Acordam na 2.ª Secção no Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - O presente recurso foi interposto por Fernando Dias de acórdão prolatado pelo Tribunal da Relação do Porto, em 4 de Dezembro de 2006. Tal acórdão aplicou o disposto no artigo 189.º, n.º 1, alínea c), da Organização Tutelar de Menores, determinando a dedução de uma parte da pensão social do ora recorrente (no montante de Euro 50, sendo o valor da pensão de Euro 351,68) para satisfazer a obrigação alimentar relativa a uma filha. A recorrida, Cátia Soraia da Conceição Dias, é representada pelo Ministério Público.
O recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo do disposto nos artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição e 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional.
A norma cuja inconstitucionalidade o recorrente arguiu é o artigo 189.º, n.º 1, alínea c), da Organização Tutelar de Menores, por violar os princípios consagrados nos artigos 1.º, 26.º, n.os 1 e 3, e 63.º, n.º 3, da Constituição. O recorrente suscitou tempestivamente a questão no âmbito das alegações do recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto.
2 - Nas alegações que apresentou no Tribunal Constitucional, o recorrente sustentou que está impossibilitado materialmente de cumprir a pensão de alimentos por a sua "pensão social (ser) inferior ao rendimento social de reinserção". Frisou que a Lei 75/98, de 19 de Novembro, permite accionar um fundo de garantia de alimentos, pelo que o Estado assegura as prestações que o progenitor obrigado a alimentos não pode cumprir. Reiterou o entendimento de que a interpretação impugnada seria contrária ao princípio da essencial dignidade da pessoa humana e violaria os artigos 1.º, 26.º, n.os 1 e 3, e 63.º, n.º 3, da Constituição.
Por seu turno, nas suas contra-alegações, o Ministério Público invocou o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 306/05 para salientar que, no caso dos autos, após o desconto da pensão de alimentos, o montante remanescente da pensão de invalidez do recorrente é superior ao valor do rendimento social de inserção. Concluiu, assim, o Ministério Público que a interpretação normativa em crise não viola o princípio da essencial dignidade da pessoa humana, por ser adequada a satisfazer os direitos fundamentais em confronto, de que são titulares o recorrente e a sua filha menor.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II - Fundamentação. - 3 - A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que a Constituição impõe a impenhorabilidade de pensões sociais de reduzido montante, que não exceda o salário mínimo nacional (cf. Acórdão 177/02, www.tribunalconstitucional.pt), ou o rendimento mínimo garantido (cf. Acórdão 66/02, www.tribunalconstitucional.pt).
Esta orientação foi estendida aos rendimentos do trabalho, inviabilizando a penhora que conduzir à privação da disponibilidade do rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional, quando o devedor não for titular de outros bens ou rendimentos susceptíveis de penhora (cf. Acórdão 96/04, www.tribunalconstitucional.pt).
4 - Todavia, mesmo abstraindo da jurisprudência anteriormente referida - que não colheu a unanimidade -, é certo que, quando estão em causa obrigações alimentares, existe um conflito entre os direitos daquele que está obrigado a prestar alimentos e os direitos de quem beneficia da prestação. Nesse contexto, tal como se sublinhou no Acórdão 306/05 (cf. www.tribunalconstitucional.pt), o princípio da essencial dignidade da pessoa humana tem de ser salvaguardado relativamente a todas as pessoas envolvidas, procurando-se a concordância prática dos respectivos direitos.
Por esta razão, no citado aresto do Tribunal Constitucional concluiu-se que a parcela do rendimento que não pode ser afectada ao pagamento da prestação de alimentos devidos a um filho não é de montante equivalente ao salário mínimo nacional. É que esse montante é calculado tendo em conta as necessidades da família do executado, família cujas necessidades compreendem a própria prestação de alimentos no caso em análise.
5 - Consequentemente, a parcela do rendimento que não pode ser afectada ao pagamento da prestação de alimentos devidos a um filho é sempre aferida através da aplicação do rendimento social de inserção, previsto e regulado na Lei 13/2003, de 21 de Maio. Esta prestação, na sua dimensão positiva, procura dar resposta às condições mínimas de existência de cada pessoa (cf. Acórdão 509/02, www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, tal rendimento é calculado por referência à pensão social (de velhice ou invalidez), não podendo ser inferior a 50% do valor da remuneração mínima mensal garantida à generalidade dos trabalhadores, deduzida da cotização correspondente à taxa contributiva normal do regime dos trabalhadores por conta de outrem, por força da Lei 32/2002, de 20 de Dezembro. Nos termos do artigo 1.º do Decreto-Lei 2/2007, de 3 de Janeiro, esta remuneração mínima mensal ascende, presentemente, a Euro 403.
6 - No caso sub judicio o valor da pensão de invalidez auferida pelo progenitor obrigado a alimentos, após subtrair a prestação de alimentos, ascende a Euro 301,68. Tal montante é superior ao valor do rendimento social de inserção, ao contrário do que alegou o recorrente, pelo que não ilustra uma interpretação inconstitucional do artigo 189.º, n.º 1, alínea c), da Organização Tutelar de Menores, por violação dos princípios consagrados nos artigos 1.º, 26.º, n.os 1 e 3, e 63.º, n.º 3, da Constituição.
Por estas razões, é de indeferir o presente recurso.
III - Decisão. - 6 - Ante o exposto, decide-se negar provimento ao presente recurso de constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 16 de Maio de 2007. - Rui Pereira - Mário José de Araújo Torres - Benjamim Rodrigues - João Cura Mariano (com declaração de voto que junto) - Rui Manuel Moura Ramos.
Declaração de voto. - Apesar de concordar com a decisão de improcedência de recurso, discordo da fundamentação do mesmo por não estabelecer uma distinção de tratamento entre a dedução forçada de prestações vincendas e vencidas.
Relativamente às primeiras, não pode esquecer-se que a decisão que fixou o montante dos alimentos a prestar foi obrigada a ponderar a capacidade económica de quem os presta e as necessidades de quem os recebe (artigo 2004.º do CC), sendo nesse juízo que deve ser acautelada a sobrevivência digna de ambos de modo a cumprir-se o princípio constitucional de respeito pela dignidade humana.
A decisão que posteriormente apenas determina como modo de pagamento das prestações vincendas, face ao incumprimento de prestações anteriores, a sua dedução forçada a rendimentos pagos ao devedor por terceiros, nos termos do artigo 189.º, n.º 2, da OTM, não tem implícita nem deve ter qualquer juízo sobre a capacidade do devedor de efectuar essas prestações, nomeadamente se as mesmas colocam em risco a sua sobrevivência digna. Esse juízo, efectuado na decisão que fixou a prestação de elementos, só pode ser revisto em incidente de alteração ou cessação dessa prestação.
Daí que não se considere que viole qualquer princípio constitucional, nomeadamente o do respeito pela dignidade da pessoa humana, a aplicação do artigo 189.º, n.º 2, da OTM, independentemente do valor da pensão auferida pelo devedor de alimentos, donde serão deduzidas forçadamente as prestações de alimentos vincendas.
Já quanto às prestações vencidas, apesar do respectivo direito de crédito ter precisamente a mesma origem que os das prestações vincendas, a sua existência não pôde ser ponderada pela decisão que fixou os alimentos, que não pressupôs o seu próprio incumprimento, com a consequente acumulação de prestações em dívida.
Assim, para a cobrança deste valor acumulado, através da dedução forçada de rendimentos pagos por terceiro, nos termos do artigo 189.º, n.º 1, alínea c), da OTM, já é legítimo que se ajuíze se essa cobrança poderá colocar em risco a sobrevivência do devedor, concordando-se que esse juízo seja efectuado nos termos sustentados pelo Acórdão 306/05, deste Tribunal. - João Cura Mariano.