Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, em que figura como recorrente o Ministério Público e como recorrida a Auto-Sueco (Coimbra), Lda., é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional a norma do artigo 11.º do Decreto-Lei 103/80, de 8 de Maio, interpretada no sentido de o privilégio imobiliário geral conferido às instituições de previdência preferir à garantia emergente do registo da penhora sobre determinado imóvel, norma que foi desaplicada com fundamento em inconstitucionalidade pela decisão recorrida.
O Ministério Público produziu alegações, concluindo o seguinte:
"1.º
Não viola os princípios constitucionais da igualdade ou da confiança a oponibilidade, em procedimento de verificação e graduação de créditos, de um privilégio imobiliário geral de créditos da segurança social ao exequente ou a qualquer outro credor comum que apenas beneficie da garantia emergente da realização e do registo da penhora, nos termos do artigo 822.º do Código Civil.
2.º
Na verdade, a quebra da regra da par conditio creditorum é justificada pela finalidade e relevo constitucional dos créditos da segurança social.
3.º
E a referida prevalência do privilégio imobiliário geral, no confronto do credor comum que apenas obteve a consumação da penhora em seu benefício, não viola o princípio da confiança, já que o requerente deve saber que o registo da penhora não preclude a oponibilidade, no seu confronto, das garantias reais anteriores de que beneficiem quaisquer credores preferenciais.
4.º
Termos em que deverá proceder o presente recurso, em consonância com um juízo de não inconstitucionalidade das normas que integram o objecto do presente recurso."
A recorrida não contra-alegou.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação. - 2 - A questão que constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional. Com efeito, nos Acórdãos n.os 193/2003 e 697/2004, o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional a norma agora em apreciação, explicitando as diferenças da questão de constitucionalidade que constitui objecto do presente recurso e as questões que foram apreciadas nos Acórdãos n.os 362/2002 e 363/2002, arestos citados pela decisão agora recorrida.
Não suscitando o presente recurso qualquer questão nova que deva ser apreciada, remete-se para a fundamentação dos citados Acórdãos n.os 193/2003 e 697/2004, concluindo-se pela não inconstitucionalidade da norma em apreciação.
III - Decisão. - 3 - Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 11.º do Decreto-Lei 103/80, de 8 de Maio, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido às instituições de previdência prefere à garantia emergente do registo da penhora sobre determinado imóvel, concedendo provimento ao recurso e revogando a decisão recorrida, que deverá ser reformulada de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 28 de Março de 2007. - Maria Fernanda Palma - Benjamim Rodrigues - Mário José de Araújo Torres - Paulo Mota Pinto (vencido, nos termos da declaração de voto que junta) - Rui Manuel Moura Ramos.
Declaração de voto
Votei vencido por entender (acompanhando o essencial da posição constante da declaração de voto aposta pela Sr.ª Conselheira Maria dos Prazeres Beleza ao Acórdão 697/2004) que, sob o ponto de vista, constitucionalmente relevante, do princípio da confiança, não existe uma diferença decisiva entre a situação do credor hipotecário e da do credor que obteve já o registo de uma penhora sobre o imóvel (e isto, mesmo sem qualquer compromisso com a qualificação da posição deste segundo credor como tendo passado a gozar de um verdadeiro direito real de garantia).
No quadro de uma visão que valoriza o processo executivo e o património do devedor como "garantia geral das obrigações", e a iniciativa e impulso do credor, para satisfazer os seus direitos naquele processo, considerei não existir diferença constitucionalmente decisiva para, à luz do princípio da confiança, deixar de estender à preferência sobre a garantia emergente do registo da penhora o juízo de inconstitucionalidade afirmado por este Tribunal (em declaração com força obrigatória geral, v. o Acórdão 363/2002) sobre a norma do artigo 11.º do Decreto-Lei 103/80, de 9 de Maio, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca.
No Acórdão 193/2003, citado no Acórdão 697/2004 (e para os quais a presente decisão remete) indicam-se, como circunstâncias que fundariam tal diferença - e o facto de, face à hipoteca, a garantia do credor comum resultante da penhora ser "bem mais fraca" - as circunstâncias de a dívida exequenda não gozar ab origine de qualquer privilégio, não estar de qualquer modo relacionada com o bem penhorado e surgir num momento imprevisível dependente da simples tramitação processual. A primeira e a terceira circunstâncias são, a meu ver, irrelevantes, pois apenas pode estar em causa, no conflito com o credor que já obteve o registo da penhora, a situação desse credor depois desse registo, e não anteriormente, isto é, a situação de confiança que lhe foi criada com o registo da penhora. Não pode, aliás, dizer-se, a meu ver, que o surgimento do correspondente privilégio surge apenas dependente da tramitação processual, pois a iniciativa do processo, e o correspondente impulso, por forma a obter o registo da penhora, dependem do credor em causa. Por outro lado, o "investimento na confiança" realizado pelo credor com base na penhora cujo registo obteve (deixando de promover outras acções, não interrompendo as relações com o devedor, etc.) pode ser tão ou mais significativo como o que é feito com base na garantia hipotecária (que, aliás, não tem também de ser constituída logo como contrapartida da concessão do crédito). E quanto ao facto de o bem penhorado poder não estar relacionado com a dívida exequenda, recordo que isso é igualmente o que se pode passar com o imóvel hipotecado.
Noto, igualmente, que, tal como acontecia em relação à posição do credor hipotecário, também o credor que conseguiu obter o registo de uma penhora em muitas circunstâncias não poderá saber se existem obrigações do devedor perante a segurança social, que estejam garantidas por um privilégio imobiliário geral. E é igualmente improcedente (como se refere também na citada declaração de voto) o argumento de garantia decorrente da penhora desaparecer no âmbito do processo de falência, desde logo, porque os privilégios da segurança social também desaparecem [cf. o artigo 152.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei 132/93, de 23 de Abril, e, agora, para os privilégios constituídos mais de um ano antes do início do processo de insolvência, o artigo 97.º, n.º 1, alínea a), do Código da Insolvência].
No quadro de uma visão que valoriza o processo executivo e o património do devedor como "garantia geral das obrigações", e a iniciativa e impulso do credor, para satisfazer os seus direitos naquele processo, considerei não existir diferença constitucionalmente decisiva para, à luz do princípio da confiança, deixar de estender à preferência sobre a garantia emergente do registo da penhora o juízo de inconstitucionalidade que foi afirmado por este Tribunal (em declaração com força obrigatória geral, v. o Acórdão 363/2002) sobre a norma do artigo 11.º do Decreto-Lei 103/80, de 9 de Maio, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca.
Teria, pois, julgado inconstitucional a norma em questão, negando provimento ao presente recurso. - Paulo Mota Pinto.