Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
No âmbito do processo penal comum, com intervenção de tribunal colectivo, que correu os seus termos sob o n.º 267/02.1IDBRG, no 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Famalicão, o arguido Carlos Manuel Almeida da Silva Pereira foi condenado, por acórdão proferido em 27 de Junho de 2007, como autor material, inter alia, de um crime de abuso de confiança fiscal em relação à segurança social, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aplicável por força do disposto no artigo 107.º do mesmo diploma legal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na execução pelo período de 5 anos, sob condição de pagamento do valor das prestações tributárias em dívida e acréscimos legais em cinco prestações anuais e sucessivas de igual montante.
Na sequência de recurso interposto pelo arguido, o Tribunal da Relação do Porto, mediante acórdão proferido em 26 de Março de 2008, viria a confirmar essa condenação, excepto na parte respeitante ao período de suspensão condicionada da execução da referida pena de prisão, o qual passou a ficar fixado em 1 ano e 6 meses.
Para tanto, o Tribunal da Relação do Porto fundamentou essa alteração da seguinte forma:
«Após a prolação da decisão recorrida entraram em vigor as alterações introduzidas ao CP pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, sendo o n.º5 do artigo 50.º uma das normas alteradas, de tal modo que actualmente 'o período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano'.
Na decisão recorrida foi aplicada ao recorrente, pela prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social, a pena de 1 ano e 6 meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 5 anos, sob a condição de pagar, nesse período, as prestações em dívida e acréscimos legais.
A lei nova será aplicável se for mais favorável ao arguido - n.os 1 e 4 do artigo 2º do CP.
O período de suspensão, à luz da lei actual, é, de acordo com aquela norma, de 1 ano e 6 meses.
Este período é mais curto que o fixado na decisão recorrida, à luz da lei anterior.
Mas, por outro lado, porque a condição a que ficou subordinada a suspensão deve ser cumprida dentro do período desta, pois só assim a suspensão ficará condicionada ao pagamento, um período de suspensão mais curto significa um prazo mais curto para cumprir a condição.
Numa tal situação coloca-se a questão de saber qual a lei mais favorável ao arguido: A lei antiga que, se determina um prazo de suspensão mais alargado, também confere um prazo maior para o cumprimento da condição a que está subordinada a suspensão? Ou a lei nova, com período de suspensão substancialmente mais curto, mas também com prazo muito menor para cumprir a condição?
Mas, tendo em conta que o que há de penalizador na suspensão da pena de prisão é a possibilidade de esta ser revogada, nomeadamente pela prática de outros crimes no respectivo período, e que o não cumprimento da condição a que fica subordinada a suspensão não leva à revogação desta se não for culposo, é de concluir que nesta matéria o regime concretamente mais favorável ao arguido é aquele que determina o período de suspensão mais curto.
Deste modo, o período de suspensão da pena aplicada pelo crime de abuso de confiança contra a segurança social deve ser fixado, por aplicação da nova redacção do n.º 5 do artigo 50.º do CP, em 1 ano e 6 meses, mantendo-se a subordinação da suspensão ao pagamento, agora nesse período, do valor das prestações em dívida e acréscimos legais».
O arguido interpôs então recurso desta última decisão, insusceptível de recurso ordinário, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), dizendo apenas o seguinte no requerimento de interposição de recurso: «o Acórdão proferido ao aplicar o artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal, na versão resultante da Lei 59/2007, é inconstitucional, por ofensa do artigo 29.º, n.º 1 e 4, CRP.»
Após o recurso ter sido admitido no Tribunal da Relação do Porto, mas antes de o processo ter sido remetido para o Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou antecipadamente alegações em que esclareceu que pretendia a fiscalização concreta da constitucionalidade do «conjunto normativo formado pelas disposições conjugadas do artigo 24.º do RJIFNA e do artigo. 50.º, n.º 5, do Código Penal, na versão resultante da Lei 59/2007, se interpretado no sentido de que a segunda norma é aplicável aos factos praticados antes da sua entrada em vigor ainda que daí resulte que o prazo para o cumprimento da condição a que está sujeita a suspensão tenha de ser igual ao prazo de duração da suspensão da pena e, portanto, muito inferior ao prazo que resultaria da aplicação da lei velha».
Tendo-se considerado completado o requerimento de interposição de recurso pelas mencionadas alegações antecipadas, entendeu-se desnecessário dar cumprimento ao disposto no artigo 75.º-A, n.º 5, da LTC, no sentido do recorrente explicitar a interpretação normativa questionada, e não se vislumbrando então fundamento para não conhecer do recurso, foi determinada a produção de alegações, tendo o recorrente apresentado novas alegações com as seguintes conclusões:
«A decisão recorrida, refere que um período de suspensão menor é favorável ao arguido, considerando que quanto menor for esse período, menor é a possibilidade de revogação motivada pela prática de crimes.
É certo que a falta de cumprimento da condição só implica a revogação se for culposa e que quanto menor for o período para cumprir a condição, menor será a culpa do arguido se a não cumprir por dificuldades económicas.
Porém, o problema é que estando o arguido empenhado em cumprir, uma coisa é um prazo de 5 (cinco) anos para tal, outra bem diferente é um prazo de 1 (um) ano.
Ao ser reduzido o prazo para 1 (um) ano, pela aplicação da lei nova coloca, fica o mesmo colocado numa situação de desvantagem.
Existe, assim, uma inconstitucionalidade, por aplicação retroactiva da lei nova (50.º, n.º 5) em prejuízo efectivo do arguido.
O conjunto normativo formado pelas disposições conjugadas do artigo 24.º do RJIFNA e do 50.º, n.º 5, do Código Penal, na versão resultante da Lei 59/2007, é inconstitucional, por ofensa do artigo 29.º, n.os 1 e 4, CRP, se interpretado no sentido de que a segunda norma é aplicável aos factos praticados antes da sua entrada em vigor ainda que daí resulte que o prazo para o cumprimento da condição a que está sujeita a suspensão tenha de ser igual ao prazo de duração da suspensão da pena e, portanto, muito inferior ao prazo que resultaria da aplicação da lei velha.»
Por seu turno, o Ministério Público concluiu as suas alegações nos seguintes termos:
«O recurso de constitucionalidade não pode ter por objecto a alegada inconstitucionalidade da decisão recorrida enquanto acto de aplicação do direito, mas apenas normas - ainda que numa determinada dimensão ou interpretação - que tenham sido aplicadas como ratio decidendi do respectivo juízo decisório.
Não pode, assim, conhecer-se o objecto do recurso relativamente à norma do artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal, na actual versão, que foi aplicado de acordo com o critério normativo da aplicação do regime mais favorável.»
Por Acórdão 558/2008, proferido a fls. 738, foi determinada a notificação do recorrente para se pronunciar sobre a eventualidade de o Tribunal não vir a conhecer da questão de constitucionalidade, pelas razões constantes das contra-alegações do Ministério Público.
O recorrente nada disse.
Após mudança de relator, por vencimento, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Impõe-se, antes do mais, apreciar a questão prévia da idoneidade do objecto do recurso.
O recorrente pretende a fiscalização da constitucionalidade do «conjunto normativo formado pelas disposições conjugadas do artigo 24.º, do RJIFNA e do artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal, na versão resultante da Lei 59/2007, se interpretado no sentido de que a segunda norma é aplicável aos factos praticados antes da sua entrada em vigor ainda que daí resulte que o prazo para o cumprimento da condição a que está sujeita a suspensão tenha de ser igual ao prazo de duração da suspensão da pena e, portanto, muito inferior ao prazo que resultaria da aplicação da lei velha».
Pode constatar-se, pela simples leitura do excerto da decisão recorrida acima transcrito, que o objecto assim configurado pelo recorrente não corresponde integralmente à interpretação normativa que serviu efectivamente de critério material de decisão no caso concreto.
Na verdade, resulta, à saciedade, da decisão recorrida que o recorrente não foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artigo 24.º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro, mas sim pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal em relação à segurança social, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aplicável por força do disposto no artigo 107.º do mesmo diploma legal.
Por outro lado - e sem prejuízo da eventual rectificação a que houvesse lugar nessa parte por lapsus calami -, o certo é que, uma vez aprofundada a própria fórmula semântica concretamente utilizada pelo recorrente para efeito de indicação da interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, é possível verificar que a alusão à referida norma do RJIFNA é totalmente supérflua na economia do presente recurso, e, por conseguinte, dever-se-á concluir que o recorrente, afinal, pretende apenas e tão-só a fiscalização da constitucionalidade da interpretação normativa do segundo dispositivo indicado, isto é, do n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal de 1982, na redacção introduzida pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, no sentido de ser aplicável a factos praticados antes da sua entrada em vigor, mesmo que daí resulte a redução simultânea, e em igual medida, do período de suspensão da execução da pena de prisão e do prazo fixado para efeito de cumprimento do dever de pagar as prestações tributárias e acréscimos legais em dívida, a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena de prisão, que resultavam da aplicação da lei antiga.
Na primeira instância, o recorrente foi condenado como autor material de um crime de abuso de confiança fiscal em relação à segurança social, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aplicável por força do disposto no artigo 107.º do mesmo diploma legal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na execução pelo período de 5 anos, sob condição de pagamento do valor das prestações tributárias em dívida e acréscimos legais em cinco prestações anuais e sucessivas de igual montante.
Tal suspensão condicionada da execução da pena de prisão foi decidida ao abrigo do disposto no artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, e no artigo 14.º, n.º 1, do RGIT.
O n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal, na referida redacção, dispunha que «o período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em julgado da decisão».
Por seu turno, o n.º 1 do artigo 14.º do RGIT, prescreve que «a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais».
Na pendência do recurso interposto desta condenação, entrou em vigor a Reforma Penal de 2007, a qual se traduziu, além do mais, na alteração da redacção do referido n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal, o qual passou a dispor que «o período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão».
O tribunal recorrido manteve a referida condenação, excepto na parte respeitante ao período de suspensão condicionada da execução da referida pena de prisão, o qual passou a ficar fixado em 1 ano e 6 meses, com fundamento explícito na aplicação retroactiva da referida nova redacção do n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal. Fê-lo por entender que a norma, na nova redacção, se apresentava mais favorável ao arguido.
Tanto na primeira instância, como em sede de recurso, a pena de suspensão de execução da prisão em questão foi subordinada ao cumprimento pelo recorrente de um dever de conteúdo económico, traduzido no dever de reposição da verdade fiscal num prazo totalmente coincidente com o período de suspensão da execução da pena de prisão.
A diferença está em que o tribunal recorrido, mantendo essa exigência, decidiu reduzir o período inicialmente fixado para a suspensão da execução da pena de prisão - que se encontrava fixado em 5 anos - para 1 ano e 6 meses, apenas por força da aplicação retroactiva da nova redacção do n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal, introduzida pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro.
Essa redução - em si mesma favorável ao arguido, pois, quanto menor o período de suspensão, menor a possibilidade de revogação da medida - acarreta, no caso concreto, o efeito colateral desfavorável da diminuição do prazo de pagamento das prestações tributárias em dívida.
A sucessão no tempo de leis penais em casos em que, como no dos autos, a lei nova produz efeitos de sinal contrário dificulta, sobremaneira, o juízo de determinação da lei mais favorável.
Da conjugação das normas constantes dos n.os 3 e 4 do artigo 29.º da CRP apenas resulta a imposição do princípio de que, na hipótese de se verificar uma alteração da medida da pena, se deve aplicar aquela que se mostrar mais favorável ao arguido. Nem a Constituição, nem a lei, fornecem qualquer critério auxiliar, formulado em abstracto, de identificação do regime mais favorável.
Na realização dessa tarefa, cabe, pois, ao intérprete aplicar directamente o parâmetro constitucional à situação sub juditio, na sua configuração casuisticamente concreta. É essa, aliás, a injunção contida no artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, ao dispor que «é sempre aplicável o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente» [itálico nosso].
Foi esse juízo de aplicação do critério constitucional, de forma contextualizada ao concreto conteúdo penalizador das normas em disputa, que o Tribunal da Relação do Porto fez, ao enunciar:
«Mas, tendo em conta que o que há de penalizador na suspensão da pena de prisão é a possibilidade de esta ser revogada, nomeadamente pela prática de outros crimes no respectivo período, e que o não cumprimento da condição a que fica subordinada a suspensão não leva à revogação desta se não for culposo, é de concluir que nesta matéria o regime concretamente mais favorável ao arguido é aquele que determina o período de suspensão mais curto.»
Estamos perante um acto decisório, de aplicação, em concreto, do critério constitucional. Ora, como é sabido, no sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Daí que, tal como entende o Ministério Público, o presente recurso de constitucionalidade não possa ser conhecido, por falta de idoneidade do seu objecto.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 unidades de conta.
Lisboa, 13 de Janeiro de 2009. - Joaquim de Sousa Ribeiro - Mário José de Araújo Torres - Benjamim Rodrigues - João Cura Mariano (vencido conforme declaração que anexo) - Rui Manuel Moura Ramos.
Declaração de voto
Votei vencido por entender que o objecto do recurso era idóneo, pelo que o Tribunal deveria apreciar o seu mérito.
A interpretação normativa cuja constitucionalidade foi questionada pelo recorrente, segundo a qual o disposto no n.º 5 do artigo 50.º do CP, na redacção da Lei 59/2007, de 4 de Setembro, é aplicável a factos praticados antes da sua entrada em vigor, mesmo que daí resulte a redução simultânea, e em igual medida, do período de suspensão da execução da pena de prisão e do prazo fixado para efeito de cumprimento do dever de pagar as prestações tributárias e acréscimos legais em dívida, a que ficou subordinada a execução da pena de prisão, que resultavam da aplicação da lei antiga, serviu como critério decisivo de determinação da lei penal mais favorável na decisão recorrida, podendo este critério ser perfeitamente autonomizado do caso concreto, em virtude de assumir, pelo seu cariz geral e abstracto, aptidão normativa suficiente para ser aplicado como solução para outros casos.
Na verdade, no sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo, ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço, com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Embora a averiguação do regime mais favorável para solucionar um caso de sucessão de leis penais pressuponha que o tribunal realize todo o processo de determinação da pena concreta face a cada uma das leis em conflito, num juízo subsuntivo, isso não impede que nele intervenham critérios gerais e abstractos formulados pelo tribunal para achar a pena mais favorável, como ocorreu no presente caso.
Esses critérios não têm a sua eficácia limitada ao caso concreto, tendo aptidão normativa suficiente para voltarem a ser utilizados para solucionarem outros casos de sucessão de leis no tempo, pelo que se justifica que a sua constitucionalidade possa ser fiscalizada por este Tribunal.
Por estas razões teria conhecido do mérito do recurso interposto, negando-lhe, contudo, provimento, uma vez que a interpretação normativa questionada não violava qualquer parâmetro constitucional, nomeadamente o disposto no artigo 29.º, n.º 4, da CRP. - João Cura Mariano.