Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 4/2015
Acórdão do STA de 22-04-2015, no Processo 1957/13
Processo 1957/13 - 2ª Secção
Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. A UNIVERSIDADE DE COIMBRA interpõe recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra que julgou procedente a oposição que A... deduziu à execução fiscal contra si instaurada para cobrança de dívida proveniente da falta de pagamento de propina respeitante ao ano lectivo de 2003/2004, julgando extinta, por prescrição, a dívida exequenda.
1.1. Terminou a sua alegação de recurso com as seguintes conclusões:
A. Vem o presente recurso interposto pela recorrente Universidade de Coimbra da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra nos autos em epígrafe, sentença que considerou procedente a oposição à execução deduzida pelo oponente A... considerando extinto, por prescrição, o crédito exequendo, nos termos do artigo 204º, nº 1, d), do CPPT.
B. O Tribunal a quo julgou incorrectamente a questão suscitada na oposição à execução, relativamente ao início da contagem do prazo da prescrição. Entendeu o Tribunal a quo que «(...) aplicar ao termo inicial do prazo de prescrição do tributo aqui em causa a regra estabelecida para os impostos de obrigação única ou para os impostos periódicos, configura uma analogia legalmente proibida. Deste modo, tal termo inicial apenas pode ser o que resulta da lei geral - art. 306º do Código Civil - segundo o qual o prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido (...)».
C. Ao não aplicar ao caso em apreço, ainda que subsidiariamente, as regras de contagem do prazo de prescrição previstas no art. 48º da LGT, a decisão recorrida decidiu em sentido oposto a outra decisão proferida pelo Supremo Tribunal Administrativo, em concreto no acórdão do STA de 8/03/1995, proferido no âmbito do processo 018842. Se a decisão recorrida aplica o prazo de prescrição de oito anos, previsto no art. 48º da LGT, à propina reclamada pela exequente nos presentes autos, terá, por maioria de razão, que aplicar as regras de contagem do prazo previstas no mesmo normativo.
D. A aplicação das regras de contagem do prazo previsto no art. 48º da LGT ao caso em apreço não constitui aplicação analógica, mas, maxime, extensiva ou subsidiária.
E. Nas obrigações tributárias decorrentes de impostos periódicos, salvo lei especial, a prescrição começa a correr a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e nos impostos de obrigação única a partir da data em que o facto tributário ocorreu (nº 1 do art. 48º da LGT, na redacção da Lei 55-B/2004, de 30/12).
F. A norma do art. 48º da LGT aplicar-se-á em toda a sua extensão, quer quanto ao prazo quer quanto ao modo de contagem do mesmo, à propina reclamada nos presentes autos; e se assim se não entender, terá então a mesma norma que se aplicar extensiva ou subsidiariamente à dívida reclamada nos presentes autos, e não a norma do art. 306º do Código Civil.
G. A decisão recorrida está em manifesta oposição com a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, segundo a qual, no específico campo aduaneiro, o instituto da prescrição das obrigações, à míngua de preceito legal directamente aplicável, será contemplado, subsidiariamente, pelo regime da prescrição das obrigações tributárias em geral; devendo aplicar-se, quanto à contagem do prazo da prescrição, subsidiariamente, as regras plasmadas no art. 48º da LGT e não o regime do Código Civil (V. ac. do STA 8/03/1995, proferido no âmbito do processo 018842, disponível em www.dgsj.pt).
H. Deverá a decisão recorrida ser substituída por outra que considere como início da contagem do prazo de prescrição o dia 01/01/2005 e, em sua consequência, deverá julgar-se improcedente a oposição deduzida pelo oponente.
Deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida na parte em que considera aplicável ao caso em apreço o art. 306º do Código Civil para efeitos de contagem do prazo de prescrição da dívida exequenda e proferir-se acórdão considere como início da contagem do prazo de prescrição o dia 01/01/2005, ao abrigo do disposto no art. 48º da LGT e em consequência considere improcedente a oposição deduzida pelo oponente. Assim se fazendo Justiça!
1.2. Não foram apresentadas contra-alegações.
1.3. O Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido de que não se devia tomar conhecimento do recurso, porquanto o acórdão referenciado nas conclusões do recurso tem estrita aplicação à questão da prescrição de obrigações tributárias aduaneiras, não podendo servir de fundamento para sustentar uma "solução oposta" sobre a "mesma questão de direito" no que toca à questão da prescrição de obrigações jurídicas emergentes de propinas.
1.4. Notificadas as partes do teor desse parecer, veio a Recorrente juntar aos autos certidões de seis sentenças proferidas por diversos tribunais tributários (TAF de Coimbra, Aveiro e Braga), proferidas nos processos nºs 757/12.6BECBR, 26/13.4BEBRC, 38/13.8BEAVR, 256/13.9BEAVR, 755/13.2BEBRG e 767/13.6BEBRG, que, alegadamente, deram solução divergente da adoptada na sentença recorrida à questão da prescrição da obrigação jurídica emergente de propinas.
1.5. Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre decidir.
2. Na sentença recorrida julgaram-se como provados os seguintes factos:
A. No dia 24/09/2003, o oponente matriculou-se no curso de licenciatura em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores da Universidade de Coimbra, do ano letivo de 2003/2004.
B. Através da carta datada de 01/07/2012, a Universidade de Coimbra notificou o oponente para pagar a dívida proveniente de propinas e juros respeitante ao curso de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do ano letivo de 2003/2004 - fls.12.
C. Em 10/08/2012 a Universidade de Coimbra emitiu a Certidão de Dívida nº 2012/20082, de fls. 29 que se dá por integralmente reproduzida, com base na qual foi instaurada contra o oponente a execução fiscal n.2 0736201201010972 - fls. 27.
D. O oponente foi pessoalmente citado para a execução fiscal no dia 31/08/2012 - fls. 33 e 34.
3.1. O presente recurso foi interposto ao abrigo do regime contido na norma do nº 5 do artigo 280º do CPPT, previsto para os casos em que a decisão recorrida perfilha solução oposta à adoptada em mais de três sentenças de tribunal de igual grau ou à adoptada em decisão de tribunal de hierarquia superior. Trata-se de um recurso ordinário para causas cujo valor não ultrapasse a alçada fixada para os tribunais tributários de 1ª instância, o que impediria, em princípio, o recurso (cfr. o nº 4 do art. 280º na redacção vigente à data da instauração deste processo de oposição, isto é, na redacção anterior à alteração introduzida pela Lei 82-B/2014, de 31.12).
Embora o valor da presente causa não ultrapasse um quarto das alçadas fixadas para os tribunais judiciais de 1ª instância, o recurso será admissível desde que se verifiquem os seguintes requisitos: as decisões em confronto perfilhem «solução oposta» estando em causa o «mesmo fundamento de direito» e ocorra «ausência substancial de regulamentação jurídica». O que pressupõe, naturalmente, uma identidade dos factos subjacentes (que terão de ser essencialmente os mesmos do ponto de vista do seu significado jurídico) e uma identidade do regime jurídico aplicado (ainda que em invólucros legislativos diferentes), pois que sem essa identidade não será possível vislumbrar a emissão de proposições jurídicas opostas sobre a mesma questão fundamental de direito, nem se poderá atingir o fim visado com este tipo de recurso, que é o de assegurar o valor da igualdade na aplicação do direito.
Tal recurso segue a tramitação dos recursos previstos no artigo 280º do CPPT, com a disciplina constante dos artigos 281º e 282º desse diploma legal, e não a tramitação prevista no artigo 284º do CPPT, pelo que nele não há, após o despacho de admissão do recurso, uma fase processual de alegações tendentes a demonstrar a existência da oposição de julgados seguida de despacho judicial de apreciação sobre a existência dessa oposição.
Ao recorrente basta, pois, afirmar, no requerimento de interposição do recurso e com vista a vê-lo admitido, que interpõe o recurso ao abrigo da norma contida no nº 5 do artigo 280º, evocando a existência de arestos que suportam a oposição de julgados que o preceito desenha e define, de forma a viabilizar a pronúncia judicial sobre a admissibilidade legal do recurso, sendo que, no caso de não proceder imediatamente à junção de cópia desses arestos, deve o Juiz convidá-lo a fazê-lo antes da pronúncia judicial sobre a admissibilidade do recurso.
Pelo que, uma vez proferido despacho de admissão do recurso nos termos indicados e requeridos, o recorrente não está obrigado a retomar essa matéria da admissibilidade do recurso nas alegações e conclusões do recurso que posteriormente tem de apresentar nos termos previstos no nº 3 do artigo 282º do CPPT. Razão por que, ao contrário da posição sustentada pelo Ministério Público, este Tribunal não pode recusar o conhecimento do recurso com fundamento no teor das conclusões do recorrente, particularmente por estas se cingirem a referenciar um acórdão do STA sobre a questão da prescrição de obrigações tributárias aduaneiras e que não pode servir de fundamento para sustentar uma oposição de julgados com a decisão recorrida.
Todavia, dado que a decisão de admissão do recurso não vincula o tribunal superior, importa aferir se efectivamente existe a invocada oposição de julgados, tendo em conta que entretanto a recorrente juntou aos autos certidões de seis sentenças proferidas por diversos tribunais tributários de 1ª instância.
A sentença recorrida, depois de ter concluído que a propina constituía uma taxa sujeito ao regime de prescrição contido nos artigos 48º e 49º da LGT, julgou que, não obstante, tais normas não podiam ter aplicação no que se refere ao termo inicial do prazo de prescrição da propina, por se referirem, tão só, a impostos. Razão por que concluiu pela necessidade de, nesse único aspecto, aplicar as normas do Código Civil. Nesse contexto, julgou que o dies a quo teria de coincidir com o fim do prazo para pagamento da propina.
Ora, as seis sentenças juntas aos autos pela recorrente para servir de fundamento à oposição de julgados apreciaram a mesma questão, mas decidiram que as propinas, enquanto taxas, estavam integralmente sujeitas ao regime jurídico da prescrição contido na Lei Geral Tributária, particularmente ao disposto no nº 1 do artigo 48º sobre o termo inicial do prazo de prescrição de 8 anos aí previsto.
Sendo assim, não há dúvida que as decisões em confronto convocaram realidades factuais semelhantes e apelaram às mesmas normas jurídicas, decidindo de modo oposto a mesma questão fundamental de direito.
Tanto basta para se concluir que se verificam os requisitos previstos no n.º 5 do artigo 280º do CPPT, razão pela qual passaremos de imediato ao conhecimento do mérito do recurso, avaliando se a decisão recorrida decidiu, ou não, com acerto.
3.2. Tal como decorre da leitura da sentença recorrida, a questão em debate neste processo de oposição a execução fiscal é a da prescrição da dívida exequenda (propina respeitante ao ano lectivo de 2003/2004). O Tribunal a quo, depois de concluir que a propina constituía um tributo (taxa) sujeito ao regime de prescrição contido nos artigos 48º e 49º da LGT, designadamente no que concerne ao prazo aplicável (que considerou ser o «de 8 anos genericamente previsto na LGT para os tributos»), julgou que, não obstante, essa aplicação não podia ocorrer no que se refere ao momento que o artigo 48º indica para o início desse prazo, por virtude de este se referir apenas a impostos periódicos e a impostos de obrigação única. Razão por que concluiu pela necessidade de, nesse único aspecto, aplicar as normas do Código Civil. Nesse contexto, julgou que o dies a quo do prazo de prescrição teria de coincidir com o fim do prazo para pagamento da propina, pois que segundo este Código o prazo de prescrição só começa a correr quando o direito puder ser exercido.
Com efeito, na sentença julgou-se que «aplicar ao termo inicial do prazo de prescrição do tributo aqui em causa a regra estabelecida para os impostos de obrigação única ou para os impostos periódicos configura uma analogia legalmente proibida. Deste modo, tal termo inicial apenas pode ser o que resulta da lei geral - Art. 306º do Código Civil - segundo a qual o prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido.
A apesar de a Lei 37/2003, de 22/08, fixar o valor das propinas para o ano da sua publicação, nada previu relativamente ao(s) respetivo(s) prazo(s) de pagamento que apenas viriam a ser determinados, para a Universidade de Coimbra, através do Regulamento 50/2003, publicado no DR II Série, nº 244, de 21/10/2003. Dispunha o ponto 3º do dito regulamento que "a propina poderá ser paga de uma só vez até ao último dia de Novembro do respectivo ano lectivo ou em três prestações, vencendo-se a primeira na data acima referida e as duas restantes no último dia dos meses de Fevereiro e Maio seguintes".
Afigura-se, assim, que o dies a quo do prazo de prescrição das propinas coincide com a data do termo de prazo de pagamento, que variará consoante o estudante opte pelo pagamento único ou em três prestações, já que só após o respetivo decurso é possível à entidade credora exercer o seu direito à cobrança coerciva, No entanto, se nenhum valor se mostrar pago até ao último dia de Novembro, o aluno já se encontrará em mora relativamente à totalidade do valor devido se não expressou, ainda que implicitamente, a vontade de proceder ao pagamento em prestações.».
Todavia, na óptica da recorrente, o disposto no artigo 48º da LGT deve ser aplicado em toda a sua extensão às dívidas provenientes de taxas/propinas. Argumenta que tendo a sentença aplicado o prazo de prescrição de oito anos nele previsto para os tributos, teria, por maioria de razão, de aplicar as regras que a mesma norma prevê para a contagem desse prazo; além de que a aplicação da norma na sua integralidade sempre se imporia quanto a estas taxas, dada a sua natureza de tributos e a necessidade de interpretação extensiva do preceito a dívidas tributárias, sendo inadequada e incorrecta a aplicação do artigo 306º do Código Civil.
Daí que as questões colocadas no recurso e que têm de obter pronúncia expressa por este Tribunal, até porque se está perante um recurso por oposição de julgados, com julgamento ampliado para intervenção de todos os Juízes da Secção, são as de saber: (i) se o termo inicial do prazo de prescrição das taxas deve ser procurado nas normas do Código Civil ou nas normas da Lei Geral Tributária; (ii) face à resposta que seja obtida, saber qual é, então, o dies a quo do prazo de prescrição da propina que constitui a dívida exequenda.
Vejamos.
Desde logo, cumpre destacar que não existe dissídio no que toca à caracterização jurídica do conceito de propina. Tanto a sentença recorrida como as sentenças fundamento o caracterizaram, e bem, como sendo a contraprestação pecuniária devida pelo particular (estudante) pelo serviço público de ensino que lhe é prestado por uma instituição pública de ensino superior, e que é imposta por lei, já que não cabe a estas instituições criar a obrigação, mas, tão-somente, fixar o seu montante dentro dos parâmetros definidos na lei.
Importa, todavia, dissecar melhor o conceito, tendo em conta a especificidade da questão colocada no recurso e a necessidade de apurar se o acervo normativo contido na Lei Geral Tributária, particularmente no que concerne à prescrição de dívidas tributárias, é ou não integralmente aplicável às propinas e, no caso afirmativo, clarificar em que consiste o respectivo facto tributário e a data em que ele ocorre com vista a definir o momento do termo inicial desse prazo de prescrição face ao disposto no artigo 48º da LGT.
Na tipologia que veio a ser consagrada pela Lei Geral Tributária, as taxas podem consistir: (i) na prestação de um serviço público a um particular, (ii) na utilização privativa de bens de domínio público ou semipúblico, ou (iii) na remoção de obstáculos jurídicos ao comportamento dos particulares (artigo 4º).
É, portanto, distinta a taxa pela utilização de bens públicos (onde o facto gerador da taxa é a disponibilização desse tipo de bens para uma utilização individualizada no interesse do sujeito passivo), da taxa pela prestação de um serviço público (onde o facto gerador da taxa é a prestação do serviço em si), da taxa pela remoção de limite jurídico (as denominadas licenças, onde o facto gerador da taxa é a actividade pública de verificação das condições indispensáveis à remoção do limite jurídico e no levantamento da proibição imposta ao comportamento dos particulares)(1). E as taxas distinguem-se dos preços pagos por utentes de serviços públicos, questão que, todavia, não importa aqui cuidar.
Nesta medida, a propina, que assenta num esquema sinalagmático de retribuição de um serviço público de ensino que tem de ser efetivamente prestado pelo ente público ao estudante, constitui, indubitavelmente, a contraprestação pecuniária que por este é devida pela prestação desse serviço, ou taxa de frequência das disciplinas ou unidades curriculares do curso que lhe vão ser ministradas e que têm duração semestral ou anual. Aliás, o próprio Regulamento da Universidade de Coimbra define a propina como "taxa de frequência", em consonância com o disposto no art. 15º da lei que estabelece as bases de financiamento do ensino superior (Lei 37/2003, de 22 de Agosto), segundo o qual a comparticipação nos custos do ensino superior que cabe aos estudantes consiste no pagamento «de uma taxa de frequência, designada por propina».
Deste modo, o cerne da definição de propina encontra-se no conceito de sinalagma, o qual, como clarifica SALDANHA SANCHES(2), tem de incluir um equilíbrio interno que passa pela necessidade de a prestação pública envolver algum facere dispendioso que beneficie o sujeito passivo de forma individualizável. E o seu pressuposto de facto consiste na actividade de prestação de um concreto, efectivo e individualizado serviço público de ensino ao estudante (sujeito passivo), sendo a propina a contrapartida pela prestação desse serviço.
Todavia, o sinalagma não implica a contemporaneidade ou a simultaneidade das prestações. Nem a Constituição nem a lei obrigam a que exista uma coincidência temporal entre as prestações (do sujeito passivo e do sujeito activo), isto é, uma coincidência temporal entre o pagamento da propina e a efectivação da prestação de serviço de ensino correspondente.
Trata-se, portanto, de um tributo cujo facto tributário consiste na prestação de um serviço público e não de tributo cujo facto tributário consista na utilização de bens públicos ou no acto de admissão à utilização desses bens.
E, por isso, a propina impõe à recorrente Universidade de Coimbra uma efectiva e individualizada prestação de serviço público de ensino a favor do estudante, ora recorrido, sendo essa prestação o facto pressuposto da obrigação de pagar a propina.
Por conseguinte, não podemos deixar de acompanhar JOSÉ CASALTA NABAIS quando afirma, no parecer junto aos autos, que «as propinas têm por pressuposto de facto ou facto gerador a prestação concreta de um serviço público, isto é, o serviço de ensino superior público, que na sua atual configuração é parcialmente pago pelos estudantes que frequentam esse ensino. Uma conclusão que, ao que nos é dado saber, tem beneficiado da total unanimidade partilhada pelo legislador, pela doutrina e pela jurisprudência».
Em suma, na propina universitária, enquanto relação jurídica tributária bilateral, temos de um lado a instituição pública de ensino superior (sujeito activo), que se obriga a prestar ao aluno um serviço de ensino num determinado ciclo de estudos, e do outro lado temos o aluno (sujeito passivo), que se obriga a pagar a contrapartida pecuniária pela frequência ou fruição desse serviço durante um período de tempo, sendo que, como frisa NUNO DE OLIVEIRA GARCIA(3), nesta relação jurídica «a questão nodal prende-se assim com a indispensabilidade de uma contrapartida administrativa efectiva, ainda que a liquidação ocorra de uma forma periódica».
E ainda que a liquidação e/ou o pagamento da propina sejam, por força de imposição legal, prévios à prestação do serviço ou ao momento em que este se completa, ela pressupõe sempre a efectividade dessa prestação futura, a qual, em regra, tem duração anual (um ano lectivo), assentando, portanto, num facto naturalisticamente duradouro, que vai sendo executado ao longo do ano e que só se completa quando a prestação do serviço termina.
Como destaca NUNO DE OLIVEIRA GARCIA(4), quando a taxa se traduz na «prestação efectiva do ente público a favor do contribuinte, o momento da liquidação deverá reflectir essa especialidade, criando uma dependência mais ou menos intensa entre o início da prestação e o momento da liquidação, salvaguardadas as diferenças entre os pressupostos legitimadores de cada tipo de taxa (...). Por outro lado, é certo que a figura da taxa tende a evocar uma ideia de instantaneidade, pelo que é difícil aceitar as operações que envolvem a liquidação lato sensu, bem como o seu pagamento enquanto não estiver executada a actividade ou prestado o serviço respetivo, aspecto no qual nos parece ter andado bem o legislador ao consagrar o artigo 10º do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais. Mas isso não colide com o facto de ser possível a liquidação de taxas cuja prestação administrativa seja futura, como sucede com os exemplos clássicos das propinas universitárias pagas no início do ano lectivo e das portagens exigidas à entrada de uma auto-estrada ou com a taxa de justiça inicial paga com a entrega em juízo da primeira peça processual. É que, como chama a atenção Sérgio Vasques, uma prestação não deixa de ser certa pela circunstância de não ser presente, pelo que o particular, assim que paga a taxa, "fica no efectivo direito de usufruir do bem ou serviço em causa". (...). Uma vez paga a taxa, o particular pode exigir a realização da prestação, ainda que dela possa não fazer uso - já se sabe, o aluno pode faltar às aulas, o veículo pode ficar avariado na berma da auto-estrada, quem dá causa a uma acção judicial dela pode, em regra, desistir. Uma última conclusão prática a retirar: depois da taxa paga, se o ente administrativo recusar prestar a actividade ou o serviço, ou se tal actividade ou serviço não tiver sido realizada por causa não imputável ao particular, este poderá sempre exigir a devolução do valor pago.». (sublinhado e negrito nosso).
Nas elucidativas palavras de SÉRGIO VASQUES(5), o facto de as taxas assentarem em prestações efectivas não significa que tenham de constituir sempre prestações presentes, já que podem constituir prestações futuras. «Exemplo disso encontramo-lo nas propinas universitários que se exigem dos alunos no início do ano lectivo, antes de prestados os serviços de ensino de que as propinas constituem a contrapartida (...).
O facto de nestes casos ser futura a prestação administrativa que a taxa visa remunerar não se afigura só por si problemático no plano conceitual, visto que o aproveitamento da prestação fica ao critério do particular e nunca na dependência da administração.
Afinal, uma contraprestação não deixa de ser certa pelo facto de ser futura, sendo que, paga a taxa, o particular fica efetivamente investido no direito de usufruir da prestação administrativa, venha ou não a exercê-lo. Assim, sempre que a prestação administrativa que se visa compensar seja certa, ainda que futura a sua realização, está-se perante verdadeira taxa, pois que o momento em que é pago um tributo público não releva à sua qualificação.
(...). As mais das vezes existe nas taxas, portanto, uma concordância entre o pressuposto tributário, formado pela prestação efectiva de bens ou serviços, e a respectiva finalidade, que está na compensação do custo ou valor dessas mesmas prestações» (sublinhado e negrito nosso).
E como destaca este ilustre fiscalista noutra obra, ainda que a propósito de taxas locais(6), «Via de regra o pagamento da taxa local é feito no mesmo momento em que é realizada a prestação autárquica, como sucede quando se exige uma taxa na própria ocasião em que há lugar à fiscalização de pesos e medidas, ou em momento posterior àquele em que é realizada a prestação autárquica, como sucede quando se exige o pagamento de taxa pela utilização de um recinto de espetáculos depois de realizado o evento em questão. O pagamento da taxa local pode também ser exigido do particular em momento anterior àquele em que é realizada a prestação autárquica, como sucede sempre que no início do ano se ponham a pagamento as taxas de ocupação do domínio público correspondentes a todo o período anual.
A exigência de taxas locais em contrapartida de prestações futuras não lhes desvirtua a natureza, pois que as prestações futuras não deixam por isso de ser prestações certas, conferindo o pagamento antecipado da taxa um direito ao aproveitamento do bem ou serviço que o particular pode ou não exercer mas que em qualquer caso não fica já na disponibilidade da administração. Neste sentido, mas apenas neste exacto sentido, podemos acolher a noção, de outro modo enganadora, de que as taxas podem ser exigidas pela "possibilidade" de utilização de uma prestação pública, uma noção retomada pelos nossos tribunais com alguma frequência e com raiz nos trabalhos de José Joaquim Teixeira Ribeiro [1985].» (nosso sublinhado).
Neste mesmo sentido, da concreta qualificação das propinas como taxas pela prestação de um serviço público, pode ainda ver-se na doutrina o Parecer do Conselho Consultivo da PGR nº P000731994, de 9/02/1995, e SÉRGIO VASQUES, "O Principio da Equivalência como Critério de igualdade Tributária", Almedina, 2008, pag. 152 e 159/161. E na jurisprudência os Acórdãos do STA de 11/03/1997, no proc. nº 041144, e de 20/11/1997, no proc. nº 041867.
É, pois, inquestionável que a propina constitui uma taxa, uma obrigação tributária, cujo regime jurídico deve, por isso, em princípio, ser procurado na Lei Geral Tributária, não só por força do nº 2 do seu artigo 3º, que a inclui na categoria de "tributos", como por força do seu artigo 1º, onde se preceitua que esta Lei regula "as relações jurídico-tributárias", que define como sendo as "que são estabelecidas entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e colectivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas" (nº 2), elucidando o seu nº 3 que integram a administração tributária, para além de outras entidades, as "legalmente incumbidas da liquidação e cobrança de tributos".
Esta aplicação das normas da Lei Geral Tributária a todos os tributos (impostos ou taxas) é aceite, de forma pacífica, pela doutrina e pela jurisprudência.
Segundo NUNO DE OLIVEIRA GARCIA(7), pese embora às taxas não seja possível uma colagem integral ao regime da Lei Geral Tributária, tal «não significa contudo que esta lei não contenha um conjunto de dispositivos legais que devam ser aplicados àquelas figuras. Explana o preâmbulo da Lei Geral Tributária que a sua aprovação visou «a concentração, clarificação e síntese em único diploma das regras fundamentais do sistema fiscal», logo estatuindo todavia o texto legal que as taxas e contribuições financeiras seriam sujeitas a um «regime geral próprio a aprovarem lei especial». Pretendia-se assim a aprovação de um regime geral que, ao contrário da Lei Geral Tributária, tivesse a natureza de lei reforçada. (...)
(...)
Acontece, porém, que o legislador não deu ainda cumprimento à imposição legislativa que resulta da citada norma constitucional, não tendo sido ainda aprovado o Regime Geral das Taxas, pelo que as normas da Lei Geral Tributária devem aplicar-se - e têm mesmo que se aplicar, na ausência de normas especiais - às taxas e contribuições. Situação para a qual, de algum modo, António de Sousa Franco tinha alertado logo no início da década de noventa e, portanto, anos antes da publicação da Lei Geral Tributária. De acordo com o Professor, «[e]m Portugal é hoje muito limitado o âmbito de um possível regime jurídico comum dos tributos - ainda que deva considerar-se que o regime geral dos impostos pode, se conforme à respectiva natureza, integrar supletivamente a moldura legal dos outros tributos».
A este respeito, o Supremo Tribunal Administrativo teve oportunidade de esclarecer a posição que temos vindo a explanar. No acórdão datado de 27 de Outubro de 2004, proferido no processo 0627/04, ao tribunal foi solicitada a pronúncia sobre a alegação de que, não existindo uma norma a prever, de forma expressa, a aplicação da Lei Geral Tributária às taxas, teria de se entender que o regime constante da referida lei apenas seria aplicável às taxas a título de analogia legis como método de integração de lacunas. (...) Não hesitaria, contudo, muito acertadamente, o Supremo Tribunal Administrativo em considerar indefensável o entendimento de que a Lei Geral Tributária e, em concreto, o artigo 78º, não são aplicáveis à liquidação das taxas.».
Pelo que, como conclui este destacado fiscalista, «não sendo originalmente arquitectada para regular situações jurídicas em matéria de taxas, as normas da Lei Geral Tributária aplicam-se às taxas, naturalmente na medida em que não se revelem incompatíveis com a própria natureza das taxas».
Identicamente, BENJAMIM SILVA RODRIGUES(8) refere que a obrigação tributária corresponde a uma obrigação pública de pagamento de certa quantia ao credor tributário, «expresse-se ela num imposto ou numa taxa», e embora impostos e taxas assentem em diferentes pressupostos materiais constitucionalmente justificantes, o certo é que «todos os tributos, seja qual for o seu tipo, constituem direitos indisponíveis», razão por que a «prescrição só se aceita enquanto expressamente prevista pela lei tributária», estando a prescrição de todas estas obrigações «sujeitas rigorosamente ao princípio da legalidade tributária de reserva de lei formal» e vigorando inteiramente nesta matéria o «princípio da tipicidade fiscal». «Deste modo, elementos como a fixação do prazo, a definição do dies a quo em função do tipo de imposto como periódico ou de obrigação única, a enunciação das suas causas de interrupção ou suspensão, a relevância ou irrelevância da citação para quaisquer desses efeitos têm de constar de lei com tal valor e só poderá atender-se, para o efeito, aos aí tipificados», não sendo possível, nesta matéria, aceitar «a tese de quem busca no Código Civil a solução para certas faltas de normação em matéria de prescrição tributária quando confrontadas, quer com o regime estipulado relativamente a outros elementos do tributo, quer com o regime de prescrição de direitos estipulado naquele diploma substantivo.».
Posto isto, e visto que a sentença recorrida julgou, e bem, que as normas contidas nos artigos 48º e 49º da LGT sobre o prazo e as causas interruptivas e suspensivas da prescrição de dívidas tributárias eram aplicáveis às taxas/propinas, resta saber se errou ao julgar que lhes era todavia inaplicável a regra contida no nº 1 desse artigo 48º sobre o início do curso desse prazo, por a norma se referir, tão só, a impostos periódicos e a impostos de obrigação única, sendo antes aplicável a regra do artigo 306º nº 1 do C.Civil, segundo a qual «O prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo de prescrição».
Para o efeito convém recordar que uma das características da prescrição de obrigações tributárias é a de que estão rigorosamente sujeitas ao princípio da legalidade tributária de reserva da lei formal, integrando-se nas "garantias dos contribuintes" a que alude o nº 2 do artigo 103º da CRP. Aliás, a Lei Geral Tributária veio declarar expressamente que os prazos de prescrição estão sujeitos ao princípio da legalidade tributária [art. 8º, nsº 1 e 2, alínea a)].
Neste contexto, todos os pressupostos constitutivos da prescrição, designadamente no que concerne à fixação do seu prazo e início do seu curso têm de constar da lei da Assembleia da República ou de decreto-lei emitido sob sua autorização, sendo inadmissível a sua aplicação analógica ou o apelo às regras contidas noutro tipo de diplomas legais para a sua determinação [art. 11º, nº 4]. Razão por que só quanto a aspectos da prescrição que não encontrem especial regulação na Lei Geral Tributária podem ter aplicação subsidiária as disposições do Código Civil com as necessárias adaptações.
Nas palavras de BENJAMIM DA SILVA RODRIGUES(9), «Integrando-se a prescrição nos elementos essenciais do imposto, o seu prazo há-de ser, em regra, aquele que está fixado na lei reguladora de tais elementos essenciais à data da constituição da obrigação tributária». E essas leis reguladoras sempre centraram o início do curso da prescrição das obrigações tributárias no facto tributário, o qual é constituído pelo facto material que preenche os pressupostos legais da norma de incidência do tributo e que determina o nascimento da obrigação tributária.
Ou seja, a lei fiscal nunca previu, mormente para as situações em que por força da atribuição de uma isenção de tributação se impediu a norma de incidência de operar e se obstruiu a eclosão imediata da obrigação tributária, que deixasse de relevar, para efeitos de prescrição, o momento da ocorrência do facto tributário, e que passasse a relevar o momento da liquidação ou do pagamento do tributo.(10) Deste modo, e como também frisa BENJAMIM DA SILVA RODRIGUES(11), a prescrição da obrigação tributária «pode até ocorrer sem que tenha tido lugar o acto de liquidação, dado que a mesma está referida directamente à dívida tributária e aos factos tributários.».
E o tecido textual das normas fiscais sobre a prescrição (que tem de ser a principal referência e ponto de partida do intérprete) não permite fazer a interpretação de que o início do curso da prescrição de tributos não radica no facto tributário mas no momento em que se liquidam ou tornam exigíveis, pois tal sentido extravasa claramente da letra da lei.
A este propósito, JORGE LOPES DE SOUSA(12) salienta que enquanto nas obrigações de natureza civil o prazo da prescrição não começa a correr enquanto o direito não puder ser exercido (art. 306º nº 1 do CC) e que se a dívida for ilíquida o prazo só se inicia após o seu apuramento (art. 306º nº 4 do CC), já nas obrigações de natureza tributária não é assim: nestas, salvo lei especial, a prescrição começa a correr a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário nos impostos periódicos, ou a partir da data em que o facto tributário ocorreu nos impostos de obrigação única.
Por isso se compreende que a Lei que aprovou o regime geral das Taxas das Autarquias Locais (Lei 53-E/2006, de 29 de Dezembro) se tenha prescrito que o prazo de prescrição de oito anos se conta da data em que o facto tributário ocorreu (art. 15º).
Por todo o exposto, somos levados a concluir pela aplicabilidade, à propina universitária, das normas contidas na Lei Geral Tributária que encerra os princípios e as normas que constituem o denominador comum de todos os tributos (conquanto não haja lei especial relativa às taxas que disponha em sentido diferente) e que, no que concerne ao regime da prescrição, deve ser aplicada na sua integralidade, abrangendo não só o prazo de prescrição como, também, o início do curso desse prazo. Ao que acresce uma razão suplementar, que se prende com o resultado incongruente e inaceitável a que conduziria a aplicação do prazo de prescrição previsto na 1ª parte do nº 1 do artigo 48º da LGT e a exclusão do modo de contar esse prazo nos termos previstos no mesmo preceito legal.
A tal aplicabilidade não obsta a referência que o art. 48º faz a "impostos periódicos" e a "impostos de obrigação única", já que se pode e deve entender que a menção a "impostos" se reporta a "tributos", tendo em conta a unidade e a coerência do ordenamento jurídico-fiscal e a abrangência do poder normativo tributário que essa Lei Geral pretende regular, designadamente em matéria de garantias dos contribuintes (como é a matéria da prescrição), e tendo em conta a própria referência inicial que esse preceito faz a "dívidas tributárias".
O que, além do mais, sempre representará uma interpretação extensiva do preceito, que não é proibida por lei (só a analogia o é - cfr. art. 11º, nº 4, da LGT).
Na verdade, sabido que interpretar é descobrir o real sentido da norma jurídica, a interpretação extensiva pode e deve ocorrer sempre que se conclua que «ao exprimir o seu pensamento, o legislador pode ter adoptado uma fórmula que não abranja toda a categoria lógico-jurídica que pretendia alcançar, sendo lícito ao intérprete apoiar-se nos elementos extra-literais e fazer uma interpretação extensiva da lei, despojando o termo por ela usado das circunstâncias restritivas em que se encontrava gramaticalmente circunscrito e tornando-o idóneo para abranger a generalidade das relações que verdadeiramente visa atingir»(13).
Por isso, a interpretação extensiva deve ter lugar sempre que se chega à conclusão que a letra ficou aquém daquilo que o legislador teria querido dizer (dixit minus quam voluit), isto é, sempre que se conclua que uma norma é aplicável a casos ou situações que, embora não estando abrangidos pelo seu teor literal, se enquadram perfeita e logicamente no seu espírito, na sua ratio legis, existindo argumentos a pari (de identidade de razão) e a fortiori (de maioria de razão) para o alargamento do alcance do texto da lei a esses casos.
E porque não se pode confundir interpretação extensiva (método de interpretação de norma), com analogia (método de integração de lacunas), nada impede este tipo de actividade interpretativa da norma contida no artigo 48º da LGT, ainda que ela se encontre incluída no âmbito das "garantias dos contribuintes", de modo a que a referência nela feita a "impostos" (periódicos e de obrigação única) abranja, salvo lei especial, todos os "tributos"
Em suma, afigura-se-nos perfeitamente plausível a interpretação extensiva da norma contida no artigo 48º da LGT, porque lógico-racionalmente fundada em face da teleologia do preceito e da sua ratio, e porque todas as taxas podem ser enquadrados na categoria de "periódicos" ou de "obrigação única".
Com efeito, pese embora essa classificação esteja doutrinariamente associada a impostos, nada obsta à sua aplicação aos tributos em geral, inclusive às taxas, por inexistir uma definição legal para impostos periódicos (também designados por alguma doutrina como renováveis) e impostos de obrigação única, e os conceitos doutrinalmente elaborados que subjazem a essa classificação poderem perfeitamente ser aplicados a todos os tributos.
Segundo SOARES MARTÍNEZ(14), o critério decisivo para esta classificação doutrinal é o da permanência das faculdades contributivas que leva ao prolongamento da tributação no tempo. «Quando pode estabelecer-se uma presunção de permanência das situações, os impostos tendem a renovar-se anualmente. É o que acontece com os impostos de rendimento e com a contribuição autárquica. A situação de proprietário de um prédio, como o de comerciante ou industrial ou profissional, presume-se permanente, ou, ao menos, continuada. Por isso, as obrigações de imposto baseadas em tais situações renovam-se de ano para ano, são periódicas. Quando a tributação se baseia em situações sem continuidade, resultantes do consumo de bens, da importação de mercadorias, da aceitação de uma herança, de uma compra, o imposto não se renova, é de obrigação única. (...) // E não deverão confundir-se tais casos com a faculdade de pagamento em prestações de um imposto de obrigação única.».
Por seu turno, SUZANA TAVARES DA SILVA(15) explica que «Os impostos periódicos são aqueles que assentam numa relação jurídica duradoura, o que significa que a liquidação é efectuada periodicamente, enquanto se mantiver o pressuposto da tributação - a propriedade de um imóvel constitui um pressuposto da tributação em IMI, o mesmo é dizer que o proprietário do imóvel recebe anualmente a liquidação do imposto, verificando-se uma renovação automática da obrigação tributária, resultante da presunção da manutenção do pressuposto da tributação até comunicação em contrário aos serviços da Administração Tributária. // Os impostos de obrigação única, por seu turno, correspondem a actos isolados, mesmo quando são repartidos.».
No mesmo sentido, JOSÉ CASALTA NABAIS(16), segundo o qual os impostos periódicos são aqueles que têm na base do facto tributário um elemento temporal que tende a manter-se e a reiterar-se, esclarecendo MANUEL HENRIQUE DE FREITAS PEREIRA(17) que «Nos impostos periódicos o pressuposto de tributação apresenta uma certa característica de estabilidade ou continuidade (...). Pelo contrário, nos impostos de obrigação única esse pressuposto apresenta-se isolado e mesmo quando se possa repetir é tomado isoladamente».
Também NUNO DE SÁ GOMES(18) esclarece que «às situações permanentes, estáveis, ou que juridicamente se presumem como tais, correspondam, normalmente os impostos periódicos, isto é, os impostos que se renovam nos sucessivos períodos de tributação que, normalmente são anuais, dando origem, consequentemente, a sucessivas obrigações tributárias anuais independentes umas das outras. Por sua vez, os impostos de prestação única tributam actos ou factos isolados e dão, em regra, origem a uma única obrigação tributária que não se renova, como sucede nos impostos aduaneiros nos impostos de consumo no imposto municipal de sisa, no imposto sobre as sucessões e doações, etc. Note-se, porém, que, neste último caso, o imposto não deixa de ser de prestação única ainda quando seja pago em prestações (...)».
Finalmente, BENJAMIM DA SILVA RODRIGUES(19), clarifica que o critério de distinção dos tributos periódicos «assenta na susceptibilidade da renovação automática do facto tributário pelo mero decurso do tempo face ao tipo de imposto: tratam-se de casos em que o legislador secciona o fluxo económico contínuo em função de certo período de tempo, erigindo esta parcela à categoria de facto tributário. // Tributos de obrigação única serão os restantes. No tocante aos tributos de obrigação única, de que são exemplo as taxas, o iva, a sisa, o imposto automóvel, as contribuições para a segurança social, entre outros, o prazo [de prescrição] inicia-se no dia a seguir àquele em que o facto tributário ocorreu.».
Em suma, o critério de distinção assenta na susceptibilidade de renovação dos tributos, sendo que serão periódicos ou renováveis se for de presumir que periodicamente se renovarão, por tributarem situações que perduram no tempo, e serão de obrigação única se respeitarem a actos ou factos sem carácter repetitivo.
De todo o exposto resulta que serão taxas "periódicas" as que se renovam de forma continuada e sistemática, por se referirem a situações estáveis que perduram no tempo e que ocorrem tendencialmente com uma periodicidade regular, tendo a lei fracionado juridicamente a sua tributação no tempo, e serão taxas de "obrigação única" as que respeitam a factos ou actos ocasionais, que se caracterizam pela não regularidade da obrigação tributária, isto é, que não se repetem com carácter de periodicidade, pese embora possam ter subjacentes factos tributários que demoram certo lapso de tempo a formar-se, como acontece com taxas devidas por serviços públicos que exijam algum tempo para serem integralmente prestados.
Por isso, como evidencia NUNO DE OLIVEIRA GARCIA(20), «o universo das taxas que são liquidadas de forma periódica não compreende necessariamente aquelas taxas cujo pressuposto é meramente uma prestação concreta duradoura. Ou seja, por outras palavras, existem prestações duradouras não periódicas. Ao invés, são taxas cujos pressupostos da sua criação constituem prestações passíveis de se repetirem de forma cíclica. Para estes casos, três cenários de solução legal são possíveis: (i) a liquidação no momento do início da actividade ou do serviço, (ii) a liquidação no momento em que a actividade ou o serviço terminar, ou (iii) a liquidação em algum momento intermédio. Contudo, novamente, o que está em causa não é a efectividade da prestação aproveitada ou provocada, que tem de se verificar sempre sob pena de deixarmos de estar perante taxas, mas apenas o facto de estas se dirigirem à compensação de prestações administrativas que não são contemporâneas do momento da liquidação.
Aliás, julgamos mesmo que, tratando-se de taxas assentes em pressupostos que se repetem de forma cíclica ou periódica será em princípio menor a objecção perante uma prestação do serviço ou da actividade administrativa. (...).
Como se compreende, independentemente de se tratar de taxas liquidadas periodicamente ou de uma só vez, em causa estará a ponderação tanto das vantagens como das desvantagens da fixação da liquidação no início da actividade administrativa. (...)».
Posto isto, e voltando ao caso das propinas universitárias, já vimos que elas têm por pressuposto de facto ou facto gerador a prestação concreta de um serviço público de ensino durante, em princípio, um ano lectivo, sendo o facto tributário não o acto de matrícula em si, mas a frequência ou fruição desse serviço durante esse período prolongado de tempo.
E dizemos que o facto tributário não é a matrícula ou a inscrição, porque estes actos não consubstanciam, por si, o concreto e efectivo serviço público de ensino que tem de ser prestado e que corresponde à contraprestação paga pelo estudante.
A matrícula constitui o acto formal de admissão do estudante numa determinada instituição pública de ensino superior, constituindo um pressuposto prévio e necessário para a posterior inscrição ou solicitação que ele tem de fazer para que ela lhe preste o efectivo serviço de ensino (duradouro) em certas unidades curriculares de determinado curso. Segundo a definição dada pelo Regulamento da Universidade de Coimbra, a matrícula é o acto pelo qual o estudante se vincula à Universidade, adquire a qualidade de estudante e adquire o direito à inscrição num dos seus cursos, enquanto a inscrição é um acto distinto, é o acto que faculta ao aluno a posterior frequência das unidades curriculares de um determinado curso. A matrícula é, pois, e apenas, o acto pelo qual o estudante é admitido num estabelecimento de ensino, mas que não dá, por si só, direito à frequência do curso, à prestação do serviço de ensino, sendo necessário que ele proceda depois à inscrição nas disciplinas de um curso ministrado nesse estabelecimento para que lhe seja prestado o respectivo e efectivo serviço de ensino.
Embora se trate de actos administrativos que condicionam a admissão do particular a uma instituição pública de ensino superior, permitindo-lhe aceder e integrar-se no grupo social dos estudantes dessa instituição, e que condicionam a efectiva prestação futura do serviço que esta lhe vai ministrar através das disciplinas ou unidades curriculares em que ele se inscreveu, não são esses actos que geram a obrigação de pagar a propina.
Não podemos esquecer que, por definição, a prestação de serviços consiste numa operação constituída por um conjunto de actos e actividades concatenadas com vista a proporcionar a outrem um determinado resultado, pelo que, no caso da prestação de um serviço de ensino, essa operação se desenvolve, em principio, ao longo de um ano lectivo, só podendo considerar-se concluída ou efectivamente prestada com o termo desse ano.
Por outro lado, convém recordar que o facto tributário não se confunde nem com a obrigação tributária nem com o acto tributário (de liquidação), nem com o acto de pagamento do tributo(21), sendo que a liquidação e o pagamento podem ter lugar, por imposição legal, antes ou depois de o facto tributário ocorrer(22).
Sendo o facto tributário o facto material que preenche os pressupostos legais da norma de incidência da taxa e que determina o nascimento da obrigação tributária, só no momento em que ele se forma e completa surge ou nasce a obrigação tributária para o sujeito passivo, representando a existência daquele facto uma condição "sine qua non" desta obrigação e, por consequência, do início do prazo de prescrição.
Sobre essa distinção veja-se o elucidativo comentário de DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA(23), segundo os quais «O facto tributário será, portanto, o pressuposto de facto cuja realização origina um determinado efeito jurídico: o nascimento da obrigação tributária». (...). Qualquer facto tributário situa-se no tempo. O tempo influi na estrutura do facto tributário. O facto tributário, para se completar, exige um elemento material situado num certo período de tempo. // Para além disto, o tempo influi na estrutura do facto tributário produzindo dois tipos de factos: instantâneos e periódicos. // O facto tributário é instantâneo quando se esgota, por sua própria natureza, num certo período de tempo. Período maior ou menor, podendo ser muito breve ou muito prolongado no tempo; desde que o facto se esgote neste período, não tendendo por sua própria natureza a reiterar-se. Caso em que se tratará de facto tributário periódico.
O período temporal tem interesse para determinar o momento do nascimento (ou não nascimento) da obrigação; para fixar o momento em que a Administração pode exigir a prestação tributária; para conhecer a lei aplicável ao nascimento da obrigação; etc.» (nosso sublinhado).
Na presente situação, o facto tributário não pode deixar de ser a prestação efectiva, individualizada e contínua, do serviço público de ensino durante um ano lectivo, pois que se trata, como vimos, de uma taxa de frequência, que só se pode esgotar, pela sua própria natureza, num período de tempo correspondente a um ou dois semestres de um ano lectivo.
Sendo esse o facto tributário que dá causa à contrapartida devida pelo estudante (propina), isto é, que faz nascer a obrigação tributária para o sujeito passivo, não tem suporte jurídico a tese de que é o acto de matrícula ou o acto de inscrição que dá causa à tributação ou que gera a obrigação tributária. Quanto ao acto de matrícula em si, e como acima se deixou explicado, ele não dá direito à frequência de um curso superior; quanto ao acto de inscrição, ele não traduz, não representa, não consome, não esgota, a prestação administrativa do serviço que constitui o objecto da contraprestação pecuniária do aluno.
Se a propina fosse devida pelo mero acto de inscrição, teríamos de afirmar a existência de um facto tributário e da inerente obrigação tributária que logo no momento nasce ainda que o serviço público nunca fosse ou pudesse ser efectivamente prestado ao aluno, como pode suceder no caso de não abertura do ciclo de estudos em que o aluno se inscreveu, sabido que, como bem salienta SÉRGIO VASQUES, as propinas são liquidadas no início do ano lectivo, antes de prestados os serviços de ensino de que as propinas constituem a contrapartida. E tanto assim é que os Regulamentos internos das Universidades, cuja elaboração é imposta pelo Dec. Lei 74/2006, de 24 de Março, permitem, em regra, que o estudante desista ou suspenda a inscrição em frequência até determinado momento, desobrigando-o do pagamento das prestações de propina vincendas (cfr. art. 23º do Regulamento Académica da Universidade de Coimbra, publicado no Diário da República de 12 de Abril de 2010).
E porque é a efectiva prestação do serviço público de ensino que constitui o facto tributário, este vai-se formando ao longo do ano lectivo em que decorre a prestação desse serviço. O facto constitutivo da obrigação tributária só pode, assim, considerar-se como totalmente formado ou consumado decorrido que seja esse ano. Por outras palavras, a prestação administrativa que justifica a liquidação da taxa/propina é um facto duradouro que coincide com um ano lectivo, pelo que o facto gerador do tributo só pode considerar-se verificado no último dia desse ano lectivo.
Todavia, a circunstância de o facto constitutivo da obrigação só poder considerar-se totalmente realizado com o decurso do prazo para a prestação do serviço, não é suficiente, na nossa perspetiva, para enquadrar a propina na categoria de taxa "periódica", uma vez que ela não tem por base uma situação permanente que tenda a reiterar-se periodicamente, ou uma situação com característica de estabilidade ou de continuidade que se renove em sucessivos períodos de tributação. Não tem subjacente, nas palavras de SOARES MARTÍNEZ, uma permanência das faculdades contributivas que leve ao prolongamento da tributação no tempo, que leve a uma renovação automática do tributo.
Na frequência do ensino público superior não existe nem pode funcionar uma presunção de estabilidade e continuidade anual relativamente a cada um dos estudantes que solicitou esse serviço no ano lectivo anterior, nem uma presunção da manutenção da prestação desse serviço público a cada um deles, nem qualquer presunção de continuidade do pagamento anual de propinas; não existe, sequer, uma renovação anual automática da solicitação da prestação desse serviço pelo sujeito passivo e, por consequência, não existe qualquer renovação automática da obrigação tributária. A frequência desse tipo de ensino não se renova automaticamente de ano para ano, nem se pode presumir que se renovará, e, como tal, não constitui uma obrigação periódica.
Alicerçando-se a propina em situações de frequência de ensino superior, onde não funciona uma presunção de continuidade permanente desse ensino e que não conduzem a liquidações periódicas e renováveis, consideramos que estamos perante um tributo de obrigação única, ainda que ele se possa repetir anualmente durante um determinado ciclo de estudos.
Posto isto, somos levados a concluir que, no caso vertente, o facto tributário se formou no final do ano lectivo de 2003/2004, em dia e mês do ano de 2004 que não se encontra determinado por não ter sido junto aos autos o calendário lectivo ou escolar respeitante ao curso de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores em que o ora recorrido se encontrava inscrito nesse ano, calendário que as instituições de ensino público superior são obrigadas a fixar anualmente, no início de cada ano lectivo, para todas os seus ciclos de estudos.
Tendo em conta que por força do nº do art. 48º da LGT o prazo de prescrição de 8 anos se conta a partir do aludido facto tributário, e que este tribunal de recurso não dispõe de base factual para decidir o presente recurso jurisdicional - uma vez que ele pressupõe uma realidade de facto que não está pré-estabelecida nem aqui pode estabelecer-se por virtude de o STA, como tribunal de revista, carecer de poderes de cognição em sede de facto - torna-se essencial que o tribunal a quo amplie a matéria de facto de modo a fixar o quadro factual suficiente para o julgamento da causa, o que passa por apurar e fixar o último dia do ano lectivo do referido curso universitário.
Razão por que se impõe anular a sentença recorrida, para ser substituída por outra que decida após ampliação da base factual necessária para a aplicação do direito, de acordo com o que acima referi.
4. Por todo o exposto, os Juízes Conselheiros da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo acordam, em julgamento ampliado realizado ao abrigo do artigo 148º do CPTA, em anular a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que decida após ampliação da base factual necessária para a aplicação do direito, de acordo com o que acima se apontou, assim se concedendo provimento ao recurso.
Sem custas.
(1) Sobre a contraprestação específica que corresponde a cada tipo de taxa, à luz do artigo 4º da LGT, vide Suzana Tavares da Silva, "As Taxas e a Coerência do Sistema Tributário", Cejur, 2008.
(2) "Manual de Direito Fiscal", 3ª Edição, Coimbra Editora, página 35 e segs.
(3) "Contencioso da Taxas, Liquidação Audição e Fundamentação", Almedina, 2011, pag. 44 e 45.
(4) Obra citada, pag. 55.
(5) "Manual de Direito Fiscal", Almedina, 2011, páginas 2011 e segs.
(6) "Regime das Taxas Locais, Introdução e Comentário", Almedina, págs. 85 e segs.
(7) "Contencioso de taxas - Liquidação, Audição e Fundamentação", Almedina, 2011, página 38.
(8) No artigo "A Prescrição no Direito Tributário", publicado na obra "Problemas Fundamentais do Direito Tributário", Vislis Editores, página 264 e segs.
(9) Obra citada, página 270.
(10) Sobre a matéria, o acórdão do Pleno desta Secção do STA, de 10/04/2013, no processo 01135/12.
(11) Obra citada, página 287.
(12) In "Sobre a Prescrição da Obrigação Tributária, Notas Práticas", Áreas Editora, 2ª Ed., 2010, páginas 44 e segs.
(13) DIAS MARQUES in "Introdução ao Estudo do Direito", Lisboa, 1979 (edição policopiada), pág. 168.
(14) "Direito Fiscal", Almedina, 7ª Edição, pág. 54.
(15) "Direito Fiscal, Teoria Geral", 2ª Ed., Imprensa da Universidade de Coimbra, pág. 34.
(16) "Direito Fiscal", 5ª Ed., Almedina, pág. 52.
(17) "Fiscalidade", 2ª Ed., Almedina, pag. 54.
(18) "Curso de Direito Fiscal", Lisboa, 1980, pag. 131.
(19) Na obra citada, a pág. 284.
(20) Obra citada, pág. 56.
(21) Sobre a matéria, além de outros, ALBERTO XAVIER, IN "Conceito e Natureza do Acto Tributário", pág. 324; NUNO DE SÁ GOMES, in "Manual de Direito Fiscal"
(22) Como acontece com o IMT, pois de acordo com o art. 22º do Código do IMT, à semelhança do que acontecia com o art. 47º do Código do IMSISSD, o acto de liquidação precede, em regra, o acto translativo dos bens, isto é, precede o próprio facto tributário.
(23) "Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada", 4ª Edição, 2012, Encontro da Escrita Editora, pgs. 293 e segs.
Lisboa, 22 de Abril de 2015. - Dulce Neto (relatora por vencimento e sorteio) - Casimiro Gonçalves - Isabel Marques da Silva - Francisco Rothes - Pedro Delgado - Fonseca Carvalho (com voto de vencido em anexo) - Ascensão Lopes (vencido, fazendo minha a fundamentação constante do voto de vencido da Sr.ª Conselheira Ana Paula Lobo) - Ana Paula Lobo (vencida nos termos constantes do voto anexo) - Aragão Seia (vencido conforme declaração em anexo).
Vencido:
Não acompanho a decisão que obteve vencimento pelas razões que sinteticamente enuncio:
Estando de acordo com a decisão vincenda quanto ao prazo prescricional de oito anos previsto no art.º 48.º da LGT relativamente à taxa em questão, considero contudo que o momento temporal a atender para a contagem do início desse prazo é o do acto de matrícula do aluno na Universidade, momento em que nasce a obrigação tributária.
E isto, porque sendo a propina uma taxa este tributo do ponto de vista financeiro tem estrutura de um preço, estrutura essa que não pode deixar de ser levada em conta para se aferir do facto tributário e do momento que lhe dá origem.
Neste entendimento negaria provimento ao recurso.
Lisboa, 22-04-2015
Fonseca Carvalho.
Voto de vencida
Não acompanho a decisão adoptada, porque entendo que, na situação em análise há muito que está prescrita a obrigação tributária em causa nestes autos, pelas razões que passo a enunciar:
As propinas, nomeadamente as propinas devidas pela frequência do ensino público universitário são tributos/taxas devidas pela prestação concreta do serviço público de ensino universitário - art.º 3º e 4º, nº 2 da Lei Geral Tributária -
Estamos face a uma relação jurídico-tributária na medida em que se trata de uma relação jurídica estabelecida entre uma entidade pública incumbida da liquidação e cobrança de um tributo - taxa artº 3, nº 2 da Lei Geral Tributária, cujo valor constitui uma das suas fontes de receita - e as pessoas singulares, os estudantes que pretendem frequentar o estabelecimento público de ensino superior, em contrapartida da concreta prestação do serviço público de ensino universitário. Como indica Suzana Tavares da Silva, na Conferência - A tutela jurisdicional dos sujeitos passivos das taxas Coimbra, 3 de Fevereiro de 2011 - AO-CDC / Almedina 2, também acessível em https://www.oa.pt/upl: in Curso de Direito Fiscal, 1972, p. 266, «(...) A doutrina tradicional referia-se à existência de uma summa divisio nas categorias tributárias, que permitia reconduzir ao regime jurídico das taxas ou dos impostos qualquer espécie tributária, bastando que para tal atentássemos na sua estrutura bilateral ou unilateral. Assim, seriam impostos todos os tributos exigidos sem que em contrapartida fosse dada qualquer contraprestação específica, reconduzindo-se ao regime jurídico das taxas aqueles em que a contraprestação pudesse ser reconduzida à fruição de um serviço público, ao aproveitamento especial ou individualizado de um bem do domínio público ou à remoção de um obstáculo jurídico real. E neste contexto desenvolveu-se o regime jurídico dos impostos, assente no princípio da legalidade fiscal e no princípio da capacidade contributiva, em contraposição ao regime jurídico das taxas, baseado no princípio da legalidade administrativa (sem prejuízo da reserva de competência parlamentar quanto ao regime geral) e da proporcionalidade. Trata-se de uma compreensão tributária perfeitamente ajustada ao modelo tradicional de administração executiva ou de base continental (as taxas-licenças como correspondência económico financeira da actividade de polícia), que incorpora uma "compreensão de serviço público à francesa" (as taxas/tarifas por serviços públicos, a equivalência jurídica e a equivalência económica) e uma concepção proprietarista do domínio público (as taxas pela utilização privativa do domínio público, quando a regra era a da gratuidade pelo uso comum e geral - a proibição de portagens como regra).
Uma compreensão, de resto, ainda ajustada ao modelo de economia publicamente dirigida (...)»
As propinas devidas pela frequência do ensino superior são prestações pecuniárias imposta por lei, como contraprestação de um serviço público, com carácter sinalagmático (quanto à vinculação para ambas as partes) a favor de um ente público e, não representando uma auto-tributação.
Analisado o regime jurídico específico desta obrigação tributária - Lei 37/2003, de 22 de Agosto - Lei geral da República, aprovada pela Assembleia da República, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da Constituição da República Portuguesa - e Regulamento 50/2003, publicado no D.R., nº 244, II série, de 21 de Outubro de 2003, verifica-se estarmos face a uma obrigação de pagamento de uma taxa de frequência que impende sobre os estudantes em favor da Universidade em que estão matriculados desde o momento em que efectuam a matrícula no referido estabelecimento de ensino superior. O não pagamento atempado da propina determina a nulidade dos actos curriculares praticados e a suspensão da matrícula - artº 29º Lei 37/2003 -.
A propina pode ser paga de uma só vez, neste caso até ao último dia de Novembro do ano lectivo da matrícula, ou ser efectuada em 3 prestações nos termos previstos no Regulamento supra citado - art.º 3.º, a):
«a) A propina poderá ser paga de uma só vez até ao último dia de Novembro do respectivo ano lectivo ou em três prestações, vencendo-se a primeira na data acima referida e as duas restantes no último dia dos meses de Fevereiro e Maio seguintes»».
O facto tributário em causa - facto material que preenche os pressupostos legais da norma de incidência da taxa e que determina o nascimento da obrigação tributária e lhe permite vir a usufruir do curso em que se inscreveu - é a inscrição e matrícula num dado curso superior que ocorre num exacto momento, nestes autos, no ano de 2003. Diz-se que a matrícula ocorreu em 2003 porque foi efectuada para o ano lectivo de 2003/2004, como ambas as partes aceitam que foi. Assim, a propina apresenta-se como um tributo que representa a contraprestação devida pelo estudante pela possibilidade de utilização individualizada e contínua do serviço público de ensino superior durante um ano lectivo, e não a fruição individualizada e contínua desse serviço durante um ano lectivo, dado que a propina é devida mesmo que a frequência do curso não ocorra.
A prescrição, como enuncia Pedro Pais de Vasconcelos in Teoria Geral do Direito Civil, 6ª ed. Almedina, 2010, pag. 380, «é um efeito jurídico da inércia prolongada do titular do direito no seu exercício, e traduz-se em o direito prescrito sofrer na sua eficácia um enfraquecimento consistente em a pessoa vinculada poder recusar o cumprimento ou a conduta a que esteja adstrita». Diversas são as consequências, mesmo a recusa de cumprimento de uma obrigação, por a contraprestação a cargo da Universidade não ter tido lugar.
A circunstância de as propinas poderem ser pagas seja no momento da matrícula, seja em três prestações, não tem a virtualidade de deslocar o facto tributário do acto da matrícula para qualquer outro momento temporal, nomeadamente a data em que deveria, ou foi paga a última prestação, ou em que termina a prestação a cargo do ente público.
Para frequentar um determinado curso ministrado por uma universidade o estudante tem que se matricular nesse curso.
A utilização de um serviço público, como o do ensino superior, está sempre dependente de uma manifestação de vontade expressa pelo particular interessado, que reúna as condições legais de frequência do curso em que se quer inscrever, o que fica definido com a matrícula que só pode ocorrer depois de o aluno ter visto aceite a sua candidatura àquela Universidade e curso. Com a matrícula obriga-se aquele ao respectivo pagamento da propina e ao cumprimento das obrigações regulamentares, enquanto a Universidade se obriga perante este concreto estudante a disponibilizar-lhe a frequência do serviço de ensino.
O facto tributário - facto material que preenche os pressupostos legais da norma de incidência do imposto e que determina o nascimento da obrigação tributária e lhe permite usufruir do curso em que se inscreveu - em causa, é a inscrição e matrícula num dado curso superior que ocorre num exacto momento, nestes autos, no ano de 2003, ainda que não apurada a exacta data da matrícula. Diz-se que a matrícula ocorreu em 2003 porque foi efectuada para o ano lectivo de 2003/2004, como ambas as partes aceitam que foi. Portanto, o facto tributário que dá origem ao pagamento da propina ocorre no momento em que o interessado e a Universidade se obrigam a disponibilizar as suas contraprestações, no momento em que ficam definidas e estabilizadas as obrigações a que cada um se obriga perante o outro.
A obrigação do pagamento da propina não está dependente da utilização individual do serviço prestado pela Universidade a propina será devida ainda que o estudante não venha a frequentar o curso em que se matriculou.
A legislação atinente a esta taxa, já referida, não prevê um específico regime para a prescrição desta obrigação tributária pelo que, ao abrigo do disposto no artº 3º da Lei Geral Tributaria, haverá a mesma que encontrar-se no regime geral da prescrição das obrigações tributárias e não em qualquer outra norma do Código Civil.
Em obediência ao disposto no artº 48º, nº 1, da Lei Geral Tributaria esta dívida tributária prescreve no prazo de oito anos.
O artº 48º da Lei Geral Tributaria, no seu nº 1, além de fixar o prazo de prescrição indica o modo da sua contabilização quanto aos impostos periódicos, de obrigação única, e Imposto sobre o valor acrescentado.
Não é possível fazer aplicação desta contagem às taxas, dada a diversa natureza jurídica da taxa e do imposto e a inadaptação dos conceitos periódicos e de obrigação única dos impostos às taxas atento o seu carácter sinalagmático. O imposto é periódico, quando os factos ou situações que dão origem ao imposto se repetem no tempo, com carácter de continuidade, como acontece no (IRS, IRC) e é de obrigação única quando os factos ou situações ocorrem com regularidade ocasional ou esporádica, como acontece com o IMTT. Esta classificação parte da análise da prestação do sujeito passivo e reporta-se exclusivamente ao acto tributário stricto sensu em que a dívida tributária, enquanto obrigação pecuniária cujo cumprimento compete ao sujeito passivo da relação obrigacional é o objecto da prescrição. Ora não pode dizer-se que a matrícula num curso universitário é comparável a uma actuação isolada, ou uma actuação contínua, na acepção tida por aquela norma e reportada aos impostos.
Olhando a prestação a cargo do aluno, sujeito passivo, nesta relação jurídica, a única a ter em conta para aferição da prescrição aqui em discussão - e, não a prestação a cargo da Universidade, cuja prescrição não está em causa - verificamos que ela é concebida legalmente como instantânea - a prestação a executar num só momento, extinguindo-se a correspondente obrigação com esse único acto isolado de satisfação do interesse do credor -.
Seguindo os ensinamentos do Profº Antunes Varela in Das Obrigações em Geral, vol. I, 2ª ed., 1973, pag. 77 verificamos que «Quanto ao tempo da sua realização, as prestações podem ser instantâneas, fraccionadas ou repartidas, e duradouras.
Dizem-se instantâneas as prestações em que o comportamento exigível do devedor se esgota num só momento (quae único actu perficiuntur): entrega de certa coisa; pagamento do preço; etc.
Não sucede assim com as obrigações fundamentais ou típicas do senhorio e do arrendatário (...) Não se confundem com as obrigações duradouras as obrigações fraccionadas ou repartidas as obrigações cujo cumprimento se protela no tempo, através de sucessivas prestações instantâneas, mas em que o objecto da prestação está previamente fixado, sem dependência da duração da relação contratual (preço pago a prestações; fornecimento de certa quantia de mercadorias ou géneros a efectuar em diversas partidas).
Nas prestações duradouras, a prestação devida depende do factor tempo; nas prestações fraccionadas, o tempo não influi na determinação do seu objecto, apenas se relacionando com o modo de execução. Temos, pois, a cargo do estudante a obrigação instantânea de pagar as propinas, ainda que, por opção sua o pagamento se mostre divididos em 3 prestações.
Face ao Regulamento das propinas em questão, o não pagamento de uma prestação importa o vencimento de juros de mora e sanções ou condicionamentos administrativos - artº 3º, c) do regulamento:
«c) Os alunos que não paguem a propina nos prazos estabelecidos podem ainda fazê-lo nos 30 dias seguintes, sendo a importância em dívida acrescida dos juros legais.», e, de acordo com o seu artº 8º:
«O não pagamento da propina devida implica, nos termos do artigo 29.º da Lei 37/2003, de 22 de Agosto:
a) A nulidade de todos os actos curriculares praticados no ano lectivo a que o incumprimento da obrigação se reporta;
b) A suspensão da matrícula e da inscrição anual, com a privação do direito de acesso aos apoios sociais até à regularização dos débitos, acrescidos dos respectivos juros, no mesmo ano lectivo em que ocorreu o incumprimento da obrigação».
Não se demonstra que haja qualquer facto suspensivo ou interruptivo da prescrição a considerar entre o momento em que ocorreu o facto tributário e a data em que o recorrido foi citado para a execução - 31 de Agosto de 2012 -.
Assim, consideraria que a prescrição de oito anos se tinha completado quando o estudante foi citado para a execução pelo que a sentença deveria ter sido confirmada, ainda que com uma diversa fundamentação.
Lisboa, 22-04-2015
(Ana Paula Lobo).
Voto de vencido
A única discordância relativamente ao acórdão supra reside no facto de entendermos de modo diferente o momento em que se deve considerar em que ocorre o facto tributário, momento esse com o qual coincide o termo inicial do prazo de prescrição a que se refere o artigo 48º, n.º 1 da LGT.
A utilização de um serviço público, como o do ensino superior, está sempre dependente de um acto jurídico de natureza administrativa, sendo que há quem o qualifique como um acto administrativo de admissão -cfr. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. ii, págs. 1079 e ss.- e quem o qualifique como um contrato administrativo - cfr. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. i, pág. 630.
Mas, independentemente do modo como se qualifique tal "acto" de acesso ao ensino superior, partindo sempre de uma vontade expressa do particular interessado, o que é certo é que o mesmo, como acto complexo que é, dá origem ao nascimento de obrigações, quer na esfera jurídica do particular interessado, quer na esfera jurídica do ente público que presta o serviço.
O primeiro, obriga-se ao pagamento de uma propina e ao cumprimento das obrigações regulamentares, o segundo, obriga-se à disponibilização do serviço de ensino, durante o período correspondente ao ano lectivo regulamentarmente pré-definido, quer quanto à sua concreta duração, quer quanto ao conteúdo do serviço, cuja utilização fica, então, na disponibilidade do interessado (a prestação da Universidade consubstancia-se numa obrigação de meios e não de resultado).
Como se salientou de forma abundante no acórdão, a propina deve ser qualificada como uma taxa, e consubstancia-se na contraprestação do serviço prestado pela Universidade, ou seja, tem carácter bilateral, isto é, destina-se à comparticipação do "pagamento" das utilidades individuais que o particular pode retirar da disponibilização colectiva do serviço público de ensino, cfr. artigos 15º e 16º da Lei 37/2003, de 22 de Agosto, em vigor à data.
O pagamento da propina, ou taxa de frequência, artigo 16º, n.º 1 da citada Lei, é de pagamento prévio e configura-se como uma condição necessária para a disponibilização do serviço de ensino, é condição para que o interessado possa frequentar as aulas e se possa submeter a avaliação (não se trata agora das restantes utilidades que a matrícula e inscrição proporcionam aos alunos).
E tanto assim é, que o seu não pagamento nos momentos pré-estabelecidos por Regulamento próprio, Regulamento 50/2003, se traduz em sanções de natureza administrativa, cfr. artigo 29º da mesma Lei, que se repercutem directamente nas utilidades individuais que o interessado tenha retirado ou possa vir a retirar do serviço que se encontra ao seu dispor.
Portanto, o facto tributário que dá origem ao pagamento da propina ocorre no momento em que o interessado e a Universidade se obrigam a disponibilizar as suas contraprestações, no momento em que ficam definidas e estabilizadas as obrigações a que cada um se obriga perante o outro.
E esse facto coincide com a inscrição do aluno perante os serviços da Universidade. Nesse momento o aluno sabe exactamente quais as obrigações que sobre si impendem, e respectivo conteúdo, e sabe exactamente que serviços lhe vão ser prestados e durante quanto tempo, ou seja, as obrigações ficam definidas a partir daquele momento temporalmente bem definido.
Daqui resulta, assim, que a obrigação do pagamento da propina não está dependente da utilização individual do serviço prestado pela Universidade, trata-se, no dizer de J.J. Teixeira Ribeiro, RLJ, ano 117º, págs. 292 e 293, de uma receita coactivamente imposta para utilização voluntária de um serviço público.
"Repare-se que para serem devidas taxas nem sempre é precisa a efectiva utilização dos bens. É-o quando elas são pagas na altura em que os bens estão a ser utilizados, como nos serviços dos Registos, ou depois de terem sido utilizados, como nos tribunais. Mas não o é quando o pagamento das taxas precede a utilização, como é o caso das propinas e das licenças. A exigência das taxas continua então exclusivamente relacionada com a utilização dos bens, mas as conveniências da cobrança fazem com que elas sejam devidas pela simples possibilidade dessa utilização. E daí que, se os bens não forem depois utilizados - se os estudantes, por exemplo, não frequentarem as escolas onde se inscreveram -, nem por isso haja direito à restituição das importâncias pagas.", cfr. J.J. Teixeira Ribeiro, pág. 293, no mesmo sentido ver J. Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, pág. 262.
Não temos, assim, dúvidas que no caso concreto o facto tributário, enquanto pressuposto de facto cuja realização origina um determinado efeito jurídico: o nascimento da obrigação tributária, tal como se relembrou no acórdão, ocorre, coincide, com a inscrição do aluno, não estando dependente da utilização do serviço disponibilizado ao mesmo e, por isso mesmo, não se pode afirmar que o facto tributário não pode deixar de ser a frequência ou utilização individualizada e contínua do serviço público de ensino durante um ano lectivo.
Portanto, sabido que por força do nº 1 do artigo 48º da LGT o prazo de prescrição de 8 anos se conta a partir do aludido facto tributário, e que a citação do oponente para a execução fiscal (1º acto susceptível de produzir efeito interruptivo do prazo prescricional, face ao disposto no artigo 49º da LGT) ocorreu no dia 31 de Agosto de 2012, tem de concluir-se que nessa data já ocorrera a prescrição, posto que a inscrição tinha ocorrido em Setembro de 2003, tal como resulta do probatório.
Assim, do meu ponto de vista, poderia já julgar-se prescrita a dívida em questão, não havendo necessidade de obtenção de outros elementos de facto para decidir os presentes autos.
Lisboa, 22 de Abril de 2015.
Aragão Seia