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Acórdão 158/2000/T, de 9 de Outubro

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Texto do documento

Acórdão 158/2000/T. Const. - Processo 468/99. - Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - Em 30 de Março de 1999, Maria Luciete Basílio Caleça foi acusada pelo Ministério Público, para julgamento em processo abreviado, pela prática de um crime de ofensas à integridade física e de um crime de injúrias (de fl. 68 a fl. 70).

No dia 23 de Abril, a arguida veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 391.º-C do Código de Processo Penal, a realização de debate instrutório (cf. o requerimento de fl. 87 a fl. 91).

O juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, porém, pelo despacho de fl. 97, recusou a aplicação do artigo 391.º-C do Código de Processo Penal, por o considerar inconstitucional, aplicando "subsidiariamente o regime geral da instrução dos artigos 286.º a 310.º do CPP". Assim, não designou data para o debate instrutório. É do seguinte teor o despacho do juiz de instrução:

"Vem requerida a realização de debate instrutório.

O tribunal considera que o disposto no artigo 391.º-C do CPP viola os direitos de defesa do arguido, o princípio da independência dos tribunais e o princípio da igualdade, todos consagrados na CRP.

E por estas razões:

1 - A fase da instrução no processo abreviado reduz-se ao debate instrutório, estando vedado ao JIC a realização de diligências de prova fora do debate e antes deste.

Com efeito, como resulta dos motivos da proposta do Governo apresentada à AR e publicamente, a fase processual da instrução é no processo abreviado concentrada no debate, não podendo o juiz realizar diligências fora do debate e antes dele.

Ora, deste modo ficam as garantias de defesa do arguido gravemente afectadas por não se assegurar a possibilidade de o arguido apresentar a sua defesa, artigo 32.º da CRP.

2 - O prazo fixado para a realização do debate não permite a conveniente instrução dos autos, com a necessária realização de diligências de prova fora do debate e antes dele (incluindo a deprecada de inquirições e interrogatórios e exames médicos e outros).

Também deste modo esta fase processual se afigura como um mero simulacro de instrução, que não permite a apresentação e defesa da versão e provas do arguido.

Nem se diga que o artigo 391.º-C, n.º 4, ressalva o artigo 299.º, pois, como é óbvio, as diligências de prova ressalvadas são as que possam ser realizadas durante o debate e no debate, tendo sido propósito manifesto do Governo não permitir a realização de diligências de prova fora do debate e antes dele, o que, aliás, resulta de se dizer que é 'correspondentemente aplicável o disposto nos artigos ...', no referido artigo 391.º-C, n.º 4, e da própria epígrafe deste artigo 'debate instrutório'.

3 - Por fim, este modo de configurar o debate viola a independência dos tribunais, pois, além de ser um simulacro de defesa, é também um simulacro de instrução, na medida em que o juiz fica praticamente vinculado à prova recolhida no inquérito e nas instruções vulgares os meios são bem outros, cabendo ao juiz proceder a todas as diligências de prova que entender necessárias, e que lhe permitam exercer autónoma e independentemente o poder jurisdicional e decidir da verificação de indícios suficientes para sujeição do arguido a julgamento. Que é o que não se verifica nos termos do artigo 391.º-C.

Aliás, esta violação da independência dos tribunais constitui, no seu reverso, uma violação do princípio da igualdade, pois, alguns cidadãos têm o direito a uma 'instrução' verdadeira e outros (os que o Ministério Público quiser!) têm apenas direito a um simulacro da instrução, em que o JIC é um juiz atado de pés e mãos à prova do inquérito e tem de apressadamente confirmar ou não a acusação! E muito apressadamente o tem de fazer, pois, tem apenas 30 dias para tanto, enquanto o Ministério Público tem 90 dias para acusar. Que juízo independente é este em que o JIC vai a 'reboque' de uma acusação do Ministério Público, limitando a sua intervenção a um debate, sem prévia realização de todas as provas que entender necessárias?

E qual a razão por que alguns cidadãos têm direito a uma verdadeira instrução e outros (os que o Ministério Público entender por bem!), só têm direito a esta instrução 'menor'?

O artigo 391.º-C é, pois, inconstitucional, por violar os atrás mencionados princípios constitucionais."

2 - Deste despacho recorreu o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (requerimento a fl. 101).

O recurso foi admitido.

Notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou as suas alegações, afirmando, no que toca à questão de constitucionalidade:

"Suscita-nos fundada perplexidade a linha argumentativa seguida na decisão recorrida para concluir pela pretensa inconstitucionalidade do específico regime do debate instrutório no âmbito do processo abreviado, recentemente instituído no processo penal como meio de assegurar a indispensável - e generalizadamente exigida - eficácia e celeridade no tratamento da pequena criminalidade.

O juízo de inconstitucionalidade precipitado na decisão recorrida assenta nos seguintes pressupostos:

A fase de instrução no âmbito do processo abreviado reduz-se imperativamente ao debate instrutório, estando vedada ao JIC a realização de diligências de prova fora do debate e antes dele, violando-se consequentemente o direito de defesa e a independência dos tribunais;

O prazo de 30 dias para a realização do debate instrutório não permite a conveniente instrução dos autos, vedando a apresentação da defesa e provas por parte do arguido;

A especificidade deste regime - e a inerente simplificação procedimental - implicam violação do princípio da igualdade, já que se traduzem em outorgar a alguns arguidos direito a uma verdadeira instrução e a outros o direito a um mero simulacro de instrução.

O primeiro argumento utilizado na decisão recorrida carece, em absoluto, de sentido, resultando clara e inquestionavelmente das remissões feitas no n.º 4 do artigo 391.º-C máxime para o estatuído no artigo 299.º do CPP, que o juiz de instrução conserva inteiramente, no âmbito desta fesa processual, os poderes investigatórios e de oficiosa inquisitoriedade próprios do processo penal: a designação da data para o debate não prejudica o dever do juiz de levar a cabo, antes do debate ou durante ele, os actos de instrução com interesse para a descoberta da verdade.

Embora obviamente se compreenda - dada a tendencial simplicidade e o interesse na celeridade inerentes a esta forma processual - que as diligências de instrução devam em regra, ser concentradas, sempre que possível, no próprio debate instrutório, a lei em vigor ressalva expressamente a possibilidade de - em casos justificados - o juiz exercer o seu poder-dever de investigação oficiosa fora do âmbito de tal debate, realizando diligências instrutórias antes de ele ocorrer.

O segundo argumento - que revela alguma insensibilidade face às necessidades de eficácia e celeridade que têm crescentemente que orientar a actividade dos tribunais - é manifestamente improcedente, não se vendo como é que o estabelecimento de um prazo máximo de 30 dias para comprovar jurisdicionalmente se certa acusação devia ou não ter sido deduzida possa contender com princípio ou preceito da lei fundamental. Aliás, temos como evidente que tal asserção é tomada sem qualquer ligação com a situação concreta dos autos, cuja óbvia e inquestionável simplicidade permitirá seguramente proferir decisão sobre o mérito da acusação em prazo muito inferior àqueles 30 dias.

Igualmente improcedente é o terceiro argumento utilizado, fundado em pretensa violação do princípio da igualdade, sendo evidente que nada na lei fundamental obsta a que o legislador estabeleça formas procedimentais adequadas à complexidade dos litígios a dirimir: tal diversidade de formas de processo - longe de representar uma discriminação ilegítima de quem a elas é submetido - traduz, em última análise, a realização de objectivos impostos pela Constituição, desde logo, do direito a alcançar uma decisão jurisdicional em prazo razoável.

3 - Conclusão - nestes termos e pelo exposto, conclui-se:

1.º A norma constante do artigo 391.º-C do Código de Processo Penal, ao prescrever o regime do debate instrutório em processo abreviado, não restringe o poder-dever do juiz de investigação oficiosa dos factos, consentindo-lhe - por força de remissão que faz para o artigo 299.º do mesmo Código - a realização de diligências instrutórias antes do debate, quando for indispensável à realização da verdade material a quebra do princípio da concentração de tais diligências no referido debate;

2.º Não viola qualquer preceito ou princípio constitucional o estabelecimento de um prazo máximo de 30 dias para ultimar o debate instrutório, o qual se revela perfeitamente adequado à complexidade das situações susceptíveis de serem objecto de tal processo e plenamente compatível com o exercício do direito de defesa e com o poder-dever da investigação oficiosa dos factos;

3.º Termos em que deverá obviamente proceder o presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida, em consonância com o juízo de constitucionalidade da norma desaplicada".

A recorrida não contra-alegou.

3 - É o seguinte o texto do artigo 391.º-C do Código de Processo Penal, aditado pela Lei 59/98, de 25 de Agosto:

"Artigo 391.º-C

Debate instrutório

1 - No prazo de 10 dias a contar da notificação da acusação, o arguido pode requerer ao juiz de instrução a realização de debate instrutório, com as finalidades a que se refere o artigo 298.º

2 - O juiz de instrução encerra o debate instrutório no prazo máximo de 30 dias a contar do requerimento a que se refere o número anterior.

3 - O despacho de pronúncia pode ser efectuado por remissão para a acusação.

4 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 287.º, n.os 2 e 3, 297.º, 299.º, 300.º a 305.º, 307.º, n.os 1 e 2, e 308.º a 310.º, podendo o arguido requerer a prática dos actos que entender necessários."

Note-se, por um lado, que o artigo 391.º-C se insere no livro VIII do Código de Processo Penal, relativo aos processos especiais, concretamente no título II (artigos 391.º-A a 391.º-E), dedicado ao processo abreviado (os restantes são o processo sumário e o processo sumaríssimo), não podendo ser desligado das restantes normas que integram a regulamentação desta forma de processo. Por outro, o seu conteúdo preceptivo abrange naturalmente a remissão para outras disposições legais, aplicáveis com as necessárias adaptações.

4 - O processo abreviado foi introduzido no Código de Processo Penal pela já referida Lei 59/98. Resulta da exposição de motivos da proposta de lei 157/VII (Código de Processo Penal, Processo Legislativo, Lisboa, 1999, vol. II, t. I, p. 14) que a criação desta nova forma de processo visou aprofundar a "distinção do tratamento processual da pequena e média criminalidade, por um lado, e da criminalidade grave, por outro". Assim, pretendeu-se uma "considerável aceleração do processamento da criminalidade menos grave", mas "sem pôr em causa o princípio de legalidade que molda o processo português, o direito de defesa e as garantias do processo equitativo".

Pressupostos da utilização deste processo especial, de acordo com o n.º 1 do artigo 391.º-A, são que esteja em causa um "crime punível com pena de multa ou com pena de prisão não superior a cinco anos, havendo provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente". Aos crimes puníveis com pena de multa ou com prisão não superior a cinco anos são equiparados aqueles relativamente aos quais o Ministério Público entenda, nos termos do n.º 3 do artigo 16.º, que não deve ser aplicada em concreto pena superior a cinco anos de prisão (cf. o n.º 2 do artigo 391.º-A). Perante o auto de notícia, ou tendo sido realizado inquérito sumário, o Ministério Público, "pode deduzir acusação para julgamento em processo abreviado, se não tiverem decorrido mais de 90 dias desde a data em que o crime foi cometido".

O regime estabelecido nos artigos 391.º-A a 391.º-E caracteriza-se pelo estabelecimento de uma nítida simplificação processual, revelada, por exemplo, num encurtamento dos prazos estabelecidos. O arguido, porém, tem o direito de requerer ao juiz de instrução a realização de debate instrutório, o qual deve todavia ser encerrado no prazo máximo de 30 dias a contar do respectivo requerimento.

O juiz de instrução considera que o conjunto normativo cuja aplicação afastou, ao definir os termos da instrução admissível, viola os direitos de defesa do arguido, o princípio da igualdade e o princípio da independência dos tribunais.

5 - No que toca aos direitos de defesa, afirma a decisão recorrida que a fase de instrução no processo abreviado se reduz ao debate instrutório, não sendo permitida ao juiz "a realização de diligências de prova fora do debate e antes dele"; não estaria, pois, assegurada a "possibilidade de o arguido apresentar a sua defesa".

Ora, a verdade é que o n.º 4 do artigo 391.º-C remete expressamente para o artigo 299.º, cujo n.º 1 determina que "a designação de data para o debate não prejudica o dever do juiz de levar a cabo, antes do debate ou durante ele, os actos de instrução cujo interesse para a descoberta da verdade se tenha entretanto revelado" (cf. as alegações do Ministério Público, e ainda António Augusto Tolda Pinto, A Tramitação Processual Penal, Coimbra, 1999, p. 496). Tal dever não pode, aliás, ser desligado da parte final do mesmo n.º 4, que consagra directamente a faculdade de o arguido "requerer a prática dos actos que entender necessários".

Assim, é parte integrante do regime legalmente fixado o poder-dever que cabe ao juiz de praticar, antes do debate ou durante a sua realização, os actos de instrução - incluindo os que tenham sido requeridos pelo arguido - que considere terem interesse para a descoberta da verdade.

Deste modo, assenta num pressuposto que se não verifica a alegação de violação dos direitos de defesa "por não se assegurar a possibilidade de o arguido apresentar a sua defesa".

6 - A invocação do princípio da igualdade pela decisão recorrida assenta na ideia segundo a qual enquanto alguns cidadãos teriam direito a uma "verdadeira" instrução, outros teriam "apenas direito a um simulacro de instrução", ou a "uma instrução menor". E isto, por um lado, porque no processo abreviado o juiz estaria "atado de pés e mãos à prova do inquérito". Por outro lado, porque o juiz teria que "apressadamente confirmar ou não a acusação", tendo em conta os curtos prazos a que está vinculado.

Também neste ponto não é procedente a argumentação.

Antes de mais, o juiz não está vinculado à prova do inquérito, porque, como já se observou, pode realizar diligências probatórias antes ou durante o debate instrutório.

É certo que o prazo (de 30 dias a contar do respectivo requerimento pelo arguido, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 391.º-C) para o juiz de instrução encerrar o debate instrutório é sensivelmente mais curto do que os prazos máximos para o encerramento da instrução em processo comum (dois a quatro meses, consoante os casos, a contar do recebimento do requerimento para abertura da instrução: artigo 306.º).

Mas esta diferença de regime, que impõe uma grande celeridade sempre que se recorra ao processo abreviado, fundamenta-se na circunstância de, quanto a crimes puníveis com pena de multa ou com prisão não superior a cinco anos (ou, relativamente aos quais o Ministério Público entenda, nos termos do n.º 3 do artigo 16.º, que não deve ser aplicada em concreto pena superior a cinco anos de prisão), existirem "provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente" (cf. os n.os 1 e 2 do artigo 391.º-A), Por esta razão, é materialmente justificada a diferença nos prazos aplicáveis, já que decorre da maior simplicidade de prova indiciária, em crimes não muito graves.

Havendo fundamento material para a distinção de regime jurídico aplicável, não pode considerar-se violado o princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º).

7 - Admita-se agora, porém, que o juiz de instrução, antes de declarar encerrado o debate instrutório, se convence de que a suposta facilidade e evidência da prova indiciária não tem base efectiva. Ao invés, chega à conclusão de que a decisão de pronunciar ou de não pronunciar o arguido se revela afinal de grande complexidade, exigindo a realização de diligências complementares, incompatíveis com os prazos do processo abreviado. Em síntese, conclui que faltam os pressupostos legais para a utilização do processo abreviado.

Nada se determina directamente nos artigos 391.º-A a 391.º-E do Código de Processo Penal sobre a possibilidade de o juiz sindicar a verificação dos pressupostos legais do processo abreviado, diferentemente do que sucede no âmbito dos restantes processos especiais.

Quanto ao processo sumário, com efeito, o artigo 390.º determina:

"Artigo 390.º

Reenvio do processo para a forma comum

Sempre que se verificar:

a) A inadmissibilidade, no caso, do processo sumário; ou

b) A necessidade, para a descoberta da verdade, de diligências de prova que não possam previsivelmente realizar-se no prazo máximo de 30 dias após a detenção; o tribunal, por despacho irrecorrível, remete os autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma processual."

Quanto ao processo sumaríssimo, verificadas determinadas condições legais (crime punível com pena de prisão não superior a três anos ou só com pena de multa, desde que o Ministério Público entenda que ao caso deve ser concretamente aplicada pena ou medida de segurança não privativas da liberdade), o Ministério Público "requer ao tribunal" que a aplicação da pena ou medida de segurança tenha lugar de acordo com esta forma processual (n.º 1 do artigo 392.º). Nos termos do artigo 395.º, o juiz rejeita o requerimento - por despacho irrecorrível - e reenvia o processo para a forma comum nas hipóteses previstas nas alíneas a) a c) do n.º 1, bem como "se o arguido deduzir oposição" (artigo 398.º).

O confronto entre a regulamentação do processo abreviado e a dos restantes processos especiais previstos no actual Código de Processo Penal poderia levar a entender que não se permite ao juiz no processo abreviado apreciar o juízo formulado pelo Ministério Público relativamente à existência de "provas simples e evidentes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente". Neste sentido, afirmou Anabela Miranda Rodrigues, na conferência parlamentar sobre a revisão do código de processo penal (Código de Processo Penal - Processo Legislativo, citado, vol. II, t. II, p. 95): "a partir do momento em que o Ministério Público considera que há prova evidente, a intervenção do juiz de instrução no debate instrutório não vem possibilitar, nunca pode possibilitar, que essa forma abreviada do processo seja recusada. Ora, isso é que me parece importante, esse controlo da prova evidente, que então seria feito pela intervenção do juiz de instrução, concordando ou não com a forma abreviada do processo, controlando, em suma, a existência da prova evidente, o que afinal falta na forma de processo criada pelo legislador".

De resto, resulta dos trabalhos preparatórios da revisão do Código de Processo Penal (cf., por exemplo, o Parecer do Conselho Superior da Magistratura, in Código de Processo Penal - Processo Legislativo, citado, vol. II, t. I, p. 387) que, na versão do anteprojecto de proposta de lei submetida a discussão pública em 1997, se previa expressamente a possibilidade de rejeição pelo juiz do requerimento do Ministério Público para julgamento em processo abreviado, com a consequente devolução dos autos ao Ministério Público e a tramitação sob outra forma processual (cf. artigos 391.º-A e 391.º-C do anteprojecto).

De acordo com a hipótese interpretativa que agora se aprecia - e que se encontra subjacente à decisão recorrida -, o juiz não pode sindicar a existência de "provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente". Vejamos se a referida hipótese interpretativa deve ter-se por compatível com a Constituição.

8 - Pode estar em causa o princípio da independência dos tribunais (tal como se afirma na decisão recorrida) ou o da reserva da função jurisdicional, hoje consagrado no n.º 1 do artigo 202.º da Constituição.

Recorde-se que o Tribunal Constitucional foi confrontado, em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade do Código de Processo Penal, de 1987 (v. Acórdão 7/87, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9.º vol., 1987, pp. 7-72), com a questão de saber se violava a Constituição a norma contida no artigo 281.º ("Suspensão provisória do processo"). Tal disposição, na versão do decreto em apreciação, permitia que o Ministério Público, verificadas certas condições, suspendesse provisoriamente o processo e impusesse certas injunções e regras de conduta. Entendeu o Tribunal que a possibilidade de suspensão do processo, em si mesma, não levantava qualquer obstáculo constitucional. Ao invés, entendeu que "a atribuição ao Ministério Publico de competência para a suspensão do processo e imposição das injunções e regras de conduta previstas na lei, sem a intervenção de um juiz, naturalmente o juiz de instrução" violava os artigos 206.º (hoje 203.º), que consagra a independência dos tribunais, e o 32.º, n.º 4, da Constituição, que reserva aos juízes a competência para a instrução.

Em contrapartida, o Tribunal Constitucional pronunciou-se numerosas vezes (ainda que com vozes discordantes) no sentido da não inconstitucionalidade da norma do n.º 3 do artigo 16.º do Código de Processo Penal de 1987, que (na redacção actualmente em vigor) comete ao tribunal singular a competência para julgar crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável seja superior a cinco anos de prisão, quando o Ministério Público entender que não deve ser aplicada em concreto pena de prisão superior a cinco anos. Ora, este Tribunal entendeu que não se verifica qualquer violação do princípio da independência dos tribunais, ou da reserva da função jurisdicional. Escreveu-se no Acórdão 393/89 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 14 de Setembro de 1989):

"Nenhum destes princípios (de independência dos tribunais e dos juízes) é violado pelo artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, pois quem julga é o juiz e não o Ministério Público.

É aquele, e não este, quem fixa a medida concreta da pena, movendo-se para tanto dentro da moldura abstracta fixada na lei.

O Ministério Público condiciona, assim, a fixação da pena do caso: como porta-voz que é do poder punitivo do Estado, diz ao juiz que, face às circunstâncias do caso e tendo presentes os critérios legais de aplicação concreta das penas, a colectividade que ele representa não pretende que ao réu se aplique por aquele caso pena superior a três anos."

9 - De acordo com a perspectiva interpretativa aceite na decisão recorrida, é atribuído ao Ministério Público o poder de determinar, verificadas certas condições, que o processo corra os seus termos segundo a forma abreviada, sem que ao juiz seja dada a possibilidade de confirmar ou não o juízo sobre a existência de prova indiciária facilitada, que é pressuposto legal da utilização do processo abreviado.

Daqui decorreria que os limites legais da actuação do juiz seriam fixados heterónoma e unilateralmente pelo Ministério Público. O Ministério Público seria, em última análise, o único juiz da verificação fáctica e jurídica dos pressupostos de que depende a possibilidade legal de actuação do processo abreviado.

Assim, não cabendo ao juiz de instrução qualquer controlo sobre a verificação de tais pressupostos, verificar-se-ia uma violação da reserva aos tribunais da função jurisdicional (e não tanto do princípio da independência dos tribunais) e do princípio de que "toda a instrução é da competência de um juiz" (n.º 4 do artigo 32.º da Constituição).

10 - Decorre do que fica dito a inevitabilidade de um juízo de inconstitucionalidade (ainda que parcial) da norma impugnada? A resposta é negativa.

Com efeito, cabe lembrar que se aplica ao processo abreviado (por remissão do n.º 4 do artigo 391.º-C) o artigo 308.º, cujo n.º 3 determina que o juiz, na decisão instrutória, "começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer".

Ora uma das "nulidades insanáveis", previstas no artigo 119.º, e "que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento", é a da sua alínea f): "o emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei".

Deste modo, é sempre possível ao juiz de instrução sindicar se a acusação do Ministério Público determinou ou não a utilização do processo abreviado "fora dos casos previstos na lei". Naturalmente, para apurar se ocorre a nulidade insanável que consiste no emprego indevido deste processo especial, o juiz de instrução aprecia a verificação dos pressupostos legalmente estabelecidos, designadamente o que consiste na existência de "provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente" (n.º 1 do artigo 391.º-A). E, se chegar à conclusão de que se não verificam, profere despacho de não pronúncia.

Consequentemente, da ponderação conjugada do artigo 391.º-C com a alínea f) do artigo 119.º e o n.º 3 do artigo 308.º, resulta uma interpretação diversa da que motivou o afastamento da aplicação daquele preceito no caso concreto, interpretação essa que o coloca ao abrigo de um juízo de inconstitucionalidade.

Assim, pelos fundamentos expostos, decide-se:

a) Nos termos do n.º 3 do artigo 80.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, interpretar o artigo 391.º-C do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, em conjugação com o n.º 3 do artigo 308.º do mesmo Código, no sentido de que, se o juiz verificar a falta de pressupostos legais do processo abreviado, deve proferir despacho de não pronúncia.

b) Julgar procedente o recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada de acordo com o juízo relativo à questão de constitucionalidade.

Lisboa, 22 de Março de 2000. - Maria dos Prazeres Beleza - José de Sousa e Brito - Messias Bento - Alberto Tavares da Costa - Luís Nunes de Almeida.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1828285.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1987-02-09 - Acórdão 7/87 - Tribunal Constitucional

    Declara não se pronunciar pela inconstitucionalidade dos artigos 108.º, n.º 2, alínea b); 135.º, n.os 2 e 3; 174.º, n.os 3 e 4; 177.º, n.º 2, com referência ao artigo 174.º, n.º 4, alíneas a) e b); 178.º, n.º 3; 187.º, n.º 1; 190.º; 200.º; 250.º, n.º 3; 251.º, n.º 1; 252.º, n.º 3; 263.º; 270.º, n.º 1; 281.º, n.os 3 e 5, salvo, quanto a este último número, consequencialmente, na parte em que ele remete para o n.º 4; 286.º, e 337.º n.os 1, alínea a), e 3, e pronunciar-se pela inconstitucionalidade dos artigos (...)

  • Tem documento Em vigor 1998-08-25 - Lei 59/98 - Assembleia da República

    Altera o Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro, na redacção introduzida pelos Decretos-Leis 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho e 317/95, de 28 de Novembro. Republicado na integra, o referido código, com as alterações resultantes deste diploma.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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