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Assento 2/2003, de 30 de Janeiro

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Sumário

Fixa a seguinte jurisprudência: sempre que o recorrente impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, em conformidade com o disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, a transcrição ali referida incumbe ao tribunal. (Proc. nº 3632/2001 - 3ª secção.)

Texto do documento

Assento 2/2003

Processo 3632/2001 - 3.ª Secção

Acordam no Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

I - Henrique Manuel Barreto Pereira de Almeida, arguido nos autos de processo comum singular que contra ele correram seus termos com o n.º 59/99, na comarca de Oliveira de Hospital, interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos do n.º 2 do artigo 437.º do Código de Processo Penal, do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, de 28 de Março de 2001, processo 2273/2000, com os seguintes fundamentos:

O acórdão recorrido decidiu que o ónus da transcrição das provas produzidas e gravadas em audiência de julgamento cabe ao recorrente;

Por sua vez, o acórdão fundamento - da mesma Relação e proferido em 31 de Maio de 2000 - decidiu que cabe ao tribunal o ónus da transcrição da prova oralmente produzida em audiência de julgamento;

Há, assim, oposição de julgados, que transitaram e que foram proferidos no domínio da mesma legislação;

Na sua opinião, a solução correcta é a que consta do acórdão fundamento.

O recurso foi admitido, dada a legitimidade do recorrente e os fundamentos invocados.

Por acórdão de 9 de Janeiro de 2002, a fls. 59 e seguintes, julgou-se existente a mencionada contradição entre os dois referidos acórdãos.

Ordenado o cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 442.º do Código de Processo Penal, alegaram o Ministério Público e o recorrente.

O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto apresentou doutas alegações, concluindo no sentido de que deve fixar-se jurisprudência nos seguintes termos:

«Em processo penal, havendo recurso da matéria de facto, e tendo a prova produzida oralmente em audiência de julgamento sido documentada através de gravação magnetofónica ou áudio-visual, cabe ao recorrente, por força do artigo 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, fazer a transcrição das provas que, em seu entender, impunham decisão diversa da recorrida.» Por sua vez, o recorrente, em igualmente doutas alegações, concluiu no sentido de que deve fixar-se jurisprudência nos seguintes termos:

«Tendo o recorrente impugnado a matéria de facto em recurso, cabe ao tribunal o ónus de transcrição da prova oralmente produzida em audiência de julgamento; a omissão da transcrição constitui irregularidade processual a dar lugar à nulidade do julgamento e à respectiva repetição.» Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II.A - Da exposição acima feita, é manifesto que os dois acórdãos em conflito, a fl. 14 e a fl. 53, ambos transitados, se pronunciaram em sentido contrário ao apreciarem o mesmo ponto de direito, no domínio da mesma legislação e relativamente a factos idênticos, pelo que se confirma existir a oposição a que se refere o artigo 437.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal.

Para fundamentar o seu ponto de vista, escreveu-se, a certo passo, no acórdão recorrido:

«O recorrente tem obrigação de, quando é impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa, estes por referência aos suportes técnicos em que se encontrem gravadas, mas, a nosso ver, por mera consulta da gravação.

Se, até ao momento de interposição do recurso, a lei já supusesse feita a transcrição das gravações, as especificações deveriam referir-se à transcrição, isto é, deveriam ser feitas sem referência a algo (transcrição) que já estava feita, e não aos suportes técnicos como impõe comando legal.

A ser de outro modo, para que serviria a transcrição nos casos em que não houvesse recurso da matéria de facto? De outro passo adiantamos que a redacção do artigo 412.º no Anteprojecto referia expressamente no n.º 4 do normativo que 'Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, a especificação prevista na alínea b) do número anterior faz-se por referência directa aos suportes técnicos, não se procedendo à respectiva transcrição'.

E só se abandonou tal redacção porque se anteviu que ela iria impor a audição sistemática dos suportes técnicos pelo tribunal superior; logo, e para evitar as terríveis consequências daí derivadas, criou-se a obrigação da transcrição dos pontos impugnados.» No acórdão recorrido consta um douto voto de vencido em que se defende ponto de vista contrário ao que fez vencimento.

Por sua vez, no acórdão fundamento escreveu-se, a certa altura, o seguinte:

«Nesta conformidade, não impondo a lei processual penal quer ao recorrente quer ao recorrido o ónus da transcrição (artigos 412.º, n.º 4, e 413.º, n.º 4), não podemos deixar de concluir que esse ónus cabe ao tribunal, o que aliás sempre decorreria da cabal aplicação da regra do artigo 4.º, segundo a qual nos casos omissos há que recorrer em primeira linha às disposições do próprio Código que puderem aplicar-se por analogia.

Com efeito, existe na lei processual disposição a que sempre se teria de recorrer, por aplicação analógica, qual seja a do n.º 2 do artigo 101.º, a qual estabelece que a transcrição deve ser feita pelo funcionário de justiça a quem cabe a redacção do auto ou, na sua impossibilidade ou falta, por pessoa idónea, devendo o juiz que presidir ao acto, antes da assinatura, certificar-se da conformidade da transcrição.» II.B - No conhecimento da questão vertida no recurso, vejamos, antes de mais, o que dizem as normas jurídicas relevantes.

Contidas no Código de Processo Penal, na redacção da Lei 59/98, de 25 de Agosto:

Artigo 363.º («Documentação de declarações orais - Princípio geral»):

«As declarações prestadas oralmente na audiência são documentadas na acta quando o tribunal puder dispor de meios estenotípicos, ou estenográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas, bem como nos casos em que a lei expressamente o impuser.» Artigo 364.º («Audiência perante tribunal singular ou na ausência do arguido»):

«1 - As declarações prestadas oralmente em audiência que decorrer perante tribunal singular são documentadas na acta, salvo se, até ao início das declarações do arguido previstas no artigo 343.º, o Ministério Público, o defensor ou o advogado do assistente declararem unanimemente para a acta que prescindem da documentação.

[...] 4 - Se não estiverem à disposição do tribunal meios técnicos idóneos à reprodução integral das declarações, o juiz dita para a acta o que resultar das declarações prestadas. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 100.º, n.os 2 e 3.» Artigo 101.º («Registo e transcrição»):

«1 - O funcionário referido no n.º 1 do artigo anterior pode redigir o auto utilizando meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, bem como socorrer-se de gravação magnetofónica ou áudio-visual.

2 - Quando forem utilizados meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, o funcionário que deles se tiver socorrido ou, na sua impossibilidade ou falta, pessoa idónea, faz a transcrição no prazo mais curto possível. Antes da assinatura, a entidade que presidiu ao acto certifica-se da conformidade da transcrição.

[...]» Artigo 412.º, n.os 3 e 4 («Motivação do recurso e conclusões»):

«3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.» Ínsita no artigo 690.º-A do Código de Processo Civil, introduzido pelo Decreto-Lei 39/95, de 15 de Fevereiro (primitiva redacção):

1 - Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda.

3 - Na hipótese prevista no número anterior, incumbe à parte contrária, sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, proceder, na contra-alegação que apresente, à transcrição dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente.

4 - [...]» Os citados n.os 2 e 3 do artigo 690.º-A foram alterados pelo Decreto-Lei 183/2000, de 10 de Agosto, tendo-lhes sido dada a redacção que se transcreve:

«2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º-C.

3 - Na hipótese prevista no número anterior, incumbe à parte contrária proceder, na contra-alegação que apresente, à indicação dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente, também por referência ao assinalado na acta, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 522.º-C.» O supra-indicado diploma legal aditou ao referenciado artigo um novo número, do seguinte teor:

«5 - Nos casos referidos nos n.os 2 a 4, o tribunal de recurso procederá à audição ou visualização dos depoimentos indicados pelas partes, excepto se o juiz relator considerar necessária a sua transcrição, a qual será realizada por entidades externas para tanto contratadas pelo tribunal.» II.C - Relativamente à jurisprudência existente nos tribunais superiores sobre a questão sub judice, partilhando a conclusão sustentada pelo acórdão recorrido, ou seja, a de que o ónus da transcrição da gravação magnetofónica dos depoimentos prestados oralmente em audiência cabe ao recorrente que solicita o reexame da decisão impugnada em matéria de facto, embora com fundamentos nem sempre coincidentes, podem, a título de exemplo, citar-se as decisões que passam a indicar-se:

a) Com recurso à aplicação, por analogia, do n.º 2 do artigo 690.º-A do Código de Processo Civil (redacção primitiva conferida pelo Decreto-Lei 39/95, de 15 de Fevereiro):

Acórdão do STJ de 26 de Janeiro de 2000, publicado na Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VIII, t. I, 2000, pp. 194 e 195;

Acórdão da Relação de Lisboa de 31 de Agosto de 1999, Colectânea, ano XXIV, t. IV, 1999, pp. 144 e 145;

Acórdão da Relação de Coimbra de 24 de Maio de 2000, Colectânea, ano XXV, t. III, 2000, pp. 41 a 43;

b) No sentido de que é ao recorrente que compete proceder à transcrição, sem necessidade de recurso às normas do Código de Processo Civil:

Acórdão da Relação de Coimbra de 21 de Fevereiro de 2001, Colectânea, ano XXVI, t. II, 2001, pp. 39 a 42;

Acórdão da Relação de Lisboa de 21 de Novembro de 2001, Colectânea, ano XXVI, t. V, 2001, pp. 136 a 138.

Preconizando que a aludida transcrição incumbe ao tribunal, para além do acórdão fundamento, podem elencar-se, sem a preocupação de se esgotarem as referências jurisprudenciais, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Janeiro de 2001, processo 3419/2000 - 5.ª Secção, 24 de Janeiro de 2001, processo 3416/2001 - 3.ª Secção, 14 de Março de 2001, processo 4122/2000 - 3.ª Secção, 27 de Junho de 2001, processo 354/2001 - 3.ª Secção, 28 de Junho de 2001, processo 1552/2001 - 5.ª Secção, 10 de Outubro de 2001, processo 1926/2001 - 3.ª Secção; 30 de Outubro de 2001, processo 2630/2001 - 3.ª Secção, 14 de Novembro de 2001, processo 3353/2001 - 3.ª Secção, 21 de Novembro de 2001, processo 3141/2001 - 3.ª Secção, 30 de Janeiro de 2002, processo 3428/2001 - 3.ª Secção, 20 de Fevereiro de 2002, processo 3024/2001 - 3.ª Secção, 20 de Março de 2002, processo 363/2002 - 3.ª Secção e, 10 de Abril de 2002, processo 578/2001 - 3.ª Secção, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 16 de Fevereiro de 2000, Colectânea de Jurisprudência, ano XXV, t. I, 2000, pp.

57 a 59, e de 20 de Setembro de 2000, Colectânea de Jurisprudência, ano XXV, t, IV, 2000, pp. 51 e 52, e da Relação do Porto de 26 de Janeiro de 2000, Colectânea de Jurisprudência, ano XXV, t. I, 2000, pp. 237 e 238.

II.D - Delimitadas que estão as duas teses em confronto, uma (a do acórdão recorrido) impondo a transcrição da prova gravada ao recorrente interessado no reexame da decisão impugnada e a outra (a do acórdão fundamento) fazendo recair tal ónus sobre o próprio tribunal recorrido, importa agora discorrer sobre as possíveis soluções jurídicas, para que se atinja a que melhor se integre na harmonia e na dinâmica do regime processual penal e, em particular, na teleologia e nos fins dos recursos.

Vista a redacção dos n.os 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, verifica-se desde logo que a norma não define expressis verbis quem deve proceder à transcrição das provas gravadas.

O legislador limitou-se tão-somente a estabelecer que o recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, tem o ónus de especificar, além do mais, as provas que impõem decisão diversa da recorrida [n.º 3, alínea b)] e as provas que devem ser renovadas [n.º 3, alínea c)], sendo certo que, caso as provas tenham sido gravadas, tais especificações fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição (n.º 4).

E compreende-se a neutralidade do preceito quanto ao aspecto da responsabilidade pela transcrição, já que a lei processual penal, na parte relativa à «forma dos actos e da sua documentação» (título II do livro II do Código de Processo Penal), contempla dispositivo (artigo 101.º) directamente aplicável.

Como escrevem Simas Santos e Leal-Henriques, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, 2001, p. 783, o legislador «não quis tomar posição quanto ao ónus da transcrição, problema já resolvido [...] à luz do artigo 101.º Se tivesse em mente impor um ónus ao recorrente e afastar-se daquela regra geral, não teria usado a expressão 'havendo lugar a transcrição', neutra quanto ao respectivo encargo, e teria antes utilizado uma expressão como v. g. 'devendo o recorrente proceder à respectiva transcrição', tanto mais que estava a impor ónus ao recorrente, e que entretanto já procedera à alteração, nesta matéria, do CPC».

No referido artigo 101.º do Código de Processo Penal está disciplinado o «registo e transcrição».

Diz-se no n.º 1 que o funcionário (referido no artigo anterior) «pode redigir o auto utilizando meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, bem como socorrer-se de gravação magnetofónica ou áudio-visual, acrescentando o n.º 2 que, «quando forem utilizados meios estenotípicos, estenográficos ou outros diferentes da escrita comum, o funcionário que deles se tiver socorrido, ou, na sua impossibilidade ou falta, pessoa idónea, faz a transcrição, no prazo mais curto possível».

A ratio do preceito assenta em critérios de garantia de genuinidade dos elementos probatórios, a assegurar através da atribuição da transcrição a funcionário ou pessoa idónea, e da certificação da conformidade da transcrição por parte da entidade que presidiu ao acto.

Parafraseando de novo Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., p. 782, a referenciada disposição «é a única que rege no CPP a transcrição de documentação ou registo e que vale, portanto, como regra geral na matéria, nada permitindo excluir a transcrição das gravações magnetofónica ou áudio-visual, salvo a impossibilidade relativa à parte 'visual' desta última.

Com efeito, a razão de ser deste sistema garantido de transcrição impõe-se, por identidade de razão, em relação a tais gravações, não havendo, a esse nível, qualquer motivo para discriminar, pois que se justificam para com elas os mesmos cuidados e garantias que são impostos para os restantes meios de registo».

A falta de referência expressa do n.º 2 do artigo 101.º à gravação magnetofónica ou áudio-visual não permite a conclusão de que, nesses casos, a transcrição não está a cargo e sob a responsabilidade do funcionário ou de pessoa idónea.

A menção específica do mesmo n.º 2 respeita à urgência e à amplitude da transcrição, não se mostrando obrigatória, no que concerne à gravação magnetofónica ou áudio-visual, a transcrição integral imediata, porquanto se trata de meios cujo conteúdo é susceptível de ser directamente aprendido por qualquer pessoa, o que não acontece relativamente à utilização dos meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, os quais exigem especiais conhecimentos técnicos, não sendo o seu conteúdo imediata e directamente apreensível pela pessoa comum.

Porém, mesmo que assim não se entendesse, e antes se considerasse existente uma lacuna, por omissão de quadro normativo, a carecer de integração, nem por isso se encontraria solução diversa para a questão em debate.

Perante a verificação de vazio de lei, seria indispensável o recurso à regra do artigo 4.º do Código de Processo Penal, que dispõe:

«Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.» A primeira via legalmente prevista para a integração de lacuna é o recurso a normas da legislação processual penal estabelecidas para situações análogas (analogia legis).

Só depois, inexistindo disposição análoga que preencha a omissão, será lícita a integração da lacuna através da utilização das prescrições contidas no processo civil, mas que se harmonizem com o processo penal.

Por fim, e na falta destas normas, a lacuna detectada é colmatada pelos princípios gerais do processo penal.

Deste modo, a integração analógica a efectuar conduzir-nos-ia de imediato para o domínio do artigo 101.º do Código de Processo Penal.

Como é bem de ver, ainda que se rejeitasse a aplicação directa do n.º 2 daquele preceito à matéria em análise, sempre o quadro legal da norma contempla situação semelhante ou paralela, verificando-se as mesmas razões que impõem especial cuidado e rigor na transcrição, e que são a garantia da sua genuinidade e autenticidade.

Concluímos, pois, que a integração analógica do preceito do artigo 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal seria feita à luz dos artigos 4.º daquele Código e 10.º, n.os 1 e 2, do Código Civil, pela aplicação da norma do n.º 2 do artigo 101.º do primeiro dos diplomas citados, impendendo sobre o tribunal o encargo da transcrição da prova gravada em audiência.

Integrada a lacuna na forma que ficou exposta, evidentemente não poderia ter lugar a aplicação de qualquer norma do Código de Processo Civil.

Contudo, mesmo que se considerasse, como hipótese, que a colmatação da lacuna se devia operar por recurso a norma do processo civil, concretamente a do artigo 690.º-A, n.º 2, mesmo assim a única ilação correcta a extrair seria a de que tal disposição legal se não harmoniza com os princípios gerais estruturantes do processo penal.

Na verdade, quer no domínio da estrutura processual quer sobretudo em matéria relativa à prova, são substancialmente diferentes os fins que o processo penal e o processo civil prosseguem.

Enquanto o processo civil tem tendencialmente uma estrutura dispositiva, fazendo-se recair sobre as partes na relação jurídica controvertida a condução e a continuidade do processo, o processo penal visa a satisfação de um interesse público traduzido na protecção dos bens jurídicos fundamentais da comunidade, estando reservadas ao Estado a promoção e a condução do procedimento que a cada caso couber.

Assim, o processo penal rege-se, entre outros princípios básicos, pelo princípio da oficialidade, segundo o qual constitui tarefa do Estado a investigação e a submissão a julgamento do arguido, pela prática de infracção penal, e da investigação que, como refere Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. I, Editorial Verbo, p. 73, «traduz o poder-dever que ao Tribunal incumbe de esclarecer e instruir autonomamente, mesmo para além das contribuições da acusação e da defesa, o facto sujeito a julgamento, criando aquele mesmo as bases necessárias à sua decisão».

Ora, neste contexto, facilmente se conclui que «a especial natureza do processo penal, atentos os valores que visa acautelar, não se afeiçoa aos ditames do processo civil no tocante a esta matéria, pois é difícil conceber que fosse deixada à mercê do próprio interessado uma tarefa de tanto significado e melindre como seja a de fornecer ao tribunal o material probatório que iria servir de base ao julgamento do feito, ainda que em sede de recurso.

A ser assim, exigir-se-ia que fosse a entidade pública a promover o processo penal, a investigar os factos, a levá-los a julgamento, mas, depois, quando se sujeitava o veredicto do reexame do tribunal de recurso, abandonava-se a sorte dos autos à iniciativa da parte interessada, quando ela, exactamente por ser interessada, poderia cair na tentação de oferecer ao processo uma versão das gravações porventura menos condizente com o que efectivamente se passou em audiência e consta das gravações, ou mesmo descontextualizada do conjunto da prova produzida.

Uma solução destas não se harmoniza com o processo penal, pois se traduz na alienação gratuita de uma garantia segura de genuinidade e autenticidade do procedimento com vista a atingir-se a verdade material, como a que é imposta para os registos efectuados por outros meios e foi consagrada no artigo 101.º, n.º 2, do CPP» (Simas Santos e Leal-Henriques, idem, p. 785).

Nesta ordem de ideias, temos para nós que, pelas razões supra-expostas, os princípios estruturantes do processo penal impedem a aplicação do referido comando legal do artigo 690.º-A, n.º 2, do Código de Processo Civil.

Aliás, cabe esclarecer, a propósito da mesma questão, que aquela norma da lei adjectiva civil foi reformulada pelo Decreto-Lei 183/2000, de 10 de Agosto, tendo resultado eliminada a expressão «proceder à transcrição», alusiva a encargo do recorrente, que constava do texto anterior -n.os 2 e 3-, surgindo na nova redacção inserta no n.º 5 do artigo o termo, reportado à transcrição «a qual será realizada por entidades externas para tanto contratadas pelo tribunal».

III - Em conformidade com o exposto, o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, reunido em conferência, delibera na procedência do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência interposto por Henrique Manuel Barreto Pereira de Almeida e, em consequência:

a) Fixa jurisprudência nos seguintes termos:

«Sempre que o recorrente impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, em conformidade com o disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, a transcrição ali referida incumbe ao tribunal.»;

b) E ordena o reenvio, oportunamente, do processo ao Tribunal da Relação de Coimbra, para que este reveja a decisão recorrida, conformando-a com a jurisprudência ora fixada.

Dê-se observância ao disposto no artigo 444.º do Código de Processo Penal.

Não é devida tributação.

Lisboa, 16 de Janeiro de 2003. - Luís Flores Ribeiro - José António da Rosa Dias Bravo - Armando Acácio Gomes Leandro - Virgílio António da Fonseca Oliveira - António Correia de Abranches Martins - António Gomes Lourenço Martins - Dionísio Manuel Dinis Alves - Manuel José Carrilho de Simas Santos - David Valente Borges de Pinho - José Marcelino Franco de Sá - José António Carmona da Mota (com declaração de voto em anexo) - António Pereira Madeira (vencido pelas razões da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Carmona da Mota) - António Luís Sequeira Oliveira Guimarães (vencido de acordo com a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Carmona da Mota) - Sebastião Duarte Vasconcelos da Costa Pereira (vencido, porque concordo inteiramente com a argumentação constante da declaração de voto do Exmo.

Conselheiro Carmona da Mota).

Declaração de voto

«Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa da recorrida» [artigo 412.º, n.º 3, alíneas a) e b), do CPP], sendo que, «quando as provas tenham sido gravadas, as especificações fazem-se por referência aos suportes técnicos» (artigo 412.º, n.º 4), «havendo lugar a transcrição» (idem) «das passagens da gravação em que [o recorrente] se funda» (cf. artigo 690.º-A, n.º 2, na versão contemporânea, ou seja, na redacção anterior ao Decreto-Lei 183/2000, de 10 de Agosto).

Porém, «especificação das provas gravadas» - exigida pelo artigo 412.º, n.os 3 e 4, do CPP - não se contenta com a referência aos suportes técnicos», impondo ainda (ou pressupondo) a respectiva «transcrição» («havendo lugar a transcrição»).

Ora, é justamente este requisito suplementar que tem embaraçado -ao nível jurisprudencial- os recursos «da decisão [do tribunal colectivo, nomeadamente] (ver nota 1) (ver nota 2) proferida sobre matéria de facto».

Diga-se, desde logo, que o artigo 363.º do CPP (ver nota 3), resolvendo embora a questão (genérica) da «obrigatoriedade» da «documentação das declarações prestadas oralmente na audiência» (ver nota 4) - não resolve (explicitamente) a da extensão e do ónus da «transcrição», se bem que o registo fonográfico (constituindo um «meio técnico idóneo a assegurar a reprodução integral» de declarações orais) haja de valer por si (ainda que por reporte), na falta de meios estenotípicos ou estenográficos (sem tradição no nosso foro), como a forma corrente, nos nossos tribunais, de «documentação na acta das declarações oralmente prestadas na audiência»:

«A expressão 'documentação na acta' do artigo 363.º deve ser entendida -quando houver 'meios técnicos idóneos à reprodução integral das declarações'- com o sentido que resulta da conjugação com o disposto no artigo 412.º, n.º 4: as declarações prestadas ficam documentadas por referência ao ponto onde se podem localizar nos suportes técnicos em que se encontram fixadas.» (ver nota 5) Por outro lado, não é pacífico que a exigência de «transcrição» incluída -na reforma de 1998 (ver nota 6)- no artigo 412.º, n.º 4, do CPP [num quadro jurídico em que o CPC, no n.º 2 do seu artigo 690.º-A, incumbia o recorrente de «proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda(va)»] continue -após a reforma de 2000 do processo civil (ver nota 7)- a fazer sentido [na medida em que o novo artigo 690.º-A do CPC (ver nota 8) deixou de incumbir o recorrente da transcrição das pertinentes «passagens da gravação» (ver nota 9) e endossou ao tribunal de recurso, por forma a evitá-la (ver nota 10), a «audição ou visualização dos depoimentos indicados pelas partes» - n.º 5] (ver nota 11) (ver nota 12).

Se, contudo, se entender (ver nota 13) que continua a haver lugar, nos recursos penais de impugnação da matéria de facto, à «transcrição» (literalmente) exigida pelo artigo 412.º, n.º 4, do CPP (redacção de 1998), a jurisprudência - como até agora - continuará decerto a contentar-se (à semelhança do n.º 2 do artigo 690.º-A do CPC, na redacção coeva) com a «transcrição das passagens da gravação em que [o recorrente] se funda» (ver nota 14) (ver nota 15).

Mas a dúvida quanto à incumbência da transcrição - que os n.os 2 e 3 do artigo 690.º-A do CPC, na redacção anterior à reforma de 2000, endossavam ao recorrente (relativamente às «passagens» em que se fundava), ao recorrido (quanto aos «depoimentos gravados que infirmassem as conclusões do recorrente») e ao próprio tribunal (na medida dos seus «poderes de investigação oficiosa») - reforçou-se com a nova redacção dada aos n.os 2, 3 e 5 daquela norma processual civil, que, deixando de exigir a «transcrição», deixou ao mesmo tempo de servir de arrimo (supletivo) à corrente jurisprudencial que vinha sustentando - com o apoio doutrinário de Germano Marques da Silva (ver nota 16) - a aplicação subsidiária do processo civil:

transcrição, da responsabilidade do recorrente e do recorrido, limitada às «passagens» que, na perspectiva de um e outro, importem à decisão.

Será até por isso que o Supremo Tribunal de Justiça -a pretexto da natureza eminentemente pública dos interesses em jogo (ver nota 17)- tem manifestado ultimamente alguma preferência (e, agora, em forma de «assento») pela oficiosidade da transcrição.

Mas não será essa - crê-se - a melhor opção interpretativa do preceito:

«A interpretação da norma contida no artigo 101.º, n.º 2, do CPP com o sentido de que a gravação magnetofónica ou áudio-visual das declarações e depoimentos produzidos em audiência não dispensa a sua transcrição em escrita comum não tem suporte no elemento literal, contraria a vontade histórica do legislador, é divergente do seu enquadramento sistemático, produz consequência inversas às pretendidas pelo legislador, vai ao arrepio dos princípios fundamentais de processo penal de imediação, da oralidade e da economia processual e viola os princípios constitucionais da celeridade, da tutela efectiva e do direito de recurso previstos nos artigos 20.º, n.º 5, e 32.º, n.os 1 e 2, da Constituição.» [Juiz Rui Pacheco Duarte, Sobre a Obrigatoriedade da Transcrição Integral para a Acta das Declarações Gravadas em Audiência, Maio de 1999, Verbo Jurídico (www).] Dispõe o artigo 412.º, n.º 4, que, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações que devem constar das conclusões do recurso, quando for impugnada a decisão proferida sobre matéria de facto, fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição. A lei processual penal não regula os termos da transcrição nem quem a deve fazer. Entendíamos antes que existia lacuna e, antes da alteração do artigo 690.º-A do CPC, que era aplicável subsidiariamente esta norma do processo civil, devendo a transcrição ser feita pelo recorrente e recorrido, na parte correspondente às especificações de prova feitas por cada um na motivação e na resposta à motivação. Entretanto mudou a lei processual civil e parece agora que a lacuna não pode ser preenchida por recurso aos n.os 2 a 5 do artigo 690.º-A do CPC, tanto que a transcrição em processo civil se faz só quando relator o considerar necessário e, em processo penal, é sempre obrigatória. Como resolver agora? Nos termos do artigo 4.º do CPP, nos casos omissos, quando as disposições do Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as regras do processo civil que se harmonizarem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais de processo penal. Julgamos que deve recorrer-se aos princípios gerais sobre a produção da prova. Em princípio, a prova produzida é a que for apresentada pela acusação ou pela defesa, sem prejuízo de o tribunal poder ordenar, oficiosamente, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa. E, sendo assim, a transcrição das provas gravadas deve ser feita por recorrente e recorrido na parte correspondente às especificações de prova feitas por cada um na motivação e na resposta à motivação, podendo o juiz ordenar a transcrição oficial das provas registadas quando o julgue necessário para a descoberta da verdade ou para a boa decisão da causa» (Germano Marques da Silva, Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, 2001, vol. I, pp. 815 e 816).

«A questão sobre a qual, no presente texto, nos voltaremos a pronunciar refere-se naturalmente ao problema da transcrição das provas, para efeito de julgamento. De facto, parece claro, ao menos à luz dos preceitos do CPP, que a transcrição compete ao 'recorrente' e ao 'recorrido' (cf., assim, Germano Marques da Silva, Curso..., III, p. 350, nota 1), solução que, como veremos, coloca algumas dificuldades. Merece, neste contexto, atenção o Acórdão da Relação de Coimbra de 16 de Fevereiro de 2000 (Colectânea de Jurisprudência, 2000, t. I, pp. 57 e segs.), que defendeu, já para o actual CPP, a solução de que a «transcrição» deveria ser integral e independente das partes (no fundo, uma devolução integral de toda a causa), justificando (p. 57):

«diga-se, de início, que o princípio da investigação e verdade material e do livre dispositivo ou das partes não são consentâneos [...]». Como melhor veremos, mesmo sufragando as críticas do acórdão, não é esta a solução que o CPP, após a Revisão, parece ter adoptado» (Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial, Universidade Católica do Porto, 2002, p. 530, nota 24).

«Um dos aspectos em que, no nosso modesto entendimento, mais claudica a solução nacional decorre exactamente desta consideração: quando o tribunal tem, para fundamentar a decisão, de indicar as provas que serviram de base à sua convicção, as eventuais provas 'diversas' (as que imporiam decisão diversa) devem ser aquelas que foram sujeitas a um crivo crítico e não foram consideradas determinantes para a formação da convicção do tribunal. Como é evidente, e seja qual for o 'ponto de facto' impugnado (e seja qual for a sua relevância jurídica), as provas que impõem decisão diversa têm que ser expressamente indicadas pelo recorrente, que, além disso, tem o ónus de apresentar o conteúdo das mesmas, por via de transcrição, para que o tribunal delas conheça. Mas, para que o tribunal de recurso possa, de facto, censurar a opção decisória necessita de saber do conteúdo dessas (outras) provas que serviram de base à convicção do julgador. Duas soluções seriam pensáveis:

uma, seria a de o próprio tribunal de recurso tomar conhecimento do conteúdo de tais provas, transcrevendo-as 'oficiosamente', solução que, todavia, tem os seus inconvenientes, tanto porque, de facto, as provas em causa podem dizer respeito a múltiplos pontos de facto, como, por outra via, não se pode excluir (bem pelo contrário) que existam outras provas com relevo para a decisão do 'ponto de facto' que não foram consideradas determinantes pelo tribunal (e das quais o tribunal de recurso nunca poderá conhecer). Pelo que, a melhor solução seria impor um ónus de contra-alegação à 'contraparte', sendo ela própria a fornecer aqueles elementos. Solução que tem, a nosso ver, o inconveniente de se cumprir, na esfera do arguido, o preceituado no artigo 690.º-A do CPC. De facto, caso o arguido não cumpra aquele ónus (ou não o faça tempestivamente), torna-se delicada a posição do tribunal de recurso; por outras palavras, poderá o tribunal de recurso condenar, ou agravar a situação do arguido, quando não pode excluir a possibilidade de existência de outras provas - cujo conteúdo desconhece, mas que sabe existirem que poderiam implicar a solução inversa? A resposta é evidente: o recurso em matéria de facto não estará 'pensado' para ser um recurso contra o arguido. Já em recurso interposto pelo arguido a solução não parece afectar, sensivelmente, as estruturas processuais. Não porque sobre o MP recaia um qualquer ónus de alegação, mas porque, mesmo em recurso em matéria de facto, lhe incumbe sempre o dever de colaborar com o tribunal de recurso, fornecendo os elementos que, a seu ver, justificam a validade da decisão submetida a impugnação. Mas, apenas por isso.» (Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial, Universidade Católica do Porto, 2002, pp. 550 e 551, nota 47.) Aliás, também a letra e a história do preceito como bem recordou o acórdão recorrido - não abonam o «assento» ora votado:

«O recorrente tem obrigação de, quando é impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa, estes por referência aos suportes técnicos em que se encontrem gravadas, mas, a nosso ver, por mera consulta da gravação. Se até ao momento de interposição do recurso a lei já supusesse feita a transcrição das gravações, as especificações deveriam referir-se à transcrição, isto é, deveriam ser feitas sem referência a algo (transcrição) que já estava feito, e não aos suportes técnicos, como impõe o comando legal. A ser de outro modo, para que serviria a transcrição nos casos em que não houvesse recurso da matéria de facto? De outro passo, adiantamos que a redacção do artigo 412.º no anteprojecto referia expressamente no n.º 4 que '[Q]uando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, a especificação prevista na alínea b) do número anterior faz-se por referência directa aos suportes técnicos, não se procedendo à respectiva transcrição'. E só se abandonou tal redacção porque se anteviu que ela iria impor a audição sistemática dos suportes técnicos pelo tribunal superior; logo, e para evitar as terríveis consequências daí derivadas, criou-se a obrigação da transcrição dos pontos impugnados».

Daí que o signatário haja votado (ver nota 18), contra a maioria, pela fixação de jurisprudência no sentido propugnado pelo MP no seu parecer:

Em recurso penal em matéria de facto, cabe ao recorrente, na motivação, transcrever - dos suportes técnicos das provas produzidas oralmente em audiência de julgamento - o registo das que, quanto «aos pontos de facto que considere incorrectamente julgados» imponham «decisão diversa da recorrida».

Aliás, «impor-se ao recorrente o ónus de transcrever as pertinentes passagens da gravação da prova em que se baseia para extrair a conclusão da existência de erro no julgamento da matéria de facto não priva o arguido do direito de recorrer nem tão-pouco torna o exercício deste direito particularmente oneroso.» (Tribunal Constitucional, acórdão 677/99, de 21 de Dezembro, Diário da República, 2.ª série, n.º 49, de 28 de Fevereiro de 2000). Nem mesmo afecta «o direito ao recurso, que constituindo embora, no processo penal, uma importante garantia de defesa, não é todavia um direito irrestrito tal que o legislador não possa condicionar mediante a imposição de certos ónus ao recorrente» (idem). Pois que, em suma, «o direito ao recurso consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição não postula que ao arguido seja facultado [...] um segundo registo da prova (a transcrição), a par do registo de que já dispõe por força do acesso que lhe é facultado ao suporte técnico da gravação» (Tribunal Constitucional, acórdão 433/2002, de 22 de Outubro, Diário da República, 2.ª série, n.º 1, de 2 Janeiro de 2003).

(nota 1) Certas decisões das Relações reflectem mesmo algumas dúvidas quanto à recorribilidade «da matéria de facto dos julgamentos com intervenção do tribunal colectivo». Mas sem razão. Com efeito, «pela reforma introduzida no Código pela Lei 59/98, de 15 de Agosto, foi profundamente alterado o regime de recurso das decisões do tribunal colectivo, passando a partir de então a ser admissível também em matéria de facto, a interpor perante o tribunal da relação» (Germano Marques da Silva, Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, 2001, vol. I, pp. 808 e segs.) (nota 2) «A excepção ao princípio regra da documentação da audiência estabelecida no artigo 364.º, no que respeita aos julgamentos em processo comum singular, está estabelecida na lei apenas para essa situação. Admitir por isso essa excepção também para os julgamentos em tribunal colectivo não tem suporte legal. Se dúvidas houvesse quanto a este regime, a instituição (pela revisão de 1998 do CPP) do novo sistema de recursos interpostos dos acórdãos dos julgamentos efectuados pelo tribunal colectivo corta rente a veleidade da interpretação contrária e, ao contrário, reafirma inequivocamente que, quando a audiência decorre em tribunal colectivo, a documentação das declarações nele prestadas nunca pode ser prescindida. Porque não há, em qualquer situação, renúncia prévia ao recurso em matéria de facto. Não se torna possível, em função da excepcionalidade do artigo 364.º do CPP, estender a aplicabilidade do dispositivo aí estabelecido sobre a declaração prévia de renúncia à documentação das declarações prestadas em audiência, com a consequente renúncia ao recurso. Ou seja, há sempre, quando a audiência decorre perante tribunal colectivo, documentação das declarações aí prestadas [...]. Este o princípio inquestionavelmente adoptado pelo legislador de 1998, na sequência da instituição do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, agora consagrado nos artigos 400.º, 402.º, 410.º, n.º 2, 427.º e 428.º, n.º 1, do CPP.» (Juiz José Mouraz Lopes, A Questão da Documentação das Declarações Prestadas em Audiência de Julgamento, Junho de 1999, Verbo Jurídico / www.) (nota 3) «Documentação de declarações orais - Princípio geral».

(nota 4) Seja perante «tribunal colectivo» seja perante «tribunal singular» (cf.

artigo 364.º, que, apenas em audiência perante tribunal singular, dispensa - se, até ao início das declarações do arguido, o MP e o defensor declararem unanimemente para a acta que prescindem da documentação - a documentação na acta das declarações aí a prestar).

(nota 5) Juiz Rui Pacheco Duarte, Sobre a Obrigatoriedade da Transcrição Integral para a Acta das Declarações Gravadas em Audiência, Maio de 1999, Verbo Jurídico (www).

(nota 6) Lei 59/98, de 25 de Agosto.

(nota 7) Decreto-Lei 183/2000, de 10 de Agosto.

(nota 8) Que, para certa jurisprudência (apoiada por doutrina particularmente qualificada), supria (artigo 4.º do CPP) as lacunas deixadas em aberto pelo artigo 412.º, n.º 4, do CPP.

(nota 9) Mas apenas da indicação «dos depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta» (n.º 2).

(nota 10) Atentos os seus custos, a sua demora e, muitas vezes, a sua desnecessidade.

(nota 11) Sendo que, «se o juiz relator considerar necessária a sua transcrição», esta «será realizada por entidades externas para tanto contratadas pelo tribunal».

(nota 12) «Urge adoptar no processo penal disciplina idêntica à que consta agora dos n.os 2 a 5 do artigo 690.º-A do CPC, pois não há razão atinente à diversa natureza dos processos para que a questão seja disciplinada de modo diverso.» (Germano Marques da Silva, Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, 2001, vol. I, p. 816.) (nota 13) «A transcrição [...] em processo penal é sempre obrigatória» (Germano Marques da Silva, ob. cit., p. 815).

(nota 14) «As transcrições das gravações serão sempre limitadas: apenas aquelas que na perspectiva do recorrente ou recorrido forem importantes para a decisão» (Germano Marques da Silva, Forum Justitiae, Maio de 1999, p. 22).

(nota 15) «Não explicita o CPP em que circunstâncias deverá ser efectuada a transcrição das declarações prestadas para efeito de prova, em sede de recurso da matéria de facto, nomeadamente quem a deve fazer [...]. Trata-se obviamente de uma omissão que não pode deixar de ser entendida como uma lacuna, para a qual deve o intérprete lançar mão do disposto no artigo 4.º do CPP [...]. Como é sabido, a recente reforma do CPC veio também ela consagrar o recurso em matéria de facto, mas, ao contrário do estatuído no CPP, o legislado do processo civil estabeleceu normativo regulador das transcrições a efectuar, atribuindo a incumbência dessas transcrições ao recorrente - artigo 690.º-A, n.º 2, do CPC. É pois ao recorrente que incumbe, sob pena de rejeição do recurso, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda o recurso [...]. O regime estabelecido deverá também ser aplicável, porque nenhum princípio processual penal é posto em causa com isso, ao regime das transcrições a efectuar no âmbito do recurso sobre a matéria de facto em processo penal.» (Juiz José Mouraz Lopes, A Questão da Documentação das Declarações Prestadas em Audiência de Julgamento, Junho de 1999, Verbo Jurídico / www.) (nota 16) «Tem suscitado dificuldades de aplicação a matéria do registo da prova, sobretudo a transcrição das gravações. As dificuldades serão, estou em crer, superadas logo que se compreenda plenamente que o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância. [...] Por isso que, ainda que o espírito da lei não fosse esse, segundo creio, é aplicável subsidiariamente o disposto no Código de Processo Civil.» (Forum Justitiae, Maio de 1999, p. 22.) (nota 17) «No recurso com impugnação da matéria de facto, com a imposição da transcrição não quis (o artigo 412.º, n.º 4, do CPP) tomar posição quanto ao ónus da transcrição, problema já resolvido no artigo 101.º Se tivesse em mente impor um ónus ao recorrente e afastar-se daquela regra geral, não teria usado a expressão 'havendo lugar a transcrição', neutra quanto ao respectivo encargo, e teria antes utilizado uma expressão como, v. g., 'devendo o recorrente proceder à respectiva transcrição', tanto mais que estava a impor um ónus ao recorrente e que entretanto já procederá à alteração, nesta matéria, do CPC [...]. Mas, a entender-se que se verifica uma lacuna a integrar, a solução deve ser encontrada com recurso à aplicação por analogia das disposições do próprio CPP, designadamente do artigo 101.º, n.º 2, por identidade de razão, nos termos do artigo 4.º do CPP e do n.º 2 do artigo 10.º do CC. Em todo o caso, a norma do n.º 2 do artigo 690.º-A do CPC não se harmoniza com os princípios do processo penal. Como o exige o artigo 4.º citado, pois são diferentes os fins prosseguidos por um e outro processos. O processo civil constitui o instrumento de realização de interesses de natureza eminentemente privada. Fazendo-se por isso recair sobre as artes envolvidas da relação jurídica controvertida o ónus de condução do processo, enquanto no processo penal surge como meio de satisfação de um interesse público que visa proteger bens jurídicos estruturantes da comunidade politicamente organizada, cabendo aí ao Estado chamar a sua promoção e condução do respectivo procedimento.» (cf. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 2001, p. 52, nota 58.) (nota 18) E isso, além do mais, porque «o recurso em matéria de facto [...] assenta na obrigatoriedade de o recorrente não só afirmar qual o ponto de facto que julga mal decidido como, para além disso, fornecer as bases de facto em que se deverá basear a solução (inversa)» (Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial, Universidade Católica do Porto, 2002, p. 516).

J. Carmona da Mota.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2003/01/30/plain-159970.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/159970.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1995-02-15 - Decreto-Lei 39/95 - Ministério da Justiça

    Revê, em ordem a consagração da regra da gravação sonora, sem inviabilizar o recurso a meios audiovisuais ou a outros processos técnicos semelhantes de que o tribunal possa dispor, varias matérias em sede dos Códigos de Processo Civil (aprovado pelo Decreto Lei 44129, de 28 de Dezembro de 1961), e das Custas Judiciais (aprovado pelo Decreto Lei 44329, de 8 de Maio de 1962). Dispõe, nomeadamente, quanto ao registo dos depoimentos, aos procedimentos cautelares, aos processos especiais e sumário, adiamento da (...)

  • Tem documento Em vigor 1998-08-25 - Lei 59/98 - Assembleia da República

    Altera o Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro, na redacção introduzida pelos Decretos-Leis 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho e 317/95, de 28 de Novembro. Republicado na integra, o referido código, com as alterações resultantes deste diploma.

  • Tem documento Em vigor 2000-08-10 - Decreto-Lei 183/2000 - Ministério da Justiça

    Altera o Código de Processo Civil, estabelecendo nalgumas situações a possibilidade da citação por via postal simples; prevê um novo regime legal de prestação de depoimento pelo surdo, mudo ou surdo mudo; desonera as secretarias judiciais das tarefas de liquidação, emissão de guias e contabilidade da taxa de justiça inicial e subsequente ao longo do Processo, e dispõe também quanto ao adiamento da audiência por falta de testumunha, de advogado, de peritos ou consultores técnicos. Altera ainda o Decreto-Lei (...)

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