Assento 11/2000
Processo 239/2000, 3.ª Secção. - Acordam no plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:
O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos dos artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal, pelos fundamentos que, em síntese, se expõem:
a) No acórdão recorrido proferido, em 2 de Dezembro de 1999, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, e onde foi aplicado o Código Penal de 1982 (versão do Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro), e perfilhando o entendimento da 1.ª instância, foi decidido que o prazo prescricional, correspondendo ao crime cuja pena abstracta cujo limite máximo é de 5 anos de prisão, é de 5 anos, nos termos do artigo 117.º, n.º 1, alínea c), do aludido Código;
b) No acórdão fundamento, proferido, em 12 de Março de 1986, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, foi decidido que o prazo prescricional, por crime cuja pena abstracta tem como limite máximo 5 anos de prisão, é de 10 anos, por força do estatuído no artigo 117.º, n.º 1, alínea b), do invocado Código Penal;
c) As decisões em confronto transitaram em julgado e foram proferidas no domínio da mesma legislação, tendo encontrado soluções jurídicas opostas sobre a mesma questão de direito.
Foi o recurso recebido pela forma legal, tendo sido ouvido o Exmo. Representante do Ministério Público junto deste Tribunal e foram colhidos os respectivos vistos.
Pelo Acórdão deste Supremo Tribunal de 17 de Maio de 2000, foi decidido que os dois acórdãos proferidos por aqueles dois tribunais de relação estão em oposição sobre a mesma questão de direito, apresentando soluções opostas quanto a ela e foram proferidos no domínio da mesma legislação.
Tendo ambos os arestos transitado em julgado, considerou-se que estavam reunidos os pressupostos artigos 437.º, 440.º e 441.º do Código de Processo Penal, pelo que se determinou o prosseguimento dos autos.
Foi dado cumprimento ao artigo 442.º, n.º 1, do referido diploma processual, e, na sequência das notificações, apresentaram alegações os sujeitos processuais do acórdão recorrido que defendem a posição acolhida nesse aresto e o digno representante do Ministério Público que opina no sentido de ser fixada jurisprudência de acordo com o acórdão fundamento, ou seja, que o prazo de prescrição do procedimento criminal por crime punível com pena máxima de 5 anos de prisão é de 10 anos.
A questão tal como, em resumo, resulta dos acórdãos em oposição:
1 - No acórdão recorrido.
Os dois arguidos foram acusados da autoria de um crime de ofensas corporais graves, previsto e punível pelo artigo 143.º, alínea b), do Código Penal de 1982, a que corresponde a pena de 1 a 5 anos de prisão.
Os factos ocorreram em 27 de Março de 1993 e até ao dia 30 de Outubro de 1998 não ocorreu qualquer causa de suspensão ou interrupção da prescrição do procedimento criminal. Nessa data, o Sr. Juiz proferiu despacho declarando prescrito o procedimento criminal contra os arguidos por ter considerado que, nos termos do artigo 117.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal de 1982, é de cinco anos o prazo de prescrição do procedimento criminal dos crimes cujas pena máxima seja igual a 5 anos.
Tendo havido recurso, foi chamado o Tribunal da Relação de Lisboa a pronunciar-se e, pronunciando-se, perfilhou a tese do despacho recorrido. Abona essencialmente a sua posição no facto de, na sua óptica, haver uma clara contradição entre o teor das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 117.º do Código Penal de 1982 e face a essa oposição a solução escolhida deve ser a mais favorável à liberdade individual e, portanto, a constante da alínea c) daquela norma.
2 - No acórdão fundamento.
O Sr. Juiz considerou extinto o procedimento criminal contra o arguido com base na alínea c) do artigo 117.º do Código Penal de 1982, já que tinham decorrido cinco anos sem ter havido causa interruptiva de prescrição e o crime que indiciariamente impendia sobre o arguido - o do artigo 202.º, n.º 1, do Código Penal, ser punível com pena de 2 a 5 anos de prisão.
O Tribunal da Relação de Coimbra, para onde foi interposto recurso, perfilhou a tese de que ao caso não era aplicável a alínea c) daquela norma - artigo 117.º do Código Penal -, mas sim a sua alínea b), que prevê o decurso do prazo de 10 anos para se verificar a extinção do procedimento criminal e afastando a alínea c) revogou o despacho recorrido. Alicerçou a sua posição fundamentalmente no facto de quando na alínea c) do preceito se emprega a expressão «mas que não exceda 5 anos» quer significar «uma duração máxima inferior a 5 anos». Assim, tendo o caso concreto uma pena máxima aplicável de 5 anos não é a mesma inferior a 5 e daí que tenha aplicação a alínea b) do preceito em análise.
Fundamentos e decisão.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. É indubitável que, no caso em apreciação, como foi decidido na conferência, verifica-se oposição entre os dois mencionados acórdãos. Também se verificam os demais requisitos exigidos pelos artigos 437.º e 438.º, ambos do Código de Processo Penal.
Como se apreende do que atrás tem vindo a ser referido, o problema a resolver consiste em saber se à luz do Código Penal de 1982 (versão do Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro) e em crime cuja pena máxima aplicável for de 5 anos de prisão o procedimento criminal extingue-se por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do crime (sem prejuízo de eventuais suspensões e interrupções) sejam decorridos 10 anos, como é referido na alínea b) do n.º 1 do artigo 117.º do Código Penal, ou, antes, sejam decorridos 5 anos, como é referido na alínea c) do n.º 1 da mesma norma legal.
Debrucemo-nos, então, sobre a questão.
Assim.
Artigo 117.º («Prazos de prescrição») do Código Penal (redacção originária):
«1 - O procedimento criminal extingue-se por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do crime sejam decorridos os seguintes prazos:
a) 15 anos, quando se trate de crimes a que corresponde pena de prisão com um limite máximo superior a 10 anos;
b) 10 anos, quando se trate de crimes a que corresponde pena de prisão com um limite máximo igual ou superior a 5 anos, mas que não exceda 10 anos;
c) 5 anos, quando se trate de crimes a que corresponde pena de prisão com um limite máximo igual ou superior a 1 ano, mas que não exceda 5 anos;
d) 2 anos, nos casos restantes.
2 - ...
3 - ...»
No caso que apreciamos, sendo a pena máxima aplicável de 5 anos de prisão, em princípio, tanto podia ser integrada na alínea b) como na alínea c) da norma que se transcreveu supra.
Com efeito, 5 anos harmonizam-se com um «limite máximo igual [...] a 5 anos» expressão utilizada na alínea b) da norma e, aparentemente, harmonizam-se com a expressão «um limite [...] que não exceda 5 anos» utilizada na alínea c).
Porém, temos de convir que uma parece repelir a outra, já que o legislador, sob pena de ser contraditório, não quis integrar os 5 anos indiferentemente numa ou noutra das alíneas referidas, na medida em que se presume que consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cf. artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), princípio que está na base da unidade e coerência da ordem jurídica.
Assim, temos de interpretar o alcance das normas [alíneas b) e c)] «aparentemente» em conflito.
Ora, o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei. E interpretar leis, como é referido por Manuel de Andrade, in Ensaios sobre Teoria da Interpretação das Leis, 21 e 26, «[...] quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão como também de entre as várias significações que estão cobertas pela expressão e eleger a verdadeira e decisiva».
Também Zweigert in Studium Generale, ed. 1954, p. 381, escreve: «A interpretação verbal da norma duvidosa não conduz em regra a qualquer resultado. Antes, a dúvida só poderá ser resolvida investigando o sentido da norma [...]».
Continuemos.
Como resulta da norma - artigo 117.º - a mesma prende-se com o instituto da prescrição.
Ora, a prescrição traduz-se numa renúncia por parte do Estado a um direito, ao jus puniendi condicionado pelo decurso de um certo lapso de tempo.
Radica-se na desnecessidade de repressão e de prevensão geral e especial relacionada com o esquecimento do facto criminoso. O decurso do tempo apagou o alarme social e a ânsia de justiça. Passado algum tempo, o crime entrou no esquecimento e o criminoso pode estar regenerado. A este propósito escreve o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português. As Consequências, p. 699: «[...] quem for sentenciado por um facto há muito tempo cometido e mesmo porventura esquecido, ou quem sofresse a execução de uma reacção criminal há muito tempo já ditada correria o sério risco de ser sujeito a uma sanção que não cumpriria já quaisquer finalidades de socialização ou de segurança [...]». V. também, no mesmo sentido, o Prof. Eduardo Correia, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 108, n.º 3560, pp. 361 e segs., em «Anotação ao Assento de 19 de Novembro de 1975».
E o alarme social e o desejo de justiça de que falamos e a reacção da comunidade são maiores quanto mais graves sejam os ilícitos, pelo que o decurso do tempo prescricional é directamente proporcional à gravidade da infracção. Maior gravidade, mais extenso o prazo.
Em obediência a este princípio, e dentro da lógica do sistema, é que o legislador elaborou a norma do artigo 117.º, elencando as alíneas a), b), c) e d) em ordem decrescente da gravidade do delito (cf. norma transcrita supra) de tal modo que a sua inter-relação mostra que uma delas deve ter precedência sobre a outra.
Daqui emerge que na alínea b) está previsto o prazo de prescrição para crimes mais graves e na alínea c) o prazo de prescrição para crimes menos graves.
Os inseridos na alínea b) têm uma penalidade cujo limite máximo é igual ou superior a 5 anos, pelo que na alínea c) não podem ser subsumidos os que tenham uma penalidade máxima igual a 5 anos, sob pena de haver uma sobreposição e a finalidade em vista não ser alcançada.
Assim, respeitando a graduação da norma em referência e a precedência entre as várias alíneas, a sua alínea c) quando refere «um limite máximo ou superior a 1 ano, mas que não exceda 5 anos», a expressão «mas que não exceda 5 anos», nela contida, tem de ser interpretada como querendo significar: «mas inferior a 5 anos» «que não atinja 5 anos». Pois, só assim será respeitada a vontade do legislador e a coerência do sistema.
Aliás, também o elemento histórico da interpretação da lei auxilia nessa solução.
Com efeito, o autor do projecto do novo código penal, redacção do Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro, havia proposto uma redacção para o artigo correspondente àquele artigo 117.º Tal redacção era:
«A acção penal extingue-se por efeito de prescrição quando decorrerem:
1 - ...
2 - 10 anos, tratando-se de crimes para os quais a lei preveja pena de prisão com um limite máximo igual ou superior a 5 anos.
3 - 5 anos, tratando-se de crimes para os quais a lei preveja pena de prisão com uma duração mínima superior a 1 ano e máxima inferior a 5 anos.» (Cf. Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal Parte Geral, fls. 217 e segs.)
Aquela redacção, correspondente à vontade do legislador, era clara e precisa, evitando quaisquer interpretações enviesadas, mas não passou, na sua genuinidade, para a redacção definitiva.
Porém, como a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir, a partir do texto, o pensamento do legislador tendo sobretudo em conta a unidade do sistema (cf. artigo 9.º do Código Civil), a solução encontrada, e que acima foi referida, está de acordo com esta regra interpretativa tendo também um mínimo de correspondência verbal na norma (citado artigo do Código Civil).
Aliás, nesse sentido, além do acórdão fundamento, já foi decidido em vários outros acórdãos (cf. Acórdão da Relação de Coimbra de 27 de Abril de 1988, in Colectânea de Jurisprudência, ano XIII, 1988, t. 2, fl. 103; Acórdão da Relação do Porto de 21 de Maio de 1986, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 357, fl. 493; Acórdão da Relação de Évora de 2 de Dezembro de 1987, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 372, fl. 491; Acórdão da Relação do Porto de 6 de Novembro de 1991, in Processo, n.º 684/91).
Acresce que o próprio legislador se viu na necessidade de clarificar o texto legal, tendo aproveitado a revisão do Código levada a efeito pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, para o fazer vindo, agora, com precisão, estatuir na alínea c) do n.º 1 do artigo 118.º do Código Penal e que corresponde ao artigo 117.º do Código Penal de 1982, que o procedimento criminal extingue-se por efeito de prescrição logo que sobre a prática do crime tiver decorrido «5 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a 1 ano, mas inferior a 5 anos». Sublinhamos mas inferior a 5 anos.
Por todo o exposto, decide-se:
a) Conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público;
b) Revogar o acórdão recorrido;
c) Nos termos do preceituado no artigo 445.º do Código de Processo Penal, fixar a seguinte jurisprudência:
No Código Penal de 1982 (redacção do Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro), e em crime a que for aplicável pena com limite máximo igual ou superior a 5 anos de prisão, o procedimento criminal extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do crime sejam decorridos 10 anos, o que resulta do seu artigo 117.º, n.º 1, alíneas b) e c).
Cumpra-se o artigo 445.º do Código de Processo Penal.
Sem tributação.
Lisboa, 16 de Novembro de 2000. - José Damião Mariano Pereira (relator) - Luís Flores Ribeiro - Norberto José Araújo de Brito Câmara - Virgílio António da Fonseca Oliveira - Armando Acácio Gomes Leandro - Emanuel Leonardo Dias - António Gomes Lourenço Martins - Manuel de Oliveira Leal-Henriques - Sebastião Duarte Vasconcelos da Costa Pereira - António Correia de Abranches Martins - António Luís de Sequeira Guimarães - Dionísio Manuel Dinis Alves - José António Carmona da Mota - António Pereira Madeira - Manuel José Carrilho de Simas Santos - Álvaro José Guimarães Dias - Hugo Afonso dos Santos Lopes - Florindo Pires Salpico - Bernardo Guimarães Fisher de Sá Nogueira (com a declaração de que votei uma formulação da doutrina que tornasse claro que haverá sempre lugar à aplicação da ressalva do desconto do prazo de suspensão da prescrição).