Acordam, na 3ª Secção, do Tribunal Constitucional
I - Relatório - 1 - Os presentes autos vêm do Tribunal Central Administrativo Sul e neles é recorrente o Presidente da Câmara Municipal de Évora e recorrido José António do Patrocínio Barradas.
Nos autos de procedimento cautelar, identificados pelo Processo 250/06.6BEBJA, o ora recorrido veio requerer ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja que decretasse (cf. fls. 5 a 20):
"a) A suspensão da eficácia do acto do Presidente da Câmara Municipal de Évora que se auto designou representante da Câmara Municipal de Évora na Comissão Regional da Região de Turismo de Évora, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 68º da LAL, nos termos do artigo 112º/2 a) CPTA;
b) A intimação do Requerido para se abster de participar na Comissão Regional de Turismo de Évora ou de praticar qualquer acto no procedimento eleitoral da Região de Turismo como representante da Câmara Municipal de Évora, nos termos do artigo 112º/2 f) CPTA;
c) A intimação do Requerido para convocar reunião extraordinária da Câmara Municipal de Évora, nos termos do artigo 112º/2 f) CPTA."
2 - Porque o Tribunal Administrativo de Beja decidiu decretar todas as providências cautelares requeridas (fls. 287 a 312) - com excepção da 2ª parte da alínea b) do pedido, pelo facto de o referido procedimento eleitoral já ter ocorrido - , o ora recorrente interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul (fls. 320 a 352), alegando, designadamente, que "a interpretação da alínea b) do n.º 1 do n.º 1 do artigo 12º dos Estatutos da RTE no sentido de considerar atribuída ao órgão câmara municipal a competência para designar o representante da autarquia na comissão regional da região de turismo, em detrimento, da regra geral de representação autárquica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 68º da lei das Autarquias Locais, é manifestamente inconstitucional por violação da reserva legislativa da Assembleia da República" (fls. 350).
O Tribunal Central Administrativo Sul proferiu acórdão, em 14 de Dezembro de 2006 (fls. 479 a 486), que julgou improcedente o recurso interposto por não considerar verificada qualquer inconstitucionalidade na interpretação conferida pela primeira instância à norma constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 12º dos Estatutos da Região de Turismo de Évora, visto que, "tendo em consideração que o disposto no artigo 68/1/a da LAL, atribui aos presidentes poderes de representação do Município e não das Câmaras municipais, sucedendo que o artigo 64/7/d) da mesma LAL atribui às câmaras municipais competência residual, «ou seja, qualquer outro normativo pode atribuir-lhe uma competência específica como acontece com o artigo 12º dos Estatutos da RTE»" (fls. 485-verso).
3 - Notificado em 18 de Dezembro de 2006 (fls. 489) e inconformado com esta decisão, o ora recorrente interpôs recurso para este Tribunal, o qual foi admitido pelo tribunal "a quo" (fls. 495), tendo a Exma. Conselheira Relatora junto deste Tribunal, em 29 de Janeiro de 2007, ordenado a notificação do recorrente para alegar, no prazo de 15 dias (fls. 500), por força do n.º 2 do artigo 79º da LTC.
Em sede de alegações (fls. 502 a 531), veio o recorrente concluir que:
"A. O presente recurso tem objecto a norma contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º dos Estatutos da Região de Turismo de Évora, constantes do Decreto-Lei 73/93, de 10 de Março, interpretada e aplicada ao caso concreto pelo Tribunal a quo, no sentido de atribuir a competência de representação na Comissão Regional da RTE aos representantes das câmaras municipais;
B. O fundamento do recurso é o de que esta norma, na interpretação mencionada, viola a reserva legislativa de competência da Assembleia da República, conforme consagrada na alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição;
C. Resulta da interpretação conjugada da natureza e regime jurídicos das regiões de turismo que estas são compostas por municípios pelo que no seu órgão deliberativo Comissão Regional devem ter assento os representantes dos municípios e não das câmaras municipais, uma vez que são interesses da pessoa colectiva que importa assegurar, e não interesses do órgão;
D. Ainda que seja discutível o alcance absoluto da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República sobre o estatuto das Autarquias Locais, é inegável que aquela reserva abrange a definição das competências dos respectivos órgãos;
E. Assim sendo, a norma da alínea d) do n.º 7 do artigo 64.º da lei das Autarquias Locais nunca poderá extravasar o âmbito da reserva legislativa da Assembleia da República, nos termos em que a mesma se encontra consagrada;
F. Nesse sentido, não é admissível considerar a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º dos Estatutos da RTE, aprovados por um decreto-lei não autorizado, como um dos casos de concretização daquela norma da lei das Autarquias Locais;
G. A interpretação da norma contida [na] alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º dos Estatutos da RTE que se apresenta conforme à Constituição é aquela que atribui a competência de representação do município ao presidente da câmara municipal, na medida em que, decorrendo directamente das competências expressamente previstas na lei das Autarquias Locais e não de nenhuma norma residual, não revela qualquer carácter inovador em face da reserva parlamentar;
H. Este entendimento é reforçado pelas conclusões que o Tribunal Constitucional alcançou na análise de situações análogas, nomeadamente, naquelas que se encontram vertidas nos acórdãos n.º 678/ 95 e n.º 502/2001;
I. Em qualquer caso, mesmo que fosse admissível ao Governo, sem autorização, legislar em matéria de competência dos órgãos autárquicos, tal jamais poderia pôr em causa o conteúdo essencial do sistema de governo autárquico e a concomitante repartição de competências tal como gizados pela lei das Autarquias Locais;
J. Nesse esquema de repartição, desde logo avulta que a competência de representação do município se encontra atribuída ao presidente da câmara municipal, sendo tal regra - parte integrante ou matéria essencial do Estatuto das Autarquias Locais - ostensivamente violada pela norma contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º dos Estatutos da Região de Turismo de Évora, interpretada no sentido de atribuir a competência de representação na Comissão Regional da RTE aos representantes das câmaras municipais;
K. Em suma, a norma contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º dos Estatutos da RTE - no sentido de considerar atribuída à câmara municipal a competência para designar o representante da autarquia na Comissão Regional da RTE - é inconstitucional por violação da alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição".
4 - Por sua vez, em 12 de Março de 2007, o recorrido viria a apresentar as suas contra-alegações (fls. 564 a 590), que, resumidamente, consistem nos seguintes argumentos:
"a) A norma cuja constitucionalidade o recorrente questiona - artigo 12º/1/b) dos Estatutos da RTE -, é simultaneamente aplicável na presente providência cautelar e na acção principal;
b) Face à natureza provisória e instrumental das providências cautelares, não é admissível o recurso para o Tribunal Constitucional de normas que, tendo sido aí aplicadas, podem ser objecto de apreciação na acção principal, sob pena do juízo de constitucionalidade ser igualmente provisório (v., por todos, Ac. TC n.º 442/00, de 25.10.2000);
c) Face aos pressupostos para o decretamento de providências cautelares, não cabe aqui apreciar a constitucionalidade dos Estatutos da RTE (v. artigo 120º do CPTA);
d) Além disso, o presente recurso não é susceptível de alterar o decidido no douto acórdão recorrido - confirmação da sentença recorrida que decretou as providências cautelares - , não tendo assim qualquer efeito útil, pois o ora recorrente não impugnou o referido aresto na parte em que considerou que,
- "o artigo 64º/7/d) da [...] LAL atribui às câmaras municipais competência residual, ou seja, qualquer outro normativo pode atribuir-lhe uma competência específica ", que,
- "a pretendida inconstitucionalidade daqueles Estatutos por violação do disposto no artigo 165º/1/q) da CRP, não seria susceptível de alterar o decidido em 1ª instância, pois que do disposto no artigo artigo 68º/1/a) da LAL não resulta que a CME tivesse que legalmente ser representada na RTE pelo seu Presidente, o qual apenas representa o Município ",
e que,
- "esta questão não se mostra decisiva na adopção das medidas cautelares decretadas em 1ª instância" (cf. Acórdão recorrido - sombreados nossos),
não tendo o ora recorrente suscitado sequer a inconstitucionalidade daqueles preceitos da LAL, maxime na interpretação normativa adoptada no douto aresto recorrido (v. Ac. TC n.º 241/2003, de 20.05.2003);
e) Acresce que, o douto acórdão recorrido não apreciou ou decidiu qualquer questão de constitucionalidade
f) Finalmente, o Tribunal a quo não interpretou o artigo 12º/1/b) dos Estatutos da RTE no sentido invocado pelo ora recorrente no requerimento de interposição de recurso e nos n.os 4 e segs. das suas doutas Alegações;
g) De resto, nas alegações de recurso para o TCA Sul, a fis. 293 e segs. dos autos, o ora recorrente não suscitou a questão da inconstitucionalidade da "interpretação da alínea b) do n.º 1 do artigo 12º dos Estatutos da RTE", no mesmo sentido que vem agora invocar junto deste Venerando Tribunal Constitucional (v. conclusões m) e segs. das alegações a fls. 322; cf. Req. de interposição de recurso de 22.12.2006, e n.os 4 e segs. das Alegações do Recorrente)".
5 - Por despacho de 15 de Março de 2007 (fls. 619), a Exma. Conselheira Relatora junto deste Tribunal ordenou a notificação do recorrente para se pronunciar sobre os obstáculos ao conhecimento do recurso suscitados pelo recorrido, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo 704º do CPC, aplicável "ex vi" artigo 69º da LTC.
Em 30 de Março de 2007, o recorrente viria a pronunciar-se, considerando, nomeadamente, que:
a) A norma em apreço havia sido efectivamente aplicada, visto que "em suma, nunca poderia estar em causa «apenas a designação de um representante da câmara municipal» - na medida em que a norma em causa erroneamente indica como partes integrantes das regiões de turismo e representadas na Comissão Regional as «câmaras municipais» e não os «municípios» -, pelo que não existe outra solução que a análise da perspectiva do Tribunal «a quo» à luz da terminologia adequada" (fls. 623);
b) Não existe divergência terminológica relevante para efeitos de suscitação de inconstitucionalidade pelo recorrente, pois "é perfeitamente evidente que a diferença de redacção não tem a relevância que o Recorrido pretende apontar: o que o Recorrente pretendeu foi invocar a inconstitucionalidade da alínea b) do n.º 1 do artigo 12º dos Estatutos da RTE se reportado ao órgão «câmara municipal» e não ao «município», na medida em que dessa forma se estaria a criar uma norma de competência em violação da alínea q) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição" (fls. 635 e 636);
c) Nada obsta a que o Tribunal Constitucional possa sindicar a constitucionalidade de normas aplicadas em sede de providências cautelares, na medida em que "impedir a fiscalização da constitucionalidade em sede cautelar não se coaduna com a consagração clara e inequívoca de uma justiça cautelar garantística - aqui, reportada à parte vencida que se deparou com a emissão de providências cautelares violadoras dos seus direitos e decretadas ao abrigo de uma interpretação normativa inconstitucional" (fls. 625);
d) A emissão de uma decisão favorável ao recorrente, pelo Tribunal Constitucional, manteria utilidade processual porque "todos os argumentos invocados pelo Tribunal «a quo» se reconduzem aos fundamentos da inconstitucionalidade alegada pelo Recorrente" (fls. 630);
e) Não é verdade que o tribunal recorrido não tenha aplicado a norma em apreço, já que "tanto apreciou que concluiu não ser a mesma procedente, mas que, ainda assim «mesmo não concordando com a supra aludida tese», a pretendida inconstitucionalidade não alteraria o decidido em 1.ª instância" (fls. 631);
f) Ainda que o tribunal recorrido não tivesse aplicado a norma, "não é a apreciação/decisão da questão de inconstitucionalidade o requisito exigido na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição para a interposição de recurso. O que este preceito determina é que cabe recurso das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido «suscitada» durante o processo" (fls. 631).
6 - Por ter cessado funções neste Tribunal a Exma. Conselheira Relatora, os presentes autos foram redistribuídos e apresentados a conclusão da actual Conselheira Relatora, em 23 de Abril de 2007.
II - Questão prévia: da inadmissibilidade do recurso
7 - Como se viu, o recorrido, nas contra-alegações, invoca dois fundamentos de não conhecimento do objecto deste recurso, a saber:
a) A inadmissibilidade de fiscalização sucessiva concreta da constitucionalidade no processo de providência cautelar por a norma supostamente inconstitucional também ser aplicável na acção principal;
b) A não aplicação efectiva da interpretação reputada de inconstitucional e a suscitação de diversa inconstitucionalidade.
Cumpre, pois, começar por apreciar a primeira questão, uma vez que dela depende a apreciação de todas as outras.
8 - O recorrido alega que "não cabe apreciar no âmbito do presente procedimento cautelar a constitucionalidade de normas que também são aplicáveis na acção principal, sob pena de ser desvirtuada a natureza instrumental do procedimento cautelar - que seria transformado numa verdadeira acção principal - , e desrespeitados os pressupostos legalmente fixados para o decretamento das providências" (cf. § 8, fls. 599), ao que o recorrente veio responder que "impedir a fiscalização da constitucionalidade em sede cautelar não se coaduna com a consagração clara e inequívoca de uma justiça cautelar garantística" (cf. § 18, fls. 641), aduzindo em seu benefício diversos argumentos.
A verdade é que as características típicas das providências cautelares - "sumariedade", "provisoriedade", e "instrumentalidade" - não podem deixar de levantar sérias dúvidas quanto à sua compatibilidade com o proferimento de juízos de constitucionalidade. Na medida em que assentam num juízo de mera verosimilhança, as providências cautelares não se revestem de força de caso julgado material, nem tão pouco determinam ou condicionam a decisão a proferir em sede da acção principal da qual dependem.
E é por estas - e outras - razões que este Tribunal tem decidido, em jurisprudência constante, embora com alguns votos de vencido, não conhecer do objecto do recurso de constitucionalidade nestes casos.
Foi o que sucedeu, por exemplo, no Acórdão 442/00, de 25 de Outubro de 2000, disponível in www.tribunalconstitucional.pt, no qual se pode ler:
«Como já teve ocasião de afirmar por diversas vezes (cf. os acórdãos n.os 151/85, 400/97 e 664/97, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 31 de Dezembro de 1985, 17 de Julho de 1997 e 18 de Março de 1998, respectivamente) não cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões proferidas no âmbito das providências cautelares destinado à apreciação da constitucionalidade de normas em que, simultaneamente, se fundamentam, quer a providência requerida, quer a acção correspondente, dada a natureza provisória do julgamento ali efectuado.
Como se escreveu no citado acórdão 151/85, nestes casos, "não terá o juiz da causa, para decidir sobre a concessão ou não d[a] [...] providência, de esclarecer exaustiva e definitivamente essa questão de constitucionalidade, mas apenas de apreciá-la de modo perfunctório e interino. Concretamente: o que ao juiz caberá formular (nesse momento ou nessa fase processual) é tão-só um juízo sobre a probabilidade séria da ocorrência de inconstitucionalidade, de harmonia com a qual decretará ou não a pretendida" providência.
"Crê-se, de resto, que isto se poderá generalizar, afirmando que nos procedimentos cautelares não cabe senão este tipo de decisão 'provisória' relativamente à questão de constitucionalidade de normas de que substantivamente dependa a resolução da questão a decidir no processo principal e, portanto, a concessão da providência (outro poderá ser o caso, evidentemente, se a inconstitucionalidade respeitar a aspectos diferentes desse, v. g., à tramitação do procedimento em causa)".
"Visando os procedimentos cautelares uma solução provisória, é no processo principal que hão-de ser dirimidas as questões substantivas, aí decidindo-se em definitivo a matéria da (in)constitucionalidade, pelo que não há que conhecer" do recurso (cit. acórdão 664/97).»
Esta jurisprudência foi integralmente retomada no Acórdão 235/01, de 23 de Maio de 2001, disponível in www.tribunalconstitucional.pt.
9 - É certo que a justiça cautelar tem consagração constitucional, desde a revisão constitucional de 1997, enquanto meio de garantir o acesso ao direito e aos tribunais em prazo razoável (nº 5 do artigo 20º da Constituição), mas, retomando, mais uma vez, o citado acórdão 442/00, daí não decorre, de forma alguma, a admissibilidade do recurso de constitucionalidade.
É a circunstância de a mesma norma ser aplicável na providência cautelar e no processo principal que torna inadmissível o recurso interposto no âmbito da providência cautelar, atento o valor meramente provisório do juízo de constitucionalidade emitido igualmente ao julgar a providência cautelar.
Como se afirma no citado Acórdão 442/00:
«Com efeito, se fosse julgada a questão de constitucionalidade numa hipótese destas, ou o julgamento não constituía caso julgado relativamente à acção principal, admitindo-se que, nesta, se viesse a emitir novo julgamento, eventualmente não coincidente, com possibilidade de outro recurso para o Tribunal Constitucional; ou constituía, subvertendo a lógica inerente à relação de instrumentalidade existente entre a acção e o procedimento, pois que a sorte daquela era traçada por uma decisão tomada no âmbito deste.»
(...)
7 - Finalmente, não se vê em que medida é que o acrescentamento do n.º 5 do artigo 20º da Constituição pela revisão constitucional de 1997 altera a conclusão de que o recurso não é admissível. Na verdade, a consagração constitucional da necessidade de a lei prever "procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos" não obriga a que se considerem recorríveis para o Tribunal Constitucional todas as decisões proferidas nesses procedimentos.»
10 - Deve notar-se, todavia, que a jurisprudência acabada de mencionar não tem por base providências cautelares administrativas, mas sim providências de outra índole, pelo que, antes de a aplicar ao caso em apreço, cumpre averiguar se existem especificidades nas providências cautelares administrativas que justifiquem decisão diferente deste Tribunal.
Na verdade, na revisão constitucional de 1997, foi aditado ao n.º 4 do artigo 268º da Constituição que consagrou o direito fundamental à tutela cautelar administrativa, o que implica que especificamente em sede de Direito Processual Administrativo, a garantia de tutela jurisdicional efectiva dos direitos dos administrados, mediante "a adopção de medidas cautelares adequadas" (artigo 268º, n.º 4, da CRP) exige que tanto o requerente, como o requerido, como ainda os contra-interessados possam ver apreciadas, ainda que perfunctoriamente, questões relacionadas com a (in)constitucionalidade de normas que sustentam a decretação ou a recusa de providências cautelares administrativas.
Quer dizer, o artigo 268º, n.º 4, conjugado com o artigo 204º da Constituição não podem deixar de reconhecer o poder dos tribunais administrativos, no exercício de funções cautelares, para apreciar a constitucionalidade de normas aplicadas ou a aplicar.
Mas daqui não decorre, necessariamente, que o Tribunal Constitucional detenha poderes para sindicar, em sede de recurso, essa mesma constitucionalidade, quando a questão deva ser de novo apreciada no processo principal, sob pena de esvaziamento do objecto processual deste último.
Não se verifica, portanto, violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, dado que a questão de constitucionalidade sempre poderá ser apreciada na acção principal, a qual se pronunciará em definitivo.
11 - Com efeito, a tramitação célere e simplificada que caracteriza a tutela cautelar administrativa não se coaduna com a admissibilidade de fiscalização da constitucionalidade. Aliás, precisamente com fundamento na sumariedade das providências cautelares administrativas, houve até quem colocasse em causa a admissibilidade de suscitação de questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias por parte dos juízes cautelares nacionais, por estas não se coadunarem com a natureza urgente daquelas (neste sentido, ver Sérvulo Correia / Rui Medeiros / Diniz de Ayala, "Vers une protection jurisdictionnelle commune des citoyens en Europe", in «Estudos de Direito Processual Administrativo», 2002, Lex, Lisboa, p. 51). Idênticas considerações se podem fazer em relação à apreciação de recursos fundados na inconstitucionalidade de normas aplicadas por decisões cautelares, por parte do Tribunal Constitucional.
Além disso, a provisoriedade das providências cautelares administrativas que significa que estas apenas visam regular determinada situação jurídico-administrativa até ao proferimento de decisão de fundo sobre a questão controvertida, implicaria sempre que a formulação de um juízo, pelo Tribunal Constitucional, de (in)constitucionalidade de norma aplicada por um tribunal administrativo, nas vestes de juiz cautelar, constituiria um juízo meramente provisório. Isto é, a eventual decisão do Tribunal Constitucional (seja no sentido da inconstitucionalidade ou da não inconstitucionalidade) apenas produziria efeitos jurídicos enquanto não fosse proferida decisão definitiva sobre o incidente de inconstitucionalidade suscitado no âmbito da respectiva acção administrativa principal. Aliás, em caso de decretação de providência cautelar administrativa alvo de confirmação por decisão do Tribunal Constitucional, aquela sempre caducará por força de qualquer uma das circunstâncias previstas no n.º 1 do artigo 123º do CPTA, designadamente, por força do "trânsito em julgado da decisão que ponha termo ao processo principal, no caso de ser desfavorável ao requerente" [cf. alínea f)].
Ainda que o Tribunal Constitucional se pronunciasse perfunctoriamente pela inconstitucionalidade de norma aplicada em processo cautelar administrativo, aquela decisão apenas produziria os seus efeitos (ou seja, a desaplicação da norma em causa) de modo provisório. Esta decisão de desaplicação apenas poderia formar caso julgado formal, restrito ao processo cautelar administrativo, pelo que não poderia afectar a liberdade de apreciação quer do juiz cautelar administrativo, em sede de julgamento da acção administrativa principal, quer do próprio Tribunal Constitucional, caso voltasse a ser chamado a pronunciar-se, em sede de recurso de inconstitucionalidade interposto da decisão final da acção administrativa principal, o que não seria admissível.
O juízo do Tribunal Constitucional sobre a (in)constitucionalidade da norma aplicada pela decisão recorrida apenas vigoraria enquanto não fosse julgada definitivamente a questão de (in)constitucionalidade nos autos da acção administrativa principal, o que igualmente não é sustentável.
Entendimento diverso, isto é, admitir a possibilidade de a decisão deste Tribunal formar caso julgado material, conduziria a que o juiz constitucional se substituísse ao juiz do processo principal.
Ora, o sistema de fiscalização da constitucionalidade não se compadece com uma solução em que o juiz constitucional se substitui ao juiz do processo principal nem comporta a possibilidade de decisões de inconstitucionalidade provisórias.
Por último, o julgamento pelo Tribunal Constitucional, em sede de recurso, sobre uma questão de inconstitucionalidade suscitada em autos de providência cautelar administrativa coloca em causa a natureza instrumental das providências cautelares, dado que implica uma antecipação do juízo sobre a inconstitucionalidade de normas a aplicar na acção administrativa principal. Juízo esse a formular quer pelos tribunais administrativos que julgam em primeira instância e, eventualmente, em recurso (artigo 204º da CRP), quer pelo próprio Tribunal Constitucional, caso venha, nesses autos, a ser interposto o competente recurso (artigo 280º da CRP). Só assim não será, conforme tem sido unanimemente reconhecido por este Tribunal (cf. Acórdãos n.º 235/2001, n.º 442/2000, n.º 400/97 e n.º 151/85, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt), se se tratar do conhecimento de questões de inconstitucionalidade de normas que sejam exclusivamente aplicáveis em sede de processo cautelar - v.g., normas processuais que regulem a sua tramitação - , visto que a decisão sobre a inconstitucionalidade se restringe aos autos de processo cautelar.
Ora, não é este o caso que se verifica nos presentes autos. Pelo contrário, a norma em relação à qual foi suscitada a questão de inconstitucionalidade, é simultaneamente fundamento da decisão cautelar e fundamento da decisão definitiva, pelo que a instrumentalidade da providência cautelar ficaria prejudicada pelo proferimento de juízo perfunctório sobre a inconstitucionalidade por parte deste Tribunal.
Em conclusão, do exposto resulta que não se deve conhecer do objecto do presente recurso de constitucionalidade.
III - Decisão - Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 UC`S.
Lisboa, 25 de Setembro de 2007. - Ana Maria Guerra Martins - Maria Lúcia Amaral - Vítor Gomes - Carlos Fernandes Cadilha - Gil Galvão.