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Acórdão 213/2008, de 5 de Maio

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Sumário

Não julga inconstitucional a norma do artigo 125.º do Código de Processo Penal na interpretação segundo a qual é permitida a admissão e valoração de provas documentais relativas a listagens de passagens de um veículo automóvel nas portagens das auto-estradas, que foram registadas pelo sistema de identificador da «Via Verde», armazenadas numa base de dados informatizada e ulteriormente juntas ao processo criminal, sem o consentimento do arguido e por mera determinação do Ministério Público

Texto do documento

Acórdão 213/2008

Processo 671/07

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório

António França Brandão foi condenado por sentença proferida em 16 de Novembro de 2006, no processo comum, com tribunal singular, n.º 1536/04.0 PBAVR, pendente no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Albergaria-a-Velha:

a) Pela autoria material de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, na pena de 280 dias de multa, à taxa diária de (euro) 10,00;

b) Pela autoria material de um crime de injúrias, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de (euro) 10,00;

c) Em cúmulo jurídico das referidas penas, na pena única de 330 dias de multa, à taxa diária de (euro) 10,00;

d) Na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses;

e) E, ainda, no pagamento à demandante Elisabete Ferreira Peralta da indemnização no montante de (euro) 650,00, acrescida de juros à taxa legal vencidos desde 16 de Junho de 2006 até integral pagamento.

Foi interposto recurso da referida decisão pelo arguido, pugnando este pela nulidade da sentença condenatória, com fundamento, para além do mais, na valoração pelo tribunal de 1.ª instância de provas nulas, porque obtidas mediante ilegítima intromissão na vida privada.

O Tribunal da Relação de Coimbra viria a julgar este recurso totalmente improcedente, por acórdão de 9 de Maio de 2007, mantendo assim a sentença recorrida.

Para tanto, o Tribunal da Relação de Coimbra fundamentou essa decisão da seguinte forma, na parte que ora releva:

«[...]

3.3 - Se é ou não (e corolário, neste caso) admissível a valoração como meio de prova do documento junto a fls. 198/203 dos autos (conclusões 9.ª a 17.ª).

A resposta apresentada pelo recorrido Ministério Público, a propósito, mostra-se pertinente, motivo porque a seguiremos de perto.

Assim:

A Lei 67/98, de 26 de Outubro [Lei da Protecção de Dados Pessoais], define como 'Dados pessoais', qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular, identificada ou identificável ('titular dos dados'), é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social.

O tratamento de tais 'dados pessoais' mostra-se, todavia, submetido a diversas medidas tendentes a acautelar a respectiva segurança e confidencialidade.

Na verdade, em especial, o seu artigo 17.º, n.º 1, disciplina que os responsáveis do tratamento de dados pessoais, bem como as pessoas que, no exercício das suas funções, tenham conhecimento dos dados pessoais tratados, ficam obrigados a sigilo profissional mesmo após o termo das suas funções.

Vale por dizer no caso concreto, que a responsável pelo tratamento de tais dados - Via Verde Portugal Gestão de Sistemas Electrónicos de Cobrança, S. A. - , bem como o seu pessoal, se encontravam obrigados ao dever de sigilo profissional - o qual, é consabido, se traduz na proibição de revelar factos ou acontecimentos de que se teve conhecimento ou que foram confiados no exercício ou em razão de uma actividade profissional.

Este dever, correspondente ao intuito de evitar a devassa à reserva da vida privada alheia, não é, porém, absoluto.

Norma nuclear respeitante ao regime constitucionalmente fixado para os direitos, liberdades e garantias é a constante do artigo 18.º da CRP e em cujos termos se mostra admissível a restrição de certos direitos fundamentais, para garantir a salvaguarda de outros com igual arrimo legal. Princípios norteadores são os de que tais restrições se limitem ao estritamente necessário para alcançar os objectivos, apontando-se como critério aferidor o de uma proporcionalidade entre os meios legais restritivos e os fins obtidos. Isto é, em outras palavras, respigadas da dita resposta, 'a limitação dos direitos deverá mostrar-se necessária e ser imposta com fundamento em motivo social relevante, num justo equilíbrio entre o interesse público e a vida privada do cidadão.'

O artigo 35.º, n.º 4, da CRP concretiza esta orientação, exigindo que seja a lei a estabelecer as condições de acesso a dados pessoais de terceiros.

O fundamento da discórdia do recorrente traduz-se em que não existe como legalmente tipificado um qualquer regime que permita o acesso aos dados pessoais constantes dos documentos juntos a fls. 199 a 203, em especial, à listagem das passagens registadas pelo identificador 'via verde', associado ao automóvel 64-11-XB.

Quid iuris?

Pelo contrário, adiantamos, o regime penal adjectivo contém normas expressas relativas à problemática da quebra de sigilo.

Ao que ora releva, o decorrente do artigo 182.º, n.º 1, em cujos termos as pessoas obrigadas ao dever de sigilo (indicadas nos artigos 135.º e 137.º) apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objectos que tiverem em sua posse ou devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional ou segredo de Estado.

Isto é, não se antolha aqui algo mais do que a possibilidade de a autoridade judiciária poder ordenar por despacho a requisição de documentos dos quais constem dados pessoais.

Na situação presente, a listagem de fl. 200, e demais documentação que a antecede e o recorrente impugna, foi junta aos autos na sequência de um despacho do Ministério Público (cf. fls. 153 e 154).

Ou seja, mostrava-se possível ao tribunal a quo, atento ademais o disposto pelo artigo 125.º do CPP, valorar, como o fez, os questionados documentos [...].»

O arguido interpôs então recurso da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), em que, após convite para corrigir o requerimento inicial, suscitou a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 125.º e 126.º, n.º 3, e, por extensão do artigo 374.º, n.º 2, in fine, todos do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretadas no sentido de ser permitida a admissão e valoração de provas documentais relativas a dados pessoais do arguido respeitantes à sua vida privada retirados de uma base informatizada, sem o respectivo consentimento, por violação do disposto nos artigos 17.º, 18.º, n.os 1 a 3, 32.º, n.º 8, e 35.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP)

Concluiu, do seguinte modo, as suas alegações:

«1.º O presente recurso vem do douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 9 de Maio de 2007, que por sua vez confirmou a também douta sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Albergaria-a-Velha, de fls. 236 a 248 dos autos, pela qual o ora recorrente foi condenado nos termos nela expressos, que por economia se dão por reproduzidos nesta sede;

2.º O julgamento da questão-de-facto constante da douta sentença de 1.ª instância, entretanto confirmada pela Relação a quo, fundou-se no conjunto da prova produzida em audiência e designadamente nos documentos de fls. 165 (CRC do arguido) e de fls. 8, 13, 60 e 198-203 dos autos;

3.º O documento de fls. 198 a 203, requisitado por despacho do Ministério Público a Via Verde Portugal - Gestão de Sistemas Electrónicos de Cobrança, S. A., inclui dados informáticos ou informatizados relativos ao identificador 'via verde' emitido para e em nome da dita firma BRANPLÁSTICOS, Lda., designadamente concernentes ao trajecto percorrido por uma das suas viaturas na data dos factos - 8 de Agosto de 2004, eventualmente o veículo automóvel ligeiro 64-11-XB, dado como conduzido pelo aqui recorrente;

4.º A questão arguida por esse venerando Tribunal Constitucional reconduz-se à admissibilidade do documento de fls. 198-203 por inconstitucionalidade e logo também por ilegalidade, que foi essencial à convicção do digno Tribunal que julgou a questão-de-facto e logo para a condenação do arguido;

5.º A questão da (in)constitucionalidade foi desde logo levantada em sede da motivação do recurso oportunamente interposto para a indicada veneranda Relação, designadamente concretamente na respectiva 15.ª conclusão;

6.º A veneranda Relação a quo, admitindo a legalidade e constitucionalidade da requisição do documento em causa desde que requisitada por autoridade judiciária (no caso em apreço, o Ministério Público, fls. 153 e 154 dos autos), dando por adquirido a existência de lei ordinária procedente que o admite, reconduziu a questão em apreço à extensão do dever de sigilo profissional prevista no artigo 17.º, n.º 1, da Lei 67/98, de 26 de Outubro (Lei de Protecção de Dados Pessoais), no caso concreto da sociedade comercial Via Verde Portugal - Gestão de Sistemas Electrónicos de Cobrança, S. A., e seus agentes, assumindo a respectiva quebra como viável à luz do n.º 2 do artigo 18.º da CRP enquanto 'limitação de direito' imposta por motivo social relevante, visando o equilíbrio entre o interesse público e a tutela da vida privada do cidadão;

7.º O digno tribunal a quo defendeu ainda que o regime penal adjectivo contém(inha) normas expressas relativas à quebra do sigilo, desde logo o artigo 182.º, n.º 1, aplicável às pessoas indicadas nos artigos 135.º a 137.º, todos do CPP, e concluiu pela admissibilidade da prova documental em causa e respectiva valoração ao abrigo do artigo 125.º do mesmo diploma legal;

8.º Mais afirmando que a bondade dessa orientação é acolhida no n.º 4 do artigo 35.º da CRP, ao relegar para a lei ordinária as condições de acesso aos dados pessoais de terceiro;

9.º O recorrente, à luz do conteúdo gramatical do preceito constitucional ora indicado, é terceiro para com o Estado, e logo os tribunais que o integram;

10.º À norma em causa é extensível o regime dos direitos liberdades e garantias, sendo directamente aplicáveis e obrigando entidades públicas e privadas - artigos 17.º e 18.º, n.º 1, da CRP;

11.º Os direitos, liberdades e garantias expressamente previstos na CRP só podem ser restringidos pela lei ordinárias nos casos expressamente naquela admitidos, e sempre na proporção indispensável a salvaguardar outros direitos, liberdades e garantias, sem que daí possa advir diminuição da extensão e do alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais - artigo 18.º, n.os 2 e 3, da CRP;

12.º O digno tribunal a quo ao considerar que as disposições em causa, designadamente os artigos 135.º e 182.º, n.º 1, do CPP, a par do artigo 17.º, n.º 1, da Lei de Protecção de Dados Pessoais, são aquelas que equivalem à derrogação excepcional do princípio constitucional de proibição de acesso a base de dados pessoais de terceiros, designadamente para os fins do caso em apreço, recorreu a normas jurídicas cujo escopo visa regular o exercício do sigilo profissional por parte de membros de corporações sujeitos a especial regulamentação legal, estatutária e deontológica dos respectivos deveres nesta matéria (caso de sacerdotes, médicos, advogados, jornalistas, etc.), salvo melhor opinião ausente ou pelo menos insuficiente no caso em apreço;

13.º A ser assim, não se respeita o requisito da excepcionalidade da derrogação da proibição de acesso a dados pessoais de terceiro contido no n.º 4 do artigo 35.º da CRP, logo encontrando-se ferida de inconstitucionalidade material a interpretação e aplicação que a veneranda Relação fez das evidenciadas normas de direito ordinário;

14.º Excluindo-se as ditas normas da lei ordinária do âmbito ou do escopo do artigo 35.º, n.º 4, 'segunda parte' da CRP, também não colhe respeitado o recurso ao princípio da proporcionalidade contido no artigo 18.º, n.º 2, 'segunda parte' da CRP, dado que, data venia, este expediente fica vedado no caso em apreço por força do disposto na sua primeira parte, em conjugação com o preceituado nos artigos 17.º e 18.º, n.os 1 e 3, da CRP;

15.º E, sem prescindir, mesmo que assim não se entenda e sob pena de violação do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, será desproporcionado e não conforme com o dito princípio da proporcionalidade relegar o critério da devassa da vida privada dos cidadãos a entidades que não se encontram imbuídas e submetidas a objectivos e rigorosos critérios deontológicos, com inexistente ou pelo menos insuficiente tutela disciplinar;

16.º Logo, também não é sustentável considerar que o contrário queda admitido por efeito do artigo 125.º do CPP, já que aquela não preenche a noção de legalidade de que depende a sua procedência;

17.º E, à míngua como no caso em apreço de consentimento do titular do direito, não estando a sua admissibilidade ressalvada por lei, não é pertinente qualquer hermenêutica do artigo 126.º, n.º 3, do CPP que não considere a prova em discussão neste recurso como nula por abusiva intromissão na vida privada;

18.º Aliás, em conformidade com o ordenado pelo n.º 8 do artigo 32.º da CRP, que de modo contrário também resulta(ria) violado, pois prevê a nulidade de toda a prova obtida em processo criminal com intromissão abusiva na vida privada;

19.º Os artigos 125.º e 126.º, n.º 3, do CPP não têm como escopo dirimir especificamente a questão do acesso excepcional a base de dados pessoais tal como nos é posto no artigo 35.º, n.º 4, da CRP, que por sua vez concretiza especialmente o estatuído em normas como os 17.º, 18.º, n.os 1 a 3,e 32.º, n.º 8, da CRP;

20.º E se assim é, o douto acórdão sob crítica também admitiu o insuficiente exame crítico das provas antes operado pela 1.ª instância, logo consentindo em interpretação do artigo 374.º, n.º 2, do CPP em contravenção com os referenciados artigos 17.º, 18.º, n.os 1 a 3, 32.º, n.º 8, e 35.º, n.º 4, da CRP;

21.º Termos em que se conclui a inexistência de regime legal tipificado que permita o acesso a essas bases de dados, pelo menos em harmonia com o determinado constitucionalmente, mantendo-se pois o imperativo constitucional de lhes não aceder;

22.º E em consequência, com o devido respeito, a veneranda Relação de Coimbra, na sequência de posição prévia de igual teor tomada pela digna 1.ª instância, ao considerar que os artigos 125.º e 126.º, n.º 3, e por extensão do artigo 374.º, n.º 2, in fine, e, atento o teor da fundamentação do douto acordo sob crítica, os indicados artigos 135.º e 182.º, n.º 1, todos do CPP, e até o artigo 17.º, n.º 1, da Lei de Protecção de Dados Pessoais, aprovado pela Lei 67/98, de 26 de Outubro, permitem(iam), em vez de excluir, como seria mister, a admissão e valoração de provas documentais relativas a dados pessoais do recorrente, terceiro para o efeito, retiradas de uma base informatizada sem o consentimento do próprio, caso do documento de fls. 198 e 203, impediu não só a directa aplicação do regime próprio dos direitos, liberdades e garantias, mas também acolheu interpretação que pressupõe intromissão abusiva na vida privada do recorrente, e logo a violação por inconstitucionalidade material dos artigos 17.º, 18.º, n.os 1 a 3, 32.º, n.º 8, e 35.º, n.º 4, da CRP.

Termos em que e pelo que doutamente for suprido deve-se dar provimento ao presente recurso, declarando-se a inconstitucionalidade dos artigos 125.º e 126.º, n.º 3, e por extensão do artigo 374.º, n.º 2, in fine, bem como dos indicados artigos 135.º e 182.º, n.º 1, todos do CPP, e do artigo 17.º, n.º 1, da Lei 67/98, de 26 de Outubro, atenta a aplicação e interpretação dos mesmos perfilhada pela veneranda Relação a quo, por violação material dos preceitos constitucionais acolhidos, designadamente, nos artigos 17.º, 18.º, n.os 1 a 3, 32.º, n.º 8, e 35.º, n.º 4, da CRP, revogando-se em consequência o douto acórdão recorrido e ordenando-se a baixa dos autos à competente instância a fim desta proceder à prolação de novo douto aresto em harmonia com o determinado por esse tribunal superior de apreciação da (in)constitucionalidade em sede do também seu douto acórdão a proferir, com as legais consequências.»

Ministério Público concluiu do seguinte modo as suas contra-alegações:

«Não é inconstitucional a interpretação normativa dos artigos 125.º, 126.º, n.º 3, e 374.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal, no sentido de poderem ser valorados como prova documentos referentes a dados pessoais, solicitados pela autoridade judiciária, ao abrigo do disposto nos artigos 135.º e 182.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.»

A assistente Elisabete Peralta não apresentou contra-alegações.

II - Fundamentação

1 - Do objecto do recurso. - O recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a questão da constitucionalidade das normas contidas nos artigos 125.º e 126.º, n.º 3, e, por extensão, no artigo 374.º, n.º 2, in fine, todos do CPP, quando interpretadas no sentido de ser permitida a admissão e valoração de provas documentais relativas a dados pessoais do arguido respeitantes à sua vida privada, retirados de uma base informatizada sem o respectivo consentimento, por violação do disposto nos artigos 17.º, 18.º, n.os 1 a 3, 32.º, n.º 8, e 35.º, n.º 4, da CRP.

Nos termos do disposto no artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP e no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que «apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo».

Sucede que a decisão recorrida não aplicou todas as normas processuais penais identificadas pelo recorrente, nem as aplicou com a concreta interpretação que lhe foi assacada em sede de requerimento de interposição do presente recurso.

Para o efeito que aqui releva, e por referência às normas invocadas pelo recorrente, resulta claramente da decisão recorrida - acima transcrita - que o tribunal a quo se limitou a aplicar o artigo 125.º, do CPP, na interpretação segundo a qual é permitida a admissão e valoração de provas documentais relativas a listagens de passagens de um veículo automóvel nas portagens das auto-estradas, que foram registadas pelo sistema de identificador da «Via Verde», armazenadas numa base de dados informatizada e ulteriormente juntas ao processo criminal, sem o consentimento do arguido e por determinação do Ministério Público.

O objecto do recurso deve assim restringir-se à aludida questão da constitucionalidade da interpretação normativa do artigo 125.º do CPP, acima enunciada.

2 - Da questão da constitucionalidade da interpretação normativa do artigo 125.º do Código de Processo Penal de 1987. - O presente recurso versa a temática delicada das proibições de prova em processo penal, tendo como pano de fundo a alegada violação da protecção constitucional dos dados pessoais informatizados e da reserva da intimidade da vida privada.

A norma infraconstitucional em que se apoia a decisão recorrida dispõe que «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei» (artigo 125.º do CPP).

Recuperemos, em síntese, os contornos do caso concreto que suscitaram a interposição do presente recurso de constitucionalidade.

Em sede de 1.ª instância, o tribunal deu como provado, para além do mais, que o arguido - e ora recorrente - conduziu o veículo automóvel de matrícula 64-11-XB, pertencente à empresa BRANPLÁSTICOS, Comércio de Plásticos, Unipessoal, Lda., nas circunstâncias de modo, tempo e espaço descritas na acusação, o que conduziu à condenação do recorrente como autor de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário e de um crime de injúrias.

O tribunal de comarca motivou expressamente o julgamento positivo da referida factualidade com a valoração do conteúdo do documento constante de fls. 198 a 203 dos autos, o qual corresponde à listagem de passagens do aludido veículo nas portagens da auto-estrada que foram oportunamente registadas pelo identificador «Via Verde» instalado nesse veículo e que foram ulteriormente objecto de tratamento informático pela empresa Via Verde - Gestão de Sistemas Electrónicos de Cobrança, S. A., no âmbito da relação contratual por si mantida com a sociedade proprietária do veículo automóvel.

Vejamos em pormenor o teor desses dados:

Lista de passagens Via Verde

Período - de 8-8-2004 a 10-8-2004

(ver documento original)

Os dados em questão foram disponibilizados pela empresa Via Verde para comunicação ao procedimento criminal em causa, a solicitação do Ministério Público, sem que tivesse sido excepcionado qualquer obstáculo de ordem jurídica, nomeadamente a existência de qualquer sigilo profissional que obstasse ao fornecimento da referida informação.

O tribunal a quo entendeu que qualquer autoridade judiciária, nomeadamente o Ministério Público, podia ordenar a requisição daqueles meios de prova para efeito de junção ao processo e ulterior valoração em sede de julgamento da matéria de facto, desde que o fizesse ao abrigo do disposto no artigo 182.º, n.º 1, do CPP e não lhe fosse excepcionado o segredo profissional previsto no artigo 17.º, n.º 1, da LPDP.

O recorrente pretende que a admissão e a valoração dos referidos meios de prova naqueles precisos termos assentaram numa interpretação das disposições do CPP que violam expressamente o disposto na Constituição.

2.1 - Da protecção dos dados pessoais. - O primeiro parâmetro constitucional à luz do qual há-de avaliar-se a constitucionalidade da interpretação normativa questionada é o artigo 35.º da CRP, com a redacção vigente desde a Revisão Constitucional de 1997, cujo teor é o seguinte na parte que ora releva:

«1 - Todos os cidadãos têm o direito de acesso aos dados informatizados que lhes digam respeito, podendo exigir a sua rectificação e actualização, e o direito de conhecer a finalidade a que se destinam, nos termos da lei.

2 - A lei define o conceito de dados pessoais, bem como as condições aplicáveis ao seu tratamento automatizado, conexão, transmissão e utilização, e garante a sua protecção, designadamente através de entidade administrativa independente.

3 - A informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação ou para processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis.

4 - É proibido o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excepcionais previstos na lei.» (Sublinhado acrescentado.)

O referido preceito consagra a protecção dos cidadãos perante o tratamento de dados pessoais informatizados, tendo vindo a ser objecto de profundas remodelações pelas sucessivas revisões do texto constitucional, com o objectivo de dar resposta às novas questões que o desenvolvimento tecnológico vai suscitando.

Na verdade, o crescente recurso, nas mais diferentes áreas, a meios hodiernos, como a telemetria, que deixam «pegadas electrónicas», susceptíveis de serem armazenadas informaticamente, exige a construção de garantias que impeçam que esta realidade possa colocar em causa direitos fundamentais dos cidadãos, como o direito à reserva da intimidade da vida privada (sobre as ameaças das novas tecnologias aos direitos fundamentais e a construção de garantias de protecção, leia-se, por exemplo, Seabra Lopes, em «A protecção da privacidade e dos dados pessoais na sociedade de informação», em Estudos Dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa, pp. 779 e segs., edição de 2002 da Universidade Católica Portuguesa).

Um desses instrumentos jurídicos de garantia é a proibição contida no acima transcrito n.º 4 do artigo 35.º da CRP, que, como regra, veda o acesso aos dados pessoais de terceiros, de forma a impedir a sua devassa.

Note-se, contudo, que esta proibição não impede o acesso apenas aos dados íntimos de uma pessoa, mas a todos os dados a ela relativos, mesmo que em nada afectem a sua privacidade. O que se pretende preservar é a informação individual de uma pessoa, independentemente desta respeitar ou não à sua intimidade, prevenindo-se um potencial risco de violação de direitos fundamentais do cidadão, nomeadamente o direito à reserva da intimidade da vida privada (vide, neste sentido Helena Moniz, em «Notas sobre a protecção de dados pessoais perante a informática», na RPCC, ano 7, n.º 2, pp. 250-251).

Protege-se o chamado direito à autodeterminação informacional, o qual tem um círculo de aplicação apenas parcialmente coincidente com o círculo de aplicação do direito à reserva da intimidade da vida privada e que funciona como direito de garantia deste.

O legislador ordinário, utilizando a liberdade de conformação legislativa concedida no n.º 2 do artigo 35.º da CRP, veio a definir o conceito de dados pessoais (inicialmente na Lei 10/91, de 29 de Abril) e fá-lo, actualmente, através da Lei 67/98, de 26 de Outubro (a LPDP), em declarada transposição da Directiva n.º 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995.

De acordo com o referido diploma legal, entende-se por dados pessoais «qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável ('titular dos dados'); é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social» [artigo 3.º, alínea a), da LPDP].

A LPDP «aplica-se ao tratamento de dados pessoais por meios total ou parcialmente automatizados, bem como ao tratamento por meios não automatizados de dados pessoais contidos em ficheiros manuais ou a estes destinados» (artigo 4.º, n.º 1).

Situa-se neste âmbito a listagem de passagens de um veículo automóvel nas portagens da auto-estrada que foram oportunamente registadas pelo identificador «Via Verde» instalado nesse veículo e que foram ulteriormente objecto de tratamento informático pela empresa Via Verde - Gestão de Sistemas Electrónicos de Cobrança, S. A., no desenvolvimento da relação contratual por esta empresa mantida com o proprietário daquele veículo automóvel.

Apesar dessa listagem apenas localizar no espaço e no tempo o trânsito de um determinado veículo automóvel, referenciado pela sua matrícula, sendo este necessariamente conduzido por uma pessoa singular, identificável como seu utilizador habitual, essas informações também se lhe reportam, pelo que é correcto dizer-se que estamos perante dados pessoais, nos termos do artigo 3.º, alínea a), da LPDP, sujeitos às regras estabelecidas no artigo 35.º da CRP (este tipo de informações tem sido objecto de tratamento como dados pessoais para efeitos de aplicação da Lei 67/98, de 16 de Outubro, pela Comissão Nacional de Protecção de Dados, como resulta, por exemplo, na autorização 79/2002 ou da deliberação 1/96, acessíveis em www.cnpd.pt).

E o facto de no caso sub iudicio o veículo automóvel pertencer a uma pessoa colectiva do tipo societário, como é uma sociedade comercial por quotas unipessoal, e o artigo 3.º, alínea a), da LPDP apenas integrar no conceito de «dados pessoais» os que se referem a pessoas singulares, não é suficiente para excluir aquelas informações da protecção conferida pelo n.º 4 do artigo 35.º da CRP, uma vez que esta também abrange os dados respeitantes a pessoas colectivas quando deles possa resultar a indicação de dados pessoais concernentes a pessoas singulares. Na verdade, os veículos automóveis são conduzidos por pessoas singulares e, por regra, estão afectos à utilização de uma determinada pessoa em particular, a qual poderá ser identificada através de outros elementos referenciadores.

Este tipo de dados pessoais, pelas suas características, não se enquadram nos apelidados dados sensíveis (artigo 35.º, n.º 3, da CRP), pertencentes ao núcleo duro dos dados constitucionalmente tutelados, os quais apenas são susceptíveis de tratamento, mediante condições específicas.

E a proibição contida no artigo 35.º, n.º 4, da CRP, como o próprio preceito indica, não é absoluta, admitindo excepções que poderão ser definidas pelo legislador ordinário. Estas excepções constituem restrições ao direito de controlo do registo informático, devendo ser-lhes aplicada o regime das restrições aos direitos, liberdades e garantias dos n.os 2 e 3 do artigo 18.º da CRP (v., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p.. 555, e Helena Moniz, ob. cit., pp. 247-248).

Uma das excepções que é frequentemente apontada como podendo justificar uma restrição ao referido direito é a da utilização desses dados para fins de investigação criminal, designadamente como meio de prova em processo penal (v., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 555, e Paula Ribeiro Faria, em Constituição Portuguesa Anotada, dirigida por Jorge Miranda e Rui Medeiros, t. 1, p. 383, da edição de 2005 da Coimbra Editora, Pedro Pais de Vasconcelos, em «Protecção de dados pessoais e direito à privacidade», em Direito da Sociedade da Informação, vol. i, p. 252, da edição de 1999 da Coimbra Editora, e o parecer 21/2000, da PGR, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 28 de Agosto de 2000).

Na verdade, o artigo 182.º do CPP admite que «as pessoas indicadas nos artigos 135.º a 137.º apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objectos que tiverem na sua posse e devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional ou de funcionário ou segredo de Estado».

Entre essas pessoas encontram-se os responsáveis do tratamento de dados pessoais, bem como as pessoas que, no exercício das suas funções, tenham conhecimento de dados pessoais tratados, nos termos do artigo 135.º, n.º 1, do CPP e 17.º da Lei 67/98, de 26 de Outubro.

O interesse público constitucionalmente protegido da descoberta da verdade material, essencial à administração da justiça penal como pilar de um Estado de direito, pode justificar a quebra da confidencialidade dos dados pessoais, desde que dela não resulte uma restrição intolerável dos direitos fundamentais do cidadão.

Quando o acesso aos dados pretendidos para a investigação criminal põe em causa direitos fundamentais do cidadão, como o direito à reserva da intimidade da vida privada (artigo 26.º, n.º 1, da CRP), há que tomar em consideração a garantia específica para essa situação, prevista no artigo 32.º, n.º 8, da CRP.

2.2 - Da proibição de provas obtidas com abusiva intromissão na vida privada. - O recorrente alegou que a questionada interpretação normativa caucionaria a valoração de provas obtidas mediante abusiva intromissão na sua vida privada, o que violaria o disposto no n.º 8 do artigo 32.º da CRP, nos termos do qual «são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações» (sublinhado acrescentado).

Os veículos automóveis são necessariamente conduzidos por pessoas singulares e estas, mercê do princípio da universalidade (artigo 12.º da CRP), gozam todas do direito à reserva da intimidade da vida privada.

Efectivamente, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 26.º da CRP, «a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal [...] à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação», acrescentando o n.º 2 que «a lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias».

Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit., p. 467), «o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar [...] analisa-se principalmente em dois direitos menores:

a) O direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar; e

b) O direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem».

Mas a esfera da intimidade da vida privada possui fronteiras pouco nítidas, desde logo porque a Constituição e a lei ordinária não estabelecem expressamente o conteúdo e alcance do direito à reserva da intimidade da vida privada. Daí que a definição positiva deste conceito seja caracterizada na doutrina como obscura e sem um verdadeiro conteúdo preciso, revelando-se, por vezes, tarefa difícil decidir aquilo que pertence à vida pública ou à vida privada de uma pessoa (na procura dos limites do âmbito deste direito vide Rita Amaral Cabral, em «O direito à intimidade da vida privada», em separata dos Estudos em Memória do Prof. Dr. Paulo Cunha, pp. 24-37, 1988, Paulo Mota Pinto, em «O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada», no BFDUC, vol. lxix, pp. 524-539, «A protecção da vida privada e a Constituição», no BFDUC, vol. lxxvi, p.. 164 e segs., Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pp. 467-468, Pedro Pais de Vasconcelos, em Direito de Personalidade, pp. 79-83, da edição de 2006 da Almedina, e Rabindranath Capelo de Sousa, em O Direito Geral de Personalidade, pp. 316-351, da edição de 1995 da Coimbra Editora).

Sem a pretensão de neste local se definir qualquer critério orientador, para se identificar uma situação coberta por este direito de reserva, há que verificar, de acordo com os padrões da vida contemporânea, se, numa apreciação objectiva, é justificado que determinado fragmento ou aspecto da vida de uma pessoa não seja divulgado.

Neste caso, será de entender que o conteúdo das listagens de passagens de veículos nas portagens das auto-estradas também integra o conceito de reserva da intimidade da vida privada?

As listagens em questão apenas permitem, para além do conhecimento da identidade do titular do identificador «Via Verde», o acesso às «passagens» do veículo automóvel X por determinada portagem de certa auto-estrada, mais concretamente às «horas» e «dias» a que ocorreram essas passagens.

A circunstância das portagens estarem localizadas na via pública e, portanto, sob os olhos de todos que nelas se encontrem ou transitem, não conduz necessariamente à negação de atribuição da característica da privacidade aos referidos dados, uma vez que o critério do lugar não é determinante para esse efeito. Factos respeitantes à vida privada podem, perfeitamente, ocorrer em locais públicos, desde que praticados de forma anónima (v. Paulo Mota Pinto, em «O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada», no BFDUC, vol. lxix, p. 526, e em «A protecção da vida privada e a Constituição», no BFDUC, vol. lxxvi, p. 165, e Rabindranath Capelo de Sousa, ob. cit., p. 327).

Por outro lado, a circunstância de estar em causa um identificador «Via Verde» registado em nome de uma pessoa colectiva também não afasta a privacidade desses dados na medida em que, conforme já foi sublinhado, os veículos automóveis são conduzidos por pessoas singulares e, por regra, estão afectos à utilização de uma determinada pessoa em particular, a qual poderá ser identificada através de outros elementos referenciadores.

A movimentação de uma pessoa, nomeadamente a sua deslocação em veículo automóvel, pelas diferentes vias públicas, apesar de ocorrer em locais acessíveis a outras pessoas, é efectuada de forma tendencialmente anónima, pelo que a divulgação de informações sobre essas concretas deslocações automóveis a terceiros (local, dia e hora) poderá comprometer o direito à reserva da intimidade da vida privada do seu condutor.

Mas isso não significa que o acesso a essas listagens, para fins probatórios em processo penal, se traduza numa inadmissível intromissão na vida privada do condutor do veículo em causa.

Na verdade, as provas obtidas por intromissão na vida privada só são proibidas quando essa intromissão se revelar «abusiva», pelo que esta proibição é relativa (v., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 524, e Paulo de Sousa Mendes, em «As proibições de prova em processo penal», em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, p. 137, da edição de 2004 da Almedina).

Como defende Pedro Pais De Vasconcelos, a polaridade entre o público e o privado corresponde a uma escala progressiva e gradual, sem quebras de continuidade nem saltos bruscos, entre aquilo que é mais íntimo e o que se partilha com toda a gente (em Direito de Personalidade, p. 81, da edição de 2006, Almedina), ou como refere Rabindranath Capelo de Sousa, a amplidão da tutela da vida privada desdobra-se em círculos concêntricos de reserva, dotados de maior ou menor eficácia jurídica, particularmente de garantias mais ou menos profundas (ob. cit., pp. 326-327).

Quando a situação em causa, embora sujeita a reserva, decorre em espaços que permitem a sua observação por qualquer pessoa, nomeadamente vias públicas, a intensidade da tutela é menor, podendo esta ter de ceder, para salvaguardar interesses superiores (v., neste sentido, Rabindranath Capelo de Sousa, ob. cit., p. 327).

E o interesse público constitucional da realização da justiça penal justifica a afectação da privacidade em zonas distantes do seu núcleo mais íntimo (v., neste sentido Paulo Mota Pinto, em «O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada», no BFDUC, vol. lxix, p. 566, e em «A protecção da vida privada e a Constituição», no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. lxxvi, p. 196, e Maria Fernanda Palma, em «Tutela da vida privada e processo penal», em Estudos em Memória do Conselheiro Luís Nunes de Almeida, p. 657, da edição de 2007 da Coimbra Editora).

Ora, situando-se o tipo de intromissão sub iudicio numa zona já afastada do núcleo mais íntimo da vida privada, justifica-se plenamente que prevaleça o interesse superior da obtenção da verdade material na realização da justiça penal, o qual legitima o conhecimento e a valoração probatória judicial das mencionadas listagens, não se mostrando violados os direitos constitucionais consagrados nos artigos 35.º, n.º 4, e 32.º, n.º 8, da CRP.

2.3 - Da necessidade de intervenção de um juiz. - Na concreta dimensão normativa aqui posta em crise é reconhecida competência ao Ministério Público para ordenar a apresentação das listagens das passagens do veículo automóvel nas portagens das auto-estradas, as quais serão fornecidas sem qualquer intervenção judicial, se a entidade responsável pelo armazenamento destes dados não invocar sigilo profissional (artigo 182.º, n.º 1, do CPP).

Apesar do recorrente não ter indicado este parâmetro constitucional, é pertinente colocar-se a questão da compatibilização desta atribuição de competência com o disposto no n.º 4 do artigo 32.º da CRP, nos termos do qual «toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que não se prendam directamente com os direitos fundamentais».

A respeito desta norma, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/90 (publicado na 2.ª série do Diário da República de 4 de Julho de 1990) precisou que:

«2.2 - No fundo, a dicotomia investigação criminal - instrução do processo criminal [...] funde-se em interdependência e complementaridade: a fase prévia serve para criar a convicção da entidade titular da acção penal, a subsequente destina-se a moldar a convicção do julgador. A garantia da natureza judicial desta última expande-se aos actos praticados na primeira sempre que equacionados os direitos fundamentais do arguido, implicando a intervenção do juiz-garante.

[...]

Por outras palavras e no concreto caso, o n.º 4 do artigo 32.º da CRP prossegue a tutela de defesa dos direitos do cidadão no processo criminal e, nessa exacta medida, determina o monopólio pelo juiz da instrução, juiz-garante dos direitos fundamentais dos cidadãos ('reserva do juiz').

Intervenção do juiz que vale - e só vale - no âmbito do núcleo da garantia constitucional.

Assim ocorre em toda a fase de inquérito ao Ministério Público confiada pelo CPP actual, compreendendo o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles, descobrir e recolher provas em ordem à decisão sobre a acusação (artigo 262.º, n.º 1), justificando-se a intervenção do juiz-garante sempre que afectado aquele núcleo - consoante o elenco de situações descritas nos artigos 268.º e 269.º»

Apesar de se admitir que o inquérito criminal possa ser dirigido pelo Ministério Público e não por um juiz, quando nesta fase haja que praticar actos instrutórios que possam restringir severamente direitos fundamentais, deve ser um juiz a decidir a sua realização, na sua veste de «juiz das liberdades» (Paulo Sousa Mendes, ob. cit., p. 139).

A independência da magistratura judicial e o seu maior distanciamento da actividade investigatória confere-lhe uma maior disponibilidade funcional e psicológica para, com objectividade, decidir os limites toleráveis do sacrifício dos direitos fundamentais em favor do interesse da realização da justiça penal.

Daí que, para a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade, bem como para a ingerência na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, o legislador ordinário tenha rodeado essas intromissões de especiais cautelas, ao fazer intervir um magistrado judicial a montante ou a jusante do procedimento de obtenção de meios de prova, reservando-lhe em exclusivo a competência para ordenar, autorizar ou validar as referidas diligências intrusivas na intimidade da vida privada dos suspeitos da prática das infracções criminais (v. artigos 177.º, 179.º e 187.º do CPP)

Contudo, como tem realçado a mais recente jurisprudência constitucional, apenas os actos que contendem, de forma relevante, com direitos, liberdades e garantias fundamentais do arguido, no decurso da fase de inquérito, dependem da prévia autorização do juiz de instrução (v. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 42/2007, 155/2007 e 228/2007, publicados na 2.º série do Diário da República de 11 de Maio, de 10 de Abril e de 23 de Maio de 2007, respectivamente).

Ora, como já acima se realçou, a intromissão na vida privada do condutor do veículo automóvel a que respeitam as listagens requisitadas pelo Ministério Público, situa-se numa zona muito distante do núcleo sensível da intimidade pessoal, pelo que não é constitucionalmente exigível que o respectivo acto seja ordenado ou validado por um juiz, encontrando-se o direito restringido suficientemente garantido com a intervenção de um Magistrado do Ministério Público, cuja acção é norteada por deveres de isenção, objectividade e legalidade.

2.4 - Conclusão. - Do raciocínio apresentado resulta que a interpretação contida na decisão recorrida, segundo a qual é permitida a admissão e valoração de provas documentais relativas a listagens de passagens de um veículo automóvel nas portagens das auto-estradas, que foram registadas pelo sistema de identificador da «Via Verde», armazenadas numa base de dados informatizada e ulteriormente juntas ao processo criminal, sem o consentimento do arguido e por mera determinação do Ministério Público, não viola qualquer parâmetro constitucional, nomeadamente o disposto nos artigos 35.º, n.º 4, e 32.º, n.os 4 e 8, da CRP, pelo que o recurso deve ser julgado improcedente.

III - Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto por António França Brandão do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido nestes autos em 9 de Maio de 2007.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios enunciados no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, da CRP).

Lisboa, 2 de Abril de 2008. - João Cura Mariano - Joaquim de Sousa Ribeiro - Mário José de Araújo Torres - Benjamim Rodrigues - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1674560.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1991-04-29 - Lei 10/91 - Assembleia da República

    Aprova a Lei da Protecção de Dados Pessoais face à Informática e cria a Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais Informatizados.

  • Tem documento Em vigor 1998-10-07 - Decreto-Lei 303/98 - Ministério da Justiça

    Dispõe sobre o regime de custas no Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 1998-10-26 - Lei 67/98 - Assembleia da República

    Transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva nº 95/46/CE (EUR-Lex), do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados. - Lei da Protecção de Dados Pessoais.

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