Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Modelo Continente - Sociedade Gestora de Participações Sociais, S. A., em 30-10-2000, deduziu impugnação judicial da liquidação de IRC, relativa ao ano de 1990, no valor de 102.258.322$00.
Por sentença do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto tal impugnação foi julgada parcialmente procedente, tendo-se anulado parcialmente a liquidação impugnada.
Desta sentença interpuseram recurso quer a Fazenda Pública, quer Modelo Continente, tendo o Tribunal Central Administrativo Sul, por acórdão de 3-5-2005, negado provimento ao recurso interposto por Modelo Continente e dado provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública, revogando a sentença recorrida e julgando improcedente a impugnação judicial.
Nas contra-alegações apresentadas por Modelo Continente ao recurso interposto pela Fazenda Pública não foi suscitada a questão da incompetência do Tribunal Central Administrativo, em razão da hierarquia.
Modelo Continente interpôs recurso do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul para o Supremo Tribunal Administrativo, alegando, além do mais, o seguinte:
"Com o devido respeito, parece-nos que o douto Acórdão recorrido, ao apreciar o recurso jurisdicional interposto pela Fazenda Pública para o Supremo Tribunal Administrativo, violou as regras de competência em razão da hierarquia.
Esse recurso era restrito a questões de direito (artigo 280º n.º 1 "in fine" do CPPT).
Pelo que, competente para o seu conhecimento, era este Venerando STA (artigos 32º n.º 1, alínea b), 33º n.º 1, alínea b), 41º n.º 1, alínea a), e 42º n.º 1 alínea a), do E.T.ª.F. e artigo 280º n.º 1 do CPPT).
Assim violados pelo douto Acórdão recorrido.
Nos termos do n.º 1 do artigo 16º do CPPT, a infracção das regras de competência em razão da hierarquia determina a incompetência absoluta do Tribunal."
A Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 24 de Janeiro de 2007, decidiu não tomar conhecimento deste recurso por o considerar inadmissível.
Sustentou esta decisão com os seguintes fundamentos:
"Como se mostra dos autos, a impugnação judicial foi deduzida em 30 de Outubro de 2000.
O Decreto-Lei 229/96, de 29 de Novembro, extinguiu, no contencioso tributário, o terceiro grau de jurisdição, sendo que tal extinção apenas produz efeitos relativamente aos processos instaurados após a sua entrada em vigor - artigo 120.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei 129/84, de 27 de Abril, na redacção dada por aquele primeiro diploma legal.
Este entrou em vigor em 15 de Setembro de 1997, nos termos do seu artigo 5.º e da Portaria 398/97, de 18 de Junho.
Assim, o presente recurso, porque em terceiro grau de jurisdição, não é admissível.
Certo que ele vem interposto nos termos do artigo 678.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 2.º, alínea e), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, "com fundamento em violação das regras de competência em razão da hierarquia".
Dispõe aquele n.º 2 que o recurso é sempre admissível, seja qual for o valor da causa, se tiver por fundamento a violação das regras de competência, nomeadamente em razão da hierarquia, como é o caso.
Todavia, tal tem de entender-se subordinantemente à respectiva jurisdição, ou, de outro modo, dentro dos respectivos graus de jurisdição.
Como é sabido, são as leis orgânicas e estatutárias específicas que estabelecem a medida de jurisdição por cada categoria e espécie de tribunais, determinando a categoria dos pleitos que a cada um deles é destinada.
Neste sentido, a respectiva competência, em geral, resulta da medida de jurisdição atribuída aos diversos tribunais, repartindo o poder judicial que, em bloco, pertence ao seu conjunto.
Cf. Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pp. 88-89.
As regras de competência judiciária, em razão da hierarquia, são pois as atinentes à distribuição das matérias pelas diversas espécies de tribunais dispostos verticalmente.
Pelo que, onde não há jurisdição, não pode haver competência.
Aquela possibilidade de recurso só pode, pois, equacionar-se com relação, ou até, ao tribunal que constitua o último grau de jurisdição.
E tanto assim é que o dito artigo 678.º, n.º 2, admite sempre o recurso, "seja qual for o valor das causas", reportando-se, pois, como logo resulta do seu n.º 1, às alçadas.
Aí, porém, há jurisdição, ou seja, só o valor da causa - o mesmo é que dizer, o regime das alçadas - impediria o recurso que, de outro modo, seria admissível.
Não é assim no caso dos autos, abolido que foi, nos preditos termos, o terceiro grau de jurisdição.
Objecta a recorrente que tal entendimento consequência que a questão da competência em razão da hierarquia não será objecto de qualquer apreciação jurisdicional, em recurso entenda-se, já que o Tribunal Central Administrativo - Sul se considerou competente.
Todavia, tal sempre sucede quando a questão seja apreciada em último grau de jurisdição.
Se a questão da incompetência fosse decidida primariamente pelo Supremo Tribunal Administrativo, obviamente que a respectiva apreciação jurisdicional por aí se quedaria.
E o mesmo se tem de passar, no caso, face à decisão do Tribunal Central Administrativo, uma vez que julgou em último grau de jurisdição.
Pelo que se não concretiza qualquer violação do direito de acesso aos tribunais e tutela jurisdicional efectiva consagrado nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
O Tribunal Central Administrativo, ao julgar a causa, fê-lo no entendimento da sua competência que, assim, ao menos implicitamente julgou.
Por outro lado, aqueles direitos - como repetidamente vem afirmando o Tribunal Constitucional - , não implicam a obrigatoriedade, para todas as decisões, de um duplo grau de jurisdição - cf. elencagem em Constituição da República Portuguesa - anotada, J.J. Almeida Lopes.
"Prevendo a Constituição tribunais de recurso, o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso ou de a inviabilizar na prática, mas já não está impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões" - cf. o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 31/87, publicado no Boletim do Ministério da Justiça 363-191 - nem, muito menos, que esteja constitucionalmente garantido o triplo grau de jurisdição - cf. acórdão 51/88, ibidem, 375-109.
Por fim, a garantia do recurso contencioso consagrada no artigo 284.º, n.º 4, da Constituição, tendo por conteúdo a possibilidade de acesso aos tribunais para defesa dos direitos, não está prejudicada uma vez que, no caso, está até garantido o duplo grau de jurisdição."
Deste acórdão recorreu Modelo Continente para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
"Visando a apreciação da inconstitucionalidade, e violação de lei com valor reforçado, do artigo 120.º do ETAF, na redacção pelo Decreto-Lei 229/96, de 29/11 (que aboliu o 3.º grau de jurisdição fiscal), na interpretação segunda qual é inadmissível o recurso jurisdicional, com fundamento em violação das regras de competência em razão da hierarquia, do TCAS para o STA, por violação do direito de acesso e tutela jurisdicional efectiva (artigos 20.º n.º 1 e 268.º n.º 4 da CRP), e violação dos artigos 16.º n.º 1 e 2 do CPPT, 3.º da LPTA e 678.º n.º2 do CPC".
Por decisão sumária proferida pelo Relator não se conheceu do recurso interposto, relativamente à questão da ilegalidade da interpretação do artigo 120.º, do ETAF, na redacção do Decreto-Lei 229/96, de 29/11.
Modelo Continente concluiu do seguinte modo as suas alegações de recurso, quanto à questão de inconstitucionalidade da mesma interpretação normativa:
"A interpretação do artigo 120.º do ETAF, na redacção do Decreto-Lei 229/96, de 29/11, preconizada no douto Acórdão recorrido, segundo a qual é inadmissível o recurso jurisdicional, com fundamento em violação das regras de competência hierárquica, do TCAS para o STA, padece de inconstitucionalidade material.
Por violação do direito de acesso e tutela jurisdicional efectiva, consagrado nos artigos 20.º n.º 1 e 268.º n.º 4 da CRP, imanentes do próprio ideal de Estado de Direito Democrático (artigo 2.º da CRP).
Estes preceitos opõem-se a uma situação, como a presente, em que se inviabiliza que uma questão legitimamente levantada - da incompetência em razão da hierarquia - seja objecto de qualquer apreciação ou conhecimento jurisdicional.
Apesar da prioridade absoluta e da ordem pública atribuídas pela lei a semelhante questão.
Contrariamente ao entendimento do douto Acórdão recorrido, não está em causa a possibilidade ou não de recurso jurisdicional com base em violação das regras de competência jurisdicional hierárquica (artigo 678.º n.º 2 do CPC).
O que está em causa é que, a seguir-se a interpretação do douto Acórdão recorrido, a questão da incompetência em razão da hierarquia fica sem qualquer apreciação jurisdicional.
Não se pode objectar que a "apreciação jurisdicional" dessa questão terá sido "implicitamente" efectuada pelo TCAS, ao emitir o respectivo Acórdão.
Desde logo, porque essa questão, da incompetência em razão da hierarquia, no caso só se colocou logicamente após prolação do douto Acórdão do TCAS.
Está em causa salvaguardar um único grau jurisdicional, ou seja, a "tutela jurisdicional mínima" da questão da competência em razão da hierarquia.
Que o douto Acórdão recorrido, na dimensão interpretativa e normativa que confere à lei, não salvaguarda.
A incompetência jurisdicional em razão da hierarquia constitui matéria de ordem pública e cujo conhecimento, por isso, deve preceder o de qualquer outra questão (artigos 16.º n.º 1 e 2 do CPPT, 3.º da LPTA e 13.º do CPTA, e 678.º n.º 2 do CPC, ex vi do artigo 2.º e) do CPPT e 818.º do CA).
O direito de acesso aos tribunais é um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, ou seja, tem força jurídica directamente vinculatória (artigos 17.º e 18.º da CRP)."
Fundamentação
A recorrente pretende que se aprecie a constitucionalidade da interpretação normativa, efectuada pelo acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, segundo a qual a abolição de um terceiro grau de jurisdição no contencioso tributário, resultante das alterações ao ETAF, introduzidas pelo Decreto-Lei 229/96, de 29 de Novembro, tornam inadmissível o recurso da decisão proferida, em segunda instância, pelo Tribunal Central Administrativo, mesmo que o fundamento do recurso seja a incompetência em razão da hierarquia deste tribunal.
Após referir que não está em causa "a possibilidade ou não de recurso jurisdicional com base em violação das regras de competência jurisdicional hierárquica", e que "está em causa salvaguardar um único grau jurisdicional, ou seja, a "tutela jurisdicional mínima" da questão da competência em razão da hierarquia", alega que aquela interpretação viola o direito de acesso e tutela jurisdicional efectiva, consagrado nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da C.R.P., imanentes do próprio ideal de Estado de Direito Democrático (artigo 2.º, da C.R.P.)
Este direito constitucional, como corolário do princípio estruturante do Estado de direito democrático, nomeadamente na sua vertente de garantia da possibilidade efectiva de qualquer cidadão manter e defender as suas posições jurídicas perante a Administração, através do recurso aos tribunais, confere o chamado direito pro actione, que se traduz no direito de abertura de um processo, após a apresentação da pretensão inicial, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar, mediante decisão fundamentada.
Ora, este direito não foi de modo algum negado à recorrente, que impugnou judicialmente uma liquidação de imposto efectuada pelo fisco, tendo obtido uma primeira decisão jurisdicional que julgou a sua pretensão, a qual foi ainda objecto duma segunda apreciação, em recurso, por tribunal superior.
Mostram-se, pois, observadas as exigências constitucionais do direito ao acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional, contidas nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da C.R.P.
Queixa-se, todavia, a recorrente que o S.T.ª, ao não admitir o recurso do acórdão do T.C.ª. sobre a incompetência deste, em razão da hierarquia, não permitiu que esta questão fosse objecto de qualquer apreciação jurisdicional.
A exigência do conhecimento pelo tribunal de determinadas questões, no âmbito de processo judicial, resulta do conceito do due process, positivado no artigo 20.º, n.º 4, da C.R.P.
Nos termos deste dispositivo o processo deve ser equitativo, o que, além do mais, impõe que, quer as questões suscitadas pelas partes no decurso do processo, quer as que são do conhecimento oficioso, por razões de ordem pública, sejam objecto de apreciação pelo tribunal.
A incompetência em razão da hierarquia no contencioso tributário é do conhecimento oficioso (artigo 16.º, do C.P.P.T.), pelo que qualquer tribunal que profira decisão nesta área, nomeadamente quando aprecia recursos que lhe são dirigidos, como sucedeu neste caso, necessariamente tem que ponderar, como questão prévia, a sua competência hierárquica para a prática do acto jurisdicional que lhe é solicitado.
Contudo, esta apreciação só tem que ser exteriorizada quando tal questão, assim como todas as demais do conhecimento oficioso, tenham sido suscitadas pelas partes ou o seu resultado determine uma inflexão no decurso normal do processo.
Neste caso, não tendo sido colocada antecipadamente ao Tribunal Central Administrativo a questão da sua competência, em razão da hierarquia, para conhecer do recurso que lhe foi dirigido (e o recorrente teve oportunidade de o fazer quando apresentou contra-alegações ao recurso interposto pela Fazenda Nacional para o Tribunal Central Administrativo), não está aquele tribunal obrigado a exteriorizar a ponderação necessária da sua própria competência para apreciar o recurso interposto, desde que se julgue competente.
Apesar deste juízo não ter sido exteriorizado, ao exercer-se essa competência ele foi necessariamente feito, pelo que não corresponde à realidade dizer-se que a questão da competência do tribunal em razão da hierarquia, que é do conhecimento oficioso, não teve uma apreciação jurisdicional.
Deste modo, a interpretação que considera inadmissível o recurso da decisão proferida em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo, mesmo que o fundamento do recurso seja a incompetência em razão da hierarquia deste tribunal, não viola nem o direito de acesso e tutela jurisdicional efectiva, consagrado nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da C.R.P., como corolário do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da C.R.P.), nem o direito a um processo equitativo, previsto no artigo 20.º, n.º 4, da C.R.P., pelo que o recurso interposto não merece provimento.
Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto por Modelo Continente - Sociedade Gestora de Participações Sociais, S. A., para o Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24-1-2007.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, tendo em consideração os critérios do artigo 9.º, do D.L. n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 16 de Outubro de 2007. - João Cura Mariano - Joaquim Sousa Ribeiro - Mário José de Araújo Torres - Benjamim Rodrigues - Rui Manuel Moura Ramos.