Assento 2/82
Processo 69102. - 1.ª Secção. - Autos de recurso para o tribunal pleno, em que são recorrente o Ministério Público, em representação dos menores Jorge Gonçalves da Silva e outro, e recorridos Fernando Gonçalves da Silva e outra.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, funcionando em plenário.
O Acórdão deste Tribunal de 10 de Janeiro de 1980, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 293, a pp. 387 e seguintes, decidiu competir ao Ministério Público propor, em representação de menor, acção de impugnação da sua paternidade, ainda que não a requerimento de quem se declarar pai do filho.
Mais tarde, em acção intentada pelo Ministério Público, como representante dos menores Jorge Gonçalves da Silva e António José Gonçalves, contra Fernando Gonçalves da Silva e Albertina Augusta Ribeiro Gonçalves, o Supremo julgou, diversamente, que a competência, a legitimidade do Ministério Público para a propositura de acção de impugnação de paternidade, "depende do pedido de quem pretendesse ser o verdadeiro pai e do reconhecimento judicial da viabilidade desse pedido» - Acórdão de 22 de Maio de 1980, proferido no processo 68816, da 2.ª Secção.
Alegando que, relativamente à mesma questão fundamental de direito, os 2 acórdãos assentam sobre soluções opostas, o Ministério Público recorreu para o tribunal pleno do de 22 de Maio.
A 1.ª Secção declarou existir a oposição que serve de fundamento ao recurso.
O Ministério Público apresentou depois a sua alegação sobre o objecto do recurso, na qual pede que se anulem os decisões das instâncias, "para que na 1.ª se profira novo despacho a ordenar a notificação dos réus, nos termos e para os efeitos do artigo 475.º, n.º 4, do Código de Processo Civil», e se lavre assento no sentido de que ao Ministério Público cabe, em representação dos menores, propor acção de impugnação da sua paternidade, sugerindo para o assento a seguinte fórmula:
O Ministério Público, independentemente da situação prevista no n.º 1 do artigo 1841.º do Código Civil, tem competência para, em representação de menor, propor acção de impugnação da paternidade deste.
A parte contrária não alegou.
Corridos, como foram, os vistos de todos os juízes do Tribunal e uma vez que, conforme se escreveu a fl. 15, "é manifesto que os acórdãos em referência consagram no domínio da mesma legislação teses jurídicas opostas», há que julgar o conflito.
O artigo 1839.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, veio consentir que a paternidade do filho seja impugnada pelo marido da mãe, por esta, pelo filho ou, nos termos do artigo 1841.º, pelo Ministério Público. Este último artigo dispõe que a acção de impugnação de paternidade pode ser proposta pelo Ministério Público a requerimento de quem se declarar pai do filho, se for reconhecida pelo tribunal a viabilidade do pedido. Na acção, devem ser demandados a mãe, o filho e o presumido pai, quando nela não figurem como autores (artigo 1846.º, n.º 1).
Enquanto vigorou o Estatuto Judiciário de 1962, não era lícito duvidar-se de que o Ministério Público tinha competência para, em representação de filho menor, propor acção de impugnação de paternidade. É que, nos termos do seu artigo 181.º, n.º 1, alínea e), o Ministério Público intervinha nos processos como parte principal quando entendesse dever assumir a representação judiciária dos incapazes e o declarasse no processo.
A dúvida passou a ter cabimento com a entrada em vigor da Lei Orgânica do Ministério Público (Lei 39/78, de 5 de Julho), que não inseria disposição idêntica à daquela alínea e). No tocante a incapazes, o artigo 5.º desta lei apenas estabelecia que o Ministério Público tem intervenção principal nos processos quando os representa por não ter sido deduzida oposição em nome deles [n.º 1, alínea d)] e intervém acessoriamente quando, não se verificando nenhum dos casos do número anterior, os incapazes sejam interessados na causa [n.º 2, alínea a)].
A partir daí, formaram-se no Supremo Tribunal de Justiça 2 correntes jurisprudenciais, de peso sensivelmente igual, acerca da competência do Ministério Público, para, em representação de menores, impugnar a paternidade destes. Os Acórdãos de 10 de Janeiro e 22 de Maio de 1980 são exemplos dessas correntes.
Aconteceu que, já depois de apresentada a douta alegação do Exmo. Magistrado do Ministério Público, foi, pelo artigo 3.º do Decreto-Lei 264-C/81, de 3 de Setembro, dada nova redacção ao artigo 5.º da Lei 39/78. Estipula-se agora, no n.º 1, alínea e), desse artigo, que o Ministério Público tem intervenção principal nos processos quando representa incapazes, sem se acrescentar, como na alínea d) do texto anterior, "por não ter sido deduzida oposição em nome deles». Como é bem de ver, regressou-se ao regime adoptado pelo Estatuto Judiciário. Com uma diferença: no caso de o Ministério Público ter assumido a representação judiciária de incapazes, a sua atitude prevalecia, se houvesse divergência com a do representante legal deles (citado artigo 185.º, n.º 1, alínea e), 2.ª parte, do Estatuto]; enquanto, actualmente, a intervenção principal do Ministério Público cessa se o representante legal dos incapazes a ela se opuser por requerimento no processo (n.º 2 do artigo 5.º da Lei 39/78, na sua nova redacção).
Voltou, assim, a eliminar-se a dúvida de que falámos atrás: se o Ministério Público tem intervenção principal nos processos (ou, o que significa o mesmo, intervém neles como parte principal) quando representa incapazes, independentemente da circunstância de estes serem autores ou réus na acção, é seguro que não carece de competência para, em representação de menor, propor acção de impugnação da sua paternidade.
Suscita-se, por isso, a questão de saber se a nova alínea e) do artigo 5.º, n.º 1, da Lei 39/78 tem carácter inovador ou meramente interpretativo. Claro que, nesta última hipótese, a norma tem eficácia retroactiva (artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil).
Nem sempre é fácil apurar se certa disposição legal se reveste de uma ou de outra natureza. Segundo Paul Roubier, citado pelos autores que mais adiante aludiremos, há que distinguir duas categorias de leis interpretativas: as que o são por determinação do legislador; as que o são pela sua própria natureza. "É de sua natureza interpretativa a lei que, sobre um ponto em que a regra de direito é incerta ou controvertida, vem consagrar uma solução que a jurisprudência, por si só, poderia ter adoptado.»
Entre nós, a fórmula de Roubier foi aceite por Alberto dos Reis (parecer publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano 2.º, n.os 1 e 2, pp. 49 e seguintes) e pelo Prof. Baptista Machado (Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, p. 286). Também de algum modo parece admiti-la o Prof. Pereira Coelho, quando, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 114.º, p. 184, diz afigurar-se-lhe que o n.º 2 do artigo 1787.º do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei 496/77, "não reveste carácter inovador, mas meramente interpretativo, limitando-se, como se limita, a fixar uma orientação já estabelecida na jurisprudência anterior» (itálico nosso).
Alberto dos Reis (loc. cit. p. 57) entende mesmo que lei interpretativa por natureza (ou por função, como a designa) "é a que exerce um papel semelhante ao que exercem os assentos do Supremo Tribunal de Justiça, quer dizer, é a lei que se destina a pôr termo a um conflito de jurisprudência». No Acórdão deste Tribunal de 5 de Maio de 1972 (Boletim, n.º 217, p. 113) dá-se acolhimento à definição do eminente processualista.
Não será necessário, para que a lei se considere interpretativa, que se tenha aberto um conflito de jurisprudência; indispensável é apenas que, sobre o ponto em que a norma é incerta, a jurisprudência pudesse ter chegado à solução que a lei nova vem consagrar. Se a norma, além de incerta, é já controvertida, então a lei nova só pode qualificar-se de interpretativa se resolve o problema dentro dos parâmetros da controvérsia a tal respeito gerada, perfilhando uma forte corrente jurisprudencial anterior.
Observa-se que "a atribuição de natureza interpretativa a uma norma legal pode ser melindrosa, visto forçar os tribunais a decidir questões surgidas no domínio da lei anterior no sentido fixado pela lei interpretativa, sentido esse que pode não ser o melhor em face da lei interpretada, iludindo, assim, legítimas expectativas criadas ao abrigo desta» (Prof. Vaz Serra, na mesma Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 106.º, p. 144). A isso opõe, com razão, o Prof. Baptista Machado (ob. e doc. cit.) que a retroacção das leis interpretativas se justifica, além do mais, "por não envolver uma violação de quaisquer expectativas seguras e legítimas dos interessados. Estes podiam contar que a solução fixada pela lei nova interpretativa, visto ela corresponder a um dos vários sentidos atribuídos já pela doutrina e pela jurisprudência à lei nova». Ponto é que a lei nova consagre, "se não a corrente dominante, pelo menos, uma corrente forte de interpretação relativa ao direito anterior».
Ora, é precisamente esse o caso de que nos estamos a ocupar. Como se escreveu atrás, formaram-se neste Tribunal (e não só), acerca do ponto em exame, duas correntes de peso sensivelmente igual. Na sua nova redacção, o artigo 5.º, n.º 1, alínea e), da Lei 39/78 consagra uma de tais correntes - aquela, segundo a qual o Ministério Público tem competência para, em representação de menor, propor acção de impugnação de paternidade. A norma é, por conseguinte, de sua natureza interpretativa.
Levanta-se, agora, um novo problema: desde que a questão posta nos acórdãos em conflito se considere resolvida por via legislativa, há que lavrar assento?
Com o aplauso de Alberto dos Reis (Processos Especiais, vol. I, p. 222), decidiu-se que não no Acórdão de 12 de Janeiro de 1954, publicado na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 86.º, p. 329. A Revista dos Tribunais, ano 83.º, p. 37, não é tão peremptória: "Se as disposições fossem realmente interpretativas, não haveria que tirar assento ou o mesmo tinha de ser tirado em conformidade com a interpretação autêntica da lei.»
Dois dos juízes que assinaram vencidos o referido acórdão, os conselheiros Lencastre da Veiga e Beça de Aragão, declararam, a propósito desse ponto, que "havia que apurar do fundo, sem embargo, evidentemente, da norma interpretativa, a qual deve haver-se como ínsita na interpretada; e teria de sair assento para resolver o conflito ou oposição entre os dois arestos (artigo 768.º do Código de Processo Civil), sucedendo que, em boa forma, só quando não existe essa oposição é que o recurso deve considerar-se findo, consoante o artigo 767.º do mesmo Código».
Também entendemos que, na hipótese considerada, não há motivo para deixar de dar-se integral cumprimento ao preceituado no n.º 3 do citado artigo 768.º Só no assento, que não no teor do acórdão proferido sobre o recurso para o tribunal pleno, os seus fundamentos têm eficácia decisória para o caso concreto em litígio; se o recurso se considera findo, sem se chegar a lavrar assento (a julgar o conflito), não é possível confirmar-se ou revogar-se o acórdão recorrido, o qual, assim, transitará em julgado. No caso de a lei interpretativa consagrar a solução oposta à desse acórdão, o resultado seria, manifestamente, intolerável.
Resta acrescentar que a questão suscitada não é de legitimidade do Ministério Público para propor acção de impugnação de paternidade, mas de competência do órgão. Legitimidade para demandar tem-na sempre o menor, seja quem for que o represente; a dúvida é sobre se pode representá-lo o Ministério Público. É óbvio.
Nestes termos, revogam-se o acórdão recorrido e, com ele, as decisões das instâncias, para que na 1.ª se profira despacho a ordenar a notificação a que se refere o artigo 475.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, e lavra-se o seguinte assento:
Na vigência do artigo 5.º da Lei 39/78, de 5 de Julho, na sua redacção inicial, o Ministério Público tinha competência para, em representação de menor, propor acção de impugnação de paternidade.
Custas pelos réus, se a final ficarem vencidos.
Lisboa, 16 de Abril de 1982. - Joaquim Figueiredo - Alves Peixoto - Vasconcelos de Carvalho - Arelo Manso - Costa Ferreira - José Luís Pereira - Quesada Pastor - Afonso Liberal - Abel de Campos - Santos Victor - Melo Franco - Miguel Caeiro - Dias da Fonseca - Amaral Aguiar - Santos Carvalho - Victor Coelho - Mário de Brito - Santos Silveira - Lima Cluny - Aníbal Aquilino Ribeiro - Furtado dos Santos - Henriques Simões - Moreira da Silva - Lopes Neves - Antero Pereira Leitão - Campos Costa [vencido, votei que se tirasse assento em sentido contrário ao que triunfou, pelas razões que fiz constar do Acórdão da Relação de Lisboa de 22 de Abril de 1980 (Col. Jur., 1980, tomo 2, p. 223), sendo certo que a nova redacção dada pelo Decreto-Lei 264-C/81 não tem carácter interpretativo, já que se inspirou numa filosofia totalmente oposta à que esteve na base do primitivo texto da Lei 39/78] - Rodrigues Bastos [vencido. Entendo que a nova redacção dada ao artigo 5.º da Lei 39/78, de 5 de Junho, é irrelevante para a hipótese sub judice, por não ser uma norma atribuitiva de legitimidade ao Ministério Público. Daí, e porque a lei prevê expressamente que a incapacidade judiciária do menor será suprida por curador especial (Código Civil, artigo 1881.º, n.º 2), entendo que o Ministério Público só pode propor a acção de impugnação de paternidade a requerimento de quem se declarar pai do filho, nos termos do artigo 1839.º, n.º 1, e artigo 1841.º do Código Civil] - Solano Viana (vencido pelas razões indicadas no voto do Exmo. Conselheiro Rodrigues Bastos).
O precedente acórdão transitou em julgado em 3 de Maio de 1982.
Está conforme.
Secretaria do Supremo Tribunal de Justiça, 4 de Maio de 1982. - O Escrivão de Direito, António dos Santos Rocha.