declarações, o despacho afirma, com toda a clareza, que a transcrição "não é imposta por qualquer norma do Código de Processo Penal".

Porém, reconhecendo a existência de corrente jurisprudencial no sentido de que o artigo 101.º do Código de Processo Penal imporia aquela transcrição, o despacho procede a uma extensa investigação tendente a aferir do acerto de um tal entendimento.

A resposta à questão é procurada com o apuramento do sentido da norma contida no artigo 101.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e começa por se fazer "não apenas face ao elemento literal mas conjugada com os outros elementos da interpretação face aos demais artigos, atinentes à questão, existentes no Código de Processo Penal".

É, pois, no quadro do direito ordinário - o do Código de Processo Penal - que o despacho interpreta a citada norma, concluindo que a interpretação da norma contida no artigo 101.º, n.º 2, do Código de Processo Penal com o sentido de que a gravação magnetofónica ou áudio-visual e depoimentos produzidos em audiência não dispensa a sua transcrição em escrita comum para o processo "não tem suporte no elemento literal; contraria a vontade histórica do julgador, é divergente do seu enquadramento sistemático; produz consequências inversas às pretendidas pelo legislador, vai ao arrepio dos princípios fundamentais de processo penal da imediação, da oralidade e da economia processual".

Até aqui a decisão recorrida não se fundamenta em qualquer recusa de aplicação de norma (a do artigo 101.º, n.º 2, do Código de Processo Penal) com fundamento na sua inconstitucionalidade.

Simplesmente, no esforço interpretativo que faz, o despacho impugnado acaba ainda por confrontar a interpretação que contestara no plano do direito infraconstitucional com a Constituição, concluindo também que essa interpretação tornaria a norma inconstitucional por violação dos princípios da celeridade, da tutela efectiva e do direito de recurso previstos nos artigos 20.º, n.º 5 e 32.º, n.os 1 e 2, da CRP.

Por outro lado, em termos decisórios, o despacho recusa expressamente a aplicação da norma do artigo 101.º, n.º 2, do Código de Processo Penal com fundamento na violação daqueles princípios constitucionais.

Não seria, porém, determinante - e só por si - esta declaração formal para se concluir que, substancialmente, a não aplicação da norma do artigo 101.º, n.º 2, do Código de Processo Penal com o apontado sentido, assentara em razões de constitucionalidade.

Poderia, na verdade, entender-se que, fundada em aprofundados argumentos extraídos da lei ordinária, o despacho recorrido fizera também uma interpretação conforme à Constituição, o que nem em todos os casos equivalerá à recusa de aplicação da norma com fundamento em inconstitucionalidade.

E a seguir-se a orientação adoptada no Acórdão 425/89, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.º vol., t. II, p. 1203, de que, nas situações em que se configura uma pluralidade de sentidos possíveis da norma, a escolha daquele que a não torna conflituante com a Constituição não traduz uma recusa de aplicação da norma por inconstitucionalidade - no caso, a existência de uma corrente jurisprudencial contrária à que foi seguida no despacho recorrido é prova bastante de a norma em causa comportar outros sentidos - reforçaria o entendimento de que o recurso interposto tinha por objecto uma recusa de aplicação de norma que, ao fim e ao cabo, não ocorrera (em sentido divergente cf., entre outros, Acórdão 137/85, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 6.º vol., p. 321).

De todo o modo, porque se não deixa de conferir a devida relevância à declaração formal constante do despacho impugnado e, fundamentalmente, porque as razões de constitucionalidade surgem no mesmo despacho cumulativamente com as que radicam na interpretação do direito ordinário, o Tribunal passa a conhecer da invocada recusa de aplicação da norma do artigo 101.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que se impõe a transcrição, por escrito, na acta de audiência, das declarações e depoimentos documentados em gravação áudio.

Dispõe o artigo 101.º, n.º 2, do Código de Processo Penal:

"2 - Quando forem utilizados meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, o funcionário que deles se tiver socorrido, ou, na sua impossibilidade ou falta, pessoa idónea, faz a transcrição no prazo mais curto possível. Antes da assinatura, a entidade que presidiu ao acto certifica-se da conformidade da transcrição."

Para o despacho recorrido a referida transcrição violaria o princípio da celeridade processual plasmado no artigo 20.º, n.º 5, da CRP.

No que a esta infracção concerne, o despacho limita-se, porém, a dizer que o legislador, ao instituir como princípio geral a documentação da audiência, "certamente que não pretendia que daí resultasse a perda de mais tempo na transcrição da gravação pelos funcionários e posterior certificação pelo juiz desfasando por completo os princípios da celeridade (artigos 20.º, n.º 5, e 32.º, n.º 2, parte final, da Constituição da República Portuguesa) e do máximo aproveitamento dos meios disponíveis",

Em suma, segundo o mesmo despacho, feito o registo áudio da audiência, a perda de tempo que a transcrição por escrito ocasionaria contrariava aquele princípio.

Para se julgar violado o princípio da celeridade processual, o parâmetro de constitucionalidade adequado não é seguramente o da norma que consta do artigo 20.º, n.º 5 da CRP.

Na verdade, esta norma, que surge nos projectos de revisão constitucional apresentados pelo PS e pelo PCP, veio a ser consagrada na Constituição com a revisão de 1997.

Ela procura responder à necessidade sentida - no âmbito do direito a uma tutela judicial efectiva que se traduz, designadamente, no direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade - de uma protecção adequada ao exercício de certos direitos (por exemplo o direito de reunião contra uma proibição policial) de modo a impedir que a sua ofensa se torne irreversível (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3.ª ed., nota V ao artigo 20.º, p. 163).

O comando do artigo 20.º, n.º 5, tem pois um alcance diverso do que lhe atribui o despacho recorrido, sendo certo que já antes da revisão de 1997 e como no próprio preâmbulo do Código de Processo Penal se dá nota (n.º 8) a Constituição, sob influência da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 6.º, n.º 1) conferira à celeridade o "estatuto de um autêntico direito fundamental".

Com efeito, o direito a um julgamento célere estava já - como está - consagrado no artigo 32.º, n.º 2, in fine, da CRP, especificamente reportado ao processo criminal e, genericamente, considerava-se compreendido no artigo 20.º, n.º 1, o que, em termos expressos, veio a ser disposto no n.º 4 do mesmo artigo, como direito a uma decisão "em prazo razoável", com a revisão de 1997.

Não está assim em causa que a CRP consagre como direito fundamental do arguido o de ser julgado "no mais curto prazo".

Trata-se, de resto, do reconhecimento de que a prontidão na administração da justiça é fundamental para que o direito à tutela judicial tenha efectiva realização (Acórdão 1193/96, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 35.º vol., p. 529).

E se essa prontidão é, em todos os casos, exigível, mais ela se impõe no processo criminal, desde logo na defesa dos direitos do arguido que, embora presumivelmente inocente até ao trânsito em julgado da decisão condenatória - e o julgamento no mais curto prazo é uma dimensão do princípio da presunção de inocência (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 204) -, não deixa de sofrer os efeitos lesivos que a pendência do processo criminal provoca ("compressão da esfera jurídica", assim lhe chama o preâmbulo do Código de Processo Penal).

A celeridade não é, porém, uma imposição absoluta, havendo desde logo de compatibilizá-la com as garantias de defesa do arguido e as exigências decorrentes de um processo justo e equitativo que permita, antes do mais, a averiguação da verdade material e uma decisão ponderada.

Por outro lado, não se afigura justificado que um juízo de inconstitucionalidade fulmine toda e qualquer norma que, por pouco que seja, retarde o andamento do processo sem contudo prejudicar um julgamento em prazo razoável.

Muito embora sempre se possa afirmar que, em virtude da tarefa acrescida da transcrição por escrito das declarações já gravadas, há necessariamente uma demora no andamento do processo, ela não deixa de assumir uma expressão insignificante.

Por outro lado, a transcrição por escrito confere ao sistema um maior grau de segurança na conservação dos registos, pelo que, desde logo e por esta razão, se não pode ver nela uma exigência desproporcionada ou desrazoável.

A tese sustentada no despacho recorrido conduziria, no seu lógico desenvolvimento, ao absurdo de se ter por inconstitucional a norma que obriga o juiz singular a ditar para a acta o que resultar das declarações prestadas, no caso previsto no artigo 364.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sempre que o tribunal não dispuser de meios técnicos idóneos à reprodução integral das declarações (n.º 3 do mesmo artigo 364.º).

Em suma, o artigo 101.º, n.º 2, do Código de Processo Penal na interpretação recusada pelo despacho recorrido não viola o princípio da celeridade.

Também se não vê que a norma, com a interpretação em causa, viola as garantias de defesa do arguido em matéria de recurso.

Neste ponto o despacho recorrido, começando por salientar a relevância dos elementos probatórios não verbais produzidos na audiência de julgamento e que continuam a ser captáveis no caso de documentação magnetofónica ou áudio-visual, considera que a transcrição por escrito impede o tribunal superior de conhecer aqueles elementos, assim "dificultando ainda mais a concretização do direito ao recurso e a garantia de um duplo grau de jurisdição em matéria de facto consagrados no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição [...]".

Ora, em primeiro lugar, a norma do artigo 101.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, em si, pode nada ter a ver com o direito ao recurso em matéria de facto; é uma norma respeitante à feitura dos autos que, permitida a utilização de gravação magnetofónica ou áudio-visual como meio auxiliar para o efeito, determina a posterior transcrição do registo efectuado no prazo mais curto possível.

A questão do direito ao recurso só será pertinente se se conjugar esta norma com a do artigo 364.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (no caso, a audiência decorre perante tribunal singular e o advogado da assistente declarou não prescindir da documentação).

Na verdade, caberia, então, da sentença recurso para a Relação cujos poderes de cognição abrangeriam a matéria de facto e de direito (artigo 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

Transcritas em auto as declarações prestadas e gravadas em audiência de julgamento, o direito ao recurso, em matéria de facto, sofreria uma compressão substancialmente inadmissível?

Seguramente que não.

Com efeito, nada na lei processual revela que as fitas gravadas se mantenham no tribunal de 1.ª instância e que a elas não tenha acesso o tribunal superior - o artigo 412.º, n.os 3 e 4, do Código de Processo Penal aponta até em sentido contrário.

Por outro lado, é sabido que nem todos os tribunais dispõem de meios técnicos que lhes permitam a gravação áudio ou áudio-visual das audiências, o que, a ser correcta a tese do despacho recorrido, conduziria ao absurdo de a norma ser ou não constitucional consoante o tribunal dispusesse, ou não, daqueles meios - note-se que, nos termos do artigo 364.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, o juiz se limita a ditar para a acta o que resultar das declarações prestadas quando o tribunal não estiver dotado de meios idóneos à reprodução integral dessas declarações.

De todo o modo e sem embargo de se poder aceitar que a gravação áudio - e mais ainda a áudio-visual - possibilita um controlo mais aperfeiçoado da prova produzida, não parece lícito inferir que, mesmo que o tribunal superior tivesse apenas acesso à transcrição por escrito das declarações, não dispusesse ele de meios suficientes para sindicar eficazmente a matéria de facto impugnada e dada como provada em 1.ª instância em termos de se poder afirmar a violação do direito ao recurso constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP.

E não se deixa de dizer que a análise da documentação feita por escrito, sem as vantagens da imediação, proporciona, no entanto, outras possibilidades de exame crítico e ponderação da prova que o julgamento consciencioso do recurso necessariamente impõe.

Decisão:

a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 101.º, n.º 2, do Código de Processo Penal;

b) Determinar a reforma do despacho recorrido em conformidade com o julgado;

c) Conceder provimento ao recurso.

Lisboa, 5 de Abril de 2000. - Artur Maurício - Luís Nunes de Almeida - Maria Helena Brito - Vítor Nunes de Almeida - José Manuel Cardoso da Costa.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1829232.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga ao seguinte documento (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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