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Acórdão 209/2007, de 21 de Maio

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Sumário

Não julga inconstitucional a norma extraída dos artigos 36.º e 875.º do Código Civil, interpretados no sentido de que para a validade do contrato de compra e venda de bens imóveis sitos em Portugal não se exige que a escritura pública que o titula seja celebrada em cartório notarial português

Texto do documento

Acórdão 209/2007

Processo 540/05

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - Judith Coelho Teixeira interpôs recurso de revista do acórdão da Relação de Guimarães que confirmou a sentença proferida pelo juiz do círculo judicial de Viana do Castelo, na qual os réus, herança de Abílio Teixeira Pedra, representada pela sua testamenteira Geralda Eurípedes Rezende, também demandada a título pessoal, Fernando Teixeira Pedra, Abílio Fabiano Rezende Pedra, Crispim de Alegria Martins Alves Pedra e mulher, Lisete Gonçalves Lima Alves Pedra, foram absolvidos dos pedidos formulados pela autora (ora recorrente), pedidos estes que consistiam na declaração de nulidade dos negócios pressupostos dos registos a que correspondem as apresentações n.os 14/160687 e 26/160996, relativas ao prédio descrito sob o n.º 00281/160687 na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo, com o cancelamento dos referidos registos, bem como na declaração de nulidade dos negócios pressupostos dos registos a que correspondem as apresentações 21/041287 e 22/041287 do registo comercial, relativas à sociedade Teixeira & Crispim, matriculada sob o n.º 682 na Conservatória do Registo Comercial de Viana do Castelo, com o cancelamento dos referidos registos, bem como na declaração de nulidade dos negócios pressupostos dos registos a que correspondem as apresentações 21/041287 e 22/041287 do registo comercial relativas às sociedade Teixeira e Crispim, matriculada sob o n.º 682 na Conservatória do Registo Comercial de Viana do Castelo com o cancelamento de tais registos.

Além do mais, a autora suscitou perante o Supremo Tribunal de Justiça as seguintes questões:

"A aplicação do disposto nos artigos 364.º, 383.º, 386.º, 387.º e 875.º do Código Civil na interpretação de que as públicas formas são títulos suficientes para lavrar registos de factos que só podem ser celebrados por escritura pública é inconstitucional por violar os princípios do estado direito democrático e da legalidade, consagrados, respectivamente, nos artigos 2.º e 3.º da Constituição.

A aplicação do disposto nos artigos 364.º, 383.º, 386.º, 387.º e 875.º do Código Civil na interpretação de que as públicas formas são títulos suficientes para provar o conteúdo de escrituras públicas cuja existência é posta em crise é inconstitucional por ser violadora do princípio da legalidade e da tutela jurisdicional efectiva.

A aplicação do disposto no artigo 80.º do Código do Notariado e os artigos 36.º, 46.º e 875.º do Código Civil na interpretação de que não exigível escritura pública celebrada em Cartório Notarial Português para operar validamente a transmissão de bens imóveis sitos em Portugal é inconstitucional por ser violadora do artigo 3.º da Constituição.

A aplicação do disposto nos artigos 350.º, 386.º e 387.º do Código Civil, 7.º do Código de Registo Predial e 11.º do Código do Registo Comercial, na interpretação de que os RR beneficiam da presunção de que o direito de propriedade inscrito existe na acção declarativa em que se pede o cancelamento dos mesmos, é inconstitucional por ser violadora do artigo 20.º da Constituição.

A recorrente alegou que a escritura não existia sendo certo que não podia ser-lhe exigida a exibição do vazio.

Pelo que não apresentado nos autos documento idóneo que comprove a existência da mesma, os RR. Não podem beneficiar da presunção registal que assim fica posta em crise."

Por Acórdão de 19 de Abril de 2005, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso.

2 - A autora interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, visando a apreciação da (in)constitucionalidade das seguintes normas:

a) Dos artigos 364.º, 383.º, 386.º, 387.º e 875.º do Código Civil na interpretação de que as públicas formas são títulos suficientes para lavrar registos de factos que só podem ser celebrados por escritura pública;

b) Dos artigos 364.º, 383.º, 386.º, 387.º e 875.º do Código Civil na interpretação de que as públicas formas são títulos suficientes para provar o conteúdo de escrituras públicas cuja existência é posta em crise por uma das partes em juízo;

c) Dos artigos 80.º do Código do Notariado e os artigos 36.º, 46.º e 875.º do Código Civil na interpretação de que não é exigível escritura pública celebrada em cartório notarial português para operar validamente a transmissão de bens imóveis sitos em Portugal.

Pelo despacho do relator de fls. 953 a 965, não impugnado, o recurso foi rejeitado quanto às normas referidas nas antecedentes alíneas a) e b), ordenando-se a apresentação de alegações apenas quanto à questão de constitucionalidade referida na alínea c).

3 - A recorrente alegou nos termos que constam de fls. 969 a 1007, tendo concluído nos seguintes termos:

"I - A interpretação dos artigos 80.º do Código do Notariado e os artigos 36.º, 46.º e 875.º do Código Civil na interpretação de que não é exigível escritura pública celebrada em Cartório Notarial Português para operar validamente a transmissão de bens imóveis sitos em Portugal é violadora do princípio da legalidade inserto no artigo 3.º da Constituição da República Portuguesa.

II - O legislador português não pode assegurar a fé pública de todas as repartições do mundo, mas apenas das quais acerca ele legisla, garantindo determinados direitos como o de reclamação hierárquica previsto no artigo 138.º do Regulamento dos Serviços dos Registos e Notariado (e mesmo vigiando determinados deveres, maxime em matéria disciplinar) sem os quais se esvazia o conceito de 'escritura pública' do artigo 875.º do Código Civil português, o qual, porque inserido noutro ordenamento jurídico, não é o mesmo que o conceito de escritura pública do ordenamento jurídico brasileiro, nem do afegão, nem do nipónico, nem do micronésio.

III - Só através da escritura do artigo 875.º do Código Civil Português se podem validamente transmitir os bens e direitos que a lei portuguesa lhes sujeita, maxime bens imóveis.

IV - Em Portugal, a exigência de escritura pública no que respeita à constituição e transmissão de direitos reais sobre bens imóveis sitos em Portugal tem como escopo assegurar, não só a protecção dos particulares e exigências de maior reflexão, mas também, e acima de tudo, o cumprimento da legalidade na transmissão de bens imóveis.

V - O cumprimento da lei portuguesa quanto à transmissão de bens imóveis sitos em Portugal, nomeadamente no que respeita à determinação exacta do seu objecto (através das menções ao registo e à matriz, assim protegendo terceiros e a paz social, designadamente em relações de vizinhança), à proibição de venda de prédios em construção e ainda à cobrança e liquidação de impostos, só é assegurado se tal transmissão for efectuada através de escritura pública celebrada em Portugal, com a observância de todo o formalismo que lhe é inerente.

VI - Entendimento contrário é susceptível de potenciar o forum shopping para fugir ao cumprimento de formalidades exigidas pela lei portuguesa e até ao valor dos nossos emolumentos.

VII - Mesmo que se celebre escritura pública em Portugal com falta de observância de alguma formalidade exigível, dispõe o Estado Português de meios para repor a situação de legalidade e, em caso disso, sancionar os infractores, nomeadamente ao nível disciplinar e criminal. Tal não acontece se as escrituras públicas de transmissão de imóveis sitos em Portugal puderem ser celebradas no estrangeiro perante um 'notário estrangeiro' ou um prestador de serviços que cumpra funções análogas à do notário português.

VIII - Os artigos 80.º do Código do Notariado e os artigos 36.º, 46.º e 875.º do Código Civil devem interpretar-se no sentido de que só escritura pública celebrada em cartório notarial português pode operar validamente a transmissão de bens imóveis sitos em Portugal, sob pena de violação do princípio da legalidade inserto no artigo 3.º da Constituição.

IX - Nestes termos, deverá ser concedido provimento ao presente recurso de constitucionalidade e julgada inconstitucional a interpretação levada a efeito no acórdão sob recurso dos artigos 80.º do Código do Notariado e os artigos 36.º, 46.º e 875.º do Código Civil no sentido de que não é exigível escritura pública celebrada em Cartório Notarial Português para operar validamente a transmissão de bens imóveis sitos em Portugal, devendo ordenar-se a baixa dos autos para reformar a decisão em conformidade com tal juízo."

Por seu turno, os recorridos nas contra-alegações de fls. 1019-1036 sustentam, em conclusão:

"Conforme muito bem consta do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 'relativamente à escritura pública para a venda de imóveis, que a recorrente vem sustentar ter de ser lavrada por notário português, remete-se a mesma e sem necessidade de outros considerandos, para o conteúdo dos artigos 36.º e 875.º do Código Civil, atendendo a que, tendo sido observada na celebração do contrato em causa a forma mais solene que é exigível no âmbito do direito substantivo, não se compreende a impugnação por aquela ora deduzida'.

E, continuando a transcrição do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 'no que se refere à arguida inconstitucionalidade, por violação do artigo 3.º da lei fundamental, da não exigibilidade de escritura pública celebrada em Portugal, para a venda de imóveis sitos em território nacional' [...] 'sempre se dirá que, no âmbito da soberania do Estado Português não se mostra constitucionalmente instituída a proibição da celebração em país estrangeiro de contratos com exequibilidade em Portugal, desde que, para tal, seja observada a forma legalmente exigível e os mesmos não se mostrem violadores dos princípios informadores da ordem jurídica nacional'.

Verifica-se que a escritura pública celebrada no Brasil em nada afecta o princípio da legalidade, porquanto o formalismo legal foi cumprido no negócio em causa.

Importará, finalmente, considerar o artigo 3.º da Constituição da República Portuguesa, que, nas alegações da recorrente, supostamente terá sido violado pela interpretação sufragada pelas Instâncias, todavia não vemos de que forma a soberania e a legalidade a que essa norma constitucional alude terão sido violadas.

Entendendo os recorridos que a interpretação posta em crise é conforme a esse e aos restantes artigos da Constituição, dado que não viola a soberania do Estado Português, nem a legalidade imposta, porquanto é a soberania do Estado Português e a legalidade imposta por essa soberania que impõe que o negócio se realize por escritura pública e foi isso mesmo que ocorreu.

Para além disto, o intérprete tem de presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º Código Civil), pelo que se o legislador fixou como forma exigível para a validade de um negócio a escritura pública e não subordinou essa validade a qualquer outra exigência, teremos de entender - como entenderam as Instâncias - que o formalismo está cumprido e nada mais poderá ser exigido.

Aliás, o que violaria preceitos constitucionais, nomeadamente os artigos 14.º (protecção de portugueses no estrangeiro), na medida em que lhes vedaria a celebração de negócios que envolvessem os seus bens imóveis em território nacional, nos termos admitidos pelo direito internacional privado e 62.º (direito da propriedade privada), seria a interpretação do sentido da inconstitucionalidade das normas em apreço.

Pois, na prática, impediria as pessoas de celebrarem negócios, quando o artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa estabelece que "A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição".

Ora, a transmissão operada por escritura pública em nada violou direitos, nem obrigações das pessoas.

Aliás, note-se que a recorrente não indica - nem poderia indicar -, de que forma alegadamente teria sido prejudicada pela realização da escritura pública no Brasil [...] Limita-se, isso sim, a invocar um alegado vício formal, a fim de tentar obter um proveito absolutamente injustificado, anular um negócio realizado há mais de 20 anos, entre pessoas que já faleceram.

Veja-se, a propósito, que a recorrente sustentou, inicialmente, que não havia negócio, que a escritura não existia, o que as Instâncias nunca concederam, que se houvesse era nulo, enfim levantou todas as hipóteses até chegar à inconstitucionalidade das normas aplicáveis ao caso, ou seja, tentou de todas as formas possíveis colocar em crise uma situação, quando sabe não ter qualquer fundamento para tal.

A este propósito deveremos salientar, e isso consta do autos, o tempo que a Recorrente/Autora aguardou até se decidir a intentar a acção que veio a culminar no presente recurso, que apenas intentou depois de todos os intervenientes no negócio terem falecido e mais de 15 anos depois de concluído o dito negócio [...]

São todas estas questões que subjazem ao presente recurso e que esse venerando Tribunal não poderá deixar de considerar, de forma a poder proferir uma decisão justa e adequada à situação em causa.

Nesta conformidade, não se mostra ferida de inconstitucionalidade, por violação do artigo 3.º da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dos artigos 80.º do Código do Notariado e 36.º, 42.º e 875.º do Código Civil segundo a qual a transmissão de bens imóveis sitos em Portugal não tem obrigatoriamente de ser efectuada mediante escritura pública outorgada em Cartório Português."

4 - Cumpre proceder a mais rigorosa delimitação do objecto do presente recurso.

Efectivamente, a definição do objecto de recurso efectuada pela recorrente excede, quanto à base legal de que foi extraída e quanto à enunciação do seu alcance, a norma ou sentido normativo de que o acórdão recorrido fez aplicação para decidir a questão da validade da transmissão do imóvel.

A recorrente diz ser inconstitucional a norma dos artigos 36.º, 46.º e 875.º do Código Civil e do artigo 80.º do Código do Notariado, interpretados no sentido de que não é exigível escritura pública celebrada em cartório notarial português para operar validamente a transmissão de bens imóveis sitos em Portugal, por violação do princípio da legalidade inserto no artigo 3.º da Constituição. Esta questão de constitucionalidade foi enxertada numa acção em que se questiona a validade de um contrato de compra e venda de um imóvel sito em Portugal, celebrado entre residentes no Brasil, mediante escritura lavrada em cartório notarial brasileiro. O acórdão recorrido considerou que o contrato não enferma de vício de forma, com a seguinte fundamentação: "relativamente à escritura pública para venda de imóveis, que a recorrente vem sustentar ter de ser lavrada por notário português, remete-se a mesma e sem necessidade de outros considerandos, para o conteúdo dos artigos 36.º e 875.º do Código Civil, atendendo a que, tendo sido observada na celebração do contrato a forma mais solene que é exigível no âmbito do direito substantivo, não se compreende a impugnação por aquela deduzida". Nada mais se disse sobre a questão de a escritura ter de ser lavrada em cartório notarial português ou perante autoridade consular portuguesa.

Como se vê, a questão da validade formal do negócio foi decidida apenas com invocação do disposto nos artigos 36.º e 875.º do Código Civil, não tendo sido retirado critério de decisão do caso, nem sequer implicitamente, dos demais preceitos que a recorrente identifica. (Aliás, à data da celebração do contrato a indicação dos actos relativamente aos quais era exigida escritura pública constava do artigo 89.º do Código do Notariado então vigente e não do artigo 80.º, que é o preceito correspondente do actual Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei 207/95, de 14 de Agosto.)

Por outro lado, a decisão recorrida não aprecia a validade formal de todo e qualquer acto ou negócio jurídico susceptível de operar a transmissão de bens imóveis sitos em Portugal, mas apenas de um desses negócios típicos, o contrato de compra e venda.

Por último, importa ter presente que ao Tribunal Constitucional apenas compete apreciar a conformidade à Constituição da norma ou normas que tenham sido efectivamente aplicadas, como ratio decidendi, pelo tribunal que proferiu a decisão recorrida, e não censurar essa decisão no plano da conformação da causa e da aplicação do direito ordinário, designadamente quanto à identificação e pertinência das questões em que se enxerta o incidente de inconstitucionalidade e à determinação e interpretação das fontes normativas à luz das quais a controvérsia deva ser resolvida.

Assim, o presente recurso tem por objecto a apreciação da constitucionalidade da norma extraída dos artigos 36.º e 875.º do Código Civil, interpretados no sentido de que para a validade do contrato de compra e venda de bens imóveis sitos em Portugal não se exige que a escritura pública que o titula seja celebrada em cartório notarial português. Foi apenas a questão da necessidade de intervenção ou não de oficial público português na elaboração da escritura, enquanto pertinente ao problema da validade do negócio, que o Supremo Tribunal de Justiça considerou que tinha para resolver e fê-lo por aplicação dos referidos preceitos legais e somente desses, dando por assente que a escritura celebrada no Brasil satisfaz o conceito de escritura pública do artigo 875.º do Código Civil. O Supremo Tribunal de Justiça considerou que, mesmo sendo aplicável a lei portuguesa, a exigência de forma solene estabelecida por este preceito legal para a validade dos contratos de compra e venda de bens imóveis estava satisfeita mediante a escritura celebrada em cartório notarial brasileiro, que qualificou como escritura pública para efeito deste último preceito. Designadamente, está fora do âmbito do presente recurso averiguar qual a lei efectivamente aplicável à substância do negócio ou ao seu efeito translativo da propriedade, bem como a qualificação do instrumento negocial como escritura pública para efeito do citado artigo 875.º do Código Civil. Este Tribunal não é instância de reapreciação do modo como os restantes tribunais aplicam o direito infraconstitucional (cf., por exemplo, o Acórdão 44/85, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º vol., pp., 403-409, onde se escreveu que "o dado normativo a ser submetido ao parâmetro constitucional chega já definido ao Tribunal Constitucional, não lhe cabendo pô-lo em causa"). Pela mesma razão, não cabe ao Tribunal Constitucional averiguar se, face ao direito de conflitos e aos termos da causa, a questão da necessidade ou não de intervenção de oficial público português interessa ao estatuto do contrato ou ao estatuto real (inserida, já não nas condições de validade formal do contrato e nos seus efeitos obrigacionais, mas nos seus efeitos reais, a transferência da propriedade), porque o acórdão recorrido não contém qualquer referência a este problema jurídico, nem menciona o artigo 46.º do Código Civil na sua base legal de fundamentação.

Afinal, a crítica da recorrente não incide propriamente sobre a norma de conflitos, sobre o momento remissivo, mas sobre a norma do artigo 875.º do Código Civil na medida em que, na interpretação adoptada pelo acórdão recorrido, não exige que a escritura pública aí referida seja celebrada em cartório notarial português ou perante oficial público nacional.

5 - O artigo 36.º do Código Civil - deve assinalar-se que o contrato é anterior à entrada em vigor, na ordem interna, da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, a que Portugal aderiu através da Convenção Relativa à Adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa à Convenção sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais (Convenção do Funchal, de 18 de Maio de 1992), aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 3/94, publicada no Diário da República, 1.ª série-A, de 3 de Fevereiro de 1994, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 1/94, de 3 de Fevereiro - dispõe o seguinte:

"1 - A forma da declaração negocial é regulada pela lei aplicável à substância do negócio; é, porém, suficiente à observância da lei em vigor no lugar em que é feita a declaração, salvo se a lei reguladora da substância do negócio exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o negócio seja celebrado no estrangeiro.

2 - A declaração negocial é ainda formalmente válida se, em vez da forma prescrita na lei local, tiver sido observada a forma prescrita pelo Estado para que remete a norma de conflitos daquela Lei, sem prejuízo do disposto na última parte do número anterior."

E o artigo 875.º do mesmo Código estabelece que "[o] contrato de compra e venda de bens imóveis só é válido se for celebrado por escritura pública".

Na regra geral do n.º 1 do artigo 36.º (o n.º 2 do artigo 36.º não vem ao caso) admite-se a aplicação alternativa de (uma de) duas leis quanto à forma da declaração negocial. Em princípio, deve aplicar-se a lei reguladora do próprio negócio; mas considera-se suficiente a lei do lugar em que é feita a declaração, acolhendo-se assim a regra locus regit actum, com o escopo de favorecer a validade formal do negócio. Mas, não se trata de uma pura conexão alternativa (Luís Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, vol. I, p. 292, e vol. II, p. 159). Há uma reserva a favor da lei da substância, que surge na norma de conflitos com a estrutura de excepção à aplicabilidade da lei do lugar da celebração, e que consiste em ressalvar a hipótese de a lei reguladora da substância do negócio exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o negócio seja celebrado no estrangeiro. Como diz Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, 3.ª ed. actualizada, p. 355, "ao proceder assim tal lei [a lei da substância do negócio]revela preocupações ligadas com o regime da própria substância do negócio, entendendo a formalidade exigida como uma formalidade ad substantiam (como uma forma intrínseca)".

Como é sabido, as exigências de forma do negócio jurídico podem desempenhar uma pluralidade de funções: facilitação da prova, tutela do consentimento, controlo da legalidade do acto, a sua publicidade ou, até, o cumprimento das leis fiscais. Pode justificar-se, quando se pretende assegurar o controlo da legalidade do acto ou o cumprimento de obrigações fiscais, não só que se exija forma autêntica, mas ainda que o negócio seja celebrado perante oficial público do próprio Estado. Independentemente de saber se, pela relevância dos direitos reais sobre imóveis, em cuja regulação se reflectem importantes aspectos da organização económico-social do Estado, entrando em jogo relevantes interesses públicos no domínio das políticas económicas, sociais e ambientais, poderia justificar-se, em desvio da regra geral inclinada ao favorecimento do negócio, uma opção como aquela que a recorrente defende, o facto é que não é das atribuições do Tribunal apreciar se o legislador, privilegiando uns interesses em detrimento de outros, fez o melhor uso da discricionariedade legislativa, nem censurar a interpretação adoptada pelos tribunais da causa, mas somente verificar se a norma ou normas que constituem objecto do recurso, com o sentido com que foram aplicadas pela decisão recorrida, violam as regras e princípios constitucionais indicados ou quaisquer outros que o Tribunal entenda pertinentes (artigo 79.º-C da LTC).

6 - Tendo isto presente, nada se vislumbra no parâmetro constitucional indicado pela recorrente, que é o princípio da legalidade afirmado no artigo 3.º da Constituição, que permita pôr em crise a validade da solução normativa questionada.

Na verdade, como dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., p. 214, apesar da epígrafe, o objecto principal do artigo 3.º da Constituição é a afirmação do princípio da constitucionalidade, ou seja, o princípio de que num Estado constitucional é a Constituição que rege o Estado, pois que: a) define as formas de exercício da soberania (n.º 1); b) subordina o Estado a si mesma (n.º 2); c) constitui parâmetro de aferição da validade dos actos dos órgãos do Estado (n.º 3). A expressão "legalidade democrática", que aparece em várias outras disposições do texto constitucional, designadamente nos artigos 199.º, alínea f), 202.º, n.º 2, 219.º, n.º 1, e 272.º, n.º 1, em contextos significativos particulares de especial investidura de órgãos e instituições do Estado no dever de a defender, seguindo os mesmos autores, "não se apresenta de fácil apreensão quanto ao seu sentido rigoroso, mas parece que o melhor significado que lhe cabe é o que abrange não apenas as regras do Estado de direito democrático a que se refere o n.º 2 [crê-se que quererá dizer-se o artigo 2.º], mas também a ideia da submissão das autoridades públicas à lei em geral, de acordo com o princípio da legalidade ou, mais amplamente o princípio da juridicidade".

Ora, a norma que reconhece validade a contratos de compra e venda de imóveis celebrados por escritura pública no estrangeiro não contende com este imperativo de subordinação dos órgãos do Estado ao princípio da jurisdicidade e à observância das regras jurídicas emanadas das fontes constitucionalmente legitimadas. A eventual aplicação de uma norma de direito estrangeiro pelos tribunais nacionais, em virtude do funcionamento das regras ou princípios de direito internacional privado, a que pertence regular os conflitos de competência entre ordens jurídicas diversas, é sempre o resultado de uma fonte de direito constitucionalmente reconhecida, seja a norma remissiva de fonte interna, seja de fonte convencional. A dificuldade prática em controlar a observância de certos requisitos do contrato ou o cumprimento de determinadas exigências, designadamente fiscais ou de legalidade administrativa, por virtude de negócio não ter sido celebrado perante oficial público funcionalmente obrigado a proceder à respectiva verificação sob pena das correspondentes sanções, é inerente à aceitação de que as relações jurídicas plurilocalizadas não sejam reguladas, ou não sejam reguladas em todas as questões jurídicas que suscitam, pela lei portuguesa, e em nada colide com a sujeição dos órgãos do Estado à legalidade democrática.

De todo o modo, deve lembrar-se que pelo menos alguns dos riscos para exigências de ordem pública ou de insegurança jurídica, com que a recorrente abstractamente esgrime, são prevenidos pelas normas de direito internacional privado que previnem a fraude à lei (artigo 21.º do Código Civil) e a violação da ordem pública internacional (artigo 22.º do Código Civil).

Assim, não se vislumbrando de que modo o princípio constitucional de que o Estado se subordina à Constituição e se funda na legalidade democrática, consagrado no n.º 2 do artigo 3.º da Constituição, impõe que a validade ou a eficácia do contrato de compra e venda de imóveis sitos no território nacional tenha necessariamente de depender de ter sido celebrado em cartório notarial português (ou perante oficial público consular nacional com funções notariais), a questão de constitucionalidade colocada tem de ser julgada improcedente.

7 - Decisão. - Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e condenar a recorrente nas custas, com 25 unidades de conta de taxa de justiça, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.

Lisboa, 21 de Março de 2007. - Vítor Gomes - Bravo Serra - Gil Galvão - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Artur Maurício.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1567442.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1995-08-14 - Decreto-Lei 207/95 - Ministério da Justiça

    Aprova o Código do Notariado.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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