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Acórdão 143/2007, de 9 de Abril

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Sumário

Não julga inconstitucional a norma extraída, por interpretação conjugada, dos n.os 1, 2 e 3 do artigo 85.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, segundo a qual se o cônjuge do arrendatário pré-defunto, encabeçado na posição contratual de arrendatário por força do disposto no artigo 85.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Regime do Arrendamento Urbano, voltar a casar, a posição contratual que adquiriu não se transmite, por sua morte, a este novo cônjuge

Texto do documento

Acórdão 143/2007

Processo 711/06

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

A - Relatório

1 - Humberto de Jesus Vicente recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16 de Março de 2006 que decidiu julgar improcedente a apelação interposta pelo ora recorrente da sentença proferida pela 3.ª Secção do 3.º Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Santarém e procedente parcialmente a apelação interposta da mesma decisão de 1.ª instância por banda do A. António Rodrigues de Abreu.

2 - O ora recorrente foi demandado, em acção declarativa com processo sumário, e pedida, aí, a sua condenação a reconhecer o direito de propriedade do A. sobre a fracção autónoma, identificada nos autos, bem como a entregar-lha livre e desocupada de pessoas e bens e a pagar-lhe uma indemnização correspondente a Euro 200 mensais, desde 1 de Abril de 2001 e até à efectiva entrega do prédio.

O ora recorrente contestou alegando, além do irrelevante para a questão a decidir aqui, que o entendimento normativo nos termos do qual o arrendamento se não transmite da pessoa do cônjuge supérstite do primitivo arrendatário, para quem haja sido transmitido, para a pessoa do novo cônjuge com quem aquele venha posteriormente a tal transmissão a casar é inconstitucional.

Tal tese não foi, porém, acolhida pelo tribunal de 1.ª instância, que, após audiência de julgamento e face à materialidade de facto apurada, decretou a procedência da acção, salvo no que respeita à indemnização pedida.

Inconformado com esta decisão, o ora recorrente recorreu para o Tribunal da Relação de Évora suscitando, entre o mais, a questão da inconstitucionalidade do artigo 85.º do RAU, porquanto, no seu entender, o "colocando [esse preceito] o apelante em desvalor relativamente aos restantes herdeiros que ali figuram e que poderiam beneficiar de nova transmissão, quer mesmo quanto a quem viva em simples união de facto que mais protegido ficaria que ele próprio", o mesmo "seria violador de preceitos constitucionais [...], ofuscando o direito à igualdade, a protecção da família e o direito à habitação".

Por seu lado, recorreu, também, o A. para o referido tribunal de 2.ª instância, batendo-se pela revogação do julgado relativo à absolvição do pedido de indemnização.

O acórdão recorrido julgou improcedente a apelação do ora recorrente e parcialmente procedente a do A., condenando aquele, para além do que vinha já da decisão da 1.ª instância, a pagar ao referido senhorio o montante correspondente ao valor das rendas mensais desde Dezembro de 2001 até à efectiva entrega do prédio.

Considerou tal acórdão, na parte que importa à questão agora em apreço, que, não existindo convenção escrita que previsse a transmissão do arrendamento nos termos do artigo 1059.º, n.º 1, do Código Civil (CC), o (tipo de) contrato de arrendamento em causa estava sujeito à regra da caducidade por morte estabelecida no artigo 1051.º, alínea d), do mesmo CC, aplicável por via do disposto no artigo 66.º, n.º 1, do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro (RAU), por não estar abrangido pelas excepções contempladas no artigo 85.º, n.os 1 e 3, do mesmo RAU, e, quanto à alegada questão de constitucionalidade, que "não se descortina qualquer inconstitucionalidade (por violação dos artigos 13.º e 65.º da CRP) do preceito em apreço na interpretação que dele fez a decisão recorrida, que aqui se acompanhou, apoiada pela doutrina, e jurisprudência uniformes".

3 - É desta decisão que foi interposto o presente recurso de constitucionalidade, pretendendo o recorrente, como ficou explícito na resposta ao convite do relator efectuado no Tribunal Constitucional, que este aprecie a inconstitucionalidade da "norma extraída, por interpretação, do n.º 3 do artigo 85.º do Regime de Arrendamento Urbano, conjugadamente com o disposto nos n.os 1 e 2 do mesmo preceito [...] segundo a qual 'se o cônjuge do arrendatário pré-defunto, encabeçado na posição contratual de arrendatário por força do disposto no artigo 85.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Regime do Arrendamento Urbano, voltar a casar, a posição contratual que adquiriu não se transmite, por sua morte, a este novo cônjuge'".

4 - Alegando, no Tribunal Constitucional, assim, concluiu o recorrente o seu discurso argumentativo:

"1.º A norma extraída, por interpretação, do n.º 3 do artigo 85.º do Regime do Arrendamento Urbano, conjugadamente com o disposto nos n.os 1 e 2 do mesmo preceito, na acepção segundo a qual 'se o cônjuge do arrendatário pré-defunto, encabeçado na posição contratual de arrendatário por força do disposto no artigo 85.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Regime do Arrendamento Urbano, voltar a casar, a posição contratual que adquiriu não se transmite, por sua morte, a este novo cônjuge', viola a CRP, concretamente os princípios fundamentais da igualdade, da protecção da família e o direito à habitação;

2.º Viola, tal norma, os artigos 13.º e 65.º da CRP;

3.º Pelo que deverá a mesma ser declarada inconstitucional;

4.º E reconhecendo-se essa inconstitucionalidade, devem os autos ser remetidos à instância, para que seja aplicado o direito nessa conformidade e ser reconhecido o direito do recorrente a nova transmissão do arrendamento, por via dos mencionados preceitos constitucionais e princípios fundamentais acima elencados".

5 - A parte contrária não contra-alegou.

B - Fundamentação

6.1 - O artigo 85.º do RAU, ao qual se reporta a norma constitucionalmente impugnada, dispõe do seguinte jeito:

Artigo 85.º

Transmissão por morte

1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual se lhe sobreviver:

a) Cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto;

b) Descendente com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano;

c) Pessoa que com ele viva em união de facto há mais de dois anos, quando o arrendatário não seja casado ou esteja separado judicialmente de pessoas e bens;

d) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;

e) Afim na linha recta, nas condições referidas nas alíneas b) e c);

f) Pessoas que com ele convivessem em economia comum há mais de dois anos.

2 - Caso ao arrendatário não sobrevivam pessoas na situação prevista na alínea b) do n.º 1 ou estas não pretendam a transmissão, é equiparada ao cônjuge a pessoa que com ele convivesse em união de facto.

3 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respectivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o parente ou afim mais próximo e mais idoso.

4 - [...]"

Como decorre do relatado, o objecto do recurso é a norma extraída, por interpretação, do n.º 3 deste artigo 85.º do RAU, conjugadamente com o disposto nos seus n.os 1 e 2, segundo a qual "se o cônjuge do arrendatário pré-defunto, encabeçado na posição contratual de arrendatário por força do disposto no artigo 85.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Regime do Arrendamento Urbano, voltar a casar, a posição contratual que adquiriu não se transmite, por sua morte, a este novo cônjuge".

O recorrente sustenta que este critério normativo viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da lei fundamental, na medida em que trata diferentemente o cônjuge que recebeu a sua posição de arrendatário do cônjuge primitivo arrendatário em relação àquele cônjuge que a recebe já da pessoa do cônjuge para quem a mesma haja sido transmitida, bem como o artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa.

6.2 - O artigo 1.º do RAU define o arrendamento urbano como "o contrato pelo qual uma das partes concede à outra o gozo temporário de um prédio urbano, no todo ou em parte, mediante retribuição".

Do próprio conceito legal resulta, pois, que a cedência ajustada entre as partes tem a natureza de uma cedência temporária: por força do contrato, o senhorio assume a obrigação de proporcionar ao arrendatário o gozo do prédio a fim de este, bem como as pessoas que a tanto sejam autorizadas por via do contrato ou da lei, o possam habitar.

Deste modo, como se diz no Acórdão 130/92, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 24 de Julho de 1992; Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º vol., p. 495, e Boletim do Ministério da Justiça, 416.º, p. 158, tendo por pano de fundo a apreciação da questão de constitucionalidade da norma constante do artigo 1051.º, n.º 1, alínea d), do Código Civil:

"Apresentando-se a satisfação da necessidade de habitação do arrendatário - e da sua família - como um dos fins essenciais do contrato de arrendamento habitacional, justifica-se que, com o falecimento do arrendatário, caduque o contrato, já que com aquele evento deixa de subsistir o motivo profundo que tinha justificado a sua celebração. Quer isto dizer que o princípio da caducidade do contrato de arrendamento urbano, por morte do arrendatário, encontra a sua razão de ser na própria essência do contrato de arrendamento e, em último termo, no direito de propriedade do senhorio que, com a caducidade do contrato, vê o seu direito de propriedade sobre o prédio desonerado do direito obrigacional ao arrendamento."

Não obstante, como se acentua no mesmo arresto:

"A lei não deixa, porém, de prever um quadro de situações em que o arrendamento para habitação não caduca por morte do arrendatário (cf. o antigo artigo 1111.º do Código Civil e, hoje, os artigos 85.º e 86.º do Regime do Arrendamento Urbano para Habitação, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro). As várias hipóteses de transmissão por morte do arrendatário visam proteger os direitos e os interesses das pessoas que viviam com aquele e que ficaram numa posição económica debilitada ou enfraquecida em consequência do falecimento do arrendatário, tais como o cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto, descendentes com menos de 1 ano de idade ou que com aquele convivessem há mais de um ano, ascendentes que com ele convivessem há mais de um ano, afins na linha recta que com o arrendatário convivessem há mais de um ano, etc.

As excepções ao princípio da caducidade do arrendamento por morte do arrendatário encontram a sua credencial constitucional não só no próprio direito à habitação do artigo 65.º mas também nos artigos 67.º e 69.º, que versam sobre o direito que a família e as crianças têm a protecção da sociedade e do Estado."

Em reforço da legitimidade constitucional da previsão legislativa de excepções ao princípio da caducidade do arrendamento por morte do arrendatário, poder-se-á, ainda, numa certa perspectiva, convocar a função social que tem sido reconhecida ao direito de propriedade (cf., entre outros, os artigos 9.º, 62.º, 81.º e 82.º da CRP; Acórdão 76/85, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º vol., p. 207; Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, t. I, p. 628, e J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed. revista, p. 332).

O artigo 85.º do RAU rege sobre as excepções ao princípio da caducidade do arrendamento por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual que está assumido como regra geral para os contratos de locação, em cujo tipo o do arrendamento se insere no artigo 1051.º, n.º 1, alínea d), do Código Civil.

Um dos casos de não caducidade do arrendamento previstos naquele artigo 85.º do RAU é, precisamente, o de sobreviver ao primitivo arrendatário ou àquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto [alínea a)].

Como se viu, a decisão recorrida, interpretando este preceito, conjugadamente com o disposto nos n.os 2 e 3 do mesmo artigo, entendeu, abonando-se, na doutrina que cita, que a transmissão do arrendamento entre cônjuges só opera em favor do cônjuge do primitivo arrendatário, ou seja, apenas em um grau de transmissão e não também em favor do cônjuge sobrevivo que casou com o cônjuge para quem o arrendamento fora já transmitido.

Ofenderá este regime de transmissão do arrendamento entre cônjuges apenas em um grau o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição?

Reflectindo sobre o estado actual do problema da igualdade e com ponderação da doutrina e jurisprudência nacionais e estrangeiras, afirmou-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2003 (publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 17 de Junho de 2003), recuperando, em diversos passos do seu discurso, abundante argumentação de jurisprudência anterior:

"Princípio estruturante do Estado de direito democrático e do sistema constitucional global (cf., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 125), o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cf. ob. cit., p. 129), o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos cidadãos e, por outro, da 'atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (artigo 18.º, n.º 1, da Constituição)' (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/90, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990).

[...]

1.2 - O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, 'razoável, racional e objectivamente fundadas', sob pena de, assim não sucedendo, 'estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes', no ponderar do citado Acórdão 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, p. 299).

Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como 'princípio negativo de controlo' ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador - cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 127, e, por exemplo, os Acórdãos n.º 157/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 26 de Julho de 1988, e os já citados n.os 330/93 e 335/94 - sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial (tertium comparationis). A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminado o arbítrio (cf., a este propósito, Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, p. 327, Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, p. 425, e Acórdão 330/93).

Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei, implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cf. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, p. 381; Alves Correia, ob. cit., p. 402), o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da 'diferença', de modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação.

[...]

[...] O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da igualdade impõe que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da mesma maneira e que situações pertencentes a categorias essencialmente diferentes tenham tratamento também diferente. Admitem-se, por conseguinte, diferenciações de tratamento desde que fundamentadas à luz dos próprios critérios axiológicos constitucionais. A igualdade só proíbe discriminações quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional [cf., nomeadamente, os Acórdãos n.os 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol. (1988), pp. 233 e ss., e 16.º vol. (1990), pp. 383 e segs., 395 e segs. e 411 e segs., respectivamente; cf., igualmente, na doutrina, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. IV, 2.ª ed., 1993, p. 213 e segs., Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6.ª ed., 1993, pp. 564 e 565, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1993, pp. 125 e segs.].

[...]

Assente a possibilidade de estabelecimento de diferenciações, tornar-se-á depois necessário proceder ao controlo das normas sub judicio, feito a partir do fim que visam alcançar, à luz do princípio da proibição do arbítrio (Willkürverbot) e, bem assim, de um critério de razoabilidade.

Com efeito, é a partir da descoberta da ratio da disposição em causa que se poderá avaliar se a mesma possui uma 'fundamentação razoável' (vernünftiger Grund), tal como sustentou o 'inventor' do princípio da proibição do arbítrio, Gerhard Leibholz (cf. F. Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pp. 419 e segs). Essa ideia é reiterada entre nós por Maria da Glória Ferreira Pinto: '[E]stando em causa [...] um determinado tratamento jurídico de situações, o critério que irá presidir à qualificação de tais situações como iguais ou desiguais é determinado directamente pela ratio do tratamento jurídico que se lhes pretende dar, isto é, é funcionalizado pelo fim a atingir com o referido tratamento jurídico. A ratio do tratamento jurídico é, pois, o ponto de referência último da valoração e da escolha do critério' (cf. Princípio da Igualdade: Fórmula Vazia ou Fórmula 'Carregada' de Sentido?, separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, Lisboa, 1987, p. 27). E, mais adiante, opina a mesma autora: '[O] critério valorativo que permite o juízo de qualificação da igualdade está, assim, por força da estrutura do princípio da igualdade, indissoluvelmente ligado à ratio do tratamento jurídico que o determinou. Isto não quer, contudo, dizer que a ratio do tratamento jurídico exija que seja este critério o critério concreto a adoptar e não aquele outro, para efeitos de qualificação da igualdade. O que, no fundo, exige é uma conexão entre o critério adoptado e a ratio do tratamento jurídico. Assim, se se pretender criar uma isenção ao imposto profissional, haverá obediência ao princípio da igualdade se o critério de determinação das situações que vão ficar isentas consistir na escolha de um conjunto de profissionais que se encontram menosprezados no contexto social, bem como haverá obediência ao princípio se o critério consistir na escolha de um rendimento mínimo, considerado indispensável à subsistência familiar numa determinada sociedade' (ob. cit., pp. 31-32)."

Ora, tendo em conta esta compreensão do sentido material do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP, a resposta à questão colocada acaba por depender de saber se a diferenciação entre o tratamento jurídico que é conferido ao cônjuge que sucede, na relação locatícia, ao cônjuge primitivo arrendatário, em relação ao que é dado ao cônjuge que se apresenta a "suceder" no arrendamento já em um segundo grau de transmissão, por o cônjuge arrendatário já o haver recebido por transmissão do cônjuge primitivo arrendatário, se pode considerar constitucionalmente "razoável, racional e objectivamente fundada" ou, ao invés, se deve ter por arbitrária.

A não caducidade dos arrendamentos por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual que se encontra prevista nas diversas situações recortadas no artigo 85.º do RAU não deixa de traduzir uma limitação aos poderes do proprietário do prédio de poder dispor novamente do seu gozo e, consequentemente, uma contracção ao princípio da autonomia contratual.

Em vez de poder dispor novamente do gozo do prédio, o proprietário é obrigado a que o mesmo passe a caber, por força da lei e da vontade da pessoa que se encontre na situação nela prevista, a uma outra pessoa diferente daquela com quem contratou.

Deste modo, a não caducidade traduz-se numa imposição legal de um outro contraente na posição de arrendatário.

Como é óbvio, não pode, todavia, deixar de considerar-se que uma transmissão do arrendamento para o cônjuge "em segundo grau" ou uma transmissão do arrendamento para um cônjuge por morte do cônjuge arrendatário em favor de quem já se operara uma transmissão por morte do cônjuge primitivo arrendatário é material ou substancialmente diferente quando se tenha em conta o grau de afectação da autonomia contratual e dos poderes do senhorio de poder dispor do gozo do prédio, da que ocorre quando se verifica apenas a transmissão do arrendamento do primitivo arrendatário para o respectivo cônjuge.

Quanto mais transmissões forçosas sucessivas do arrendamento fossem admitidas, mais comprimidos ficariam a autonomia contratual e os poderes de disposição do gozo do prédio e mais excluídas ou afastadas estariam elas da motivação para contratar.

Assim sendo e estando confrontado com a necessidade de conciliar os interesses contrapostos do senhorio e dos "sucessores" do primitivo arrendatário, não se pode censurar ao legislador o ter-se quedado pela não caducidade do arrendamento apenas nas situações estipuladas no referido artigo 85.º do RAU, entre as quais se conta a referente à dimensão normativa que está aqui em causa.

Existe, assim, fundamento material bastante para diferenciar a posição do cônjuge do primitivo arrendatário relativamente à do cônjuge de arrendatário que foi investido nessa posição por força de uma anterior transmissão do arrendamento.

Temos, pois, de concluir que não ocorre a violação do princípio da igualdade.

6.3 - Alega, ainda, o recorrente que a norma impugnada viola o artigo 65.º da Constituição.

Discorrendo sobre este parâmetro constitucional, a propósito da norma constante do artigo 1051.º, n.º 1, alínea d), do Código Civil, disse-se no referido Acórdão 132/92:

"9 - O artigo 65.º da Constituição dispõe como segue:

'1 - Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.

2 - Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:

a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de reordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social;

b) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução;

c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria.

3 - O Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.

4 - O Estado e as autarquias locais exercerão efectivo controlo do parque imobiliário, procederão às expropriações dos solos urbanos que se revelem necessárias e definirão o respectivo direito de utilização.'

O preceito transcrito da Constituição reconhece a todos os cidadãos o direito a uma morada decente, para si e para a sua família; uma morada que seja adequada ao número dos membros do respectivo agregado familiar, por forma a que seja preservada a intimidade de cada um deles e a privacidade da família no seu conjunto; uma morada que, além disso, permita a todos viver em ambiente fisicamente são e que ofereça os serviços básicos para a vida da família e da comunidade.

Para a efectivação de um tal direito, a Constituição comete ao Estado as seguintes tarefas:

a) 'Programar e executar uma política de habitação', devidamente articulada com uma 'adequada rede de transportes e de equipamento social';

b) 'Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações', que visem 'resolver os respectivos problemas habitacionais' e 'fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução';

c) 'Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria' [cf. artigo 65.º, n.º 2, alíneas a), b) e c)].

O Estado há-de, além disso, 'adoptar uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar' (cf. artigo 65.º, n.º 3), e, juntamente com as autarquias locais, há-de exercer um 'efectivo controlo do parque imobiliário', procedendo 'às expropriações dos solos que se revelem necessárias' e definindo 'o respectivo regime de utilização' (cf. artigo 65.º, n.º 4).

10 - O 'direito à habitação', ou seja, o direito a ter uma morada condigna como direito fundamental de natureza social, situado no capítulo II ('Direitos e deveres sociais') do título III ('Direitos e deveres económicos, sociais e culturais') da Constituição, é um direito a prestações. Ele implica determinadas acções ou prestações do Estado, as quais, como já foi salientado, são indicadas nos n.os 2 a 4 do artigo 65.º da Constituição (cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, pp. 680-682). Está-se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, e cuja efectividade está dependente da chamada 'reserva do possível' (Vorbehalt des Möglichen), em termos políticos, económicos e sociais [cf. J.J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 365, e Tomemos a Sério os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia, 1984, Coimbra, 1989, p. 26; J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 (reimpressão), Coimbra, Almedina, 1987, pp. 199 e segs. e 343 e segs.]

O direito à habitação, como um direito social que é, quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera pretensão jurídica (cf. J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 205, 209) ou, antes, como um autêntico direito subjectivo inerente ao espaço existencial do cidadão (cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 680), não confere a este um direito imediato a uma prestação efectiva já que não é directamente aplicável nem exequível por si mesmo.

O direito à habitação tem, assim, o Estado - e, igualmente, as Regiões Autónomas e os municípios - como único sujeito passivo e nunca, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios. Além disso, ele só surge depois de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo, o que significa que o cidadão só poderá exigir o seu cumprimento nas condições e nos termos definidos pela lei.

Em suma: o direito fundamental à habitação, considerando a sua natureza, não é susceptível de conferir por si mesmo, e para além do quadro das soluções legais, à pessoa residente no prédio um direito, judicialmente exercitável, de impedir a caducidade do contrato de arrendamento para habitação por morte do arrendatário.

Estas considerações são suficientes para demonstrar que o direito à habitação, condensado no artigo 65.º da lei fundamental, não é beliscado pela norma do Código Civil que consagra o princípio da caducidade do arrendamento para habitação por morte do arrendatário desde que não se verifique nenhuma das excepções previstas no artigo 1111.º daquele Código, possibilitando ao proprietário a recuperação da faculdade de gozo do prédio urbano que tinha sido cedida ainda que temporariamente - ao arrendatário, por efeito do contrato de arrendamento."

Esta fundamentação é totalmente transponível para a situação recortada pela concreta norma que está aqui em causa.

Deste modo, falece, também, este fundamento do recurso.

C - Decisão

7 - Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:

a) Não julgar inconstitucional a norma extraída, por interpretação conjugada, dos n.os 1, 2 e 3 do artigo 85.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro, segundo a qual se o cônjuge do arrendatário pré-defunto, encabeçado na posição contratual de arrendatário por força do disposto no artigo 85.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Regime do Arrendamento Urbano, voltar a casar, a posição contratual que adquiriu não se transmite, por sua morte, a este novo cônjuge;

b) Consequentemente, negar provimento ao recurso;

c) Condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 20 UC.

Lisboa, 28 de Fevereiro de 2007. - Benjamim Rodrigues - Maria Fernanda Palma - Paulo Mota Pinto - Mário José de Araújo Torres - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1558541.dre.pdf .

Ligações deste documento

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  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1990-10-15 - Decreto-Lei 321-B/90 - Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

    Aprova o regime do arrendamento urbano.

Ligações para este documento

Este documento é referido no seguinte documento (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

Aviso

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