Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A - Relatório. - 1 - Anabela Mendes Maia Ventura recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29 de Novembro de 2007, que lhe rejeitou por manifesta improcedência o recurso interposto de despacho do juiz do 1.º Juízo Criminal de Almada, proferido no Proc. n.º 3004/95.0 JA PRT, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da norma do «artigo 5.º, n.º s 1 e 2, da Lei 29/99, de 12 de Maio, na parte em que, ao conceder o perdão sob condição resolutiva de reparação do lesado da indemnização que lhe é devida, a satisfazer nos 90 dias imediatos à notificação que deve para o efeito ser feita ao condenado, prejudica o condenado em razão da sua situação económica (artigo 13.º, n.º 2), não considerando o condenado igual perante a lei (artigo 13.º, n.º 1), e restringe os seus direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 2), sem que essa restrição de direitos, liberdades e garantias revista carácter geral e abstracto (artigo 18.º, n.º 3, todos da Constituição da República Portuguesa)».
2 - A recorrente foi condenada criminalmente, juntamente com outras duas arguidas, na pena efectiva de 2 anos e 6 meses de prisão e, solidariamente, em indemnização à ofendida.
A recorrente apenas cumpriu parte dessa pena, tendo beneficiado do perdão de um ano de prisão, ao abrigo da Lei 29/99, mas sob a condição de satisfazer a indemnização em que fora condenada no prazo de 90 dias imediatos à notificação que para o efeito lhe foi feita.
Entendendo haver satisfeito esta condição resolutiva, a arguida requereu ao tribunal da condenação que a considerasse cumprida, por estar a pagar a dívida emergente da condenação em processo de execução, mediante penhora de parte do seu salário, e, caso assim se não pensasse, que lhe fosse concedido novo prazo de 90 dias a contar de notificação para o efeito.
A pretensão da recorrente, sob qualquer das suas vertentes, foi desatendida por decisão da 1.ª instância.
Inconformada, a arguida recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, continuando a defender os seus já referidos pontos de vista e suscitando a questão da inconstitucionalidade do artigo 5.º, n.º s 1 e 5, da Lei 29/99, porque «prejudica o condenado em razão da sua situação económica (artigo 13.º, n.º 2), não considerando o condenado igual perante a lei (artigo 13.º, n.º 1), e restringindo os seus direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 2), sem que essa restrição de direitos, liberdades e garantias revista carácter geral e abstracto (artigo 18.º, n.º 3, todos da Const. da República Portuguesa)».
3 - O tribunal ora recorrido rejeitou, por manifesta improcedência, o recurso interposto, tendo-se abonado para decidir a questão de inconstitucionalidade que lhe fora colocada nas seguintes considerações:
VIII. Resta, agora, dedicar a atenção merecida à invocação da inconstitucionalidade dos n.º s 1 e 2, do artigo 5º, da Lei 29/99, por violação do princípio da igualdade dos cidadãos, consagrada no artigo 13.º n.º s 1 e 2 e 18.º n.º s 2 e 3, da CRP.
O tratamento jurídico do princípio da igualdade, enquanto princípio estruturante do sistema constitucional global, com o significado de que ninguém pode ser beneficiado, prejudicado ou privado de qualquer direito em função, além do mais, da situação económica, tem sido objecto de tratamento jurisprudencial uniforme no sentido de, numa das suas irradiações, proibir discriminações injustificadas, visto o disposto no artigo 13.º n.º 1, da CRP. O preceito apenas veda o tratamento desigual daquilo que é igual, não já diferenciação de tratamento de situações desiguais.
O princípio da igualdade desdobra-se, assim, na obrigação de tratar de forma igual aquilo que é igual e desigual aquilo que é desigual. A obrigação de diferenciação surge como a forma mais justa, logo em manifestação do princípio da igualdade, de tratar situações desiguais.
O que se exige, para actuação prática do princípio, é que as medidas sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiam em qualquer motivo constitucionalmente impróprio. As diferenciações são legítimas quando assentam numa distinção objectiva de situações, tenham em vista um fim legítimo e se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas ao seu objectivo (cf. Constituição da República Portuguesa, Anotada, Coimbra Editora, 128, Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira).
A recorrente, sem, no entanto, aduzir uma verdadeira razão de inconstitucionalidade por ofensa ao princípio da igualdade na revogação do perdão por incumprimento da função de reparar os danos que causou com a sua conduta criminalmente ilícita, não tem razão na invocação que faz. De facto a revogação do perdão por incumprimento da reparação apenas se aplica aos condenados que não hajam cumprido a obrigação de reparação, não se podendo dizer que seja materialmente injusta aquela obrigação; que esta seja «irrazoável e arbitrária» (cf. o Ac. do TC, n.º 108/99, DR 2.ª série, de 1/4/99). É razoável, justo e proporcionado que o legislador, se o arguido quer beneficiar do perdão de pena de prisão, ponha a seu encargo a satisfação dos prejuízos que causou; o Estado pode dispor do seu poder punitivo, mas já não pode (ou deve) dispor do interesse do lesado, assegurado por um poder soberano.
Por outro lado do que se trata, com a imposição legal em causa não é de prejudicar alguém em virtude da sua situação económica, mas outrossim de impedir incondicionalmente que o obrigado prive o lesado de ser ressarcido, o que redundaria em seu injustificado desfavor; ao fim e ao cabo tratando-se diferenciadamente quem o deve ser.
Também se não trata de tratar o arguido que foi condenado pela prática de grave crime de natureza patrimonial, que por deficiência económica se não acha em condições de satisfazer a condição do perdão, de forma diferenciada dos restantes cidadãos que, por deficientes condições económicas não satisfazem as suas dívidas, porque aqueles cometeram um crime, sendo a reparação imposta em condenação a consequência da prática do ilícito, nos termos do artigo 129º, do CP.
Está, pois, o legislador legitimado para estabelecer imposições, que se nos afiguram inteiramente pertinentes, consoante os interesses a acautelar e os fins visados com a punição, as quais estão fora da dimensão da proibição do arbítrio (cf. Ac. do TC, de 2/11/99, in BMJ 491, 5.
Por lado a lei de amnistia trata de forma igual todos os cidadãos que se encontrem na situação das arguidas, não representando a aplicação da lei qualquer discriminação.
Para esta argumentação e solução remetemos a recorrente a qual, de resto já era conhecedora uma vez que desse aresto havia sido notificada.
Por último, a pretensão da recorrente em que lhe seja concedido novo prazo de 90 dias não tem agora qualquer possibilidade de ser satisfeito pelas razões acima expendidas relativas ao tempo decorrido desde o cometimento do acto ilícito, da condenação proferida e da notificação, que lhe foi feita há mais de 1 ano, ou seja, pelo menos há quatro vezes o prazo de 90 dias, para a reparação ser efectuada, uma vez que o deferimento dessa pretensão só representaria o adiamento do problema para mais tarde, em suma, uma fuga em frente que contraria frontalmente as razões que presidiram à concessão do perdão nos moldes condicionados que a lei adoptou.
Assim sendo, afigura-se manifesto que o alegado não pode, manifestamente, merecer acolhimento.
4 - Dizendo-se mais uma vez inconformada, a recorrente interpôs o presente recurso para o Tribunal Constitucional. Tendo o relator inicialmente decidido não conhecer dele, veio tal decisão a ser alterada pela conferência, nos termos do n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, em deferimento de reclamação deduzida pela recorrente.
5 - Notificada para alegar sobre o objecto do recurso, a recorrente concluiu do seguinte jeito o seu discurso argumentativo:
«1. A arguida e recorrente indicou à queixosa/exequente os seus vencimentos, que esta nomeou à penhora, para pagamento da indemnização arbitrada, com a notificação a que alude o artigo 5.º, n.º 2, da Lei 29/99, de 12.05.
2 - Desde 05/2007 e até hoje que os vencimentos da arguida se encontram penhorado, sendo os respectivos descontos depositados à ordem do Tribunal.
3 - Com tal penhora e descontos nos vencimentos da arguida, que são depositados à ordem do Tribunal, entendemos que o artigo 5.º, n.º s 1 e 2, da Lei 29/99, de 12.05, ao conceder o perdão sob condição resolutiva de reparação ao lesado da indemnização que lhe é devida, a satisfazer nos 90 dias imediatos à notificação que deve para o efeito ser feita ao condenado, prejudica o condenado em razão da sua situação económica (art. 13º, n.º 2), não considerando o condenado igual perante a lei (art. 13º, n.º 1), e restringindo os seus direitos, liberdades e garantias (art. 18º, n.º 2), sem que essa restrição de direitos, liberdades e garantias revista carácter geral e abstracto (art. 18º, n.º 3, todos da Const. República Portuguesa).
4 - Acrescendo que, em prisão, no caso desta ser decretada com a revogação do perdão concedido, a arguida não poderá pagar à queixosa/exequente a indemnização fixada, por deixar de auferir vencimentos.
5 - Donde ser inconstitucional o artigo 5.º, n.º s 1 e 2, da Lei 29/99, de 12.05, que determina que a arguida satisfaça, nos 90 dias imediatos à notificação que para o efeito lhe será feita, a indemnização a que foi condenada, sob condição resolutiva, com a revogação do perdão de 1 ano concedido, no caso da reparação ao lesado não ocorrer no prazo indicado, inconstitucionalidade, essa, que se verifica por o condenado estar a pagar ao lesado com a penhora dos seus vencimentos, que indicou ao lesado, e por não ter outros meios para pagar, com excepção daqueles que declarou para penhora.
6 - É inconstitucional o artigo 5.º, n.º s 1 e 2, da Lei 29/99, de 12.05, na parte em que revoga o perdão concedido quando há penhora dos seus vencimentos, que indicou ao lesado, para pagar a indemnização arbitrada a este, por violação dos artigos 13º, n.º s 1 e 2, e 18º, n.º s 2 e 3, da Const. da República Portuguesa.».
6 - O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional, contra-alegou, concluindo:
«1. Não é inconstitucional a norma do artigo 5.º, n.º 1 e 2 da Lei 29/99, de 12 de Maio, na medida em que estabelece o pagamento da indemnização devida, nos noventa dias imediatos à notificação do condenado, como condição resolutiva à concessão do perdão da pena.
2 - Termos em que não deverá proceder o presente recurso.»
B - Fundamentação. - 6 - O objecto do recurso cinge-se, como decorre da decisão que deferiu a reclamação, à questão de saber se a aposição, como condição à concessão do perdão de um ano concedido pelo artigo 1.º, n.º 1, da Lei 29/99, de 12 de Maio, do pagamento da indemnização ao lesado, no prazo de 90 dias imediatos à notificação que para o efeito será feita ao condenado, nos termos previstos no artigo 5.º, n.º s 1 e 2, da mesma Lei, é constitucionalmente inválida, em face das normas e princípios constitucionais, quer sejam os apontados pela recorrente, quer seja de outros.
O artigo 1.º, n.º 1, da referida Lei estatui que nas infracções praticadas até 25 de Março de 1999, inclusive, é perdoado um ano de prisão [...].
A concessão deste perdão foi sujeita, porém, a condição resolutiva. Na verdade, os n.º s 1 e 2 do artigo 5.º dispõem que:
1 - Sempre que o condenado o tenha sido também em indemnização o perdão é concedido sob condição resolutiva de reparação ao lesado ou, nos casos de crime de emissão de cheque sem provisão, ao portador do cheque.
2 - A condição referida no número anterior deve ser satisfeita nos 90 dias imediatos à notificação que para o efeito será feita ao condenado.
7 - Antes de mais, importa caracterizar o perdão genérico de penas, por a resolução da concreta questão contender com tal categoria dogmática e os termos da sua sujeição aos cânones constitucionais.
O perdão de penas constitui uma medida de clemência ou de graça «do príncipe» que é aplicada em função das penas em que as pessoas foram condenadas.
Como medida de clemência, o perdão emerge de um acto político, tornado fonte jurígena de efeitos sobre as penas aplicadas (sobre a compreensão da clemência como virtude do legislador, cf. Cesare Beccaria, Dos Delitos e das Penas, tradução de José Faria Costa, 2.ª edição da Fundação Calouste Gulbenkian, p. 161).
Ele impede a execução da pena aplicada pela prática de crimes (cf. sobre a acepção do conceito e das figuras afins, entre outros, Pedro Duro, «Notas sobre alguns limites do poder de amnistiar», Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Ano II, n.º 3, 2001, pp. 323 e segs. e Francisco Aguilar, Amnistia e Constituição, Almedina, pp. 37 e segs).
Na medida em que se traduz num irrelevar, para efeitos do seu cumprimento, da pena concretamente aplicada pela prática de um crime tipificado e cominado na lei - ou visto de outro ângulo, numa desconsideração, total ou parcial, da pena aplicada que foi abstractamente adstringida pelo legislador à violação dos bens jurídico-penais que a definição do tipo legal encerra - o perdão genérico de penas é, por regra, por isso, decretado pelo órgão com competência para definir esse ilícito criminal.
Nesta perspectiva, ele é, ainda, um meio específico de concretização da política criminal referente à efectivação das penas aplicadas pela prática dos crimes definidos na lei.
Tratando-se de uma medida de clemência geral que é aplicada a todos em função das penas aplicadas, o perdão é um perdão geral.
Na medida, porém, em que o perdão genérico opera em função das penas aplicadas e abrange, em princípio, todos os condenados, ele distingue-se da amnistia e do indulto.
A própria Constituição reconhece, a partir da revisão de 1982, com o aditamento à parte final da alínea f) do artigo 164.º da expressão «e perdões genéricos», de par com a referência à amnistia e com a previsão já constante do artigo 137.º, n.º 1, alínea e), de competência do Presidente da República para conceder indultos e comutações de penas aplicadas, a diferenciação dos conceitos.
E, assumindo os conceitos tradicionais, presentes no texto constitucional, o artigo 126.º do Código Penal de 1982, publicado posteriormente a tal revisão, a que corresponde agora o artigo 128.º do actual Código Penal, e focando tais institutos pelo lado dos efeitos que desencadeiam, diz que a amnistia «extingue o procedimento criminal (amnistia própria) e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança» (amnistia própria, na primeira situação, e amnistia imprópria no segundo caso); que o perdão genérico «extingue a pena, no todo ou em parte» e que o indulto «extingue a pena, no todo ou em parte, ou substitui-a por outra mais favorável prevista na lei» (para uma compreensão histórica da amnistia, cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 444/97, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Deste modo, a amnistia atinge a punibilidade dos actos definidos como crimes; actua em função dos crimes, deixando os actos praticados até ao momento histórico-jurídico considerado de poderem ser enquadrados nos tipos legais amnistiados.
A amnistia apaga retroactivamente a punibilidade criminal dos factos típicos, continuando os tipos penais a valerem, por inteiro, para o futuro.
Por seu lado, o indulto atinge apenas a pena concretamente aplicada a uma concreta pessoa por decisão transitada em julgado, extinguindo-a, no todo ou em parte, ou alterando-a ou suspendendo-a; falando-se nestas últimas situações de comutação de penas.
A Constituição da República Portuguesa atribui a competência exclusiva para conceder amnistias e perdões genéricos à Assembleia da República, na alínea f) do artigo 161.º
Tal reserva absoluta de competência da Assembleia da República encontra, exactamente, o seu fundamento material naquele elemento de o perdão genérico defluir de um acto essencialmente político com reflexos sobre a política criminal concretamente adoptada pelo parlamento quando procede à definição dos tipos penais e previsão das correspondentes medidas sancionatórias.
Já a concessão do indulto e comutação de penas está atribuída à competência própria do Presidente da República, estando o seu exercício dependente da audição do Governo [artigo 134.º, alínea f), da CRP].
8 - Embora a concessão do perdão genérico - única figura que agora nos interessa - seja efeito de um acto político, que pode ter por causa as mais diversas motivações (cf., referindo-se à amnistia, os Acórdãos n.os 444/97 e 510/98, ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), como sejam a magnimidade por occasio publicae laetitia excepcional, razões de política geral de apaziguamento ou outras, de correcção de determinadas ponderações anteriores efectuadas pelo direito ou do modo da sua aplicação pela jurisprudência ou pela administração, ela expressa-se através de uma lei em sentido material.
Ora, cabendo a sua edição na competência do legislador ordinário, tomada no campo da política criminal, não pode deixar de se lhe reconhecer discricionariedade normativo-constitutiva na conformação do seu conteúdo.
Referindo-se à circunstância de as Leis n.º s 23/91, de 4 de Julho, 15/94, de 11 de Maio e 29/99 não terem contemplado, nos perdões genéricos concedidos, a medida de segurança de internamento, disse-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/02, disponível em www.tribunalconstitucional.pt:
«Neste domínio, o Tribunal Constitucional vem entendendo, com significativa reiteração, que, nos óbvios parâmetros do Estado de direito democrático, a liberdade de conformação legislativa goza de alargado espaço onde têm lugar preponderantes considerações não necessariamente restritas aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado, mas também outras ditadas pela conveniência pública que, em última instância, entroncam na raison d'Etat.»
Mas essa discricionariedade normativo-constitutiva não é ilimitada: ela tem de respeitar as normas e os princípios constitucionais.
Estas normas e princípios constitucionais surgem sempre como um limite à actividade legiferante do órgão constitucionalmente competente para dispor sobre a matéria.
Entre os princípios, cujo respeito se impõe ao legislador ordinário competente para dispor sobre o perdão genérico das penas, contam-se o invocado pela recorrente, o princípio da igualdade perante a lei e na lei (cf. além dos referidos Acórdãos, Pedro Duro, op. cit., p. 336, e Francisco Aguilar, op. cit, p. 209).
No que importa à primeira dimensão, importa reconhecer que o legislador do perdão genérico não o desrespeitou.
Na verdade, o perdão foi concedido a todos condenados que houvessem praticado os mesmos crimes pelos quais a recorrente foi condenada e se encontrassem na mesma situação.
O perdão abrange todas as pessoas que sejam condenadas pela prática, até ao momento considerado na lei, de todas as categorias de crime, à excepção das pessoas condenadas que se encontrem em determinada situação, nela definida de forma geral e abstracta (n.º 1 do artigo 2.º da Lei 29/99), ou hajam praticado certas categorias de crimes (n.º 2 do mesmo artigo).
Por outro lado, o estabelecimento do pagamento, dentro de certo prazo, da indemnização como condição resolutiva da concessão do perdão mostra-se também feito de forma geral e abstracta, colocando todos os condenados em penas de prisão que o tenham sido igualmente no pagamento de indemnizações aos lesados na mesmíssima situação quanto ao benefício da clemência.
Cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger, quer a medida do perdão de penas - o quantum do perdão - , quer, em princípio, as espécies de crimes ou infracções a que diga respeito a pena aplicada e perdoada, quer a sujeição ou não a condições, desde que o faça de forma geral e abstracta, para todas as pessoas e situações nela enquadráveis.
Importa, agora, saber se os preceitos referidos violam o princípio da igualdade na lei ou se, ao invés, como alega a recorrente, procedem a uma discriminação ilegítima em razão da situação económica do condenado.
Na óptica da recorrente, ao conceder o perdão sob a condição resolutiva do pagamento ao lesado da indemnização arbitrada, dentro de certo prazo, a lei discriminaria o condenado sem capacidade económica para a solver relativamente àquele condenado que a possui, tratando-o desigualmente.
Já se viu que as pessoas beneficiárias do perdão de penas se encontram na mesma situação quanto à sua sujeição à referida condição resolutiva do pagamento da indemnização dentro de certo prazo.
Pode, porém, acontecer que os beneficiários do perdão tenham, no plano de facto, diferente capacidade económica para poderem satisfazer a indemnização em que foram condenados e assim satisfazer a condição resolutiva.
No artigo 13.º, n.º 2, a Constituição estabelece que «ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão [...] da situação económica [...]».
Mas igualdade não é igualitarismo.
O Tribunal Constitucional tem uma vasta jurisprudência sobre o princípio da igualdade.
Reflectindo o estado actual da compreensão do princípio da igualdade, tanto na jurisprudência como na doutrina, nacionais e estrangeiras, afirmou-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2003 (publicado no Diário da República 1.ª série-A, de 17 de Junho de 2003), assumindo em diversos passos da sua fundamentação abundante argumentação de jurisprudência anterior:
[...] Princípio estruturante do Estado de Direito democrático e do sistema constitucional global (cf., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pág. 125), o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cf. ob. cit., pág. 129) o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos cidadãos e, por outro lado, da "atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (artigo 18.º, n.º 1, da Constituição) (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/90, publicado no Diário da República 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990).
[...]
1.2 - O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, «razoável, racional e objectivamente fundadas», sob pena de, assim não sucedendo, «estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes», no ponderar do citado Acórdão 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J. C. Vieira de Andrade - Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299).
Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como «princípio negativo de controlo» ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador - cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 127 e, por exemplo, os Acórdãos n.º s. 157/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 26 de Julho de 1988, e os já citados n.º s. 330/93 e 335/94 - sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial («tertium comparationis»). A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminando o arbítrio (cf., a este propósito, Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, pág. 327; Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 425; Acórdão 330/93).
Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cf. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pág. 381; Alves Correia, ob. cit., pág. 402) o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da «diferença» de modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação.
[...]
[...] O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da igualdade impõe que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da mesma maneira e que situações pertencentes a categorias essencialmente diferentes tenham tratamento também diferente. Admitem-se, por conseguinte, diferenciações de tratamento, desde que fundamentadas à luz dos próprios critérios axiológicos constitucionais. A igualdade só proíbe discriminações quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional [cf., nomeadamente, os Acórdãos n.º s 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol. (1988), p. 233 e ss., e 16.º vol. (1990), pp. 383 e ss., 395 e ss. e 411 e ss., respectivamente; cf., igualmente, na doutrina, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2.ª ed., 1993, p. 213 e ss., Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6.ª ed., 1993, pp. 564-5, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 1993, p.125 e ss.].
[...]
Assente a possibilidade de estabelecimento de diferenciações, tornar-se-á depois necessário proceder ao controlo das normas sub judicio, feito a partir do fim que visam alcançar, à luz do princípio da proibição do arbítrio (Willkürverbot) e, bem assim, de um critério de razoabilidade.
Com efeito, é a partir da descoberta da ratio da disposição em causa que se poderá avaliar se a mesma possui uma "fundamentação razoável" (vernünftiger Grund), tal como sustentou o "inventor" do princípio da proibição do arbítrio, Gerhard Leibholz (cf. f. Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio da igualdade, Coimbra, 1989, pp. 419ss). Essa ideia é reiterada entre nós por Maria da Glória Ferreira Pinto: «[E]stando em causa [...] um determinado tratamento jurídico de situações, o critério que irá presidir à qualificação de tais situações como iguais ou desiguais é determinado directamente pela ratio do tratamento jurídico que se lhes pretende dar, isto é, é funcionalizado pelo fim a atingir com o referido tratamento jurídico. A ratio do tratamento jurídico é, pois, o ponto de referência último da valoração e da escolha do critério» (cf. Princípio da igualdade: fórmula vazia ou fórmula 'carregada' de sentido?, sep. do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, Lisboa, 1987, p. 27). E, mais adiante, opina a mesma Autora: «[O] critério valorativo que permite o juízo de qualificação da igualdade está, assim, por força da estrutura do princípio da igualdade, indissoluvelmente ligado à 'ratio' do tratamento jurídico que o determinou. Isto não quer, contudo, dizer que a ratio do tratamento jurídico exija que seja este critério, o critério concreto a adoptar, e não aquele outro, para efeitos de qualificação da igualdade. O que, no fundo, exige é uma conexão entre o critério adoptado e a ratio do tratamento jurídico. Assim, se se pretender criar uma isenção ao imposto profissional, haverá obediência ao princípio da igualdade se o critério de determinação das situações que vão ficar isentas consistir na escolha de um conjunto de profissionais que se encontram menosprezados no contexto social, bem como haverá obediência ao princípio se o critério consistir na escolha de um rendimento mínimo, considerado indispensável à subsistência familiar numa determinada sociedade» (ob. cit., pp. 31-32).
[...].
Ora, a imposição da analisada condição resolutiva não se afigura destituída de fundamento material ou racional bastante, de modo algum podendo ser tida como medida irrazoável ou arbitrária.
A indemnização encontra a sua justificação na prática do crime. É a prática do acto ilícito criminalmente que constitui causa ou fundamento jurídico da condenação do arguido no pagamento da indemnização ao ofendido.
Nesta medida, ela é também um efeito jurídico da prática do crime, tal como o é a condenação na pena criminal.
É claro que a pena visa satisfazer, essencialmente, interesses do Estado, de reconstituição da paz jurídica entre a comunidade social e o criminoso, conseguida através de medida funcionalizada para a prevenção geral e para a sua ressocialização, e que a indemnização pretende «reparar um dano» provocado ao ofendido, procurando reconstituir a situação que existiria se não fora a verificação do «evento que obriga à indemnização» (cf. artigos 483.º e 562.º do Código Civil).
Nesta perspectiva, trata-se de efeitos jurídicos autónomos.
Só que a condenação em indemnização não deixa de corresponder a uma concreta decorrência, ainda, da ilicitude (criminal) do facto praticado e de reacção do sistema jurídico, aqui, em protecção ou favor do lesado.
Ela mantém uma conexão íntima com a prática do crime. Essa relação intrínseca entre a prática do crime e o dever de reparar o dano provocado é, de resto, assumida, expressamente, pelo Código Penal quando determina, no artigo 71.º, que se relevem as consequências do crime e a conduta destinada a repará-las para efeitos de determinação da medida da pena, e, quando prevê, nos artigos 50.º, n.os 1 e 2, e 52.º, n.º 1, alínea b), a possibilidade de, nas condições aí definidas, a pena aplicada ser suspensa, mediante o pagamento da indemnização ou a garantia do mesmo por meio de caução idónea, sendo que o Tribunal Constitucional, apreciando esta última norma, considerou que ela não é inconstitucional (cf. Acórdão 596/99 e Acórdão 440/87, este relativamente ao correspondente preceito do C. Penal de 1982; cf., ainda, referindo-se ao artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido do imposto em dívida e respectivos acréscimos legais, os Acórdãos n.º s 256/03, 335/03, 500/05 e 29/07, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Aquela conexão intrínseca era, aliás, a razão pela qual já o artigo 34.º do Código de Processo Penal, de 1929, consagrando o princípio da oficiosidade do arbitramento da indemnização, estabelecia que «o juiz, no caso de condenação, arbitrará aos ofendidos uma quantia como reparação por perdas e danos, ainda que não tenha sido requerida».
E não obstante o legislador do actual Código de Processo Penal ter optado pelo princípio da adesão da acção cível à acção penal, obrigando à dedução do respectivo pedido de indemnização, ao dispor no artigo 71.º que "o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei", não deixa tal opção de se basear na conexão íntima da relação de indemnização com a relação penal.
Nessa medida, bem se compreende que o órgão competente (Assembleia da República) do titular do poder de clemência e, simultaneamente, do «ius puniendi» - o Estado - possa considerar que a paz jurídica só ficará, em caso de perdão de pena, totalmente satisfeita se o condenado também em indemnização pela prática do crime reparar efectivamente o dano provocado ao lesado.
Sendo o perdão uma medida de clemência que extingue, total ou parcialmente, a pena do crime pelo qual o arguido foi condenado, mas não extinguindo a ilicitude criminal e a ilicitude civil dos factos praticados, bem se justifica que o legislador da clemência, dentro da sua discricionariedade ponderativa de todos os bens jurídicos ofendidos (penais e civis) entenda não ser ela de conceder quando existam efeitos civis indemnizatórios que tornam ainda presente a necessidade de paz jurídica com o lesado.
Existe, pois, razão material bastante para justificar a irrelevação, na concessão da graça do perdão genérico, da situação económica em que se encontra o seu beneficiário.
Não se verifica, por isso, a violação do princípio da igualdade.
E também não ocorre a alegada violação do artigo 18.º, n.º s 2 e 3, da CRP.
Na verdade, a sujeição da concessão do perdão à condição resolutiva de pagamento da indemnização em que foi condenado, dentro de certo prazo, não contende com qualquer direito, liberdade ou garantia fundamental de que o mesmo sentenciado seja titular que caiba na previsão dos referidos preceitos.
Mas independentemente disso, acresce que o condicionamento se mostra feito de forma geral e abstracta, aplicando-se a todos os abrangidos pelo perdão que tenham sido também condenados no pagamento de indemnização ao lesado, e que o mesmo tem fundamento material.
C - Decisão. - 9 - Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 25 UCs.
Lisboa, 7 de Outubro de 2008. - Benjamim Rodrigues - João Cura Mariano - Mário José de Araújo Torres - Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, nos termos da declaração anexa) - Rui Manuel Moura Ramos (votei a decisão ainda que não tenha superado todas as dúvidas que a invocação do princípio da igualdade me suscitou e que demandariam um estudo mais alargado).
Declaração de voto
Ainda que com alguma dúvida, resultante da impossibilidade de uma reflexão esgotantemente ponderadora das consequências sistémicas da posição assumida, não acompanhei a decisão, por entender que o regime questionado é, numa certa dimensão, passível de censura constitucional.
É-o na medida em que o n.º 2 do artigo 5.º da Lei 29/99, de 12 de Maio, estabelece o prazo de 90 dias para o condenado satisfazer a indemnização devida ao lesado, sob pena de resolução da concessão do perdão. Se a aposição desta condição resolutiva, em si mesma, é constitucionalmente válida, já o mesmo se não poderá dizer da não previsão de uma «cláusula de salvaguarda», que permitisse relevar situações de absoluta e comprovada impossibilidade de pagamento.
Sendo inteiramente «cego» em relação a situações económicas efectivamente impossibilitantes do cumprimento dentro daquele prazo, a norma em causa trata igualmente situações desiguais, sem fundamento bastante, em violação do princípio da igualdade.
Nem se diga, como se pode ler na sentença recorrida, que «o Estado pode dispor do seu poder punitivo, mas já não pode (ou deve) dispor do interesse do lesado, assegurado por um poder soberano».
Pois, na verdade, não se trata de dispor do crédito indemnizatório do lesado. Este permanece incólume, na sua esfera jurídica. Do que se trata é de não condicionar o exercício do poder punitivo à satisfação de uma indemnização, em certo prazo, sem qualquer margem para atendimento de situações de total indisponibilidade económica, impeditivas de satisfação, no prazo fixado (mesmo que susceptível de prorrogação, por igual período) da indemnização em dívida.
O caso dos autos é bem ilustrativo da carência de justificação razoável da irrelevância normativa dessa situação e dos efeitos perversos a que ela pode conduzir. A condenada indicou à penhora o seu único rendimento disponível: o salário auferido como remuneração do trabalho. A resolução do perdão, com o consequente retorno à prisão, acarreta a perda desse rendimento, o que vem a redundar, ao fim e ao cabo, também num prejuízo para o lesado, sem que se descortine qualquer valor ou interesse suficientemente fundamentador da solução. - Joaquim de Sousa Ribeiro.