Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1 - José Maria Pimentel Júnior, acusado pelo Ministério Público pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 292.º, n.º 1, e 294.º, n.º 1, e de um crime de falsidade de declaração, previsto e punível pelo artigo 359.º, n.os 1 e 2, todos do Código Penal, requereu a abertura da instrução, nos termos do artigo 287.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
Sustentou então que o artigo 359.º, n.º 2, do Código Penal e os artigos 61.º, n.º 3, alínea b), 141.º, n.º 3, 142.º, n.º 2, e 144.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, são inconstitucionais, por violação do artigo 32.º, n.os 1, 2 e 5, da Constituição, "na medida em que postulam, ou se entenda que postulam, que o arguido é obrigado a prestar declarações com verdade sobre os seus antecedentes criminais sob pena de incorrer na prática de um crime" (fls. 3 e segs.).
2 - Por decisão instrutória de 6 de Fevereiro de 2006 do juiz do Tribunal Judicial de Leiria, foi o arguido pronunciado pelos factos constantes da acusação. Lê-se nessa decisão, entre o mais, que "não se vislumbra que a interpretação conjugada dos artigos 141.º, n.º 3, e 144.º, n.os 1 e 2 (do Código de Processo Penal) viole os preceitos constitucionais referidos nos artigos 2.º, 29.º e 32.º, n.º 2, da CRP e no artigo 11.º, n.º 2, 1.ª parte, da Declaração Universal dos Direitos do Homem" (fls. 10 e segs.).
3 - Desta decisão instrutória recorreu José Maria Pimentel Júnior para o Tribunal da Relação de Coimbra (fl. 25), tendo na motivação respectiva concluído do seguinte modo (fls. 26 e segs.):
"1.ª Vem o presente recurso interposto da parte da decisão instrutória, que desatendeu as questões prévias arguidas no requerimento de abertura da instrução a saber:
a) Se não é necessário cumprir todos os requisitos do artigo 141.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, quando o arguido preste declarações ao abrigo do artigo 144.º do mesmo diploma para que se ache cometido o crime de falsidade de declaração;
b) Se a interpretação dos artigos 141.º, n.º 3, e 144.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, no sentido de que é obrigatório para o arguido falar com verdade relativamente aos seus antecedentes criminais é inconstitucional por violação dos princípios da tipicidade da lei penal e do acusatório;
c) Se a interpretação que se extraia do artigo 359.º, n.os 1 e 2, do Código Penal e do artigo 144.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal é inconstitucional quando se exija que o arguido fale com verdade sobre os seus antecedentes criminais em qualquer interrogatório efectuado perante o Ministério Público ou órgão de polícia criminal, por violação dos princípios do Estado de direito da legalidade ou tipicidade da lei penal;
d) Se a interpretação do artigo 359.º, n.º 2, do Código Penal e os artigos 61.º, n.º 3, alínea b), 141.º, n.º 3, 142.º, n.º 2, e 144.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no sentido de que o arguido está obrigado a prestar declarações com verdade sobre os seus antecedentes criminais sob pena de incorrer na prática de um crime de falsidade de declaração é inconstitucional.
2.ª As questões suscitadas no requerimento de abertura de instrução e agora submetidas a apreciação deste Tribunal são prévias, admitindo assim recurso, porquanto, a serem procedentes obstam à apreciação do mérito da causa, e não estão dependentes de produção de qualquer meio de prova que deva ser produzido em audiência de julgamento.
3.ª Entende o recorrente que, para que estejam preenchidos os requisitos legais de que depende a punição pelo crime de falsidade de declaração, o arguido tem de prestar declarações falsas; relativamente a factos sobre os quais deve depor e tem de ser previamente advertido das consequências penais a que se expõe se prestar falsas declarações e quando para tal esteja obrigado.
4.ª Só se poderá exigir ao arguido que fale com verdade sobre os seus antecedentes criminais quando este esteja perante o juiz de instrução no primeiro interrogatório judicial de arguido detido e seguindo o ritualismo desse interrogatório, nos termos do disposto no artigo 141.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, onde se diz que ao arguido é perguntado '[...] se já esteve alguma vez preso, quando e porquê e se foi ou não condenado e por que crimes [...]', devendo ainda ser advertido que '[...] a falta de resposta a estas perguntas ou a falsidade das mesmas o pode fazer incorrer em responsabilidade penal', razões pelas quais o arguido só poderá ser punido pelo crime de falsas declarações se todas aquelas perguntas previstas nesse artigo lhe foram feitas e também quando a cominação com procedimento criminal lhe haja sido dirigida.
5.ª Ainda que se admitisse o entendimento do Tribunal recorrido no sentido de que ao interrogatório do arguido nos termos do disposto no artigo 144.º do Código de Processo Penal, se devem aplicar as regras do artigo 141.º, n.º 3, do mesmo Código, tais regras hão-de ser aplicadas in totum, apesar de o serem com as devidas adaptações, porquanto, apenas se exclui expressamente nos interrogatórios perante o MP - cf. artigo 143.º, n.º 2, do Código de Processo Penal - a obrigatoriedade de assistência de defensor, pelo que para que se encontrem preenchidos os requisitos de que depende a punição teriam de ser cumpridos os demais requisitos previstos no artigo 141.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
6.ª Entende o recorrente que ou se defende a aplicabilidade do artigo 141.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, por inteiro no âmbito dos interrogatórios previstos no artigo 144.º do mesmo Código, à excepção da obrigatoriedade de presença do defensor, ou então, não faz qualquer sentido aplicar-se esse artigo apenas parcialmente, porquanto a tal se opõe o espírito e a letra da norma.
7.ª O interrogatório do arguido nos presentes autos enquadra-se no disposto no artigo 144.º do Código de Processo Penal, pelo que não estando aí expressamente prevista a obrigatoriedade de o arguido responder com verdade à matéria dos seus antecedentes criminais, este não comete qualquer crime se não responder com verdade a tal questão, porquanto esta conduta só poderá ser criminalmente relevante se constar expressamente e de forma clara em lei anterior, sem que exista a possibilidade de recurso à analogia e tendo em conta que existem fortíssimas restrições à interpretação extensiva para que se possa censurar alguém criminalmente de acordo com os princípios da legalidade e tipicidade.
8.ª O entendimento do recorrente encontra acolhimento no artigo 1.º do Código Penal, onde se encontram plasmados os princípios constitucionais insítos no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, não podendo sancionar-se criminalmente alguém sem que o seja com base em lei anterior que seja clara e precisa quanto à incriminação.
9.ª A conduta do recorrente aquando da prestação de declarações perante a PSP de Guimarães não pode ser punível, porquanto se assim se considerasse estar-se-ia a violar o princípio penal da tipicidade, na medida em que o artigo 144.º do Código de Processo Penal não consagra expressamente que o arguido é obrigado a responder com verdade à matéria dos seus antecedentes criminais.
10.ª Como corolário do princípio da legalidade e da tipicidade, a lei penal deve descrever pormenorizadamente todo o seu alcance, exigindo-se ainda, para prevenir as condutas lesivas dos bens jurídico-penais e igualmente de garantir o cidadão contra a arbitrariedade judicial, que a lei criminal descreva o mais pormenorizadamente possível a conduta que qualifica como crime.
11.ª Não pode o recorrente ser condenado por norma que utilize cláusulas gerais na definição do crime, violando-se o imperativo de reduzir ao mínimo possível o recurso a conceitos indeterminados, ou ser condenado por norma penal que remeta para uma outra que utilize tais conceitos.
12.ª Daqui se conclui que na medida em que o artigo 144.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal faz uma remissão geral para o capítulo no qual está inserido, obedecendo os interrogatórios aí previstos, 'em tudo quanto for aplicável', às disposições desse mesmo capítulo II do título II do livro III do Código de Processo Penal, e na medida em que se entenda que aí se enquadra a obrigatoriedade de responder com verdade à matéria dos seus antecedentes criminais, sob pena de se incorrer no crime previsto no artigo 359.º, n.º 2, do Código Penal, tal interpretação é inconstitucional por violação do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, porquanto os preceitos em questão não definem com exactidão quais as regras a que obedecem os interrogatórios aí previstos, não se alcançando sequer o que se quer dizer com o trecho 'em tudo quanto for aplicável'.
13.ª Assim, a interpretação que se extraia do disposto no artigo 359.º, n.os 1 e 2, do Código Penal e dos artigos 141.º, n.º 3, e 144.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal no sentido de que o arguido tem que responder com verdade à matéria dos seus antecedentes criminais em qualquer interrogatório efectuado perante o Ministério Público ou perante órgãos de polícia criminal ainda que não esteja detido, sob pena de cometer um crime de falsas declarações, é inconstitucional por violação dos princípios da proporcionalidade, do Estado de direito, da tipicidade da lei penal e das garantias de defesa previstos nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição e no artigo 11.º, n.º 2, 1.ª parte, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20 de Abril de 2005, publicado in Colectânea de Jurisprudência, ano XXX, tomo II, p. 222).
14.ª Estipula o artigo 144.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que os subsequentes interrogatórios de arguido preso e os interrogatórios de arguido em liberdade são feitos no inquérito pelo MP e na instrução e em julgamento pelo respectivo juiz obedecendo, em tudo quanto for aplicável, às disposições deste capítulo, mas quer na instrução quer no julgamento o arguido não é obrigado a responder com verdade à matéria dos seus antecedentes criminais, sendo certo que tal exigência já foi, inclusivamente, julgada inconstitucional quanto ao julgamento por violação do princípio das garantias de defesa (cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 695/95, de 5 de Fevereiro, publicado in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 452, p. 112) e, em consequência, desapareceu tal exigência do texto do artigo 342.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o que quer, naturalmente, dizer que tal obrigatoriedade também se não aplica quanto aos interrogatórios feitos pelo MP no inquérito e muito menos perante a autoridade policial.
15.ª Além disso, também o princípio do acusatório, das garantias de defesa e da presunção da inocência se mostram violados através da incriminação prevista no artigo 359.º do Código Penal, pelas razões já acima expostas e no caso reflectidas nos interrogatórios previstos no artigo 144.º do Código de Processo Penal, porquanto o n.º 2 do artigo 32.º da Constituição consagra o princípio da presunção de inocência do arguido, cujo conteúdo integra a proibição da inversão do ónus da prova, não sendo, assim, o arguido obrigado a auto-incriminar-se, carreando para os autos matéria inculpatória.
16.ª Assim, porque os factos referentes aos antecedentes criminais constituem matéria cujo ónus da prova cabe ao Ministério Público, o arguido não pode ser coagido a revelá-los sob pena de violação das normas e princípios constitucionais que vêm de se citar.
17.ª Pelo exposto, o artigo 359.º, n.º 2, do Código Penal e os artigos 61.º, n.º 3, alínea b), 141.º, n.º 3, 142.º, n.º 2, e 144.º, n.º 1, do Código de Processo Penal na medida em que postulam, ou que se entenda que postulam, que o arguido é obrigado a prestar declarações com verdade sobre os seus antecedentes criminais sob pena de incorrer na prática de um crime, são inconstitucionais por violação dos artigos 32.º, n.os 1, 2 e 5, da Constituição.
18.ª A decisão recorrida violou ou fez errada aplicação do disposto nos artigos 1.º, n.os 1 e 3, e 359.º, n.os 1 e 2, do Código Penal, 61.º, n.º 3, alínea b), 141.º, n.º 3, 143.º, n.º 2, e 144.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, 2.º, 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 32.º, n.os 1, 2 e 5, da Constituição e 11.º, n.º 2, 1.ª parte, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, não podendo, pois, manter-se.
[...]".
O Ministério Público respondeu e emitiu parecer, sustentando que ao recurso devia ser negado provimento (fls. 39 e segs. e 52 e segs.).
O arguido respondeu a este parecer (fls. 56 e seg.).
4 - Por acórdão de 5 de Julho de 2006, o Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso, pelos seguintes fundamentos (fls. 60 e segs.):
"[...]
A questão tem sido debatida, sabendo nós que há interpretações divergentes, no sentido da defendida, quer pelo recorrente quer no despacho recorrido.
Seguimos a orientação maioritária nesta Relação, que vai de encontro à tese defendida no despacho recorrido.
A posição maioritária nesta Relação entende que pratica o crime de falsidade de declaração, relativamente aos seus antecedentes criminais previstos e punidos pelo artigo 359.º, n.º 2, do CP, quer o arguido detido quando sujeito ao primeiro interrogatório judicial ou ao primeiro não judicial, quer o arguido preso quando sujeito a interrogatório, quer o arguido em liberdade, quando sujeito a interrogatório. Em todas estas situações existe a obrigação do arguido de dizer se alguma vez esteve preso, quando e porquê, e se foi ou não condenado e por que crimes.
[...]
Passemos ao conhecimento da questão única.
Para este efeito importa atender, desde logo, ao que dispõem os preceitos legais mencionados pelo recorrente.
O crime de falsidade de depoimento ou declaração, previsto e punido pelo artigo 359.º do Código Penal, estatui o seguinte:
[...]
Trata-se de um crime contra realização da justiça, como função do Estado.
Tal resulta claramente da inserção do preceito legal no capítulo III ('Dos crimes contra a realização da justiça'), do título V ('Dos crimes contra o Estado') da Parte Especial do Código Penal.
O cerne do ilícito das falsas declarações é o perigo para a administração da justiça, prejudicada por informações falsas [...].
Dentro do capítulo do Código de Processo Penal que consagra as normas reguladoras do interrogatório do arguido, o artigo 141.º, n.º 3, respeitante ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido, estatui:
[...]
O artigo 143.º do Código de Processo Penal regula o primeiro interrogatório não judicial de arguido detido: o arguido detido é apresentado ao MP, que o pode ouvir sumariamente, obedecendo o interrogatório, na parte aplicável, às disposições relativas ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido, excepto pelo que respeita à assistência de defensor, a qual só tem lugar se o arguido, depois de informado sobre os direitos que lhe assistem, a solicitar.
O artigo 144.º, n.º 1, do Código de Processo Penal estatui que os subsequentes interrogatórios de arguido preso e os interrogatórios de arguido em liberdade são feitos no inquérito pelo Ministério Público e na instrução e em julgamento pelo respectivo juiz, obedecendo, em tudo quanto for aplicável, às disposições deste capítulo. E acrescenta o n.º 2: no inquérito, os interrogatórios referidos no número anterior podem ser feitos por órgão de polícia criminal no qual o Ministério Público tenha delegado a sua realização [...]
Da conjugação das disposições legais acabadas de referir não resulta, salvo o devido respeito, que só pratica o crime de falsidade de declaração, relativamente aos seus antecedentes criminais, previsto e punido pelo artigo 359.º, n.º 2, do Código Penal, o arguido detido, sujeito aos interrogatórios referidos nos artigos 141.º e 143.º do Código Penal.
Face à remissão do n.º 1 do artigo 144.º do Código de Processo Penal, também no interrogatório de arguido preso e de arguido em liberdade, existe a obrigação [de] este dizer com verdade se já esteve alguma vez preso, quando e porquê e se foi ou não condenado e por que crimes.
O conhecimento dos antecedentes criminais do arguido detido, preso ou em liberdade, durante o interrogatório, pelo menos em fase anterior à do julgamento, apresenta vantagens para a realização da justiça, por conceder informação relevante, necessária para a decisão sobre a aplicação de medidas coactivas.
Essa relevância é evidente aquando do primeiro interrogatório judicial de arguido detido e de primeiro interrogatório não judicial de arguido detido e o processo tiver de continuar, pois frequentemente aquando desse interrogatório urgente, não é possível obter por outros modos institucionalmente válidos informação sobre os antecedentes criminais do arguido.
A necessidade do conhecimento dos antecedentes criminais do arguido em liberdade também não deixa de existir durante o interrogatório em inquérito, situação aqui em apreciação.
O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.
Nesta fase processual, aquando do interrogatório do arguido em situação de liberdade, em regra, não está ainda junto o certificado do registo criminal do arguido pois o acesso à informação sobre os antecedentes criminais deste não se destina a ser utilizado como meio de influenciar a prova.
Caso se reconheça, durante esse interrogatório do arguido em liberdade, haver fortes indícios da prática de um crime, pode tornar-se necessário aplicar desde logo ao mesmo uma medida de coação.
Nessa altura é fundamental saber quais são os antecedentes criminais do arguido.
Mesmo que na prática essa informação possa ser obtida também por outros meios, a lei exige ao arguido que forneça esses elementos e com veracidade.
Podemos assim concluir que o conhecimento dos antecedentes criminais do arguido através das declarações verídicas do mesmo é uma exigência da lei, por a considerar necessária para a realização da justiça em qualquer dos interrogatórios a que aludem os artigos 141.º, 143.º e 144.º do Código de Processo Penal.
Este crime pressupõe apenas, para a sua consumação, o perigo para a administração da justiça, que advém de falsas informações.
Donde resulta não haver qualquer violação de preceitos constitucionais, nem aqueles preceitos do Código de Processo Penal visam uma auto-incriminação do arguido.
Em sede de interrogatório de arguido, as declarações sobre os seus antecedentes criminais não valem como meio de prova da sua culpa na eventual prática de um crime. Se assim fosse, o legislador quando eliminou o n.º 2 do artigo 342.º do Código de Processo Penal nunca considerou a hipótese de que pudesse ser inconstitucional as normas dos artigos 141.º a 143.º do Código de Processo Penal, ao 'obrigar' o arguido a responder sobre os seus antecedentes criminais.
A norma interpretada no sentido supra não põe em causa as garantias de defesa do arguido, nem a sua presunção de inocência.
Por outro lado, o juiz do julgamento nunca intervém na fase do inquérito ou da instrução, o que garante a sua imparcialidade e independência.
Também o direito do arguido ao silêncio não é posto em causa, uma vez que este respeita apenas à matéria dos factos que lhe são imputados.
A par dos direitos do arguido, a lei também lhe impõe o dever de responder e com verdade sobre a sua identidade e quando a lhe impuser, sobre os antecedentes criminais, artigo 61.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Como refere Figueiredo Dias, in Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do Crime, § 1019, após o interrogatório, se o processo tiver de continuar, o juiz tem de tomar uma decisão sobre as medidas de coacção que deverá impor ao arguido, e para isso é fundamental saber quais os seus antecedentes criminais, uma vez que o conhecimento destes não pode deixar de relevar para a escolha da adequada medida de coacção processual.
Muitas vezes, nessa fase processual a voz do arguido é o único meio possível de se saber quais os antecedentes.
Futuramente, com os avanços tecnológicos num futuro próximo, será possível alcançar, em tempo oportuno (quase instantâneo) os mesmos objectivos por outros meios, que não a viva voz do arguido, e nessa altura poderá ser alterada a lei.
Enquanto o não for, o arguido em inquérito, quando interrogado sobre os seus antecedentes criminais é obrigado a responder e com a verdade, sem que isso ofenda os seus direitos constitucionalmente consagrados.
Também o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 372/98, de 13 de Maio, não julgou inconstitucional a norma do artigo 62.º, n.º 3, alínea b), e 141.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na parte em que impõe ao arguido o dever de responder com verdade às perguntas feitas no primeiro interrogatório judicial sobre os seus antecedentes criminais.
Não sendo inconstitucional o interrogatório (sobre a matéria em análise) efectuado obrigatoriamente pelo juiz de instrução, também o não é o interrogatório efectuado pelo MP ou órgãos de policia criminal, pois que a violação ou não de direitos do arguido não depende da questão formal de quem preside ao interrogatório.
Assim resta-nos concluir que nenhuma ofensa é feita a direitos constitucionais do arguido ao ser legalmente obrigado a declarar com verdade, em interrogatório efectuado em fase de inquérito, quais os seus antecedentes criminais.
Daí que improcedem todas as conclusões do recurso.
[...]".
5 - Deste acórdão recorreu José Maria Pimentel Júnior para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, "porquanto tem legitimidade [...], está em tempo [...] e encontram-se esgotados os recursos ordinários [...]" (requerimento de fl. 70).
O recurso foi admitido por despacho de fl. 71.
6 - Já no Tribunal Constitucional, foi proferido despacho de aperfeiçoamento ao abrigo do n.º 6 do artigo 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, ordenando a notificação do recorrente para dar integral cumprimento a este artigo 75.º-A (fl. 76).
Notificado deste despacho, veio o recorrente dizer o seguinte (fl. 78):
"[...]
O presente recurso vem interposto do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 5 de Julho de 2006, nos termos dos artigos 69.º, 70.º, n.º 1, alínea b), n.os 2 e 3, 75.º, n.os 1 e 2, e 76.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro.
Mostram-se esgotados os recursos ordinários, o recurso é admissível, o recorrente tem legitimidade e está em tempo e tem a tramitação própria do recurso de apelação previsto pelo Código de Processo Civil (cf. os artigos 69.º, 70.º, n.º 2, 72.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, da LTC.
O presente recurso foi interposto porquanto o recorrente entende que:
a) A interpretação que se extraia do disposto no artigo 359.º, n.os 1 e 2, do Código Penal e das disposições conjugadas dos artigos 144.º, n.os 1 e 2, e 141.º, n.º 3, do Código de Processo Penal no sentido de que se aplica aos interrogatórios perante os órgãos de polícia criminal as regras do primeiro interrogatório judicial de arguido detido e, consequentemente, o arguido tem que responder com verdade à matéria dos seus antecedentes criminais nesse interrogatório no âmbito do inquérito, ainda que não esteja detido, sob pena de cometer um crime de falsas declarações, é inconstitucional por violação dos princípios da proporcionalidade, do Estado de direito, da tipicidade da lei penal, das garantias de defesa e da presunção da inocência previstos nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição e no artigo 11.º, n.º 2, 1.ª parte, da Declaração Universal dos Direitos do Homem;
b) Os artigos 359.º, n.º 2, do Código Penal, 61.º, n.º 3, alínea b), e 144.º, n.os 1 e 2 (este em conjugação com o artigo 141.º, n.º 3), do Código de Processo Penal na medida em que postulam, ou que se entenda que postulam, que o arguido é obrigado a prestar declarações com verdade sobre os seus antecedentes criminais sob pena de incorrer ou incorrendo na prática de um crime de falsas declarações, são inconstitucionais por violação dos princípios da presunção da inocência, das garantias de defesa e do acusatório previstos no artigo 32.º, n.os 1, 2 e 5, da Constituição.
As questões de constitucionalidade em causa foram colocadas no requerimento de abertura da instrução e na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra.
[...]".
7 - Por despacho da ora relatora (fls. 80 e segs.), foi ordenada a notificação do recorrente para produzir alegações quanto à única questão de constitucionalidade que cabia apreciar: a da conformidade constitucional face aos princípios da proporcionalidade, do Estado de direito, das garantias de defesa, da presunção de inocência e do acusatório da norma que resulta do artigo 359.º, n.º 2, do Código Penal e dos artigos 141.º, n.º 3, 144.º, n.os 1 e 2, e 61.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, segundo a qual, no interrogatório feito por órgão de polícia criminal durante o inquérito, o arguido tem que responder com verdade à matéria dos seus antecedentes criminais, sob pena de cometer um crime de falsas declarações, pois que àquele interrogatório se aplicam as regras do primeiro interrogatório judicial de arguido detido.
8 - Notificado deste despacho, veio o recorrente produzir alegações, que concluiu assim (fls. 84 e segs.):
"1.ª O interrogatório do arguido nos presentes autos enquadra-se no disposto no artigo 144.º do Código de Processo Penal, pelo que não estando aí expressamente prevista a obrigatoriedade de o arguido responder com verdade à matéria dos seus antecedentes criminais, o arguido não comete qualquer crime se não responder com verdade a tal questão.
2.ª Com efeito, a conduta de alguém só pode ser criminalmente relevante se constar expressamente e de forma clara em lei anterior, sem que exista a possibilidade de recurso à analogia e tendo em conta que existem fortíssimas restrições à interpretação extensiva para que se possa censurar alguém criminalmente de acordo com os princípios da legalidade e tipicidade (cf. os n.os 1 e 3 do artigo 1.º do Código Penal e o artigo 29.º, n.º 1, da Constituição).
3.ª O cidadão comum tem o direito de saber através da leitura das leis da República o que deve ser considerado crime e o que não deve sê-lo, sendo que a lei penal deve, assim, ser necessária, no sentido de que a protecção dos bens jurídicos não possa ser feita de outra forma que não seja através da criminalização da conduta, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).
4.ª O direito penal só deve intervir, os comportamentos sociais só devem ser incriminados, quando violem interesses fundamentais princípio da necessidade da intervenção do direito penal ou da necessidade da pena [...]
5.ª Por outro lado, o direito penal só deve intervir, os comportamentos humanos só devem ser criminalizados, quando a criminalização seja eficaz e necessária. Para que uma conduta humana seja considerada crime é preciso que a qualificação seja absolutamente essencial à sobrevivência da comunidade. É necessário que as medidas de outro tipo, tais como administrativas ou civis, se tomadas, sejam insuficientes. Só deve ser aplicada uma pena quando não há outro remédio, quando a aplicação de uma medida de outra natureza seria inadequada e insuficiente. É que as penas significam restrições aos direitos, liberdades e garantias e tais restrições só podem ter lugar nos casos expressamente permitidos e devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República) - princípio da intervenção mínima ou da subsidiariedade do direito penal [...].
6.ª O Tribunal Constitucional tem, aliás, reconhecido que a Constituição acolhe o princípio 'da necessidade (para defesa dos direitos ou interesses constitucionalmente protegidos) ou da máxima restrição (compatível com aquela defesa) das penas e das medidas de segurança (artigo 18.º, n.os 2 e 3)', sendo certo que 'por serem as sanções penais aquelas que, em geral, maiores sacrifícios impõem aos direitos fundamentais, devem ser evitadas, na existência e na medida, sempre que não seja certa a sua necessidade' (Acórdão 59/85, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.º vol., pp. 96 e 97).
7.ª É certo que o princípio da subsidiariedade do direito penal não resulta expressamente das normas que correspondem à chamada 'constituição penal' (artigos 27.º e seguintes da Constituição). Todavia, ele não é mais do que uma aplicação, ao direito penal e à política criminal, dos princípios constitucionais da justiça e da proporcionalidade, este aflorando designadamente no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, e ambos decorrentes, iniludivelmente, da ideia de Estado de direito democrático, consignada no artigo 2.º da Lei Fundamental.
8.ª É que, como afirma o Prof. Figueiredo Dias, 'num Estado de direito material, de raiz social e democrática, o direito penal só pode e deve intervir onde se verifiquem lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais de livre desenvolvimento e realização da personalidade de cada homem' ('O sistema sancionatório do direito penal português no contexto dos modelos da política criminal', Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, pp. 806 e 807). Daqui decorre, para o mesmo autor, que não devem constituir crimes ou, sequer, caber no objecto do direito penal as condutas entre outras, que 'violando embora um bem jurídico, possam ser suficientemente contrariadas ou controladas por meios não criminais de política social; com o que a necessidade social se torna em critério decisivo de intervenção do direito penal: este, para além de se limitar à tutela de bens jurídicos, só deve intervir como última ratio da política social' ('O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social', Jornadas de Direito Criminal - O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, Centro de Estudos Judiciários, p. 323).
9.ª Nos interrogatórios a que alude o artigo 144.º do Código de Processo Penal não se visa aplicar qualquer medida de coacção e, diz-se no acórdão recorrido, os antecedentes criminais 'não valem como meio de prova da sua eventual culpa', pelo que quando é o primeiro interrogatório realizado no processo, é essencial recolher o seu nome completo e morada, por forma a que este preste termo de identidade e residência, mas já não se alcança por que razão este tem de responder e com verdade à matéria dos seus antecedentes criminais, o que apenas faz sentido nos primeiros interrogatórios judiciais.
10.ª Trata-se aqui dos interrogatórios subsequentes ao primeiro ou de interrogatórios de arguido em liberdade (cf. o n.º 1 do artigo 144.º do Código de Processo Penal), casos em que ou o certificado do registo criminal já se encontra junto aos autos, ou, não se encontrando, a sua obtenção não reveste carácter de urgência, porquanto não há necessidade de se aplicar qualquer medida de coacção, exceptuando o termo de identidade e residência.
11.ª Assim, nesta perspectiva, é totalmente desnecessária a exigência que se faz ao arguido para que responda com verdade sobre os seus antecedentes criminais nos interrogatórios a que alude o artigo 144.º do Código de Processo Penal, porquanto o Tribunal consegue saber e ter conhecimento dos antecedentes criminais do arguido em minutos.
l2.ª Desde logo porque o próprio Ministério da Justiça disponibiliza aos tribunais uma base de dados relativos ao registo criminal dos cidadãos, a qual pode ser livremente consultada pelos oficiais de justiça e pelos magistrados, pois, se assim não fosse, impossível seria serem julgados centenas de processos sumários por todo o país, nos quais o arguido é julgado e logo proferida a sentença, obtendo-se o seu registo criminal imediatamente.
l3.ª Assim, tendo em conta que o crime de falsas declarações é um crime que tutela o bem jurídico da realização da justiça, esta nunca será beliscada se o arguido não responder com verdade nos interrogatórios a que alude o artigo 144.º do Código de Processo Penal, pelo que a criminalização da conduta do arguido que responde inveridicamente à matéria dos seus antecedentes criminais e, consequentemente, a sua sujeição a uma pena é desproporcional, desnecessária e desadequada no sentido que vem de se expôr.
14.ª Deve, assim, ser julgada inconstitucional a norma que resulta do artigo 359.º, n.º 2, do Código Penal e dos artigos 141.º, n.º 3, 144.º, n.os 1 e 2, e 61.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, segundo a qual, no interrogatório feito por órgão de polícia criminal durante o inquérito se aplicam as regras do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, tendo o arguido de responder com verdade à matéria dos seus antecedentes criminais, sob pena de cometer um crime de falsas declarações, por violação do princípio do Estado de direito, da proporcionalidade e da necessidade das penas previstos nos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da Constituição.
15.ª Acresce que, 'dada a necessidade de prevenir as condutas lesivas dos bens jurídico-penais e igualmente de garantir o cidadão contra a arbitrariedade judicial, exige-se que a lei criminal descreva o mais pormenorizadamente possível a conduta que qualifica como crime' - cf. Constituição Portuguesa Anotada, de Jorge Miranda e Rui Medeiros, tomo I, parte geral, Coimbra Editora, pp. 327 e 328.
16.ª Desta exigência, continua Jorge Miranda, resulta a proibição de o legislador utilizar cláusulas gerais na definição dos crimes, bem como o imperativo de reduzir ao mínimo possível o recurso a conceitos indeterminados. A esta exigência decorrente da razão de garantia do princípio da legalidade penal chama-se princípio da tipicidade, traduzido pela conhecida formulação latina nullum crimen sine lege certa.
17.ª Daqui se conclui que na medida em que o artigo 144.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal faz uma remissão geral para o capítulo no qual está inserido, obedecendo os interrogatórios aí previstos, 'em tudo quanto for aplicável', às disposições desse mesmo capítulo II do título II do livro III do Código de Processo Penal, e na medida em que se entenda que aí se enquadra a obrigatoriedade de responder com verdade à matéria dos seus antecedentes criminais, sob pena de se incorrer no crime previsto no artigo 359.º, n.º 2, do Código Penal, tal interpretação é inconstitucional por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 29.º, n.º 1, da Constituição, porquanto os preceitos em questão não definem com exactidão quais as regras a que obedecem os interrogatórios aí previstos, não se alcançando sequer o que se quer dizer com o trecho 'em tudo quanto for aplicável'.
18.ª Assim, a interpretação que se extraia do disposto no artigo 359.º, n.os 1 e 2, do Código Penal e dos artigos 141.º, n.º 3, e 144.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal no sentido de que o arguido tem que responder com verdade à matéria dos seus antecedentes criminais em qualquer interrogatório efectuado perante o Ministério Público ou perante órgãos de polícia criminal ainda que não esteja detido, sob pena de cometer um crime de falsas declarações, é inconstitucional por violação dos princípios da proporcionalidade, do Estado de direito, da tipicidade da lei penal e das garantias de defesa previstos nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição e no artigo 11.º, n.º 2, 1.ª parte, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20 de Abril de 2005, publicado in Colectânia de Jurisprudência, ano XXX, tomo II, p. 222).
19.ª Além disso, também o princípio do acusatório, das garantias de defesa e da presunção da inocência se mostram violados através da incriminação prevista no artigo 359.º do Código Penal, pelas razões já acima expostas, e no caso reflectidas nos interrogatórios previstos no artigo 144.º do Código de Processo Penal.
20.ª De facto, o n.º 2 do artigo 32.º da Constituição consagra o princípio da presunção de inocência do arguido, cujo conteúdo integra a proibição da inversão do ónus da prova, não sendo, assim, o arguido obrigado a auto-incriminar-se, carreando para os autos matéria inculpatória.
21.ª Assim, porque os factos referentes aos antecedentes criminais constituem matéria cujo ónus da prova cabe ao Ministério Público, o arguido não pode ser coagido a revelá-los sob pena de violação das normas e princípios constitucionais que vêm de se citar.
22.ª A mitigação da estrutura acusatória pelo princípio da investigação não poderá transfigurar a posição do Tribunal, numa posição activa de poder, suprimindo radicalmente a garantia de que o arguido não constitui, ele mesmo, um meio de prova ao dispor da acusação.
23.ª Nem se diga que no que toca à violação do princípio do acusatório e da presunção da inocência a seguir a interpretação proposta pelo recorrente este também não poderia ser obrigado a falar com verdade sobre a sua identidade, pois caberia ao MP apurá-la, porquanto o arguido ao ser obrigado a falar com verdade à matéria da sua identidade não está a carrear para os autos matéria que, posteriormente, o possa inculpar ou agravar a pena.
24.ª Pelo exposto, o artigo 359.º, n.º 2, do Código Penal e os artigos 61.º, n.º 3, alínea b), 141.º, n.º 3, 143.º, n.º 2, e 144.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na medida em que postulam, ou que se entenda que postulam, que o arguido é obrigado a prestar declarações com verdade sobre os seus antecedentes criminais sob pena de incorrer na prática de um crime, são inconstitucionais por violação dos artigos 32.º, n.os 1, 2 e 5, da Constituição.
25.ª O acórdão recorrido violou ou fez errada interpretação do disposto nos artigos 1.º, n.os 1 e 3, e 359.º, n.º 2, do Código Penal, 61.º, n.º 3, alínea b), 141.º, n.º 3, e 144.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, 2.º, 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 32.º, n.os 1, 2 e 5, da Constituição e 11.º, n.º 2, 1.ª parte, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
[...]".
9 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional contra-alegou, concluindo do seguinte modo (fls. 110 e segs.):
"1 - A norma que resulta do artigo 359.º, n.º 2, do Código Penal e dos artigos 141.º, n.º 3, 144.º, n.os 1 e 2, e 61.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, segundo a qual, no interrogatório feito por órgão de polícia criminal durante o inquérito, o arguido tem de responder com verdade à matéria dos seus antecedentes criminais, sob pena de cometer um crime de falsas declarações, pois que àquele interrogatório se aplicam as regras do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, não é inconstitucional.
2 - Termos em que não deverá proceder o presente recurso."
Cumpre apreciar e decidir.
II
10 - Importa esclarecer, antes de mais, qual a questão de constitucionalidade a apreciar.
10.1 - Como se explicou no despacho que delimitou o objecto do presente recurso (supra, 7), este só pode ser constituído pela norma que resulta do artigo 359.º, n.º 2, do Código Penal e dos artigos 141.º, n.º 3, 144.º, n.os 1 e 2, e 61.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, segundo a qual, no interrogatório feito por órgão de polícia criminal durante o inquérito, o arguido tem que responder com verdade à matéria dos seus antecedentes criminais, sob pena de cometer um crime de falsas declarações, pois que àquele interrogatório se aplicam as regras do primeiro interrogatório judicial de arguido detido.
Decorre, todavia, da leitura das alegações (supra, 8), que o recorrente pretende ainda a apreciação do artigo 143.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (cf. conclusão 24.ª) e do artigo 1.º, n.os 1 e 3, do Código Penal (cf. conclusão 25.ª).
Ora, porque estes preceitos legais não foram indicados na resposta ao despacho de aperfeiçoamento (supra, 6), não pode obviamente o Tribunal conhecer da respectiva conformidade constitucional.
10.2 - Acresce que, como também se explicou no despacho que delimitou o objecto do presente recurso (supra, 7), não pode tomar-se conhecimento da questão da inconstitucionalidade, com fundamento em violação do princípio da tipicidade da lei penal, da norma que resulta dos referidos preceitos legais. Disse-se nesse despacho, a este propósito, o seguinte:
"[...]
[...] o Tribunal Constitucional tem entendido, embora nem sempre por unanimidade, que, nas hipóteses como a dos autos, em que se questionam certas interpretações normativas por ofensa do princípio da tipicidade ou da legalidade penal, não estão em causa verdadeiras questões de inconstitucionalidade normativa mas antes questões de inconstitucionalidade da própria decisão recorrida ou do acto de julgamento (neste sentido, cf.: Acórdão 353/86, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8.º vol., pp. 571 e segs.; Acórdão 634/94, Acórdãos ..., 29.º vol., pp. 243 e segs.; Acórdão 221/95, Diário da República, 2.ª série, de 27 de Junho de 1995, pp. 7088 e segs.; Acórdão 756/95, Acórdãos ..., 32.º vol., pp. 775 e segs.; Acórdãos n.os 682/95 e 154/98, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt; e, designadamente, Acórdão 674/99, Diário da República, 2.ª série, de 25 de Fevereiro de 2000, pp. 3856 e segs., onde pode encontrar-se uma análise da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre esta matéria).
Tal questão por não respeitar a uma inconstitucionalidade normativa mas antes a uma inconstitucionalidade da própria decisão judicial excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, tendo em conta que o nosso sistema não admite o denominado recurso de amparo, maxime na modalidade de amparo em relação a decisões jurisdicionais directamente violadoras da Constituição.
[...]".
Não tendo o recorrente impugnado o despacho, não se tomará conhecimento da matéria das conclusões 1.ª, 2.ª, 15.ª, 16.ª, 17.ª e 18.ª (esta, em parte).
10.3 - Decorre ainda da leitura das conclusões das alegações (cf. conclusão 25.ª) que o recorrente se insurge contra o que considera ser uma errada interpretação de certos preceitos legais.
Como é evidente, o Tribunal Constitucional não tem competência para verificar se a interpretação feita pelos outros tribunais dos preceitos legais aplicáveis é ou não errada: resulta, antes, das várias alíneas do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional que essa competência se cinge à apreciação da conformidade constitucional (e, em certos casos, legal) da interpretação perfilhada na decisão de que se recorre, não abrangendo a correcção dessa mesma interpretação face aos princípios gerais que norteiam a interpretação das leis.
10.4 - Resta, então, apreciar se é inconstitucional face aos princípios da proporcionalidade, do Estado de direito, das garantias de defesa, da presunção de inocência e do acusatório - a norma que resulta do artigo 359.º, n.º 2, do Código Penal e dos artigos 141.º, n.º 3, 144.º, n.os 1 e 2, e 61.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, segundo a qual, no interrogatório feito por órgão de polícia criminal durante o inquérito, o arguido tem que responder com verdade à matéria dos seus antecedentes criminais, sob pena de cometer um crime de falsas declarações, pois que àquele interrogatório se aplicam as regras do primeiro interrogatório judicial de arguido detido.
11 - É a seguinte a redacção do artigo 359.º do Código Penal (sistematicamente integrado nas disposições respeitantes aos crimes contra a realização da justiça), relevando agora apenas o seu n.º 2 (embora, por razões de clareza, se transcreva integralmente o preceito):
"Artigo 359.º
Falsidade de depoimento ou declaração
1 - Quem prestar depoimento de parte, fazendo falsas declarações relativamente a factos sobre os quais deve depor, depois de ter prestado juramento e de ter sido advertido das consequências penais a que se expõe com a prestação de depoimento falso, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2 - Na mesma pena incorrem o assistente e as partes civis relativamente a declarações que prestarem em processo penal, bem como o arguido relativamente a declarações sobre a identidade e os antecedentes criminais" (itálico acrescentado).
Por seu lado, dispõem os artigos 141.º, n.º 3, 144.º, n.os 1 e 2, e 61.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal:
"Artigo 141.º
Primeiro interrogatório judicial de arguido detido
[...]
3 - O arguido é perguntado pelo seu nome, filiação, freguesia e concelho de naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, residência, local de trabalho, se já esteve alguma vez preso, quando e porquê e se foi ou não condenado e por que crimes, sendo-lhe exigida, se necessário, a exibição de documento oficial bastante de identificação. Deve ser advertido de que a falta de resposta a estas perguntas ou a falsidade das mesmas o pode fazer incorrer em responsabilidade penal.
[...]
Artigo 144.º
Outros interrogatórios
1 - Os subsequentes interrogatórios de arguido preso e os interrogatórios de arguido em liberdade são feitos no inquérito pelo Ministério Público e na instrução e em julgamento pelo respectivo juiz, obedecendo, em tudo quanto for aplicável, às disposições deste capítulo.
2 - No inquérito, os interrogatórios referidos no número anterior podem ser feitos por órgão de polícia criminal no qual o Ministério Público tenha delegado a sua realização.
Artigo 61.º
Direitos e deveres processuais
[...]
3 - Recaem em especial sobre o arguido os deveres de:
[...]
b) Responder com verdade às perguntas feitas por entidade competente sobre a sua identidade e, quando a lei o impuser, sobre os seus antecedentes criminais;
[...]".
12 - O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre questão semelhante àquela que ora cumpre apreciar no Acórdão 372/98, de 13 de Maio (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), pois que, também nesse aresto, estava em causa uma interpretação normativa da qual decorria a imposição, ao arguido, e sob pena de responsabilidade penal, do dever de responder com verdade sobre os seus antecedentes criminais, num interrogatório realizado fora da audiência de julgamento (tratava-se, no caso, do primeiro interrogatório judicial de arguido detido).
No Acórdão 372/98, o Tribunal decidiu "julgar não inconstitucionais as normas dos artigos 61.º, n.º 3, alínea b), e 141.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na parte em que impõem ao arguido o dever de responder com verdade às perguntas feitas no primeiro interrogatório judicial sobre os seus antecedentes criminais".
A circunstância de o interrogatório ser realizado fora da audiência de julgamento traduz, aliás, a única semelhança inequívoca entre a questão então analisada e aquela que agora importa analisar, não se acompanhando totalmente, neste passo, as contra-alegações do Ministério Público (supra, 10), na parte em que nelas se afirma que "na situação ora em recurso a única diferença a registar reside no facto de o interrogatório ter sido levado a cabo por órgão de polícia criminal" (cf. fl. 113, itálico acrescentado).
Com efeito - e adiantando já, em certa medida, o raciocínio que se seguirá -, importa ponderar, para efeitos de eventual transposição, para o presente caso, da doutrina do referido Acórdão 372/98, se as razões que justificam a incriminação das falsas declarações sobre os antecedentes criminais durante o interrogatório judicial de arguido detido se encontram também presentes caso o inquérito seja realizado perante um órgão de polícia criminal, pois que esta entidade, ao contrário do juiz de instrução, não tem competência para aplicar medida de coacção diversa do termo de identidade e residência (cf. o artigo 196.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Seja como for, interessa recordar a doutrina do Acórdão 372/98, em que se ponderou o seguinte:
"[...]
4 - O n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, ao determinar que 'o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa', como que condensa todas as normas dos restantes números do preceito, sem que deixe de existir um conteúdo normativo próprio susceptível de utilização em casos limite e que aqui não interessa considerar.
A recorrente considera que as normas do artigo 61.º, n.º 3, alínea b), e do artigo 141.º, n.º 3, do CPP, na medida em que obrigam os arguidos a revelar, no primeiro interrogatório judicial, os seus antecedentes criminais, sob a cominação do crime de falsas declarações, violam os princípios da presunção de inocência, do contraditório e do acusatório integrantes das suas garantias de defesa.
Vejamos.
O princípio da presunção de inocência está consagrado no n.º 2 do artigo 32.º da CRP, aí se integrando a proibição da inversão do ónus da prova em detrimento do arguido, a preferência pela sentença de absolvição em vez do arquivamento do processo, a exclusão da fixação da culpa em despachos de arquivamento, a não sujeição a custas do arguido não condenado, etc. como seu conteúdo adequado.
O princípio do contraditório, referido no n.º 5 do artigo 32.º da CRP, traduz o direito que quer a acusação quer a defesa têm de se pronunciar sobre os actos processuais da iniciativa de cada uma delas por forma a que a audiência e os actos instrutórios revistam a forma de debate ou discussão entre a acusação e a defesa, parificando o mais possível o respectivo posicionamento jurídico ao longo do processo, o qual deve ter uma estrutura basicamente acusatória temperada por um princípio de investigação.
Assim, o princípio do inquisitório domina a fase processual do inquérito conduzida pelo Ministério Público e, de certo modo, a fase de instrução (n.º 4 do artigo 288.º do CPP); o princípio acusatório atravessa a fase do debate instrutório, a fase da acusação e do julgamento: a exigência decorrente deste princípio de que o órgão que proceda à instrução não seja o mesmo que vier a deduzir a acusação e este seja diferente do que vai proceder ao julgamento realiza uma garantia de imparcialidade e de independência do tribunal.
A estrutura acusatória do processo penal é assim integrada por um princípio de investigação e, para além de visar a parificação, ao longo dos diferentes actos do processo, do posicionamento jurídico da acusação e da defesa, impõe uma rigorosa definição do momento e do modo como se estabelece o estatuto de arguido.
Nos termos do que se dispõe no artigo 57.º do CPP, assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal, mantendo-se esta qualidade durante todo o decurso do processo.
À obtenção do estatuto de arguido corresponde o reconhecimento pela lei processual penal de um conjunto de direitos e deveres, que têm de ser acatados por todas as autoridades, sendo certo que alguns dos direitos têm dignidade constitucional (artigo 32.º, n.os 1, 2 e 3, da Constituição).
Um dos direitos que o processo penal reconhece ao arguido é o direito ao silêncio que consta do artigo 61.º, n.º 1, alínea c), do CPP e que se traduz no direito de o arguido não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar.
Na mesma disposição, o CPP consagra também um dever que recai particularmente sobre os arguidos, o dever de responder com verdade às perguntas feitas por entidade competente sobre a sua identidade e, quando a lei o impuser, sobre os seus antecedentes criminais - artigo 61.º, n.º 3, alínea b).
É a norma resultante da conjugação deste último preceito com a norma do artigo 141.º, n.º 3, do CPP, que vem questionada, nos autos, enquanto aplicável ao primeiro interrogatório do arguido e na medida em que a falta de resposta ou a sua falsidade pode fazer incorrer o arguido em responsabilidade penal.
A situação aqui em causa é substancialmente diferente da que foi apreciada no Acórdão 695/95, deste Tribunal (in Diário da República, 2.ª série, de 24 de Abril de 1996). Neste caso, o que se questionava era a legitimidade da obrigação de prestar declarações sobre os seus antecedentes criminais do arguido, em plena audiência, sob a cominação de responsabilização penal, norma esta que aí se considerou violar o princípio das garantias de defesa bem como o princípio da presunção de inocência do arguido.
No caso dos autos, trata-se de idênticas perguntas ao arguido, no momento do seu primeiro interrogatório judicial.
O arguido detido que não deva ser julgado em processo sumário é interrogado pelo juiz de instrução dentro de quarenta e duas horas após a detenção, sendo o interrogatório feito exclusivamente pelo juiz, com a assistência do Ministério Público e do defensor e na presença do funcionário de justiça, a menos que o detido deva ser guardado à vista. O interrogatório destina-se, fundamentalmente, a verificar se existem os requisitos justificativos da detenção, da prisão preventiva ou da substituição desta por qualquer outra medida. O arguido é primeiramente perguntado pelo seu nome, filiação, freguesia e concelho da naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, residência e número de documento oficial que permita a sua identificação (n.os 1, 2 e 3 do artigo 141.º do CPP).
Estabelecida a identificação do arguido, é-lhe perguntado se já alguma vez esteve preso, quando e porquê e se foi ou não condenado e por que crimes, devendo o juiz proceder à advertência de que a falta de resposta ou a resposta com falsidade às perguntas obrigatórias (identificação e antecedentes criminais) lhe pode acarretar responsabilidade penal (parte final do n.º 3 do artigo 141.º do CPP).
Gozando o arguido do direito ao silêncio não só quanto aos factos que lhe forem imputados como também quanto ao conteúdo das declarações que sobre eles prestar, pode esta obrigatoriedade de responder às perguntas sobre a identificação e sobre os antecedentes criminais feitas nesta fase processual violar tal direito?
A resposta não pode deixar de ser negativa.
Em primeiro lugar, não pode aqui afirmar-se a violação da presunção de inocência do arguido: não se trata agora de utilizar as declarações deste como meio que pode influenciar a prova, o que sempre poderia afectar a sua dignidade pessoal, que o processo penal tem sempre de preservar, mas tão somente de recolher elementos indispensáveis sobre a situação criminal do arguido, uma vez que o processo não está ainda em condições de ter adquirido tais elementos, na sua forma oficial, isto é, através da requisição do respectivo certificado de registo criminal.
Com efeito, após o primeiro interrogatório judicial do arguido, se o processo tiver de continuar, o juiz tem de tomar uma decisão sobre as medidas de coacção que deverá impor ao arguido e, para tomar tal decisão, é fundamental saber quais são os seus antecedentes criminais, uma vez que o conhecimento destes não pode deixar de relevar para a escolha da adequada medida de coacção processual (neste sentido, veja-se Figueiredo Dias, 'Direito penal português - As consequências jurídicas do crime', § 1019).
Não se trata aqui de qualquer violação do direito ao silêncio do arguido, o qual, por força da lei, se reporta essencialmente aos factos que lhe forem imputados, mas antes de habilitar o juiz do primeiro interrogatório, pelo único meio nesse momento possível, com todos os elementos respeitantes ao arguido, necessários e indispensáveis para, considerados os pressupostos das medidas de coacção (os pericula libertati) e os princípios que regem a sua aplicação em cada caso concreto (da adequação e da proporcionalidade), definir pela forma mais correcta a sua situação processual.
Acresce que, como refere o Ministério Público nas suas alegações, esta situação - imposição de declarações ao arguido sobre os seus antecedentes criminais em primeiro interrogatório - é substancialmente diferente da contemplada no n.º 2 do artigo 342.º do CPP, que o tribunal já julgou inconstitucional e que o legislador decidiu revogar pelo Decreto-Lei 317/95, de 28 de Novembro.
De facto, a autorização legislativa para se proceder a esta revogação assentou no entendimento de que a indagação em audiência pública dos antecedentes criminais do arguido atenta contra a sua dignidade e contra as suas garantias de defesa constitucionais [alínea gg) do artigo 3.º da Lei 90-B/[9]5, de 1 de Setembro]. Ora, se o legislador entendesse que a imposição de idênticas declarações ao arguido no primeiro interrogatório também contendia com a sua dignidade e com as respectivas garantias de defesa, não deixaria de proceder à revogação da norma que prevê tal imposição simultaneamente com a da norma do n.º 2 do artigo 342.º do CPP, o que não fez.
Como se referiu, não só as circunstâncias factuais são diferentes (o primeiro interrogatório decorre apenas perante o juiz, o Ministério Público, o defensor do arguido e o funcionário judicial, não sendo, portanto, uma 'audiência pública'), como também as finalidades são diferentes: a audiência de julgamento destina-se à discussão e prova pública dos factos de que o arguido é acusado e decorre perante quem tem que decidir os factos e fazer a sua subsunção ao direito; pelo contrário, o primeiro interrogatório judicial destina-se essencialmente a que o arguido seja informado dos direitos que lhe assistem (n.º 4 do artigo 141.º) e a que lhe sejam formalmente comunicados os factos que lhe são imputados. Este interrogatório apresenta-se como fortemente protector do arguido e realiza claramente os seus direitos de defesa: só pode ser interrogado pelo juiz (nem o Ministério Público nem o seu defensor podem fazer perguntas, mas apenas arguir nulidades), devendo ser expressamente advertido do direito que lhe assiste de não prestar declarações, goza do direito ao silêncio sobre tudo quanto o possa inculpar. Não poderá aqui afirmar-se que as declarações sobre os antecedentes criminais o transformem de sujeito em objecto do processo.
Assim, a cominação de uma sanção (a da responsabilização pelo crime de desobediência ou de falsas declarações) para a violação deste dever de responder às perguntas sobre os antecedentes criminais, em primeiro interrogatório judicial, e de lhes responder com verdade não representa, neste caso, uma violação do princípio da necessidade da pena. De facto, em regra não será possível obter por outros modos, institucionalmente válidos, no momento em que tal informação é necessária, elementos sobre tais antecedentes. Por outro lado, a norma apenas estabelece que a falta de resposta ou a falsidade da mesma pode fazer incorrer o arguido em responsabilidade penal, pelo que sempre se terá de demonstrar que o arguido, ao fazer tais declarações, agiu culposamente.
Não sendo possível no momento em que se procede ao primeiro interrogatório judicial do arguido o conhecimento dos seus antecedentes criminais pelos meios institucionais vigentes, a imposição, nesse interrogatório, do dever de responder e de o fazer com verdade, sob a cominação de, não o fazendo ou de, respondendo, dar respostas falsas, incorrer em responsabilidade penal não viola nem o princípio das garantias de defesa nem o princípio da presunção de inocência do arguido, constantes do artigo 32.º da Constituição, nem o princípio da necessidade da pena que se manifesta no artigo 18.º, n.º 2, também da Constituição.
[...]".
13 - Tal como se entendeu no Acórdão 372/98, de 13 de Maio, acabado de transcrever, entende-se que também a interpretação normativa ora em apreciação não é susceptível de afrontar as garantias da defesa e os princípios da presunção de inocência e do acusatório, como sustenta o recorrente.
Na verdade - e tomando em consideração que está em causa um interrogatório realizado fora da audiência de julgamento -, "[...] não se trata [...] de utilizar as declarações deste [do arguido] como meio que pode influenciar a prova, o que sempre poderia afectar a sua dignidade pessoal, que o processo penal tem sempre de preservar, mas tão somente de recolher elementos indispensáveis sobre a situação criminal do arguido [...]"; por outro lado, "não se trata aqui de qualquer violação do direito ao silêncio do arguido, o qual, por força da lei, se reporta essencialmente aos factos que lhe forem imputados"; em terceiro lugar, no interrogatório perante um órgão de polícia criminal não há lugar a uma "indagação em audiência pública dos antecedentes criminais do arguido [susceptível de atentar] contra a sua dignidade e contra as suas garantias de defesa constitucionais".
Não valem portanto - aqui ou melhor, não valem manifestamente, quer quando se trate do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, quer quando o interrogatório seja realizado, durante a fase do inquérito, perante órgão de polícia criminal - as razões que justificaram o juízo de inconstitucionalidade do artigo 342.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (na sua redacção originária, anterior à do Decreto-Lei 317/95, de 28 de Novembro), constante dos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 695/95, de 5 de Dezembro, e 619/98, de 3 de Novembro (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Não vale, nomeadamente, a razão, invocada neste último aresto, segundo a qual "a obrigatoriedade de declarar, no início da audiência de julgamento, os antecedentes criminais do arguido e, bem assim, informar sobre processos pendentes implica a transformação do arguido de sujeito em objecto do processo" razão que terá porventura contribuído para a eliminação daquele preceito do ordenamento jurídico português (sobre essas razões, Catarina Veiga, "Considerações sobre a relevância dos antecedentes criminais do arguido no processo penal", Almedina, 2000, pp. 46-50).
14 - No entanto, e como já se referiu, a interpretação normativa que constitui o objecto do presente recurso apresenta uma particularidade relativamente àquela que se apreciou no acima transcrito Acórdão 372/98, de 13 de Maio: é que tal interpretação não se refere a um interrogatório ao qual deva seguir-se uma tomada de decisão, pela entidade que inquiriu, acerca da aplicação, ao arguido, de uma medida de coacção diversa do termo de identidade e residência.
Assim sendo, não pode afirmar-se, perante o caso em análise, que "para tomar tal decisão, é fundamental saber quais são os seus [do arguido] antecedentes criminais, uma vez que o conhecimento destes não pode deixar de relevar para a escolha da adequada medida de coacção processual".
Em suma: a presente questão de constitucionalidade equaciona-se de forma diferente daquela em que o foi a questão apreciada no Acórdão 372/98, de 13 de Maio, pois que a violação do princípio da necessidade da pena (ou do princípio da proporcionalidade, como quer o recorrente) não pode ser negada com o argumento que se acabou de apontar.
Importa, todavia, verificar se a imposição, ao arguido, do dever de prestar declarações acerca dos seus antecedentes criminais perante o órgão de polícia criminal que o interroga na fase do inquérito pode ter alguma outra utilidade para a realização da justiça (diversa da que se traduz em possibilitar, a esse órgão, uma tomada de decisão sobre a medida de coacção a aplicar), pois que, se assim for, é de excluir a desproporcionalidade (ou violação do princípio da necessidade da pena) da interpretação normativa segundo a qual, no interrogatório feito por órgão de polícia criminal durante o inquérito, o arguido tem que responder com verdade à matéria dos seus antecedentes criminais, sob pena de cometer um crime de falsas declarações.
E a resposta é, adiante-se já, afirmativa.
Na verdade, não tendo embora competência para aplicar medida de coacção diversa do termo de identidade e residência, aos órgãos de polícia criminal compete "coadjuvar as autoridades judiciárias com vista à realização das finalidades do processo" (cf. o artigo 55.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Uma dessas autoridades judiciárias é o Ministério Público [artigo 1.º, n.º 1, alínea b), do mesmo Código], a quem incumbe dirigir o inquérito [artigo 53.º, n.º 2, alínea b)] e, particularmente, requerer ao juiz a aplicação de medida de coacção diversa do termo de identidade e residência (artigo 194.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
A aplicação dessa medida de coacção não tem necessariamente lugar no acto do primeiro interrogatório judicial, como é óbvio e, aliás, decorre do artigo 194.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Assim sendo, pode perfeitamente suceder que a informação prestada pelo arguido, durante o interrogatório perante um órgão de polícia criminal, acerca dos seus antecedentes criminais - informação essa que naturalmente chegará ao Ministério Público, atenta a sua função de direcção do inquérito -, releve para a tomada de decisão, pelo Ministério Público, de requerer ao juiz a aplicação de uma medida de coacção.
Poder-se-á objectar, dizendo que, aquando da tomada de uma decisão desse teor pelo Ministério Público, já estará junto ao processo o certificado do registo criminal do arguido (cf. artigo 274.º do Código de Processo Penal), pelo que a informação, dada pelo próprio arguido, acerca dos seus antecedentes criminais, redundará numa duplicação de dados sobre a mesma matéria, sendo consequentemente inútil para a tomada de qualquer decisão pelo Ministério Público.
Esta objecção, porém, não procede. Com efeito, embora os órgãos de polícia criminal e os magistrados do Ministério Público possam aceder à informação sobre identificação criminal nos termos do disposto no artigo 7.º, alíneas a) e b), da Lei 57/98, de 18 de Agosto (relativa à organização e funcionamento da identificação criminal), nomeadamente através da requisição de um certificado do registo criminal contendo, salvo a informação cancelada ao abrigo do artigo 15.º, a transcrição integral do registo criminal (cf. o artigo 10.º, n.º 1, da mesma lei; cf., ainda, o artigo 9.º do Decreto-Lei 381/98, de 27 de Novembro, que define o regime jurídico de identificação criminal e contumazes), a verdade é que nem sempre essa informação é disponibilizada imediatamente e pode não estar actualizada.
Essa possibilidade de não disponibilização imediata é reconhecida na própria decisão recorrida (supra, 4) e, embora resulte do artigo 9.º, n.º 4, da Lei 57/98, de 18 de Agosto, a possibilidade inversa - determina este preceito que "a emissão de certificados do registo criminal pode processar-se automaticamente em terminais de computador colocados nos tribunais ou em instalações de outras entidades referidas no artigo 7.º, com garantia do controlo e segurança da transmissão dos dados" -, o certo é que, na prática e por enquanto, a disponibilização da informação sobre os antecedentes criminais tem implicado a articulação entre serviços e, como tal, alguma demora.
Mas, mesmo que a informação seja disponibilizada imediatamente pelos serviços de identificação criminal, aos quais incumbe assegurar a prossecução das atribuições definidas por lei em matéria de registo criminal [cf. o artigo 2.º, alínea a), do Decreto-Lei 381/98, de 27 de Novembro], é da natureza do registo a susceptibilidade da sua actualização constante. Pode, assim, suceder que, entre a data da emissão do certificado do registo criminal e a data em que o arguido presta declarações sobre os seus antecedentes criminais ocorra um facto sujeito a registo, do qual o órgão de polícia criminal ou o Ministério Público só possa ter conhecimento através das próprias declarações do arguido; pode, também, suceder que, quando o certificado seja emitido, os dados constantes do registo já estejam desactualizados, por não ter ainda ocorrido a comunicação, aos serviços de identificação criminal, de certo facto sujeito a registo (sobre esta comunicação, cf. os artigos 4.º a 8.º do Decreto-Lei 381/98, de 27 de Novembro).
Não é, assim, inútil para a realização da justiça, nomeadamente para o efeito da tomada de decisão, pelo Ministério Público, de requerer a aplicação de medida de coacção diversa do termo de identidade e residência, a imposição, ao arguido, no interrogatório feito por órgão de polícia criminal durante o inquérito, do dever de responder com verdade à matéria dos seus antecedentes criminais, sob pena de cometer um crime de falsas declarações. Com efeito, sendo possível que essa informação não seja imediatamente obtida por outras vias e, além disso, que a informação obtida por outras vias, atendendo à própria natureza do registo, não esteja actualizada à data da tomada de decisão, pelo Ministério Público, de requerer (ou não requerer) a aplicação de certa medida de coacção, há ainda um bem jurídico a tutelar - a realização da justiça -, quando se estabelece uma imposição desse teor. Não é, como tal, violado o princípio da proporcionalidade ou o da necessidade da pena.
III
15 - Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao presente recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2007. - Maria Helena Brito - Carlos Pamplona de Oliveira - Maria João Antunes - Rui Manuel Moura Ramos (com a declaração de que acompanho a conclusão a que se chegou no n.º 10.2 uma vez que, não tendo o recorrente impugnado o despacho que fez a delimitação do objecto do recurso, esta transitou em julgado no processo; deste modo, conheceria da violação do princípio da tipicidade da lei penal). Artur Maurício.