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Acórdão 5/96, de 24 de Maio

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Sumário

A difamação, mesmo que cometida através de publicação unitária, constituindo crime de abuso de liberdade de imprensa, não tem a natureza de crime permanente, consumando-se com a publicação do texto ou imagem, pelo que o prazo da prescrição do respectivo procedimento criminal tem início no dia da referida publicação, nos termos do artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal.

Texto do documento

Acórdão 5/96
Processo 48069. - Acordam no plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

1 - Relatório
O Dr. José Augusto Sacadura Garcia Marques, assistente no processo 33605, da 3.ª Secção da Relação de Lisboa, veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão proferido naqueles autos que negou provimento ao recurso interposto pelo ora recorrente de uma decisão judicial de rejeição da acusação que ele e o Ministério Público haviam deduzido, recurso este agora interposto nos termos dos artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal, pelos fundamentos que se passam a expor:

No processo em causa foi equacionada a questão jurídica do âmbito de aplicação do artigo 118.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, quando referido a crimes de difamação cometidos através de publicações unitárias, assim como abuso de liberdade de imprensa, ou seja, nos termos dos artigos 2.º, n.os 2, 3 e 4, 25.º, n.os 1 e 2, 26.º, n.º 1, 27.º e 29.º, n.º 1, todos da Lei de Imprensa (Decreto-Lei 85-C/75, de 26 de Fevereiro, com a redacção em vigor), com referência aos artigos 164.º e 167.º, n.º 2, do Código Penal.

Ora, segundo o acórdão em causa, a difamação cometida através de publicação unitária não integra a categoria de crime permanente e por isso não vale quanto a ela o benefício enunciado na referida alínea a) do n.º 2 do artigo 118.º do Código Penal.

É que o dito acórdão considerou que o artigo 118.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, ao enunciar o início do prazo da prescrição do procedimento criminal, não se aplica ao caso das difamações cometidas em publicações unitárias, para as quais rege o princípio consignado no n.º 1 do mesmo normativo.

Todavia, por acórdão da mesma Relação, proferido em 22 de Junho de 1983 e publicado na Colectânea de Jurisprudência, VIII, n.º 3, p. 193, foi decidido o seguinte:

«O crime de difamação através da publicação de um livro é um crime permanente, por atingir um interesse que só pode ser objecto de compressão e não de destruição e que é o direito ao bom nome e reputação do ofendido. Em virtude de o pretenso crime resultar da inserção de determinado texto numa publicação, esse bem do ofendido não pode ser gozado, pelo facto de a circulação do livro impedir esse gozo.»

Assim, por não ter ocorrido qualquer acto dos arguidos pondo termo ao pretenso estado antijurídico, não pode colocar-se a questão da prescrição do procedimento criminal por falta de início do prazo respectivo [artigo 118.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal].

Parecia assim evidente ao recorrente, dentro do condicionalismo apontado, existir oposição entre os dois acórdãos face à mesma questão de direito - a aplicabilidade do artigo 118.º, n.os 1 e 2, alínea a), do Código Penal, no caso do crime de difamação cometido em publicação unitária, com abuso de liberdade de imprensa, e sobre o qual foram proferidas duas decisões contraditórias pelo mesmo Tribunal da Relação de Lisboa.

Por tais razões, pretendeu-se a intervenção deste Tribunal, no âmbito da sua função uniformizadora de jurisprudência, para se solucionar o problema resultante da invocada oposição de acórdãos.

Foi o recurso recebido pela forma legal, tendo sido ouvido o magistrado do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal e foram corridos os respectivos vistos.

Pelo Acórdão deste Supremo Tribunal de 23 de Novembro de 1995 foi decidido que da simples indicação das matérias decididas por cada um dos mencionados acórdãos se podia concluir que as soluções a que cada um chegou sobre a mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação eram contraditórias e substancialmente opostas entre si.

Tendo ambos os arestos transitado em julgado, considerou-se que estavam reunidos os pressupostos dos artigos 437.º, 440.º e 441.º do Código de Processo Penal, pelo que se determinou o prosseguimento dos autos.

Foi dado cumprimento ao artigo 442.º, n.º 1, do referido diploma, e na sequência das notificações dela resultantes, foram apresentadas as seguintes alegações, cujas conclusões em matéria de fixação de jurisprudência se passam a relatar.

a) Alegação de Augusto José de Matos Sobral Cid:
Segundo esta alegação, deve fixar-se jurisprudência no sentido em que julgou o Acórdão da Relação de Lisboa de 23 de Novembro de 1995, porquanto:

Trata-se, no caso em apreço, de um crime de efeito permanente;
A prescrição começou a contar-se com a publicação da edição, sendo esse o momento em que o facto se consumou (artigos 3.º e 118.º, n.º 1, do Código Penal);

Porque o recorrido foi acusado de dois crimes de injúria (artigos 164.º, n.º 1, 167.º, n.º 1, e 168.º, n.º 1, do Código Penal, e 25.º, 26.º, n.º 1, e 27.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei 85-C/75), a que corresponde a pena de prisão até três anos e multa, e porque os factos remontam a 1984 e 1987 e o prazo de prescrição transcorreu ininterruptamente até ser notificado o despacho de pronúncia, em 1994, o procedimento criminal extinguiu-se por prescrição, nos termos do artigo 117.º, n.º 1, alíneas c) e d), do Código Penal.

b) Alegação de Distri - Agência - Publicidade e Assinaturas, Lda.:
Segundo esta alegação, deve ser fixada jurisprudência obrigatória nos seguintes termos:

O crime de abuso de liberdade de imprensa, mesmo quando se trate de publicação unitária, não é crime permanente; consuma-se com a publicação e o prazo de prescrição de procedimento criminal inicia-se com a publicação e não com a retirada da venda ao público.

c) Alegação do Dr. José Augusto Sacadura Garcia Marques:
Segundo este recorrente, deve a jurisprudência obrigatória ser fixada nos seguintes termos:

A difamação cometida através de publicação unitária é crime permanente e assim o início do prazo de prescrição do procedimento criminal só ocorre quando cessa a consumação, seja com a retirada do livro do mercado editorial, seja com o esgotamento da edição, situações em que termina a sua publicação.

d) Alegação da Exma. Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal:
Nesta alegação propõe-se a seguinte fórmula para a fixação da jurisprudência neste caso:

O crime de difamação cometido através de publicação unitária integra a categoria de crime instantâneo, iniciando-se o prazo de prescrição do respectivo procedimento criminal no dia do primeiro acto de publicação do escrito, nos termos do artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal.

2 - A questão tal como resulta dos acórdãos em oposição
2.1 - No acórdão recorrido:
O Tribunal da Relação, neste acórdão, para além de equacionar outras questões que não interessam para este caso, coloca a questão essencial que nos interessa considerar, nos seguintes termos:

O crime de abuso de liberdade de imprensa, no caso de publicações unitárias, consuma-se com a publicação ou mantém-se enquanto a obra se encontrar à venda e a prescrição do procedimento criminal não corre enquanto a obra não for retirada de circulação?

O acórdão em causa começa por distinguir, segundo a doutrina, entre crimes instantâneos, permanentes e continuados, referindo que nos primeiros a consumação é instantânea, enquanto nos últimos há uma realização plúrima do mesmo tipo de crime. Só aos permanentes é que se refere o artigo 118.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal acerca do prazo de prescrição.

Citando Cavaleiro de Ferreira, os crimes permanentes seriam aqueles em que os bens lesados não seriam destruídos, mas apenas susceptíveis de compressão, verificando-se a ofensa enquanto se mantivesse a execução da actividade lesiva.

Passando para outra distinção (Eduardo Correia), já se poderia contrapor o crime permanente ao crime de efeitos permanentes, sendo deste exemplo o cárcere privado e o furto. Para o professor de Coimbra, haveria, no crime permanente, duas fases, consistindo a primeira no não cumprimento do comando que impõe a remoção pelo agente da compressão dos bens ou interesse jurídicos lesados. O acórdão considera teoricamente que as figuras se acham suficientemente caracterizadas, embora os problemas surjam na sua aplicação prática.

Daqui passa-se para a análise do problema à luz da Lei de Imprensa (Decreto-Lei 85-C/76, de 26 de Fevereiro), e à luz desta lei, designadamente tendo em conta os seus artigos 12.º e 27.º, chega-se à conclusão de que o facto se considera praticado no momento em que o agente actuou, sendo que a actuação do agente é a publicação da obra.

Assim, o artigo 12.º daquele diploma alude expressamente à remessa dos editores a certas entidades no prazo de três dias imediatamente posteriores à publicação.

Também o artigo 27.º deste diploma aponta para qualificar como momento da prática do crime o momento da publicação.

Acrescenta mais o acórdão que não se encontra fundamento legal para a posição que pretende ver a distinção para efeitos de prescrição do procedimento criminal entre publicações periódicas e unitárias, correndo a prescrição naquelas desde a publicação e nestas só após a cessação da venda ou retirada do mercado de todos os exemplares.

Disto tudo tira-se a seguinte conclusão: a prescrição do procedimento criminal começou a correr com a publicação da edição, sendo esse o momento em que o facto se consumou (artigos 3.º e 118.º, n.º 1, do Código Penal).

2.2 - No acórdão fundamento considerou-se, por seu turno, que os crimes de abuso de liberdade de imprensa cometidos através da publicação de um livro são de consumação prolongada durante todo o período em que o livro se encontrar em circulação no mercado, pelo que a prescrição do correspondente direito de queixa só começa a correr a partir do momento da sua retirada de circulação.

Assim, pela natureza permanente do crime ali em análise, ou seja, a difamação cometida mediante o livro em circulação, não podia considerar-se a questão da prescrição do procedimento criminal por faltar o início do prazo respectivo.

3 - Fundamentos e decisão
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir, mas, sendo certo que a decisão da conferência não vincula o plenário, é todavia inconstestável que se verifica oposição entre os dois acórdãos referidos do Tribunal da Relação de Lisboa e, bem assim, têm-se como verificados também os demais requisitos exigidos pelos artigos 437.º e 438.º do Código de Processo Penal.

3.1 - Normativos que interessam à solução da questão suscitada:
a) Artigo 117.º do Código Penal:
«1 - O procedimento criminal extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do crime sejam decorridos os seguintes prazos:

a) 15 anos, quando se trate de crimes a que corresponde a pena de prisão com um limite máximo superior a 10 anos;

b) 10 anos, quando se trate de crimes a que corresponde a pena de prisão com o limite máximo igual ou superior a 5 anos, mas que não exceda 10 anos;

c) 5 anos, quando se trate de crimes a que corresponde a pena de prisão com o limite máximo igual ou superior a 1 ano, mas que não exceda 5 anos;

d) 2 anos, nos casos restantes.
...»
b) Artigo 118.º do Código de Processo Penal:
«1 - O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se consumou.

2 - Porém, o prazo de prescrição só corre:
a) Nos crimes permanentes, desde o dia em que cessa a consumação;
b) Nos crimes continuados e nos crimes habituais, desde o dia da prática do último acto criminoso;

c) Nos crimes não consumados, desde o dia do último acto de execução.
...»
c) Artigo 12.º, n.º 1, da Lei de Imprensa:
«Os directores das publicações periódicas e os editores das unitárias devem mandar entregar ou remeter pelo correio, sob registo, nos três dias imediatamente posteriores à publicação, exemplares das respectivas publicações:

...»
d) Artigo 25.º, n.º 1, da Lei de Imprensa:
«Consideram-se crimes de abuso de liberdade de imprensa os actos com comportamentos lesivos de interesse jurídico penalmente protegido que se consumam pela publicação de textos ou imagens através da imprensa.»

e) Artigo 27.º, n.º 1, da Lei de Imprensa:
«Os crimes previstos nos artigos 159.º, 160.º, 166.º, 181.º, 182.º e 411.º do Código Penal consumam-se com a publicação do escrito ou imagem em que haja injúria, difamação ou ameaça contra as pessoas aí indicadas.»

3.2 - Generalidades.
A questão fundamental que vem colocada neste recurso, tal como bem acentua a Exma. Procuradora-Geral-Adjunta nas suas brilhantes e eruditas alegações, consiste em determinar se o crime de difamação cometido através de publicações unitárias, e assim com abuso de liberdade de imprensa, assume ou não a categoria de crime permanente.

Esta questão torna-se verdadeiramente essencial, do ponto de vista da prescrição do procedimento criminal à face do Código Penal anterior (aliás como do actual), na medida em que no artigo 118.º se estabelece o princípio geral de que o prazo da prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se consumou, mas logo se acrescenta [n.º 2, alínea a)] que tal prazo só corre, nos crimes permanentes, desde o dia em que cessa a consumação.

Multiplicam-se na doutrina e na jurisprudência as noções e definições do que seja o crime permanente.

Iremos considerar algumas delas para ver se conseguimos determinar com exactidão a verdadeira compreensão do conceito, aliás com recurso aos elementos trazidos aos autos pelos doutos litigantes, os quais, pela sua abundância e exuberância, dispensam qualquer outra pesquisa.

Definido o conceito, dali partiremos para a caracterização do crime que nos interessa considerar.

Assim, para o recorrido Sobral Cid, crime permanente não é o mesmo que crime de efeito permanente, estando um para o outro como o crime de cárcere privado está para o furto.

Na tese da Distri, recorrida nos autos, adere-se à posição de que, no crime permanente, a acção violadora é indivisível, tal como uma linha, por contraposição ao crime instantâneo, que seria um ponto, e ao crime continuado, que seria uma série de pontos, produzindo-se um estado violador sem intervalos numa duração sem colapsos e sem limites, estando o crime a ser cometido a qualquer momento (Leal Henriques, Simas Santos e A. Carvalho Filho).

Na tese do recorrente, Dr. José Garcia Marques, parte-se da noção do Dr. Eduardo Correia, segundo a qual os tipos de crimes permanentes são aqueles em que o evento se prolonga por mais ou menos tempo.

Segundo o eminente mestre de Coimbra (Direito Criminal, I, p. 309), na estrutura dos crimes permanentes distinguem-se duas fases: uma, que se analisa na produção de um estado antijurídico, que não tem, aliás, nada de característico em relação a qualquer outro crime, e, outra, esta propriamente típica, que corresponde à permanência ou, vistas as coisas de outro lado, à manutenção desse evento, e que para alguns autores consiste no não cumprimento do comando que impõe a remoção pelo agente dessa compressão de bens ou interesse jurídicos em que a lesão produzida pela primeira conduta se traduz.

Finalmente, na tese da Exma. Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal, depois de se citarem várias noções de crime permanente atribuídas a eméritos autores, parece colocar-se «o dedo na ferida» quando, partindo da distinção de Eduardo Correia, que atrás já se viu, entre o crime permanente e o crime de efeitos permanentes, avança para a afirmação que se mostra ser a chave do problema e que é esta:

«É nesta distinção entre crime permanente e crime de efeitos permanentes que se encontra o cerne caracteriológico do crime de difamação cometido através de publicação unitária.»

E depois parte-se de Bettiol, in Direito Penal - Parte Geral, t. III, para referir:

«[...] não se deve, porém, confundir o crime instantâneo com o crime permanente, quando de um crime instantâneo derivam efeitos que podem considerar-se permanentes, dado que se prolongam no tempo [...] Os efeitos dizem respeito às consequências nocivas que podem derivar do crime, mas não podem alterar-lhe a estrutura pelo que se refere à instantaneidade da consumação [...]»

E aqui remata a Exma. Procuradora-Geral-Adjunta:
«É o que se passa com o crime de difamação através da imprensa.
Aqui, o ataque antijurídico ao bom nome, honra e consideração é de consumação instantânea, consumando-se no exacto momento em que é distribuída, colocada à venda, a publicação unitária, permanecendo, não obstante, os efeitos antijurídicos.»

Posto isto, convém agora avaliar, com certeza e segurança, se a difamação cometida através de publicação unitária poderá caber ou não no conceito de crime permanente.

Parece que, e abstraindo de todo o concurso doutrinário a que se fez referência, a própria lei estabelece critérios e dá pistas para resolver a problema.

Assim, na medida em que a alínea a) do n.º 2 do artigo 118.º do Código Penal alude à cessação da consumação nos crimes permanentes, é porque admite implicitamente que essa consumação não seja instantânea, mas sim prolongada no tempo.

Pois se a lei fala no dia em que cessa tal consumação, é porque a mesma legalmente se poderá prolongar por vários dias, ou seja, por vário tempo, revelando uma determinada durabilidade.

Porém, no caso dos crimes instantâneos, por exclusão de partes, relativamente aos permanentes, continuados, habituais e não consumados, o crime consuma-se por um só facto, contando-se a prescrição do dia em que teve lugar o facto consumatório (artigo 118.º, n.º 1, do Código Penal).

Recorrendo, agora, à Lei de Imprensa (Decreto-Lei 85-C/75, de 26 de Fevereiro, com as alterações da Lei 15/95, de 25 de Maio), podemos dela extrair as seguintes ilações:

Em primeiro lugar, esta lei, nos artigos 11.º e 12.º, para além de outros, faz claramente a distinção entre publicações unitárias e publicações periódicas, assinalando requisitos diferentes para umas e outras.

Sem embargo, quando se trata da definição dos crimes de abuso de liberdade de imprensa, alude a lei expressamente (artigo 25.º) a actos ou comportamentos lesivos de interesse jurídico penalmente protegidos, que se consumam pela publicação de textos ou imagens através da imprensa.

Não há aqui qualquer distinção entre publicações unitárias e periódicas, pelo que se terá de concluir que este preceito abrange aquelas duas categorias necessariamente, segundo o consabido princípio de que ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus. E nem se diga que não importa a distinção por esta não ter consagração legal, porquanto, como vimos, a mesma é feita naquela referida lei, nos artigos acima aludidos, e designadamente a propósito dos requisitos de umas e outras publicações.

Portanto, tanto as publicações periódicas como as unitárias se consumam pela publicação, pura e simplesmente, sem qualquer distinção.

Em confirmação disto, pode ainda invocar-se o artigo 27.º da Lei de Imprensa, de que resulta igual doutrina.

3.3 - Aproximação conclusiva.
Chegamos, assim, à ideia de que os crimes de abuso de liberdade de imprensa, designadamente aqueles que são integrados por difamação e cometidos através de publicações unitárias ou periódicas, estão sujeitos à regra do n.º 1 do artigo 118.º do Código Penal, e assim o prazo de prescrição do respectivo procedimento criminal corre a partir do dia em que o facto se consumou, ou seja, a partir da publicação.

Todavia, impõe-se tecer ainda algumas considerações suplementares sobre esta posição, para melhor esclarecimento.

Assim, segundo o recorrente Dr. Garcia Marques, os dois preceitos citados da Lei de Imprensa, os artigos 25.º e 27.º, ao estatuírem que os crimes cometidos com abuso de liberdade de imprensa se consumam com a publicação de escritos ou imagens, não definem se a consumação daquela espécie de ilícitos se efectua instantaneamente ou através de prolongamento no tempo.

Depois, acrescenta-se que só a difamação cometida em publicações periódicas se consuma de modo instantâneo, pois estas caracterizam-se precisamente pela instantaneidade do seu aparecimento e sucessividade da sua circulação, ao passo que no caso das publicações unitárias, vista a perdurabilidade que lhes é característica, pois que, até serem retiradas da circulação, ficam disponíveis a divulgar as imputações ofensivas a vagas sucessivas de novos leitores, a permanência dos efeitos haverá de ser relevada em termos jurídico-penais.

Salvaguardado o devido respeito, não podemos aceitar esta construção.
Em primeiro lugar, não tem sentido afirmar-se, como quer o recorrente, que os artigos 25.º e 27.º da Lei de Imprensa não definem se aquela espécie de ilícito se efectua instantaneamente ou através do prolongamento no tempo, isto porque, falando a lei em publicação de textos ou imagens, há uma concretização que envolve por natureza a instantaneidade do acto e, além disso, estes preceitos têm de ser conjugados com o artigo 12.º da referenciada lei, o qual, aludindo expressamente aos exemplares das publicações, confirma igualmente o referido carácter instantâneo das mesmas.

Depois, quando se pretende acentuar o carácter permanente das publicações unitárias, ou melhor, o carácter de crime permanente da difamação cometida por via de tais publicações, esquece-se que, ficando o crime consumado com a publicação, aquilo que pode perdurar no tempo são os efeitos desse crime, que não o prolongamento da sua consumação.

Tal e qual como no crime de furto.
Ninguém duvidará, por certo, que este crime é instantâneo, visto que se consuma no acto da subtracção. Todavia, o efeito deste poderá perdurar para sempre, já que, se a situação não for reposta, o ofendido pelo furto ficará permanentemente sem a coisa subtraída. Mas ninguém ousará defender que este efeito permanente derivado do crime de furto terá a virtualidade de transformar este crime em permanente.

Para utilizar a terminologia de Manzini (Diritto Penale, II, p. 606), a difamação em publicação unitária integra logicamente um «momento consumativo» e nunca um «estado consumativo», que constitui o apanágio do crime permanente.

Mas deve ainda acrescentar-se:
A apreciação relativa que o recorrente estabelece entre as publicações unitárias e as publicações periódicas não está correcta, porquanto não só as publicações unitárias podem não perdurar (é o caso do livro rapidamente esgotado), como também as publicações periódicas poderão manter-se por muito tempo, não só nos arquivos a que se refere o artigo 12.º da Lei de Imprensa como em qualquer lugar recôndito do País, o que leva a considerar que não há juridicamente qualquer diferença no que concerne à categoria de crime permanente ou não entre o ilícito de difamação cometido através de publicação periódica e de publicação unitária (alegações da Exma. Procuradora-Geral-Adjunta e que inteiramente perfilhamos).

É esta igualmente a posição assumida no acórdão recorrido e com a qual também se concorda, sendo certo que este mesmo aresto tirou do artigo 27.º da Lei de Imprensa exactamente a conclusão que achamos válida e única possível - o momento da prática do crime em causa é o da publicação, não considerando que o crime perdura enquanto não se repuser a situação anterior.

E acrescenta-se: tratar-se-á, não de um crime permanente, mas sim de um crime de efeito permanente.

Foi este o erro do recorrente: confundir a própria natureza do crime com os efeitos dele derivados, pelo que estes podem ser permanentes, como vimos, sem afectarem a natureza instantânea do crime donde emergem.

E, assim, foi tirada no douto aresto a conclusão de que a prescrição do procedimento criminal começou a correr com a publicação da edição, sendo esse o momento em que o facto se consumou.

É esta, pois, a melhor doutrina e é em função dela que se decidirá a presente questão.

4 - Decisão
Portanto, e o mais dos autos:
Acordam os juízes que constituem a Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça no seguinte:

Negar provimento ao recurso, mantendo inteiramente o acórdão recorrido, de harmonia com a decisão que seguidamente se passa a proferir e que estabelece, com carácter obrigatório, para os tribunais judiciais a seguinte jurisprudência:

«A difamação, mesmo que cometida através de publicação unitária, constituindo crime de abuso de liberdade de imprensa, não tem a natureza de crime permanente, consumando-se com a publicação do texto ou imagem, pelo que o prazo da prescrição do respectivo procedimento criminal tem início no dia da referida publicação, nos termos do artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal.»

Custas pelo recorrente, com 6 UC de taxa de justiça.
Publique-se.
Lisboa, 14 de Março de 1996. - Sebastião Duarte de Vasconcelos da Costa Pereira - Manuel António Lopes Rocha - Victor Manuel Ferreira da Rocha - José Moura Nunes da Cruz - Bernardo Guimarães Fisher de Sá Nogueira - António de Sousa Guedes - Augusto Alves - Manuel de Andrade Saraiva - Manuel de Castro Ribeiro - Joaquim Daniel Araújo dos Anjos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/74673.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1975-02-26 - Decreto-Lei 85-C/75 - Ministério da Comunicação Social

    Promulga a Lei de Imprensa.

  • Tem documento Em vigor 1995-05-25 - Lei 15/95 - Assembleia da República

    ALTERA A LEI DE IMPRENSA APROVADA PELO DEC LEI 85-C/75, DE 26 DE FEVEREIRO, DANDO NOVA REDACÇÃO A DIVERSOS ARTIGOS E ADITANDO OUTROS RELATIVAMENTE A: CELERIDADE PROCESSUAL, DENÚNCIA, PRAZO DO INQUÉRITO, SUSPENSÃO PROVISÓRIA, AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO. ACTUALIZA AS MULTAS ESTABELECIDAS NO REFERIDO DECRETO LEI.

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NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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