Jurisprudência 9/2001
Processo 2026/2000 - 4.ª Secção
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
I - 1 - A Exma. Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa interpôs o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, ao abrigo do disposto no artigo 437.º, n.os 1, 2 e 4 do Código de Processo Penal, do acórdão dessa mesma relação de 23 de Fevereiro de 2000 (fls. 31 e 32), com o fundamento de que a decisão nele contida está em oposição com a constante do Acórdão da Relação de Évora de 11 de Janeiro de 2000 (junto por fotocópia certificada de fl. 10 a fl. 18), sendo que ambas as decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação e respeitam à mesma questão de direito.
Trata-se da questão de saber se em processo de contravenção laboral a extinção do procedimento penal por despenalização das condutas, decretada após o julgamento em 1.ª instância, na qual se conheceu do pedido cível, afecta ou não a parte da sentença que tenha condenado em indemnização civil, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 187.º do Código de Processo do Trabalho, e, consequentemente, de saber se o tribunal de recurso está ou não impedido de conhecer desse pedido cível.
2 - Após parecer favorável do Exmo. Magistrado do Ministério Público, foi proferido o acórdão interlocutório a fls. 42 e 43, no qual foi decidido que os arestos referidos assentam em soluções opostas, no domínio da mesma legislação sobre a mesma questão de direito, verificando-se, assim, os requisitos legais da admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, pelo que foi ordenado o prosseguimento dos autos.
3 - O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo deixou nos autos o muito bem elaborado parecer de fl. 47 a fl. 57, no qual, depois de judiciosas considerações, propõe a fixação de jurisprudência nos seguintes termos:
«A despenalização das contravenções laborais, ocorrida durante ou após o julgamento, não está abrangida na excepção da alínea b) do n.º 2 do artigo 186.º do Código de Processo do Trabalho de 1981, pelo que não impede que os autos prossigam para apreciação dos pedidos de natureza cível formulados ou que a sentença se mantenha nessa parte, nos termos do artigo 187.º, n.º 2, do mesmo Código.»
II - Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
1 - Vejamos os termos das decisões em confronto.
O acórdão recorrido - da Relação de Lisboa de 23 de Fevereiro de 2000 - decidiu que «se o pedido cível está dependente da acção penal, segue-se logicamente, que, encontrando-se despenalizada a transgressão, com a extinção do respectivo procedimento, está este tribunal impedido, também, de conhecer dele, ficando na totalidade prejudicada a apreciação do objecto do recurso».
Por seu turno, o acórdão fundamento - da Relação de Évora de 11 de Janeiro de 2000 - entendeu que a extinção do procedimento criminal posterior ao julgamento em 1.ª instância «não afecta a parte da decisão que tenha condenado em indemnização cível, pois que se trata de um efeito de natureza não penal cuja sorte não é afectada pelo desaparecimento dos efeitos de natureza penal contidos na condenação».
Em ambos os casos se estava perante violações de cláusulas de convenções colectivas de trabalho, puníveis com multa, nos termos do artigo 44.º, n.os 1 e 7, do Decreto-Lei 519-C/79, de 29 de Dezembro, e, portanto, perante infracções de natureza contravencional, que depois da entrada em vigor da Lei 118/99, de 11 de Agosto (para vigorar em 1 de Dezembro de 1999 - artigo 34.º), passaram a ter a natureza de contra-ordenações laborais, puníveis com coimas.
Na verdade, o artigo 30.º daquela Lei 118/99 alterou a redacção do artigo 44.º do Decreto-Lei 519-C/79, precisamente para qualificar como contra-ordenações as infracções às normas de instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho passíveis de coimas, onde antes eram punidas com multa e, pacificamente, consideradas contravenções.
2 - O acórdão recorrido arranca do entendimento de que o pedido cível se encontra dependente da acção penal e, por isso, acompanhará a sorte desta.
Ora, esta dependência carece de ser melhor analisada e compreendida, sob pena de se cair numa solução precipitada e incorrecta.
O problema tem sido estudado no âmbito do processo penal comum, onde o paralelismo não é completo, mas sempre oferecerá contributos úteis.
Por nos parecer particularmente impressivo, transcrevemos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Junho de 1999 - no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 488, p. 49 - os seguintes trechos:
«Convém começar por esclarecer que a questão da indemnização a fixar pela prática de um crime pode ser resolvida por três vias, a saber:
A via independentista: segundo a qual tais indemnizações só podem e devem ser apreciadas e resolvidas nos e pelos meios próprios, ou seja, no foro cível e recorrendo ao processo civil, sendo o expediente criminal de todo inidóneo para esse fim, visto estar vocacionado exclusivamente para o conhecimento de matérias de natureza penal. Refira-se, ainda, que neste sistema, consagrado nos países anglo-saxónicos e no Brasil, os interessados têm que utilizar obrigatoriamente o procedimento civil e o tribunal cível para se fazerem pagar de eventuais danos ocasionados pela prática do crime;
A via interdependente ou alternativa: segundo a qual ambos os procedimentos, o criminal e o civil, são idóneos para conhecer da matéria da indemnização civil decorrente do ilícito criminal. Este sistema vigora em França e na Alemanha, sendo que os interessados são livres de escolher um ou outro caminho para obterem o ressarcimento dos seus prejuízos, mantendo ambos a mesma dignidade;
A via de adesão obrigatória da acção civil à acção penal: por esta via, o direito à indemnização por perdas e danos sofridos com o ilícito criminal só pode ser exercido no próprio processo penal, enxertando-se o procedimento civil a tal destinado na estrutura do procedimento criminal em curso. Neste sistema, os interessados só podem, em princípio, obter compensação para os prejuízos havidos com o crime, 'colando-se' ao processo penal e fazendo aí desencadear um expediente com esse fim, apenas lhe sendo permitido implementar pedido em separado nos casos previstos na lei. (Sobre isto, v. Código de Processo Penal, de Leal Henriques, Simas Santos e Borges de Pinho, vol. I, p. 331.)
É evidente que, perante a redacção do artigo 71.º do Código de Processo Penal, o regime imposto é o de adesão obrigatória, isto fundamentalmente por duas razões essenciais:
A primeira deriva do tom imperativo utilizado no próprio artigo 71.º citado: 'o pedido [...] é deduzido'.
A segunda resulta de que o preceito apenas admite que o pedido de indemnização civil com base num crime só possa ser deduzido em separado nos casos previstos na lei, ou seja, nos casos em que se refere o artigo 72.º do mesmo diploma.»
Fazendo agora a análise do direito processual penal laboral, logo nos apercebemos de que aqui não vigora o princípio da adesão obrigatória, mas antes o princípio da interdependência ou alternativa.
Na verdade o artigo 186.º do Código de Processo do Trabalho de 1981 (aqui aplicável) estabelece:
«1 - Não tendo sido proposta acção cível, o pedido respeitante à obrigação cujo cumprimento constitui a infracção é formulado no respectivo processo penal.
2 - Exceptuam-se do disposto no número anterior:
a) As acções cíveis emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais;
b) Os casos em que a acção penal se extinguir antes do julgamento;
c) Os casos em que o Ministério Público não tiver exercido a acção penal dentro de três meses a contar da denúncia;
d) Os casos em que o processo penal estiver sem andamento durante três meses;
e) Os casos em que o ofendido prefira deduzir os seus direitos em processo cível.
3 - Para os efeitos da alínea e) do n.º 2, deve o ofendido, a solicitação do Ministério Público, declarar por escrito que opta pela acção cível.
4 - Tendo sido proposta a acção prevista no n.º 1 e nos casos referidos no n.º 2, o pedido só pode ser formulado em processo cível comum.»
E no artigo 187.º preceitua-se:
«1 - O Ministério Público deve formular o pedido cível na acusação ou despacho equivalente quando a ele tenham direito pessoas que lhe pertença patrocinar ou representar.
2 - O juiz, no caso de condenação, como no de absolvição, arbitrará ao lesado as quantias aplicáveis, ainda que isso não tenha sido requerido.»
Este regime foi profundamente alterado no Código de Processo do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei 480/99, de 9 de Novembro (para entrar em vigor em 1 de Janeiro de 2000 - artigo 3.º - e, portanto, não aplicável no caso dos autos), que logo no seu preâmbulo enuncia:
«Reforça-se igualmente o princípio da não obrigatoriedade da formulação do pedido cível na acção penal, já timidamente consagrado na versão actual.
E, na sequência de tal reforço, elimina-se a obrigatoriedade de o Ministério Público formular o pedido cível, na acusação ou despacho equivalente relativamente a pessoas cujo patrocínio ou representação lhe incumbisse, e que, implicando a sua prévia audição, desfavoreceria a celeridade, introduzindo delongas incompatíveis com a índole do processo penal, com risco, inclusive, de prescrição do respectivo procedimento; aliás, trata-se de prática que, não obstante o comando legal, vinha caindo em desuso. Do mesmo modo, em coerência com o sobredito princípio, elimina-se o princípio da oficiosidade da fixação de indemnização por perdas e danos, e, em contrapartida, e tendo sempre presente a especial natureza dos interesses em causa e a qualidade dos seus titulares, não tendo o ofendido proposto acção cível, estabelece-se a obrigatoriedade da sua notificação, juntamente com a do despacho que designa dia para julgamento, desde que a respectiva residência seja conhecida no processo, para, querendo, deduzir, por simples requerimento e sem necessidade de patrocínio judiciário, pedido cível respeitante à obrigação cujo incumprimento constitui a infracção.»
Isso mesmo consta do artigo 192.º do novo Código, que logo no seu n.º 1 estabelece o princípio geral:
«1 - Não tendo sido proposta acção cível, o pedido respeitante à obrigação cujo incumprimento constitui a infracção pode ser formulado no respectivo processo penal.»
Temos, assim, apesar das diferenças, claramente afirmado, em ambos os diplomas, o regime a que se chamou de interdependência ou alternatividade, em que pode compreender-se alguma autonomia entre as duas responsabilidades: a penal e a cível.
Deve, aliás, dizer-se que, mesmo no âmbito do direito processual penal comum, onde o princípio da adesão obrigatória resulta pacificamente do artigo 71.º do Código de Processo Penal, alguns autores sustentam a existência de autonomia entre a responsabilidade penal e a responsabilidade civil - cf. Prof. Germano Marques da Silva, em Curso de Processo Penal, vol. I, p. 79.
Precisamente porque a lei processual penal admite que, no caso de absolvição pelo crime, o tribunal condene em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado - artigo 377.º, n.º 1.
Com a exigência de que se funde na mesma causa de pedir, ou seja, que assente nos mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal, o que vem a circunscrevê-la à responsabilidade civil contratual - cf. o citado Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Janeiro de 1999.
Ora, como vimos, também o transcrito artigo 187.º do Código de Processo do Trabalho, no seu n.º 2, manda arbitrar ao lesado as quantias aplicáveis no caso de condenação, como no de absolvição.
E é aqui - no caso de absolvição - que a autonomia verdadeiramente se manifesta, revelando as duas acções distintas e autónomas na unidade formal do processo penal.
Tanto basta para sustentar a conclusão de que, extinta a acção penal por despenalização da conduta, deve o processo prosseguir para conhecimento do pedido cível, desde que a extinção não ocorra antes do julgamento, como prescreve a alínea b) do n.º 2 do artigo 186.º do Código de Processo do Trabalho, atrás transcrita.
Como bem sustenta o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, a expressão «antes do julgamento» só pode ser entendida como «início do julgamento», não tendo qualquer sentido a ideia de referir-se ao trânsito em julgado.
O Código de Processo Penal - artigo 72.º, alínea b) - já adoptou a expressão «antes de a sentença transitar em julgado» mais tarde substituída pela expressão «antes do julgamento» - Lei 59/98, de 25 de Agosto -, o que denuncia claramente o sentido da alteração, fazendo a aproximação ao regime processual laboral.
No caso dos autos, o pedido cível foi apreciado na sentença da 1.ª instância, aí obtendo condenação, mas o acórdão recorrido ordenou o arquivamento dos autos, julgando «na totalidade prejudicada a apreciação do objecto do recurso», em resultado da despenalização da contravenção, com a consequência da extinção do respectivo procedimento.
A solução encontrada tem ainda por si considerações de outra natureza, como bem refere o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto com a propositada citação do Prof. Figueiredo Dias.
São considerações de economia processual, de celeridade e também de protecção dos lesados, economicamente desfavorecidos, atendendo à natureza dos interesses em jogo, normalmente remunerações do trabalho a que, fundadamente, se atribui carácter quase alimentício e, por isso mesmo, a reclamar soluções rápidas e eficazes.
De resto, este Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão da Secção Criminal de 13 de Outubro de 1999, processo 1174/98, no âmbito do crime de emissão de cheque sem provisão, decidiu que nas situações em que a absolvição decorra da conclusão de inexistência de crime, apenas por virtude de descriminalização, o tribunal deve conhecer do pedido de indemnização civil, já que nesses casos a obrigação civil de indemnização derivou daquela emissão, facto então considerado ilícito e integrante de crime e produzindo efeitos civis que a posterior alteração da lei não prejudica.
O paralelismo é manifesto e dispensa comentários.
III - Na conformidade do que fica exposto, acorda-se no plenário da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça em:
Conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido, para que o Tribunal da Relação de Lisboa conheça do recurso na parte respeitante à indemnização cível; e
Fixar, nos termos do artigo 445.º do Código de Processo Penal, a seguinte jurisprudência:
«A despenalização das contravenções laborais, por efeito da aplicação do disposto no artigo 30.º da Lei 118/99, de 11 de Agosto, decretada depois da sentença da 1.ª instância que condenou também em indemnização cível, nos termos do n.º 2 do artigo 187.º do Código de Processo do Trabalho, não prejudica a apreciação do recurso interposto daquela sentença, na parte respeitante à indemnização cível.»
Cumpra-se o disposto no artigo 444.º do Código de Processo Penal.
Sem custas.
Lisboa, 24 de Outubro de 2001. - José António Mesquita - José Manuel Martins d'Azambuja Fonseca - Alípio Duarte Calheiros - Mário José de Araújo Torres - João Alfredo Diniz Nunes - António Manuel Pereira - Victor Manuel Pinto Ferreira Mesquita - Pedro Silvestre Nazário Emérico Soares.