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Acórdão 116/2007, de 23 de Abril

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Sumário

Julga inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 428.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1.ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2.ª instância se limite a afirmar que os dados objectivos indicados na fundamentação da sentença objecto de recurso foram colhidos na prova produzida, transcrita nos autos

Texto do documento

Acórdão 116/2007

Processo 522/06

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - António Carlos Martins de Abreu foi condenado por sentença do 2.º Juízo do Tribunal da Comarca de Ílhavo de 13 de Junho De 2005, a fl. 167, como autor material de um crime de ofensas à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de Euro 15, perfazendo a quantia de Euro 1500, e ainda a pagar à assistente Dina Maria Silva Baptista Abreu a indemnização de Euro 500.

Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por Acórdão de 15 de Março de 2006, a fl. 269, negou provimento ao recurso.

Afirmou-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra o seguinte:

"Por outro lado, também não tem fundamento a censura da factualidade dada como provada. A convicção do tribunal não tem de coincidir com a do recorrente e, estando, como está, a sentença fundamentada, indicando-se donde o tribunal retirou os factos, haverá este Tribunal de, desde logo, verificar se da prova transcrita se pode concluir que os dados objectivos indicados na fundamentação da sentença foram colhidos da prova produzida: feito o cotejo responde-se afirmativamente.

Ora, vem sendo decidido nesta Relação, em matéria de formação da convicção, como consta, entre muitos, no Acórdão, publicado em www.trc.pt, n.º 05261, com o seguinte sumário:

I - O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formulação lógico-intuitiva.

II - Na formação da convicção haverá de ter em conta o seguinte:

2.1 - A recolha de elementos - dados objectivos - sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença dá-se com a produção da prova em audiência;

2.2 - Sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal, que é livre - artigo 127.º do Código de Processo Penal - mas não arbitrária, porque motivável e controlável, condicionada pelo princípio de persecução da verdade material;

2.3 - A liberdade da convicção aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana.

III - A convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis - como a intuição.

IV - Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).

V - Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a mediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).

VI - A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção como sejam:

VII - O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção - princípios estruturais; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.

VIII - A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (artigo 206.º) e, consequentemente, o Código de Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (artigo 321.º); publicidade essa que se estende a todo o processo - a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (artigo 86.º) querendo-se que o público assista [artigo 86.º, alínea a)]; que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos actos [artigo 86.º, alínea b)]; que se consultem os autos, se obtenha cópias, extractos e certidões [artigo 86.º, alínea c)]. Há um controlo comunitário quer da comunidade jurídica quer da social para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade.

IX - A oralidade da audiência que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (artigo 96.º do Código de Processo Penal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções da voz, por exemplo:

X - A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal como que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão. É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção, à utilização, à valoração e credibilidade da prova.

XI - A censura da forma de formação da convicção do tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.

XII - Doutra forma, como se faz aqui neste recurso, pretende-se uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão.

Deste modo é infundamentado o recurso."

2 - Novamente inconformado, veio António Carlos Martins de Abreu interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos seguintes:

"1 - O presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro [...]

2 - Pretende ver-se apreciada a constitucionalidade da norma constante do artigo 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação seguida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, segundo a qual apreciando o tribunal de 1.ª instância livremente a prova que perante ele é produzida (cf. artigo 127.º do Código de Processo Penal), o tribunal de recurso apenas poderá/deverá sindicar a matéria de facto que aquele considerou provada quando o mesmo (tribunal de 1.ª instância) haja violado qualquer dos passos para a formação da sua convicção, designadamente quando não existam os dados objectivos que se apontam na motivação, quando se hajam violado os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou quando não tenha existido liberdade na formação da convicção.

3 - Como a interpreta o douto acórdão proferido nestes autos, a norma do artigo 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal viola os artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

4 - Tal norma, onde se estipula que as relações conhecem de facto e de direito, na mencionada interpretação, viola os ditos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, uma vez que cerceia de forma drástica, grosseira e intolerável as garantias de defesa do arguido, restringindo de maneira insuportável o núcleo essencial do seu direito ao recurso em matéria de facto, violando de igual modo a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição, também nesta matéria.

5 - Não se conformando com a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância, dela interpôs o arguido pertinente recurso, impugnando, ao abrigo e nos termos do disposto no artigo 412.º, n.os 1, 3 e 4, do Código de Processo Penal, a matéria de facto por aquele considerada provada, especificando os pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, as provas que impunham decisão diversa e aquelas que deveriam ser renovadas, fazendo a necessária referência aos suportes técnicos, nos termos do n.º 4 da citada norma legal, uma vez que a prova havia sido gravada.

6 - Admitido tal recurso, foi ordenada a transcrição da prova (tendo, aliás, o recorrente suportado os correspondentes custos) e subiram os autos ao Tribunal da Relação de Coimbra.

7 - Aqui, e para surpresa do recorrente, negou-se o douto tribunal de recurso a sindicar os pontos da matéria de facto por si impugnados (!) sob pretexto de que, valendo, em matéria de prova (e em processo penal), o princípio da livre apreciação da prova (cf. artigo 127.º do Código de Processo Penal), e sendo a audiência de julgamento regida pelos princípios da publicidade, oralidade e imediação, apenas lho caberia fazer se o tribunal de 1.ª instância tivesse violado qualquer dos passos para a formação da sua convicção, designadamente se não existissem os dados objectivos apontados na motivação, se tivesse violado os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou se não tivesse formado livremente a sua convicção, alegando não poder a censura da forma de formação da convicção do tribunal a quo 'assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova' (?!).

8 - Esta questão - a possibilidade/obrigatoriedade de os tribunais de relação conhecerem tanto da matéria de direito como da matéria de facto - encontra-se regulada na disposição legal objecto do presente recurso (o artigo 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), para a qual remete necessariamente o acórdão recorrido (pese embora ali não se identifique expressamente o artigo da lei a que se reporta).

9 - Esta norma legal, na interpretação que dela faz o acórdão recorrido, limita de forma insuportável o núcleo essencial do direito ao recurso em matéria de facto para Tribunal da Relação, bem como a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição também em matéria de facto, deturpando mesmo, infundada e insustentavelmente, a ratio daquela norma legal, defraudando as expectativas dos recorrentes.

10 - A questão de constitucionalidade é suscitada no presente requerimento ao abrigo da uniforme jurisprudência do Tribunal Constitucional que excepcionalmente admite o recurso, dispensando o interessado de a ter suscitado durante o processo, até à decisão de que se recorre, porquanto se afigura não lhe ser exigível que antevisse a possibilidade de aplicação daquela norma ao concreto de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão (da inconstitucionalidade) antes da decisão.

11 - O recorrente não dispôs de qualquer oportunidade processual para suscitar anteriormente a inconstitucionalidade aqui em causa, quer pela forma inesperada como a questão surge no acórdão recorrido, quer pela forma ainda mais inesperada como ali é tratada.

12 - Atento o disposto no artigo 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (conjugado, aliás, com o disposto no artigo 412.º, n.os 1, 3 e 4, do mesmo diploma legal), era impossível ao recorrente prever ou admitir, sequer - tal como a qualquer pessoa com normal discernimento -, que com os aludidos fundamentos - insólitos e imprevisíveis - o Tribunal da Relação se abstivesse de sindicar a matéria de facto impugnada em sede de recurso."

O recurso foi admitido por decisão que não vincula este Tribunal (n.º 3 do artigo 76.º da Lei 28/82).

3 - Notificadas para o efeito, as partes apresentaram alegações, que o recorrente concluiu da seguinte forma:

"1.ª Não se conformando com a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância, que o condenava como autor material de um crime de ofensas à integridade física simples, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de Euro 15, dela interpôs o ora apresentante recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, impugnando na sua motivação, ao abrigo e nos termos do disposto no artigo 412.º, n.os 1, 3 e 4, do Código de Processo Penal, a matéria de facto por aquele considerada provada, especificando os pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, as provas que impunham decisão diversa e aquelas que deveriam ser renovadas, fazendo a necessária referência aos suportes técnicos, nos termos do n.º 4 da citada norma legal, uma vez que a prova havia sido gravada.

2.ª Admitido tal recurso, foi ordenada a transcrição da prova (tendo, aliás, o recorrente suportado os correspondentes custos) e subiram os autos àquele Tribunal da Relação.

3.ª Aqui, e para surpresa do recorrente, negou-se o douto tribunal de recurso a sindicar os pontos da matéria de facto por si impugnados, decidindo que, valendo, em matéria de prova (e em processo penal), o princípio da livre apreciação da prova (cf. artigo 127.º do Código de Processo Penal), e sendo a audiência de julgamento regida pelos princípios da publicidade, oralidade e imediação, apenas lho caberia caso o tribunal de 1.ª instância tivesse violado qualquer dos passos para a formação da sua convicção.

4.ª Designadamente caso não existissem os dados objectivos apontados na motivação, caso tivesse violado os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou caso não tivesse formado livremente a sua convicção, alegando não poder a censura da forma de formação da convicção do Tribunal a quo 'assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação da convicção, isto é, na valoração da prova' [...]

Ora,

5.ª A norma do artigo 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal - norma onde se estipula que as relações conhecem de facto e de direito, e para a qual remete necessariamente o acórdão recorrido - viola, na interpretação que dela faz o Tribunal da Relação de Coimbra, as disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Na verdade,

6.ª Tal norma viola os ditos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, uma vez que cerceia de forma drástica, grosseira e intolerável as garantias de defesa do arguido, restringindo de maneira insuportável o núcleo essencial do seu direito ao recurso em matéria de facto para o Tribunal da Relação, violando de igual modo a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição, também nesta matéria, deturpando o mesmo, infundada e insustentavelmente, a ratio e até a letra daquela norma legal, defraudando as expectativas dos recorrentes e, porque não dizê-lo, a vontade expressa do legislador."

O Ministério Público apresentou as suas alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:

"1 - Não configurando a decisão recorrida uma tomada de posição insólita ou inesperada, não estava o recorrente dispensado do ónus de ter suscitado a questão de inconstitucionalidade de forma adequada no processo, perante o tribunal que a proferiu, de modo a este estar obrigado a dela conhecer, nos termos do artigo 72.º, n.º 2, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, motivo pelo qual, não o tendo feito, não deverá conhecer-se do recurso.

2 - A não entender-se assim, deverá o recurso improceder, uma vez que a interpretação acolhida do artigo 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não viola o núcleo essencial do direito ao recurso, não padecendo de qualquer inconstitucionalidade."

Notificado para se pronunciar sobre o obstáculo ao conhecimento do recurso suscitado pelo Ministério Público, o recorrente veio, em síntese, reiterar que não era razoável exigir-lhe que antecipasse a interpretação com que o Tribunal da Relação de Coimbra veio aplicar o n.º 1 do artigo 428.º do Código de Processo Penal.

4 - Cumpre começar por determinar se o Tribunal Constitucional pode conhecer do recurso, nomeadamente por ocorrer motivo suficiente para dispensar o recorrente do ónus de suscitar a inconstitucionalidade "durante o processo" [artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei 28/82], ou seja, "perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela recorrer" (n.º 2 do artigo 72.º da mesma lei).

Conforme o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recorrente só pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade "durante o processo" nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em momento subsequente (cf., a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal com os n.os 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º vol., pp. 497 e 663, e no Diário da República, 2.ª série, de 28 de Maio de 1994).

Ora, no caso, o Ministério Público sustentou que a interpretação perfilhada pelo acórdão recorrido para o n.º 1 do artigo 428.º do Código de Processo Penal, e que, nas alegações, descreve como tendo sido a de que "a competência dos Tribunais da Relação nos recursos interpostos que versem matéria de facto não pode sobrepor-se e desrespeitar o princípio da livre apreciação da prova concretizado no julgamento da 1.ª instância e sujeito aos princípios da oralidade, imediação, contraditório e publicidade", "é a interpretação corrente na nossa jurisprudência, embora, eventualmente, com formulações não integralmente coincidentes".

O n.º 1 do artigo 428.º do Código de Processo Penal tem a seguinte redacção:

"1 - As relações conhecem de facto e de direito."

Como se viu, o acórdão recorrido fez a transcrição do sumário de um outro acórdão do mesmo Tribunal sobre o significado do julgamento da matéria de facto pelo tribunal de 1.ª instância, e, embora não explicitamente, sobre o âmbito do recurso de uma decisão sobre tal matéria de facto. Nesse sumário chama-se particularmente a atenção para a necessidade de articulação com os princípios da oralidade, da imediação e da publicidade da audiência, reconhecidamente só observáveis no julgamento em 1.ª instância e todos eles "instrumental" ou "estruturalmente" ligados ao princípio da livre apreciação da prova.

A verdade, todavia, é que, muito embora o referido acórdão perfilhe as considerações ali expendidas, limitou-se, ao julgar o recurso, a afirmar que apenas lhe cabia "verificar se da prova transcrita se pode concluir que os dados objectivos indicados na fundamentação da sentença foram colhidos da prova produzida" e que, "feito o cotejo", respondia afirmativamente.

Verifica-se, assim, que o acórdão recorrido, muito embora se não tenha afastado da jurisprudência corrente ao afirmar em abstracto como se articulam determinados princípios relativos à produção e à apreciação da prova, revelou que, na sua óptica, tal afirmação de princípio permitia um julgamento de facto resumido àquela afirmação de que o "cotejo" foi efectuado, não sendo exigível ao tribunal de recurso que demonstre que, no caso concreto, a matéria de facto dada como provada tinha efectivamente suporte objectivo na fundamentação da sentença recorrida.

Considera-se, nestes estritos limites, que não era exigível ao recorrente que antecipasse esta interpretação do n.º 1 do artigo 428.º do Código de Processo Penal, enquanto articulado com os referidos princípios.

Assim sendo, entende-se não existir qualquer impedimento ao conhecimento do recurso.

5 - Antes, porém, há que fazer duas observações, com o objectivo de clarificar o que está em causa no presente recurso.

Em primeiro lugar, a de que se trata de um caso em que as declarações oralmente produzidas em audiência foram documentadas, não havendo portanto obstáculo, deste ponto de vista, a que o tribunal de 2.ª instância conheça do recurso relativo à decisão sobre a matéria de facto (n.os 1 e 2 do artigo 428.º do Código de Processo Penal).

Em segundo lugar, a de que não está em causa qualquer renovação de prova, prevista no artigo 430.º do Código de Processo Penal, mas tão-somente uma impugnação por via de recurso.

6 - Não é naturalmente a primeira vez em que o Tribunal Constitucional é confrontado com a extensão dos poderes de conhecimento do tribunal de recurso quando o mesmo versa sobre a matéria de facto, e com a necessidade de articulação desses poderes com os princípios relativos à produção e à valoração da prova no tribunal de 1.ª instância, especialmente com o princípio da livre apreciação da prova (consagrado, para o Processo Penal, no artigo 127.º do respectivo Código e, para o Processo Civil, no artigo 655.º do Código correspondente). Princípio esse que, não esqueçamos, vale também para o tribunal de recurso.

Com efeito, e em síntese, tal articulação há-de necessariamente ter em conta que as condições de que beneficia a 1.ª instância - em particular, a oralidade e a imediação - para avaliar os depoimentos prestados no contexto de toda a prova produzida se não verificam quando o tribunal de recurso vai julgar, dispondo apenas de um registo dos depoimentos (aliás, no caso, objecto de transcrição).

Isso mesmo se salienta no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de Novembro de 2001, proferido no recurso n.º 926/2001, transcrito no acórdão recorrido.

Não é pois de considerar lesiva do direito ao recurso garantido pelo n.º 1 do artigo 32.º da Constituição uma interpretação do n.º 1 do artigo 428.º do Código de Processo Penal que, no fundo, restrinja o âmbito do julgamento do recurso da matéria de facto à verificação de que as conclusões a que chegou o tribunal de 1.ª instância são ou não racionalmente suportáveis nos meios de prova em que se baseou. É aliás esse um dos objectivos apontados à obrigatoriedade de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, como se sabe (cf., quanto à jurisprudência do Tribunal Constitucional, o Acórdão 680/98, Diário da República, 2.ª série, de 5 de Março de 1999, por exemplo).

A verdade é que essa verificação tem de ser efectuada pelo tribunal de recurso. Como escreveu no Acórdão 415/2001 (Diário da República, 2.ª série, de 30 de Novembro de 2001), embora a propósito do artigo 712.º do Código de Processo Civil, "é manifesto que, para julgar um recurso de uma decisão sobre matéria de facto, interposto com o fundamento de que tal decisão resulta de uma errada apreciação de depoimentos testemunhais em que se baseou, o tribunal de 2.ª instância tem, naturalmente, de proceder à apreciação desses depoimentos. Nessa apreciação, igualmente feita nos termos do princípio da livre apreciação da prova, mas obtida apenas a partir do registo de depoimentos que a 1.ª instância pode valorar com respeito pela regra da imediação, o tribunal de recurso forma a sua própria convicção. Essa convicção pode, naturalmente, coincidir ou não com a que se formou na 1.ª instância [...]"

O mesmo se pode dizer, como é evidente, de outros meios de prova sujeitos à regra da livre apreciação (como documentos sem valor probatório tabelado) utilizados pela 1.ª instância e apontados pelo recorrente como levando a conclusão diversa, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.

7 - Assim, tal como se considerou, no citado Acórdão 680/98, que era inconstitucional a interpretação do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal de 1987 (versão originária) segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1.ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, já que vinha, "na prática, inviabilizar o direito ao recurso ou ao duplo grau e jurisdição em matéria de facto, consagrados no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, ainda que se conceba esta garantia e aquele direito como tendo um âmbito e uma dimensão reduzidos por comparação com a matéria de direito", também agora se julga inconstitucional a norma objecto do presente recurso, por igualmente inutilizar a garantia de recurso relativo à decisão sobre a matéria de facto (nos termos e com o âmbito permitidos pela versão actual do Código de Processo Penal).

8 - Nestes termos, decide-se:

a) Julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 428.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1.ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2.ª instância se limite a afirmar que os dados objectivos indicados na fundamentação da sentença objecto de recurso foram colhidos na prova produzida, transcrita nos autos;

b) Conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformulada de acordo com o julgamento de inconstitucionalidade.

Lisboa, 16 de Fevereiro de 2007. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Vítor Gomes - Bravo Serra - Gil Galvão - Artur Maurício.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1562302.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga ao seguinte documento (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

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NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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