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Acórdão 569/2008, de 12 de Janeiro

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Sumário

Não julga inconstitucional o artigo 107.º, n.º 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano

Texto do documento

Acórdão 569/2008

Processo 580/2007

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - Albertina Rodrigues Pereira e marido, Carlos Alberto, interpuseram, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que, julgando improcedente o recurso de apelação por eles apresentado, manteve a decisão proferida, em Fevereiro de 2006, pelo Tribunal Judicial de Oeiras. Tal decisão declarara denunciado, a pedido do senhorio - que afirmara necessitar do locado para sua própria habitação - , o contrato de arrendamento outorgado por Albertina Rodrigues Pereira, condenando em consequência os ora recorrentes ao despejo da casa que habitavam.

No recurso de apelação que interpuseram junto do Tribunal da Relação, alegaram Albertina Rodrigues Pereira e marido que, encontrando-se o segundo «doente e incapacitado para o trabalho», e «sofrendo uma incapacidade de 70 %», seria ao caso aplicável o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do Regime de Arrendamento Urbano (RAU), que prevê, como limitações ao direito de denúncia pelo senhorio, situações de «invalidez», «incapacidade total para o trabalho» ou «deficiência superior a dois terços» por parte do arrendatário; e que era inconstitucional, por violação dos artigos 13.º, 36.º, 63.º e 67.º da CRP, a interpretação que a decisão recorrida fizera da norma do RAU, interpretação essa segundo a qual «[a]s circunstâncias referidas na alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU se reportam, como tem sido decidido pelos tribunais, [só] ao inquilino e não ao seu cônjuge». (fls. 797 dos autos).

2 - À questão de constitucionalidade, assim suscitada, respondeu o Tribunal da Relação de Lisboa:

«Seguindo agora as normas da Constituição da República Portuguesa que a recorrente invoca em sustento da sua tese.

Não acode violação de princípio constitucional da igualdade - art. 13 da CRP, ao distinguir-se aquilo que por opção legislativa foi tratado de diferente maneira.

Isto é, querendo o legislador limitar o senhorio no exercício da denúncia, comparando a situação de necessidade daquele e do direito de propriedade que se sobrepõe ao direito de locação, estabeleceu, com clareza, as circunstâncias em que essa faculdade deve recuar, à luz dos interesses da pessoa do arrendatário, pois que, afinal foi com ele que contratou, independentemente do seu estado civil, contrato que, ademais, não carece da intervenção do cônjuge, em caso de ser casado.

O argumento do litisconsórcio necessário dos cônjuges em acção de despejo tem na génese a relevância do interesse comum ao casal e da própria restrição na actuação de cada um dos cônjuges na relação jurídica do casamento (veja-se o exemplo paralelo nas acções dispositivas dos comproprietários) não servindo, por conseguinte, para contextualizar a razão da interpretação do preceito em análise.

O legislador é peremptório na sua opção legislativa, o contrato de arrendamento para habitação é incomunicável ao cônjuge do arrendatário - art. 83.º do RAU; logo, aí se detecta razão bastante que justifica a diferenciação da pessoa do arrendatário e do seu cônjuge no preceito ora em discussão, o artigo 107.º do RAU.

Ora, reconhecendo embora, a ampla tutela legal da família constituída com base no casamento, e do seu tratamento como realidade jurídica autónoma e consequente em múltiplas situações, não existe na situação do preceito em análise, motivo que evidencie que outra foi a intenção do legislador; isto é, o legislador quis distinguir, a idade, a invalidez e a incapacidade mas por referência à pessoa do arrendatário, como limites ao exercício da denúncia.

Igualar, como pretende a recorrente, os efeitos da situação da arrendatária à circunstância da pessoa do seu marido, constituiria, salvo melhor opinião, arbítrio do intérprete, derrubando a previsão de diferenciação de tratamento jurídico, que não se ancora em fundamento razoável.

Hipotizando a situação da família constituída à margem do vínculo do matrimónio, enfrentaríamos nova perplexidade na pretendida extensão do regime de limites do artigo 107.º do RAU, pois, apesar de a Constituição da República Portuguesa reconhecer a família para além do casamento, e a lei ordinária atribuir efeitos jurídicos paralelos às uniões de facto, seria, mais uma vez, inviável a interpretação extensiva que a recorrente propõe como solução justa para o litígio.

Por fim, noutra perspectiva, não poderá considerar-se violação do disposto no artigo 65.º da Lei Fundamental, a propósito do direito à habitação, como direito fundamental de natureza social, cuja efectividade está dependente da "reserva do possível".

De igual modo, não cremos que, a interpretação do preceito propugnada na decisão em recurso conflitue com o princípio - dever da protecção aos portadores de deficiência a que se refere o artigo 71.º, n.º 2 da CRP, visto que, a prossecução dessa obrigação do Estado há-de obter-se à custa de políticas adequadas que não podem passar por contender com direitos de terceiro expressamente consagrados na lei.» (fls. 941-43 dos autos)

Foi portanto desta decisão - que assim aplicou norma cuja inconstitucionalidade havia sido suscitada durante o processo - que recorreram Albertina Rodrigues Pereira e marido. Nos termos do requerimento de recurso apresentado (fls. 953 dos autos), pediram os recorrentes que o Tribunal apreciasse a constitucionalidade da norma contida na alínea a) do n.º 1 do RAU, quando interpretada no sentido «em que apenas o cônjuge que outorgou o contrato de arrendamento pode invocar as circunstâncias previstas no citado normativo». No seu entendimento, tal interpretação da norma seria inconstitucional, por violação dos princípios decorrentes dos artigos 13.º, 36.º, 63.º (por lapso: referiam-se ao artigo 64.º) e 67.º da lei Fundamental.

3 - Admitido o recurso no Tribunal Constitucional, nele apresentaram alegações recorrentes e recorrida.

Disseram os primeiros, essencialmente, que a norma aplicada pelo Tribunal da Relação, para além de «colocar direitos e situações de vida pendentes de acasos do destino de modo aleatório», seria antes do mais lesiva do princípio da igualdade contido no artigo 13.º da CRP. Ao entender que as circunstâncias pessoais (i. a. invalidez e incapacidade para o trabalho), previstas pelo RAU como limitações ao direito do senhorio de denúncia do contrato de arrendamento, seriam apenas aquelas que afectassem a pessoa do inquilino e não o seu cônjuge, a referida norma ou interpretação normativa estaria, afinal, a eleger como «elemento diferenciador da qualificação jurídica» um «acto» que seria «de relevo mínimo» (ou seja, a outorga do contrato de arrendamento por apenas um dos cônjuges), pelo que de tal interpretação normativa decorreria a criação «de uma situação profundamente desigual para quem é igual».

Além disso - e por estar em causa a casa de morada de família - alegaram ainda os recorrentes que a norma, com a interpretação que fora aplicada, lesaria ainda os princípios da igualdade entre os cônjuges e da direcção conjunta da família, inscritos no artigo 36.º da CRP; os deveres (do Estado e da sociedade) de protecção da família, inscritos no artigo 67.º; e ainda - por ocorrer in casu incapacidade de um dos cônjuges - o direito à protecção da saúde, decorrente do artigo 64.º (por lapso, referiu-se aqui o artigo 63.º da CRP, relativo à segurança social).

A recorrida contra-alegou, invocando a não violação, in casu, do princípio da igualdade. Quanto à eventual lesão de outros direitos fundamentais - como o direito à segurança social, à habitação e à protecção da família - sustentou basicamente que, sendo aqueles direitos a prestações que reclamam, por parte do Estado, a adopção de políticas públicas destinadas à sua concretização, a adopção de tais políticas por parte do legislador não poderia deixar de ter em conta a necessária conciliação entre os bens jurídicos protegidos por tais direitos e os bens protegidos por outros princípios constitucionais, entre os quais se incluiria a protecção devida à propriedade do senhorio.

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentos

4 - A norma sob juízo

4.1 - A dado passo das suas alegações, requerem os recorrentes ao Tribunal que, «por ser este o Tribunal de recurso», conheça de factos que, no seu entender, estariam «assentes» e não teriam sido conhecidos pelo Tribunal da Relação, de modo a aplicar ao caso «a norma constante do artigo 107.º, n.º 1), alínea b) do RAU.» (fls. 1000 dos autos).

Diz a Constituição da República, no artigo 221.º, que o Tribunal Constitucional é o tribunal ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional. Por isso mesmo, nos processos de fiscalização concreta, os recursos [para o Tribunal] que sejam interpostos de decisões de tribunais que recusem a aplicação de normas com fundamento na sua inconstitucionalidade, ou de decisões que (como é o caso dos autos) apliquem normas cuja inconstitucionalidade tenha sido alegada durante o processo, são recursos restritos à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de normas, consoante os casos (artigo 280.º, n.º 6 da CRP), questão essa que, aliás, não pode ser outra que não a identificada no requerimento a que alude o artigo 75.º-A da Lei 28/82.

Assim sendo - e situando-se o 'pedido' feito pelos recorrentes nas suas alegações claramente fora do âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional - o objecto do presente recurso restringe-se à questão colocada no respectivo requerimento de interposição: é inconstitucional, por violação dos princípios decorrentes dos artigos 13.º, 36.º, 67.º e 64.º da Constituição, o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do Regime de Arrendamento Urbano (RAU), na interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida?

4.2 - Incluído na subsecção relativa às limitações ao direito de denúncia, e sob a simples epígrafe «Limitações», dispõe do seguinte modo, o artigo 107.º do RAU:

«1 - O direito de denúncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio pelas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 69.º, não pode ser exercido quando no momento em que deva produzir efeitos ocorra alguma das seguintes circunstâncias:

a) Ter o arrendatário 65 ou mais anos de idade ou, independentemente desta, se encontre na situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofra de incapacidade total para o trabalho, ou seja portador de deficiência a que corresponda incapacidade superior a dois terços;

b) Manter-se o arrendatário no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade, ou por um período de tempo mais curto previsto em lei anterior e decorrido na vigência desta.

2 - Para efeitos da alínea b) do número anterior, considera-se como tendo a qualidade de arrendatário o cônjuge a quem tal posição se transfira, nos termos dos artigos 84.º e 85.º, contando-se a seu favor o decurso do tempo de que o transmitente já beneficiasse.»

Como já se sabe, sustenta o recorrente que é inconstitucional, pelos motivos já apontados, o disposto apenas na alínea a) do n.º 1 do preceito, quando entendido de forma a que as características pessoais aí enunciadas - e que consubstanciam os fundamentos da excepção ao direito de denúncia do arrendamento por parte do senhorio, sempre que este necessite do prédio para sua habitação - valham apenas para quem outorgou o contrato de arrendamento, e não sejam, portanto, extensivas ao seu cônjuge.

Assim equacionada, a questão de constitucionalidade reporta-se a um elemento de um sistema que, tendo entre nós raízes fundas, merece ser compreendido na sua globalidade.

O «sistema», que foi o que durante décadas inspirou o nosso regime jurídico do arrendamento para habitação, resultou da conjunção de três 'princípios' essenciais. O primeiro - qualificado por alguns como sendo a matriz da chamada legislação vinculística do arrendamento - não só constava do artigo 1095.º do Código Civil, na sua versão primitiva, como já decorria de legislação avulsa emitida desde as primeiras décadas do século XX. Determinava o artigo 1095.º do Código Civil: «Nos contratos de arrendamento a que esta secção se refere [arrendamentos de prédios urbanos] o senhorio não goza do direito de denúncia, considerando-se o contrato renovado se não for denunciado pelo arrendatário nos termos do artigo 1055.º». O artigo 1055.º atribuía tanto a locador quanto a locatário o direito de denúncia do contrato, que podia ser exercido sem qualquer fundamento, uma vez cumpridos os requisitos formais, que aí se fixavam, de comunicação prévia à outra parte. Da titularidade deste direito, e nos contratos de arrendamento urbano, estava pois excluído o senhorio. Aí, a denúncia ad nutum era - e era-o desde há décadas - um direito exclusivo do arrendatário.

A este primeiro «princípio» do «sistema - e primeiro, na ordem lógica das coisas - veio o Código Civil acrescentar um outro. No artigo 1096.º permitia-se, porém, a denúncia fundamentada do contrato de arrendamento por parte do senhorio, sendo que um dos fundamentos previstos era, justamente, o da «necessidade do prédio para sua habitação ou para nele construir a sua residência». Mas também aqui não inovava o Código: desde a década de cinquenta que se regulava, por lei, o exercício do direito de denúncia, com este fundamento, do contrato de arrendamento por parte do senhorio (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, 1968, pp. 372 e ss.)

Entrada em vigor a Constituição de 1976 - e depois de um interregno agora de recordação inútil, que durou de 1974 a 1976 - mantiveram-se no direito infraconstitucional estes dois 'princípios', enquanto elementos estruturantes do sistema de arrendamento urbano. Em 1979, porém, a lei (Lei 55/79, de 15 de Setembro, artigo 2.º) veio acrescentar ao «sistema» um outro dado: o direito de denúncia do contrato de arrendamento por parte do senhorio, e fundamentado na sua necessidade do prédio para habitação, nunca poderia ser exercido, caso o inquilino tivesse 65 anos ou mais de idade (alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º) ou se mantivesse «na unidade predial há vinte anos nessa qualidade» (alínea b) do n.º 1). Desde essa altura que se deixou claro que, «[p]ara efeitos da alínea b) ... [s]e considera como tendo a qualidade de inquilino o cônjuge a quem tal posição se transfira» (itálico nosso).

Foi esta solução que, com algumas alterações - em que se contam, sobretudo a previsão de condições de «invalidez» ou de «incapacidade para o trabalho» do inquilino como limitações ao direito de denúncia por parte do senhorio acrescentadas à previsão da idade (Lei 46/85, artigo 41.º), e o alongamento do prazo de manutenção do arrendatário no local arrendado de 20 para 30 anos - se veio a manter na redacção do artigo 107.º do Regime de Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei 321/B/90.

4.3 - Não está agora em causa a questão de saber se este sistema de vinculismo arrendatício, com raízes tão fundas entre nós, se manterá ainda, no seu núcleo essencial, face às alterações introduzidas pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, que aprovou o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU). A questão - que se coloca sobretudo face ao disposto na alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil, na sua versão actual - não é pertinente in casu, por força das disposições conjugadas dos artigos 59.º, n.º 1; 60.º, n.º 1, 26.º n.º 4 alínea a) e 28.º do NRAU. Pertinente é, no entanto, ponderar o seguinte.

Todo o paradigma vinculístico que acabámos de descrever - e que culmina com a previsão das chamadas «limitações ao direito de denúncia» previstas no artigo 107.º do RAU - foi densamente escrutinado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional. Na verdade, o Tribunal disse, antes do mais, por que razão não era inconstitucional a «matriz» do regime vinculístico, que vedava ao senhorio - mas concedendo-a ao arrendatário - a possibilidade da denúncia ad nutum do contrato de arrendamento (vejam-se, quanto a este ponto, e entre outros, os Acórdãos n.º s 151/92, 263/00, 570/01, 543/01, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Depois, o Tribunal disse também por que razão não era inconstitucional a excepção a este princípio, fundada na necessidade, por parte do senhorio, do prédio para habitação própria (veja-se, quanto a este ponto, sobretudo o Acórdão 151/92, mas também o n.º 405/00 e o 420/00). Finalmente, o Tribunal disse por que razão não era inconstitucional a excepção à excepção, ou seja, por que razão se deveria entender que não lesava a Lei Fundamental a previsão das «limitações ao direito de denúncia», constantes por último do artigo 107.º do RAU (Acórdão 425.º/87, DR, 2.ª Série, n.º 3, 5-1-1988, pp. 96-98).

Quanto ao primeiro ponto, o Tribunal demonstrou, essencialmente, a natureza não arbitrária - porque racionalmente fundada numa ponderação possível das diferenças - de um regime jurídico infraconstitucional que, preocupando-se sobretudo com a manutenção da relação jurídica do arrendamento se fosse essa a vontade do arrendatário, tratava desigualmente, nessa relação, senhorio e inquilino. Quanto ao segundo ponto, o Tribunal disse que, havendo porém conflito ou colisão entre dois direitos iguais - o direito à habitação do inquilino e o direito à habitação do senhorio - , seria «inteiramente razoável» que se «sacrificasse o direito do inquilino à habitação», por deter, nestes casos de colisão, o senhorio, proprietário, um «melhor direito» (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º Vol., p. 658). Finalmente, e quanto às «limitações do direito de denúncia» constantes do artigo 107.º do RAU (sobretudo, as constantes da sua alínea a)) disse o Tribunal que elas se justificavam, por se apresentar aqui o inquilino «mais carecido [do que o senhorio] do amparo da lei», em virtude de lhe não poder ser imposta uma «mudança de vida» que poderia levá-lo «a sentir-se completamente perdido e desenraizado» (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 48.º Vol., p. 231).

Relativamente à questão colocada nos autos - a de saber se não imporá a Constituição uma «leitura» da alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU diversa da adoptada pela decisão recorrida, por decorrer da CRP uma necessária extensão das condições pessoais aí prescritas (enquanto fundamento de limitação do direito de denúncia do senhorio) ao cônjuge do inquilino - não se pronunciou ainda o Tribunal.

Sustenta o recorrente, antes do mais, que uma tal «leitura» - diversa da adoptada pela decisão recorrida - não pode deixar de ser imposta pelo princípio constitucional da igualdade.

Vejamos então.

5 - O Princípio da Igualdade

5.1 - Duas dimensões da igualdade

É conhecida, e abundante, a jurisprudência do Tribunal relativa à densificação do princípio constitucional da igualdade.

Como sempre se tem dito - e como foi repetido, em síntese expressiva de todo o acervo jurisprudencial anterior, pelo Acórdão 232/2003 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) - enquanto vínculo específico do poder legislativo (pois só essa sua 'qualidade' agora nos interessa), o princípio da igualdade não tem uma dimensão única. Na realidade, ele desdobra-se em duas «vertentes» ou «dimensões»: uma, a que se refere especificamente o n.º 1 do artigo 13.º, tem sido identificada pelo Tribunal como proibição do arbítrio legislativo; outra, a referida especialmente no n.º 2 do mesmo preceito constitucional, tem sido identificada como proibição da discriminação. Em ambas as situações está em causa a dimensão negativa do princípio da igualdade. Do que se trata - tanto na proibição do arbítrio quanto na proibição de discriminação - é da determinação dos casos em que merece censura constitucional o estabelecimento, por parte do legislador, de diferenças de tratamento entre as pessoas. Mas enquanto, na proibição do arbítrio, tal censura ocorre sempre que (e só quando) se provar que a diferença de tratamento não tem a justificá-la um qualquer fundamento racional bastante, na proibição de discriminação a censura ocorre sempre que as diferenças de tratamento introduzidas pelo legislador tiverem por fundamento algumas das características pessoais a que alude - em elenco não fechado - o n.º 2 do artigo 13.º É que a Constituição entende que tais características, pela sua natureza, não poderão ser à partida fundamento idóneo das diferenças de tratamento legislativamente instituídas.

Ao invocar, in casu, a violação do princípio da igualdade, os recorrentes estão justamente a afirmar que, na norma sob juízo (lida, evidentemente, de acordo com a interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida) o legislador estabeleceu diferenças de regime que não deveria ter estabelecido. A dimensão do princípio que entendem ter sido lesada é, portanto, essa sua dimensão negativa ou proibitiva, cuja dupla «vertente» se acabou de analisar. E - embora o não digam expressamente - entendem ainda os recorrentes que no caso foi ofendida tanto a proibição do arbítrio quanto a proibição da discriminação.

Com efeito, invoca-se, por um lado, a violação do princípio geral da igualdade, contido no artigo 13.º da CRP. Como decorre do relato atrás feito, a sustentar a invocação está o argumento segundo o qual, na alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU, o legislador teria eleito, «como elemento diferenciador de qualificação jurídica», um «acto de relevo mínimo» - a saber: o ter sido apenas um dos cônjuges a outorgar o contrato de arrendamento - , pelo que dessa eleição resultaria «uma situação profundamente desigual para quem é igual». O que se contesta aqui, portanto, é a racionalidade ou razão de ser da «diferença» instituída: ao afirmar que o fundamento da diferença é de «relevo mínimo», os recorrentes estão justamente a perguntar ao Tribunal se será, ou não, arbitrária a diversidade de regimes que decorrerá da alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU, na leitura que dele fez a decisão recorrida. O «parâmetro» constitucional invocado é, pois, o decorrente do n.º 1 do artigo 13.º da CRP.

Contudo - e por outro lado - os recorrentes sustentam que, in casu, lesado terá sido, também, o princípio de igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges, decorrente do artigo 36.º da CRP. Ora, não sendo tal princípio mais do que a concretização de uma das proibições de discriminação contida no n.º 2 do artigo 13.º (a saber: a proibição da discriminação em função do sexo), a sua invocação, nos autos, revela que a outra dimensão do princípio da igualdade também foi considerada. Do que aqui se trata é de determinar se o parâmetro constitucional fixado no n.º 2 do artigo 13.º da CRP - e concretizado no artigo 36.º enquanto proibição de discriminação no seio da sociedade conjugal - terá sido, ou não, lesado.

Assim sendo, importa distinguir.

5.2 - Da igualdade enquanto proibição do arbítrio

Como já foi referido, sustenta o recorrente que a alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU - na interpretação adoptada pela decisão recorrida - lesa desde logo o princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio (artigo 13.º, n.º 1 da CRP), por ter nela o legislador escolhido «como elemento diferenciador da qualificação jurídica» um «acto de relevo mínimo», do qual resultaria «uma situação profundamente desigual para quem é igual».

É claro, como também já foi visto, que o «acto de relevo mínimo» a que se refere o recorrente é a outorga, por apenas um dos cônjuges (facultada nos termos do artigo 1690.º, n.º 1 do Código Civil) do contrato de arrendamento. Alega-se não ser este um fundamento razoável bastante para que se trate desigualmente o que é igual. Mas não é claro qual é a situação de desigualdade que, no entender do recorrente, daí resulta, e em que será tratado, sem razão e «de forma profundamente desigual», quem é igual. A clarificação é, no entanto, absolutamente necessária.

Com efeito, a norma sob juízo insere-se num «regime» - dotado enquanto tal de unidade de sentido - que foi adoptado pelo legislador tendo em conta, não uma, mas três «situações de desigualdade». Antes do mais, o legislador fixou estes limites ao direito de denúncia do senhorio (quando exercido por necessidade do prédio para habitação) porque partiu do princípio segundo o qual seriam aqui desiguais a situação do senhorio e a situação do inquilino. Em segundo lugar, o legislador fixou este regime - e não outro - porque partiu do princípio segundo o qual, nas relações apenas entre inquilinos, seriam desiguais a situação daqueles que apresentassem as características referidas na alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU e aqueles outros que estivessem na situação referida na alínea b). (Na verdade - e como já se viu - para os segundos vale aquilo que, de acordo com a interpretação normativa feita pela decisão recorrida, não vale para os primeiros: diz o n.º 2 do artigo 107.º do RAU que, «[p]ara efeitos da alínea b) do número anterior [se] considera como tendo a qualidade de arrendatário o cônjuge a quem tal posição se transfira...»). Finalmente, o legislador fixou este regime (ainda na interpretação que dele foi feita pelo tribunal a quo) porque partiu do princípio segundo o qual, nas relações apenas entre cônjuges, e em caso de idade, invalidez ou incapacidade de um deles, só o cônjuge arrendatário mereceria a «protecção» conferida pelo sistema vinculístico do RAU.

O regime fundado na alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU - a não ser arbitrário, como alega o recorrente - só poderá vir a ser compreendido à luz de todo este «sistema de diferenças»: o fundamento racional bastante que se procura há-de justificar (ou não) este sistema, assim mesmo considerado. Ora, a verdade é que todo ele partiu da consideração, por parte do legislador, de um ponto de semelhança.

O ponto de partida da aplicação do que vem dispor o artigo 107.º do RAU é o de que senhorio e inquilino se encontram em situação semelhante no que respeita ao direito à habitação constitucionalmente consagrado: ambos pretendem o imóvel arrendado para sua habitação. O 'bem' pretendido é no entanto um bem escasso. Como o imóvel é só um, e não poderá por isso ser usufruído por ambos pretendentes em lapsos de tempo coincidentes, o exercício do direito à habitação de um vem necessariamente excluir o direito à habitação do outro. Coube, por isso, ao legislador a escolha entre dois 'interesses' conflituantes e que merecem igual ponderação.

Como o Tribunal já disse (cf. supra, ponto 4.3), em situações normais o legislador resolveu o conflito protegendo os interesses do senhorio, titular do «melhor direito». Não assim em situações especiais de carência do inquilino, que são justamente aquelas que vêm identificadas na alínea a) e na alínea b) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU. No entanto, entre elas, há ainda que distinguir.

A alínea b) do n.º 1, do artigo 107.º do RAU estabelece uma excepção ao direito de denúncia do contrato de arrendamento, que é facultado ao senhorio quando este necessita do prédio para habitação, nos casos em que o arrendatário se mantenha no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade, ou por um período de tempo mais curto previsto em lei anterior e decorrido na vigência desta.

Atentando ao que vem dispor esta norma verifica-se que, nesta situação, o inquilino permanece no local arrendado um lapso de tempo que é considerado, pelo legislador infra-constitucional, como sendo bastante para justificar o seu «enraizamento». De acordo com as palavras já usadas pelo Tribunal, considera-se que há aqui uma «permanência inquestionavelmente duradoura» que justifica o tratamento desigual entre senhorio e inquilino (Cf., entre outros, os acórdãos n.º 201/2007 e 97/2000, ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Com efeito, as circunstâncias de facto que contextualizam a posição do senhorio (o titular do imóvel mas que o nele não habita) e do arrendatário por um lapso de tempo prolongado (o que efectivamente habita o prédio) são realmente diferentes, na medida em que o inquilino tem uma situação de vivência estável naquela habitação, coisa que não sucederá com o senhorio. São memórias, vivências, hábitos sociais - ou seja, todo o acervo de factualidade que compõe a designação social de «lar»- que, em suma, explica a razão de ser desta excepção ao direito de denúncia do senhorio. Como tal acervo de factualidade será, por princípio, comum a ambos os cônjuges, compreende-se o disposto no n.º 2 do artigo 107.º do RAU, que manda que nestes casos (ou seja, nos casos previstos na alínea b) do seu n.º 1) se considere «arrendatário» não apenas o cônjuge que outorgou o contrato, mas ainda aquele «a quem tal posição se transfira».

De muito diferente maneira se passam as coisas, quanto à alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU.

Como já se viu, a referida alínea vem consagrar uma excepção ao direito de denúncia do contrato de arrendamento, que é facultado ao senhorio quando este necessita do prédio para habitação, nos casos em que o arrendatário tenha 65 ou mais anos de idade ou, independentemente desta, se encontre na situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofra de incapacidade total para o trabalho, ou seja portador de deficiência a que corresponda incapacidade superior a dois terços.

Ao contrário do que sucede na alínea b) do mesmo preceito, verifica-se, neste caso, que a diferença entre a situação do inquilino e a situação do senhorio não se prende com a «estabilidade» do vínculo contratual e com questões de vivência e de contextualização social no local arrendado. Qual será, então - e onde residirá -, o «grau de diferença» aqui existente?

Nestes casos, a diferença residirá na asserção segundo a qual a senioridade e a incapacidade total para o trabalho vêm dificultar sobremaneira a capacidade que aquele inquilino tem de procurar nova habitação. Senhorio e inquilino serão, aos olhos do legislador ordinário, diferentes, na medida em que o segundo, por força da sua idade ou da sua invalidez, tem uma dificuldade acrescida em procurar nova habitação para residir. Sendo este o escopo da norma, não se vê como pode ser considerada arbitrária a sua redacção (e consequente interpretação) literal, que prevê que a condição de «invalidez» valha apenas para o arrendatário e não seja, enquanto tal, extensiva ao seu cônjuge. Como se sabe, o juízo de inconstitucionalidade por violação do princípio inscrito no n.º 1 do artigo 13.º da CRP só ocorrerá nos casos em que as diferenças de regimes instituídas pelo legislador ordinário se não sustentem em qualquer fundamento razoável, ou não sejam inteligíveis a partir de um critério racional bastante. Não é esse o caso da norma sob juízo, na interpretação que dela fez o tribunal a quo.

5.3 - Da igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges

Diferente da proibição do arbítrio é a proibição da discriminação, consagrada no n.º 2 do artigo 13.º da CRP. Como já se viu, o legislador constituinte não quis aqui, apenas, impedir que o legislador ordinário estabelecesse entre as pessoas diferenças de tratamento que não fossem racionalmente fundadas. Mais do que isso, o que se pretendeu foi proibir que o legislador ordinário estabelecesse diferenças de tratamento que fossem «fundadas» em certas características pessoais, tidas pela Constituição - à partida - como inidóneas para «justificar» qualquer diferença. Não vale a pena, agora, voltar a sublinhar por que motivo é meramente exemplificativo o elenco dessas «características pessoais» (que não podem nunca ser fundamento de diferenças in pejus entre as pessoas) que o n.º 2 do preceito constitucional consagra (quanto a este ponto, e entre outros, veja-se o Acórdão 69/2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). O que vale a pena é atentar no seguinte.

Como a Constituição entendeu que o sexo é justamente uma daquelas «categorias» ou «características» pessoais que não podem nunca ser fundamento de diferenças - pelo menos de diferenças in pejus - entre as pessoas, os seus princípios relativos à liberdade de constituir família e de contrair casamento, contidos no artigo 36.º, são todos eles inspirados pela necessária indiferenciação do estatuto jurídico do cônjuge-marido e do cônjuge-mulher, necessária indiferenciação essa que há-de vincular o legislador ordinário e que assume especial formulação no n.º 3 do artigo 36.º Nessa medida, o princípio que aí vem enunciado - o princípio da igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges - não é mais do que a concretização de uma das proibições de discriminação, fixadas no n.º 2 do artigo 13.º

Ora, é justamente este o princípio que os recorrentes invocam para fundamentar a inconstitucionalidade da norma contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU, na interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida. Subjacente à invocação estará portanto o argumento segundo o qual - e no domínio específico das relações entre cônjuges - a norma sob juízo introduzirá uma «diferença» - a saber: entre o cônjuge arrendatário, ao qual se não aplica nenhuma das condições aí previstas, e o cônjuge não arrendatário, esse sim - portador - de condição de invalidez ou deficiência - que será em si contrária à proibição de discriminação contida no n.º 3 do artigo 36.º Levado o argumento às suas últimas consequências, o que se está a afirmar é que a Constituição exige, aqui, que se «equiparem» plenamente as «condições» de ambos os cônjuges, de tal modo que a «condição» do cônjuge arrendatário seja extensível ao cônjuge inválido, mas não arrendatário.

Não se vê, porém, como extrair do artigo 36.º da Constituição semelhante imposição. Na verdade, a única exigência que do princípio constitucional se retira é a de que se não venham a estabelecer, no plano mais recôndito da vida familiar, elos de subordinação e dependência (juridicamente tutelados) de um cônjuge em relação ao outro. É esta, aliás, a imposição que o Código Civil cumpre, quando em harmonia com o princípio da direcção conjunta da família (artigo 1671.º, n.º 2), prevê os efeitos pessoais e patrimoniais do casamento, onde avulta, no âmbito dos primeiros, o princípio da reciprocidade dos vínculos decorrentes dos deveres dos cônjuges (artigo 1672.º) e, no âmbito dos segundos, o princípio geral da administração conjunta ou de mão comum dos bens do casal (artigo 1678.º, n.º 3). Nada permite concluir que, no sentido desta exigência constitucional - assim cumprida pelo legislador ordinário - se encontre uma injunção específica que obrigue o intérprete a «ler» a norma contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU de modo diverso do que foi adoptado pela decisão recorrida. Só se poderia concluir diferentemente se se provasse que tal norma, com a interpretação que dela foi feita, incorporaria em si uma «discriminação» constitucionalmente proibida, por ser contrária ao princípio de não subordinação e dependência (de um cônjuge em relação ao outro) que se inscreve no âmago do programa contido no n.º 3 do artigo 36.º da Constituição. Ora, é bem evidente que tal prova não pode ser feita. Como acabou de se ver no ponto anterior, a norma é justificada por uma teleologia que exclui toda e qualquer dimensão «discriminatória».

6 - Da protecção da família e da protecção da saúde

6.1 - Alegam por último os recorrentes que é ainda inconstitucional a norma sob juízo por violação dos direitos consagrados nos artigos 67.º e 64.º da Constituição (por lapso, referiram-se aqui ao artigo 63.º, relativo à segurança social). Deve no entanto dizer-se desde já que também quanto a este ponto não procedem as razões invocadas.

No artigo 67.º a Constituição reconhece que a «família», enquanto elemento fundamental da sociedade, tem «direito à protecção» da sociedade e do Estado (n.º 1); e que, por isso, deve este último, em relação a ela, adoptar certos procedimentos e certas políticas que visem a realização de determinados fins (todas as alíneas do n.º 2).

Sustenta o recorrente que, por assim ser - e por a Constituição consagrar este direito à protecção da família - , será inconstitucional a norma sob juízo: a interpretação que dela se fez, diz-se, não protege suficientemente a casa de morada de família, pelo que o seu resultado estará em contradição com o disposto no artigo 67.º da CRP. A alegação ignora, porém, a natureza do direito que nesta disposição constitucional se consagra. Ao contrário do que sucede no artigo 36.º - também ele, como já vimos, alusivo à instituição «família» - a Constituição não prevê aqui nenhuma liberdade fundamental, que, nos termos do n.º 1 do artigo 18.º, seja directamente aplicável e tenha, por isso, um conteúdo determinado e determinável a nível constitucional (e não legal). O artigo 67.º não diz respeito à liberdade de constituir ou não constituir família, liberdade que impõe ao Estado, e a todos os membros da comunidade política, um dever de não fazer, de não perturbar, de não obstaculizar. O que o artigo 67.º faz, pelo contrário, é impor ao Estado deveres de agir, de prestar e de realizar, deveres esses que são, antes do mais, cumpridos pelo legislador ordinário, quando este adopta políticas públicas adequadas à realização dos fins que a Constituição fixou. É claro que tais deveres podem deixar de ser cumpridos, ou podem ser cumpridos de modo insuficiente ou deficitário. No entanto, para que tal suceda, necessário é que se prove que o legislador, nas escolhas que fez, se afastou de forma manifesta e evidente do cumprimento das tarefas que, positivamente, lhe haviam sido constitucionalmente atribuídas.

Ora, é evidente que tal, in casu, não sucedeu.

A legislação vinculística do arrendamento - em cujo espírito se inscreve, como já vimos, a norma sob juízo - terá sido adoptada, seguramente, para a realização de múltiplos fins e no contexto de políticas públicas de escopo variável. Certo é que num desses fins se inscreveu primordialmente a necessária protecção das famílias e das suas moradas: a prevalência da vontade do arrendatário na manutenção do vínculo do arrendamento, independentemente da vontade do senhorio, não terá tido outra justificação maior que não essa - a da protecção da «família», nos termos do artigo 67.º da Constituição. Contudo, sendo essa finalidade isso mesmo - algo a realizar por uma política legislativa - para a prosseguir o legislador não pôde deixar de fazer escolhas; de resolver conflitos; de procurar harmonizar diferentes bens jurídicos em concorrência. Como vimos (supra, ponto 5.2.), o regime contido na alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU justifica-se precisamente por, nele, o legislador ter feito uma ponderação entre dois bens igualmente merecedores de protecção: o da (eventual) protecção da casa de morada de família do inquilino e o da (eventual) protecção da casa de morada de família do senhorio. A forma por que o fez, não sendo seguramente a única constitucionalmente possível, correspondeu no entanto ao cumprimento do programa da Constituição. Sobretudo, correspondeu ao dever de realização do bem jurídico protegido pelo seu artigo 67.º

6.2 - Invocam por último os recorrentes a violação, por parte da norma sub judice, do «direito à protecção da saúde», consagrado no artigo 64.º da CRP. Na verdade, estando em causa, no caso, uma disposição legislativa que visa proteger situações de invalidez e incapacidade para o trabalho, mais do que o bem jurídico «saúde» - que de facto é protegido pelo direito consagrado no artigo 64.º - deverá ser convocado, como parâmetro constitucional da validade do direito infraconstitucional, o bem jurídico tutelado pelo artigo 71.º, referente especificamente a «cidadãos portadores de deficiência».

A norma contida no artigo 71.º da CRP - como norma especial face à norma geral do artigo 64.º - é aquela que mais directamente é cumprida pela alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU: ao prever, como limites ao direito de denúncia do senhorio, a condição de invalidez e incapacidade para o trabalho do inquilino, o legislador do RAU não fez mais do que dar concretização ao «programa» previsto no n.º 2 do artigo 71.º, segundo o qual «o Estado [se] obriga a realizar uma política nacional de (...) reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência e de apoio às suas famílias (...)». Mais uma vez, a forma como a norma do RAU realizou esta «política» não era a única constitucionalmente possível; inquestionável é, porém, que ela se coadunou com o «valor» constitucional de protecção à deficiência, consagrado no artigo 71.º da CRP.

Este «valor», que obriga o Estado a proteger especialmente os cidadãos portadores de deficiência, anda, no sistema da Constituição, estreitamente associado ao princípio da igualdade. Com efeito, um tal princípio não tem apenas a dimensão negativa alegada pelos recorrentes, e que analisámos no ponto 5. Mais do que isso - e como disse o Tribunal, por exemplo, no Acórdão 412/2002 - a igualdade tem ainda uma vertente positiva, pois pode abranger, para além das proibições de diferenciação, autorizações - dirigidas ao legislador ordinário - para que este estabeleça diferenças favoráveis a certos grupos de pessoas «como forma de compensar as desigualdades de oportunidades» (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 54.º Vol., p. 417). Ao obrigar o Estado a realizar uma política nacional de protecção à deficiência, o artigo 71.º da CRP está a autorizar a criação, por via legislativa, de um «estatuto especial» do cidadão deficiente, que - correspondendo a uma «necessidade de diferenciação positiva» - o venha a compensar das desigualdades de oportunidades que marcaram a sua condição existencial. Nesta perspectiva, a norma contida no n.º 1, alínea a) do artigo 107.º do RAU integra, plenamente, tal estatuto. Assim sendo, a referida norma não apenas concretiza o programa contido no artigo 71.º da CRP, como corresponde ao cumprimento da dimensão positiva do princípio da igualdade.

No entanto, de nenhum destes parâmetros constitucionais, aplicáveis ao caso, se pode extrair a conclusão segundo a qual o legislador deveria ter tido em consideração, ao limitar o direito de denúncia do senhorio do contrato de arrendamento, não apenas a condição de invalidez do inquilino, mas também a condição de invalidez do seu cônjuge.

Tal conclusão se não pode extrair, antes do mais, do prescrito pelo artigo 71.º, n.º 2 da CRP. Embora aí se diga que o Estado «[se] obriga a realizar uma política nacional de «integração dos cidadãos portadores de deficiência e de apoio às suas famílias», daí se não retira que tivesse o legislador o dever de considerar como extensiva ao inquilino a situação de invalidez do seu cônjuge. Os motivos são os mesmos que foram invocados quanto ao «direito à protecção da família»: tratando-se estes (o do artigo 71.º quanto o do artigo 64.º) de direitos que se cumprem através da adopção, por parte da lei ordinária, de políticas públicas adequadas à realização de certos fins, nunca é mecânico o modo [legislativo] da sua concretização. Ao legislador será sempre confiada a tarefa de, no desenho e consecução dessas políticas, conciliar interesses e harmonizar bens jurídicos conflituantes. Ora, já vimos que foi justamente isso que o legislador do RAU fez, ao regular como regulou os limites ao direito de denúncia do senhorio.

Por outro lado, correspondendo o valor constitucional «protecção dos deficientes» a uma forma de discriminação positiva, autorizada pela CRP em função da «dimensão positiva» do princípio da igualdade, o modo pelo qual o poder legislativo democrático concretiza tal autorização não pode deixar de incluir uma ampla margem de liberdade conformadora dos vários valores e interesses em presença. Por isso, também aqui nada permite concluir pela existência de um dever constitucional, oponível ao legislador, de estender a condição de invalidez para além dos limites literais do preceito contido na alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU. Ora, foram justamente esses os limites que a decisão recorrida, na sua interpretação, acolheu.

Por todos estes motivos, improcedem igualmente estas últimas razões invocadas pelos recorrentes.

III - Decisão

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide não conceder provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida quanto à questão de constitucionalidade.

Custas pelo recorrente, fixadas em 20 uc de taxa de justiça.

Lisboa, 26 de Novembro de 2008. - Maria Lúcia Amaral - Vítor Gomes - Ana Maria Guerra Martins - Carlos Fernandes Cadilha - Gil Galvão.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1371563.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1979-09-15 - Lei 55/79 - Assembleia da República

    Altera o regime de denúncia do arrendamento urbano pelo senhorio, facultado pela alínea a), do nº 1, do artigo 1096º do Código Civil.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1985-09-20 - Lei 46/85 - Assembleia da República

    Aprova os regimes de renda livre, condicionada e apoiada nos contratos de arrendamento para habitação.

  • Tem documento Em vigor 2003-06-17 - Acórdão 232/2003 - Tribunal Constitucional

    Pronuncia-se pela inconstitucionalidade do segmento normativo que contém o critério respeitante aos candidatos que tenham acedido ao ensino superior integrados no contingente da Região Autónoma dos Açores, constante da parte final da alínea a) do n.º 7 do artigo 25.º do Regulamento do Concurso do Pessoal Docente da Educação Pré-Escolar e Ensinos Básico e Secundário.(Pocesso nº 306/2003)

  • Tem documento Em vigor 2006-02-27 - Lei 6/2006 - Assembleia da República

    Aprova o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), que estabelece um regime especial de actualização das rendas antigas, e altera o Código Civil, o Código de Processo Civil, o Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis e o Código do Registo Predial. Republica em anexo o capítulo IV do título II do livro II do Código Civil.

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