Processo n.° 47 096 - 3.ª Secção
Acordam no plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:
1 - Relatório
O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto na Relação do Porto veio interpor o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência nos termos e com os fundamentos seguintes:O acórdão recorrido decidiu que a decisão genérica sobre a legitimidade do Ministério Público no despacho transitado a que se refere o artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal não faz caso julgado formal, podendo conhecer-se de tal questão prévia até ao trânsito em julgado da decisão final.
(Acórdão de 26 de Maio de 1993 - recurso n.° 355/93, 1.ª Secção.) Contudo, a mesma Relação, no seu Acórdão de 5 de Maio de 1993 (recurso n.° 156/93, 5.ª Secção), decidiu:
O despacho proferido ao abrigo do disposto no artigo 311.°, n.° l, do Código de Processo Penal, em que, embora em termos genéricos, se decide da legitimidade do Ministério Público, faz caso julgado formal, estando, assim, o juiz impedido de conhecer de novo a questão da legitimidade em momento posterior ao despacho recorrido.
E desta forma, por se verificar haver clara oposição entre os referidos acórdãos, em que chegaram a soluções opostas relativamente à mesma questão de direito e tendo sido proferidos no domínio da mesma legislação, considerou o digno recorrente estarem preenchidos os requisitos dos artigos 437.° e seguintes do Código de Processo Penal, pelo que se requereu que o mesmo seguisse os respectivos trâmites.
Foi o recurso recebido pela forma legal e a Ex.ma Magistrada do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal teve vista dos autos e promoveu o seu prosseguimento para os fins e efeitos do n.° 4 do artigo 440.° e segunda parte do artigo 441.° do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, por Acórdão de 13 de Outubro de 1994, foi decidido que as soluções a que cada um dos acórdãos chegou sobre a mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação são substancialmente contraditórios e opostos entre si, pelo que se ordenou o cumprimento do artigo 442.°, n.° 1, do mesmo diploma.
A Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal apresentou as suas mui doutas alegações, em que eruditamente equacionou a questão jurídica em causa neste recurso, tendo sugerido a seguinte jurisprudência:
O despacho genérico proferido pelo juiz no âmbito do artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não faz caso julgado formal, podendo dela conhecer-se até trânsito em julgado da decisão final, salvo se sobre a mesma tiver incidido decisão concreta e fundamentada.
2 - A questão tal como resulta dos acórdãos
em oposição
2.1 - No acórdão recorrido:A problemática subjacente a este recurso surgiu de que no 3.° Juízo Correccional da Comarca do Porto, nos autos de processo comum em que era arguida Maria de Fátima Rocha Martins da Silva, com os sinais dos autos, a M.ma Juíza declarou o tribunal competente, o processo próprio e que não havia nulidades e ilegitimidades, excepções, questões prévias ou incidentais de que se pudesse desde logo conhecer ou devesse conhecer e que obstassem ao conhecimento do mérito da causa, tendo recebido a acusação do Ministério Público nos seus precisos termos e designando depois dia para o julgamento.
No entanto, já em audiência de julgamento, a Ex.ma Juíza, considerando a publicação do Acórdão obrigatório n.° 2/92, sobre a interpretação do artigo 49.°, n.° 3, do Código de Processo Penal, e olhando o carácter semipúblico das infracções indiciadas e, além do mais, por se ter esgotado o prazo do artigo 112.° do Código Penal, julgou o Ministério Público parte ilegítima para promover o processo penal e absolveu da instância o arguido.
Foi interposto, então, deste despacho recurso para a Relação pelo Ministério Público, em que se invoca a excepção de caso julgado formal, formulando-se as seguintes conclusões:
a) No despacho de saneamento do processo, ao abrigo do artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, foi decidido que não havia ilegitimidades que pudessem obstar à apreciação do mérito da causa, tendo tal despacho transitado em julgado;
b) Ao conhecer de novo, agora como questão prévia, no julgamento, da ilegitimidade, o despacho em causa violou o disposto no artigo 338.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, já que, por força deste normativo, o tribunal só conhece e decide questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstarem à apreciação do mérito da causa acerca das quais ainda não tenha havido decisão;
c) E ao considerar agora o Ministério Público parte ilegítima, o despacho em causa violou o disposto no artigo 672.° do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente ao processo penal por força do disposto no artigo 4.° do Código de Processo Penal, onde se consigna o caso julgado formal - a obrigatoriedade das decisões dentro do processo;
d) E violado foi também o Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Fevereiro de 1963, onde se estabelece que «é definitiva a declaração em termos genéricos no despacho saneador transitado relativamente à legitimidade, salvo a superveniência de factos que nesta se repercutam»;
e) Mesmo que se entenda que a decisão sobre a legitimidade proferida no despacho de saneamento não faz caso julgado e que o tribunal podia de novo conhecer da mesma, não era caso para, sem mais, se declarar o Ministério Público parte ilegítima;
f) É certo que o procedimento criminal pelo crime de emissão de cheque sem provisão de que a arguida está acusada depende de queixa do legítimo portador, por força do disposto no artigo 24.° do Decreto n.° 13 004, de 12 de Janeiro de 1927, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.° 400/82, de 23 de Setembro;
g) E que a queixa foi apresentada por mandatário, o qual não estava munido de poderes especiais e especificados, nos termos do artigo 49.°, n.° 3, do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe foi dada pelo Acórdão n.° 2/92, do Supremo Tribunal de Justiça;
h) No entanto, a queixa foi apresentada dentro do prazo de seis meses a que se refere o artigo 112.° do Código Penal, pelo que se está apenas perante uma irregularidade do mandato;
i) E tal irregularidade pode ser sanada ao abrigo do disposto no artigo 40.° do Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal por força do disposto no artigo 4.° do Código de Processo Penal;
j) Na verdade, a ratificação da queixa pode ser efectuada nos termos do preceito acima referido, no prazo que foi fixado para tal, mesmo que tenha decorrido o prazo de seis meses previsto no artigo 112.° do Código Penal, já que com tal ratificação a queixa fica válida e eficaz e, portanto, apresentada atempadamente;
l) Pelo que o despacho recorrido, ao considerar a queixa efectuada por mandatário juridicamente irrelevante, por insuficiência de procuração, sem primeiro convidar o titular do direito de queixa a ratificar a mesma, violou o disposto no artigo 40.° do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 4.° do Código de Processo Penal.
Vejamos, agora, a argumentação expendida no acórdão:
O acórdão começa por perguntar se estaremos ou não perante um caso omisso que leve à aplicação das normas do Código de Processo Civil, ou sejam, in casu, o artigo 672.° daquele Código e o Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Fevereiro de 1963, publicado no Diário do Governo, 1.ª série, de 21 de Fevereiro de 1963, e no Boletim do Ministério da Justiça, n.° 124, p. 414, ex vi do artigo 4.° do Código de Processo Penal.
E para resolver tais questões referem-se as duas posições sobre o valor das declarações genéricas no saneador acerca dos pressupostos em processo civil:
A primeira posição consistiria em, tomado o despacho à letra, entender que, uma vez transitado em julgado (artigo 677.°), nenhuma das excepções declaradas inexistentes poderá ser alegada pelas partes ou conhecida ex officio, o que seria a aplicação rígida da doutrina do caso julgado formal à interpretação literal do despacho;
A outra limitará a força de caso julgado às questões concretas que o despacho haja decidido relativamente a cada uma das excepções capazes de conduzirem à absolvição da instância.
Depois, chama-se a atenção para o facto de haver duas soluções em oposição, uma contida no artigo 104.°, n.° 2, do Código de Processo Civil e a outra a do assento já referido.
Assim, enquanto, segundo o artigo, a declaração genérica no saneador sobre a competência absoluta deixa em aberto a apreciação deste pressuposto processual até à sentença final, pois só as decisões concretas são vinculativas, já segundo o assento «é definitiva a declaração em termos genéricos no despacho saneador transitado relativamente à legitimidade, salvo a superveniência de factos que nesta se repercutam».
Coloca-se, depois, o problema da aplicação do assento ao processo penal, o que numa primeira abordagem pareceria possível, se fosse concebível estabelecer analogia entre o caso omisso no processo penal e o regulado no processo civil.
Para isso, teria de haver igualdade jurídica entre o caso regulado e o caso a regular e tal igualdade, em princípio, poderia derivar da identidade do objectivo essencial no despacho saneador em processo civil e no despacho de saneamento no processo penal [artigos 510.°, números 1, alíneas a) e b), e 2, do Código de Processo Civil e 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal].
Esse objectivo seria desentorpecer a acção, quer cível quer penal, de tudo aquilo que possa impedir o julgamento de mérito, evitando a instrução de um processo que praticamente se tornaria inútil.
No entanto, o douto acórdão não aceita uma verdadeira analogia de situações, com base nos seguintes argumentos:
A regulamentação do despacho saneador em processo civil é muito mais exigente para o juiz, pois só pode deixar de decidir sobre os pressupostos se o estado do processo o impossibilitar de se pronunciar sobre eles, devendo neste caso justificar a decisão e devendo ainda conhecer das excepções, pela ordem prevista no artigo 288.°, e das nulidades;
Em processo penal, a lei impõe ao juiz apenas que se pronuncie sobre as questões prévias ou incidentais, bem como nulidades, de que possa desde logo conhecer:
A legitimidade em processo penal não se estrutura nos mesmos termos que em processo civil, porquanto aquele só formalmente é um processo de partes;
O Ministério Público não é parte no sentido definido no artigo 26.° do Código de Processo Civil e quanto ao arguido nem sequer se pode colocar o problema da sua legitimidade.
Ora isto bastaria para afastar a tal igualdade jurídica entre o caso regulado e o caso a regular, que só na aparência se poderia configurar, tanto mais que a doutrina do referenciado assento não se harmoniza com os princípios gerais fundamentais do processo penal, tais como o do favor rei e em certos casos o do favor libertatis.
Referem-se, depois, as consequências funestas que derivariam da aplicação do assento em processo penal, como, v. g., a pretexto do caso julgado da decisão sobre a legitimidade do Ministério Público, o arguido poder vir a ser desnecessariamente submetido a julgamento e a ser injustamente condenado, inclusive a pena privativa de liberdade.
E assim, rejeitando a aplicação da doutrina do assento em causa, aceita-se antes a doutrina civilística limitativa do caso julgado, com base no fundamento concreto em que a decisão se apoia por recurso ao artigo 104.°, n.° 2, do Código de Processo Civil como afloramento de um princípio geral.
Entende-se também que a aplicação deste princípio não colidiria com o disposto no artigo 368.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, dado que este último normativo deve ser interpretado no sentido de que as decisões a que se refere devem incidir sobre questões concretas.
Por tudo isto e em síntese, formula-se a seguinte jurisprudência;
A decisão genérica sobre a legitimidade do Ministério Público no despacho transitado a que alude o artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal não faz caso julgado formal, podendo conhecer-se de tal questão prévia até ao trânsito em julgado da decisão final, salvo se tiver incidido sobre ela, antes, decisão concreta;
2.2 - No acórdão fundamento:
Também neste caso foi proferido um despacho judicial nos termos do artigo 311.° do Código de Processo Penal, em que se considerou não existirem ilegitimidades, mas, em sede de julgamento, foi o Ministério Público considerado parte ilegítima.
Igualmente aqui foi suscitada, no recurso, a questão prévia da existência de caso julgado.
A argumentação neste acórdão assenta no seguinte:
A decisão sobre as questões prévias a que se refere o artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal é susceptível de recurso, ao contrário do despacho que designa dia para audiência (n.° 3 do artigo 313.°), e sendo assim, embora o Código de Processo Penal seja omisso, sobre esta decisão forma-se caso julgado, já que se tem de aplicar ao caso o artigo 672.° do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 4.° do Código de Processo Penal;
Uma vez transitada a decisão sobre a legitimidade, o juiz está impedido de conhecer de novo tal questão, em momento posterior, por aplicação supletiva dos artigos 493.°, 496.° e 497.° do Código de Processo Civil;
A declaração sobre a ilegitimidade do Ministério Público foi proferida em termos genéricos, mas é de aplicar aqui a doutrina do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Fevereiro de 1963, já que o objectivo legal do saneamento no processo civil é idêntico ao do processo penal;
Dada a natureza do despacho de saneamento no processo penal, não é lógico que o mesmo se subestime, afastando a sua característica fundamental - a da preclusão das questões que antecedem a instrução, sendo certo que esse escopo se frustrava se se aceitasse nova apreciação das questões decididas no despacho de saneamento, pelo que se invoca nesse sentido o artigo 338.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, invocando-se também o artigo 675.° do Código de Processo Civil.
Aceita-se, assim, a tese do caso julgado formal quanto ao despacho sobre a legitimidade do Ministério Público.
3 - Fundamentos e decisão
3.1 - Normativos que interessam à solução da questão suscitada:a) Artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal:
Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa de que possa, desde logo, conhecer.
b) Artigo 672.° do Código de Processo Civil:
Os despachos, bem como as sentenças que recaiam unicamente sobre a relação processual, têm força obrigatória dentro do processo, salvo se por sua natureza não admitirem o recurso de agravo.
c) Assento de 1 de Fevereiro de 1963:
É definitiva a declaração em termos genéricos no despacho saneador transitado relativamente à legitimidade, salvo a superveniência de factos que nesta se repercutam.
d) Artigo 104.°, n.° 2, do Código de Processo Civil:
O despacho só constitui, porém, caso julgado em relação às questões concretas de competência que nele tenham sido decididas.
e) Artigo 510.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil:
Realizada a audiência ou logo que findem os articulados, se a ela não houver lugar é proferido dentro de 15 dias despacho saneador para os fins seguintes:
a) Conhecer, pela ordem designada no artigo 288.°, das excepções que podem conduzir à absolvição da instância, assim como das nulidades, ainda que não tenham por efeito anular todo o processo;
b) Decidir se procede alguma excepção peremptória.
f) Artigo 26.° do Código de Processo Civil:
1 - O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer.
2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 - Na falta de indicação de lei em contrário, são considerados titulares de interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida.
g) Artigo 368.°, n.° 1, do Código de Processo Penal:
O tribunal começa por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão.
h) Artigo 313.° do Código de Processo Penal:
1 - O despacho que designa dia para a audiência contém, sob pena de nulidade:
..........................................................................................................................
.........................................................................................................................
3 - Do despacho que designa dia para a audiência não há recurso.
i) Artigo 675.° do Código de Processo Civil:
1 - Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumprir-se-á a que passou em julgado em primeiro lugar.
2 - É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual.
j) Artigo 338.°, n.° 1, do Código de Processo Penal:
O tribunal conhece e decide de quaisquer questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar.
l) Artigo 4.° do Código de Processo Penal:
Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas de processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas aplicam-se os princípios gerais do processo penal;
3.2 - Generalidades sobre o caso julgado em processo penal:
O fundamento central do caso julgado, como escreveu Beling, radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dela aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto (in Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, Coimbra, 1983, p. 302).
Isto vale um pouco quer para o caso julgado material, como para o caso julgado formal, sendo certo que aqui nos interessa considerar tão-só este último, dado que a nossa análise apenas incidirá sobre o efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, ao passo que o caso julgado material consubstancia a eficácia da decisão proferida relativamente a qualquer processo ulterior com o mesmo objecto (cf. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. III, Lisboa, 1958, p. 35).
O Código de Processo Penal de 1929, no capítulo das excepções, aludia expressamente ao caso julgado (artigo 138.°, 3.ª) e a partir do artigo 148.° e seguintes regulamentava com algum pormenor a referida excepção, com especial relevo para o caso julgado material e efeitos do caso julgado civil no processo penal.
Não acontece o mesmo no actual Código de Processo Penal e tal ausência de regulamentação constante e sistemática de matéria tão importante só pode significar, a nosso ver, uma de duas coisas: ou que o legislador entendeu como suficiente para resolver o problema da aplicação genérica e indiferenciada ao processo penal dos vários normativos que no processo civil tratam a questão, ao abrigo do regime estabelecido no artigo 4.° do Código de Processo Penal, ou então que não quis, pura e simplesmente, firmar regras rígidas no processo penal em matéria de caso julgado, dada a natureza deste ramo do direito.
Inclinamo-nos decisivamente para esta última posição, que se encontra verdadeiramente em harmonia com a especial natureza do processo penal.
Cremos que é por isso mesmo que não temos assistido, ao contrário do que se passava na vigência do Código anterior, à construção dogmática de uma teoria sobre o caso julgado em processo penal, preferindo os autores resolver casuisticamente os problemas relacionados com este instituto.
Como exemplo disto, poderá referir-se o Prof. Germano Marques da Silva (in Curso de Processo Penal, vol. III, p. 209).
Na verdade, a pura e simples aplicação dos princípios e normas que regem o caso julgado no processo civil ao processo penal não se nos afigura legítima, designadamente porque se iria, no fundo, coarctar, limitar e condicionar o princípio da verdade material, que constitui o escopo fundamental a atingir no processo penal.
Refira-se, em abono disto, o ensinamento de Cavaleiro de Ferreira:
Porque, o caso julgado, cortando cerce a possibilidade de busca da verdade material, restringe o ideal de justiça em razão da necessidade de segurança, faz-se sentir a sua imodificabilidade com mais rigor no processo civil do que em processo penal, por sua natureza vertido para a justiça real e dificilmente acomodatício às ficções de segurança, obtidas à custa do sacrifício de valores morais essenciais. [Curso de Processo Penal, vol. III, Lisboa, 1958, p. 88.] No entanto, não pode de uma forma absoluta coarctar-se o recurso ao processo civil nesta matéria, mas o que será indispensável é encontrar um critério que, entrando em linha de conta com as especialidades do processo penal, imponha alguns limites à aplicação em processo penal das normas do processo civil neste domínio e tal critério só poderá encontrar-se no artigo 4.° do Código de Processo Penal, o qual aponta fundamentalmente para dois pressupostos de tal aplicação, a saber:
A existência de lacunas que não podem ser integradas por aplicação analógica de outras normas do processo penal; e A harmonização das normas de processo civil a aplicar com o processo penal.
Daí que tenha muito interesse produzir algumas considerações sobre o problema da analogia, tendo em vista a resolução do caso sub judice.
3.3 - Sobre a analogia:
3.3.1 - Analisemos, então, a questão:
É ponto assente na doutrina que a analogia pressupõe necessariamente a existência de uma lacuna.
Sem esta existir e assim não se verificar um caso omisso carecendo de regulamentação, não pode ter lugar o recurso à analogia, como processo lógico da sua integração.
Todavia, e sabendo, se que por vezes se confunde o caso omisso, propriamente dito, com o caso não regulado, a que se tem chamado também «lacuna imprópria», convém desenvolver algumas considerações sobre esta temática no sentido de atingir a melhor solução para o caso que nos interessa resolver.
Poderá dizer-se que a lacuna corresponde à falta de uma disposição que regule especialmente certa matéria ou caso, se bem que tal deficiência se possa suprir mediante outra norma tirada por analogia (Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, 3.ª ed., Coimbra, 1978, p. 156).
Assim, só haverá lacuna a preencher depois de estar averiguado, por interpretação da lei, que o caso omisso não deve ficar à margem do direito, sem disciplina jurídica apropriada (Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, Coimbra, 1978, p. 78).
Tem interesse também referir o que a este propósito escreve Karl Larenz:
Poderia pensar-se que existe uma lacuna onde a lei [...] não contém uma regra para determinado caso, onde a lei se cala.
Simplesmente, também existe um silêncio eloquente da lei [...] Por outro lado, também há casos a que uma regra é, com efeito, segundo a sua letra, aplicável, mas a que não se adequa segundo o seu sentido ou fim (averiguado por interpretação). No primeiro caso, a lei não tem lacunas, embora guarde silêncio, mas necessita, possivelmente, de um complemento restritivo, cuja falta pode dar a impressão de uma lacuna.
[Metodologia da Ciência de Direito, tradução de José de Sousa e Brito e José António Veloso, Fundação Calouste Gulbenkian, 2.ª ed., 1969, p. 428.] E este mesmo autor propõe depois a seguinte definição de lacuna:
[...] uma lacuna da lei (de lege lata) existe sempre e só quando a lei, a avaliar pela sua própria intenção e imanente teleologia, a incompleta e, portanto, carece de integração e quando a sua integração não contradiz uma limitação (a determinados factos previstos) porventura querida pela lei. O mesmo se pode exprimir dizendo que se tem de tratar de uma incompletude contrária ao plano do legislador. [Op. cit., pp. 436 e 437.] Outro autor, Baptista Machado, exprime-se assim a este mesmo respeito:
[...] uma lacuna é uma incompletude contrária a um plano [...] Tratando-se de uma lacuna jurídica, dir-se-á que ela consiste numa incompletude contrária ao plano do direito vigente, determinada segundo critérios aplicáveis de ordem jurídica global; existirá uma lacuna quando a lei (dentro dos limites de uma interpretação ainda possível) e o direito consuetudinário não contêm uma regulamentação exigida ou postulada pela ordem jurídica global , ou melhor, não contêm resposta a uma questão jurídica. [Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1987, p. 194.] Convém ainda, para melhor esclarecimento, referir a posição de Bigotte Chorão (in Polis, Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, vol. 3, «Integração de lacunas», pp. 596-618).
Para este autor, a lacuna é concebida como uma situação que exige ser regulada no âmbito de determinado ordenamento jurídico e assenta nos seguintes pressupostos:
a) Em definição supõe que a ausência de regulamentação respeita a uma verdadeira questão jurídica. O que se situa no espaço ajurídico [...] ou «extramuros da cidadela jurídica», está fora de causa [...];
b) Para que se verifique uma lacuna em sentido próprio é ainda necessário que a falta de regulamentação seja contrária ao plano ordenador do sistema jurídico. Não basta, pois, que a situação se possa considerar, em abstracto, susceptível de tratamento jurídico, mas é preciso que este seja exigido pelo ordenamento jurídico concreto.
Bem pode acontecer, com efeito, que certo caso não encontre cobertura normativa no sistema, sem que isso frustre as intenções ordenadoras deste.
Razões político-jurídicas ponderosas podem estar na base da abstenção do legislador. Esses «silêncios eloquentes da lei» não têm de ser supridos pelo juiz, ainda que este, porventura, em seu critério entenda o contrário.
Diz-se, por isso, que tais faltas de regulamentação constituem lacunas impróprias (de lege ferenda, de jure constituendo, político-jurídicas, críticas, etc.), que eventualmente poderão vir a desaparecer em futuros desenvolvimentos do sistema, a cargo dos órgãos normativos competentes.
E para que este quadro doutrinário fique ainda mais completo e diversificado, citam-se mais dois autores.
Assim, Dias Marques escreve:
É necessária a verificação da necessidade de regulamentação jurídica - a matéria de que se trata e que não se encontra prevista na lei há-de ser realmente necessitada de regulamentação jurídica: vale isto por dizer que a matéria omissa deve ser de tal natureza que a ausência de regras que especificadamente a contemplem e a sua recondução ao campo do exercício material do direito de liberdade ou ao de aplicação de princípios gerais que contendam com a sua natureza, venham a conduzir a um resultado claramente oposto ao que o legislador prescreveria se fosse chamado a regular expressamente a hipótese. [Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1979, p. 269.] E Oliveira Ascensão opina que:
Não é suficiente concluir que o caso cabe dentro da descrição fundamental da ordem jurídica, sendo ainda necessário determinar se ele deve ser juridicamente regulado, tendo pois de se encontrar algum indício normativo que permita concluir que o sistema jurídico requer a consideração e solução daquele caso. [O Direito - Introdução e Teoria Geral, 4.ª ed., revista, 1987, p.
361.] Finalmente e em síntese poderá afirmar-se com Fernando Ferreira Ramos, relator do douto parecer n.° 90/88, da Procuradoria-Geral da República, de 28 de Abril de 1989 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 6 de Junho de 1989, e do qual extraímos alguns dos elementos doutrinários citados), que decisivamente se dirá que para se poder afirmar a existência de uma lacuna não basta deparar com uma situação desprovida de regulamentação jurídica, com uma situação que se possa considerar, em abstracto, susceptível de tratamento jurídico. Indispensável se torna que a falta de regulamentação seja contrária ao plano ordenador do sistema jurídico. Dito de outro modo: é preciso que o tratamento da situação seja exigido pelo ordenamento jurídico concreto.
Isto posto, julgamos ser fácil concluir que do ordenamento jurídico-processual penal existente e actualmente em vigor não resulta a necessidade da regulamentação constante do artigo 672.° do Código de Processo Civil, conjugado com o Assento de 1 de Fevereiro de 1963, para preencher qualquer lacuna nesta matéria existente.
É certo que a matéria em causa diz respeito a uma verdadeira questão jurídica, mas é igualmente certo que não existe aqui qualquer indício normativo que leve à conclusão de que se torna necessário aplicar ao processo penal o regime daquela disposição da lei processual civil.
3.3.2 - Mas a nossa análise não se pode ficar por aqui, quedando no mero reconhecimento, aliás real e verdadeiro, de que não existe in casu uma verdadeira lacuna.
Teremos de avançar sobre o próprio processo de integração analógica, partindo do princípio, que apenas por hipótese se admite, porque, na verdade, se rejeita, da existência de um caso omisso.
Ora bem: se neste caso tivéssemos hipoteticamente de recorrer à analogia, ela seria formalmente permitida pelo artigo 4.° do Código de Processo Penal, que estipula:
Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas de processo civil que se harmonizam com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.
Todavia, como vem reconhecido pela melhor doutrina, o recurso ao processo analógico previsto no citado artigo comporta, tem de comportar, as limitações decorrentes do princípio da legalidade, o que significará que a integração analógica nunca poderá ter lugar se e quando conduza à diminuição dos direitos processuais do arguido, a chamada «analogia in malam partem» (neste sentido, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol.
I, pp. 96 e 97).
O que acontece neste caso é simples:
Partindo do princípio que existia neste caso uma verdadeira lacuna e se, por via da analogia prevista no artigo 4.° do Código de Processo Penal, aplicássemos ao processo penal o regime do caso julgado previsto no Código de Processo Civil, teríamos como resultado a diminuição do estatuto processual do arguido, na medida em que estariam em causa o princípio do favor rei e do favor libertatis, como adiante melhor se explicitará.
E só isto bastaria para devermos afastar aqui o recurso à integração analógica.
3.3.3 - Todavia, iremos ainda prosseguir na nossa análise, continuando a admitir, apesar disto, ser ainda hipoteticamente possível a analogia.
Ainda dentro dos princípios gerais e pressupostos que presidem à analogia poderá dizer-se que, para que a mesma se verifique, é preciso fundamentalmente que:
Falte uma precisa disposição da lei para o caso a decidir e que, portanto, a questão não se encontre já regulada por uma norma de direito - e isto não apenas segundo a letra, mas também segundo o sentido lógico dessa norma;
Que haja igualdade jurídica, na essência, entre o caso a regular e o caso regulado (cf. Ferrara, op. cit., p. 160).
E este autor, a propósito deste último requisito, acrescenta que é preciso, portanto, escrutar a semelhança jurídica dos factos, a coincidência dos elementos com relevância jurídica que informam a disposição.
Acrescente-se que, em matéria de integração de lacunas no processo penal, deve sempre atender-se, para além da identidade de situações, ao princípio da harmonização das normas do processo civil com as normas do processo penal, princípio este que deriva directamente do citado preceito do artigo 4.° do Código de Processo Penal.
Postos estes princípios, vejamos o que resulta da sua aplicação ao caso que nos interessa.
Importa, fundamentalmente, comparar os dois institutos que aqui estão em causa e que são, por um lado, o despacho saneador e o despacho de saneamento, o que iremos fazer regressando à análise dos acórdãos em confronto.
3.3.4 - Voltando, assim, novamente aos acórdãos em oposição, cumpre desde já destacar que o próprio acórdão recorrido reconhece expressamente que existe igualdade jurídica entre o objectivo essencial do saneador em processo civil [artigo 510.°, números 1, alíneas a) e b), e 2, do Código de Processo Civil] e o do despacho de saneamento, ao abrigo do que está disposto no artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal.
Desta forma e nesta óptica, ambos concorreriam para desentorpecer a acção (cível ou penal) de tudo aquilo que possa impedir o julgamento de mérito, evitando, assim, a instrução de um processo que praticamente se tornaria inútil.
E não há dúvida de que, numa análise objectiva da questão, existe uma identidade de natureza e de finalidade entre o despacho saneador no processo civil e o despacho de saneamento no processo penal.
Todavia, logo se contrapõem no referido aresto vários argumentos que afastariam a dita igualdade jurídica e que iremos analisar em pormenor.
Assim:
A) O primeiro argumento consistiria em que a regulamentação do despacho saneador em processo civil é muito mais exigente para o juiz.
Esta maior exigência derivaria de que o juiz só pode deixar de decidir sobre os pressupostos se o estado do processo o impossibilitar de se pronunciar sobre eles, devendo neste caso justificar a decisão, e deve conhecer das excepções por uma certa ordem e depois das nulidades.
Pelo contrário, no processo penal, a lei impõe ao juiz apenas que se pronuncie sobre as questões prévias ou incidentais, bem como das nulidades de que possa desde logo conhecer.
Cremos que existe aqui, sem dúvida, uma grande diferença entre estes dois regimes, não podendo concluir-se que o conhecimento das questões referidas fica sempre num caso e noutro dependente apenas desse conhecimento.
Não é apenas uma diferença meramente expletiva de formulação, porquanto no processo civil há a referência à fundamentação da impossibilidade de conhecimento, ao passo que tal fundamentação não existe no processo penal, mesmo para justificar a possibilidade de conhecimento imediato de algumas questões.
B) Outro argumento do acórdão baseia-se em que a legitimidade em processo penal não se estrutura nos mesmos termos que em processo civil. Assim, o Ministério Público nem sequer seria parte no sentido processual civil e quanto ao arguido (citando-se Luís Osório), o problema da sua ilegitimidade nem sequer se põe.
Concordamos também inteiramente com esta posição expressa no acórdão recorrido, porquanto, em primeiro lugar, a igualdade jurídica necessária à aplicação analógica dos normativos processuais civis não diz respeito apenas às decisões consubstanciadas nos despachos de saneamento, mas também aos destinatários de tais despachos; e depois porque, muito embora o processo de partes seja um pressuposto do direito ao contraditório, direito que para ser efectivo exige igualdade entre a acusação e a defesa (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, p.
97), o certo é que o Ministério Público é uma parte sui generis, uma parte imparcial.
Apesar de que, como refere este autor - «com este entendimento, não parece que o conceito de parte seja contrário aos princípios estruturadores do processo penal e à sua natureza» (loc. cit.) -, quanto ao Ministério Público, a melhor posição é a de que a sua postura no processo penal é mais reconduzível à ideia de que se trata de um «órgão de justiça». (Conselheiro José Narciso da Cunha Rodrigues, in «Recursos», Jornadas de Direito Processual Penal, p. 390.) Não podendo, assim, o Ministério Público ser considerado rigorosamente como parte, aquela igualdade jurídica necessária à integração analógica deve ter-se como afastada.
Analisada nestes termos a igualdade jurídica entre o caso regulado e o caso a regular, não é possível recorrer ao artigo 672.° do Código de Processo Civil e ao Assento de 1 de Fevereiro de 1963 para regular o caso que nos interessa no processo penal.
Voltando a insistir: dentro dos princípios gerais e pressupostos que presidem à analogia, poderá dizer-se que, para que a mesma se aplique, é preciso fundamentalmente que:
Falte uma precisa disposição da lei para o caso a decidir e que, portanto, a questão não se encontre já regulada por uma norma de direito - e isto não apenas segundo a letra, mas também segundo o sentido lógico dessa norma;
Que haja igualdade jurídica na essência entre o caso regulado e o caso a regular (cf. Ferrara, op. cit., p. 160), e este autor, a propósito deste último requisito, acrescenta que é preciso, portanto, apurar a semelhança jurídica dos factos, a coincidência dos elementos, com relevância jurídica que informam a disposição.
Ora, não se mostra, como vimos, que haja uma verdadeira lacuna neste caso, dada a índole e natureza do processo penal; igualdade jurídica entre o caso regulado e o caso a regular também não existe; e falta apenas determinar como se passarão as coisas do ponto de vista específico da integração de lacunas no processo penal, isto sempre admitindo apenas por mera hipótese que se estaria perante uma verdadeira lacuna.
Primeiramente deverá assentar-se em que em matéria de integração de lacunas no processo penal deve sempre atender-se, para além da identidade de situações, ao princípio da harmonização das normas do processo civil com as normas do processo penal, princípio este, como vimos, que deriva directamente do artigo 4.° do Código de Processo Penal.
Ora, segundo o acórdão recorrido, a doutrina do assento em causa não se harmoniza com os princípios gerais fundamentais do processo penal, tais como o do favor rei e em certos casos do favor libertatis.
Será que isto é assim? Recordemos, uma vez mais, a doutrina do assento:
É definitiva a declaração em termos genéricos no despacho saneador transitado, relativamente à legitimidade, salvo a superveniência de factos que nesta se repercutam.
E, para se fundamentar a crítica a este assento, invoca-se o Prof. Anselmo de Castro, segundo o qual a sua doutrina levará o juiz a exercer uma actividade decisória sobre o fundo da causa em casos em que ela será inteiramente inútil e proferida sem o necessário contraditório e, por isso, em termos de não poder representar a boa decisão da causa, contra todos os princípios do processo (Lições, vol. II, pp. 829 e 830).
É claro que se poderia dizer quanto a esta crítica que se trataria de um manifesto exagero de apreciação do assento, porque se não valoriza devidamente a ressalva que dele consta, ou seja, salvo a superveniência de factos que se repercutam na legitimidade.
E assim sempre seria legítimo inferir que, se posteriormente ao trânsito do saneador ou do despacho de saneamento surgisse qualquer facto ou circunstância que afectassem a legitimidade de qualquer das partes, o tribunal não ficaria vinculado à decisão proferida, ao caso julgado formal, e poderia livremente assumir outra posição.
No entanto, se virmos as coisas por um outro prisma, teremos de chegar a uma conclusão oposta.
Repare-se, com efeito, nesta situação:
Supondo que no despacho de saneamento a que se refere o artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal se declara a legitimidade do Ministério Público para intervir nos autos, pode muito bem acontecer que, transitado que esteja esse despacho, no julgamento venha a fazer-se uma apreciação de tal pressuposto em termos diferentes.
Essa nova apreciação poderá não resultar de qualquer facto superveniente atinente à legitimidade, porque pura e simplesmente se não produziu, mas da circunstância de tal apreciação ser levada a efeito por outro juiz ou por outro órgão como seja o tribunal colectivo, quando no despacho de saneamento havia intervindo o juiz singular.
Ora, em casos como estes, por força da aplicação do assento em causa, estabelecendo-se com ele a regra do caso julgado e não havendo facto superveniente, estaria o tribunal coarctado nos seus poderes de decidir contrariamente à legitimidade previamente estabelecida, o que manifestamente contrariaria a natureza e princípios próprios do processo penal, entre os quais se podem contar como mais afectados o do favor rei e o do favor libertatis.
E assim será lícito afirmar também que por aplicação do assento se obterá uma preclusão quanto à apreciação final, como quer o Prof. Anselmo de Castro, atrás citado, e a qual virá limitar o estatuto processual do arguido.
Quer isto dizer por outras palavras: a aplicação do regime do assento faria com que o tribunal no julgamento estivesse totalmente vinculado à decisão anterior proferida sobre a legitimidade, sem qualquer possibilidade de se pronunciar sobre esse pressuposto de maneira diferente.
Tem, pois, razão o acórdão recorrido quando inculca a ideia de que o decantado assento poderia conduzir à situação inaceitável de, a pretexto do caso julgado da decisão sobre a legitimidade do Ministério Público, o arguido poder vir a ser desnecessariamente submetido a julgamento e a ser injustamente condenado, inclusive a pena privativa de liberdade.
Vejamos melhor esta posição:
Se a legitimidade do Ministério Público permanecesse sem qualquer afectação depois do seu reconhecimento no despacho de saneamento até ao julgamento, nenhum problema haveria e nenhuma injustiça seria cometida.
Em contrapartida, se tal legitimidade deixasse de existir por qualquer facto superveniente que a afectasse, então teríamos que, aplicando a doutrina do assento, o caso julgado deixaria de existir, perdendo a declaração sobre a legitimidade o seu carácter definitivo.
Simplesmente, e isto é que é decisivo: em processo penal, tal legitimidade, muito embora previamente declarada, com trânsito, pode desaparecer, não somente pela superveniência de um facto que com ela colida, mas por força de nova apreciação que sobre ela incida e isso é que o assento não resolve e, pelo contrário, exclui, o que levará à sua inaplicabilidade por ofensa, em última instância, ao princípio da verdade material.
Com isto, chegamos à ideia de que para o nosso caso se torna irrelevante o artigo 672.° do Código de Processo Civil, conjugado com o Assento de 1 de Fevereiro de 1963.
O que será o mesmo que explicitar a nossa não concordância relativamente ao douto acórdão fundamento, o qual suscita ainda uma breve apreciação.
Levanta-se neste aresto, ainda, uma questão que consiste em distinguir, com base nos artigos 311.° e 313.° do Código de Processo Penal, por um lado, o despacho que designa dia para a audiência e, pelo outro, o despacho de saneamento, despachos esses perfeitamente autónomos e que seguem regimes diferentes, designadamente quanto à possibilidade de recurso, já que, nos termos do artigo 313.°, n.° 3, não cabe recurso do despacho que designa dia para julgamento.
Daqui deriva apenas a consequência de que o despacho de saneamento previsto no artigo 311.° é susceptível de recurso mas disto mesmo não se pode inferir que assuma o valor de caso julgado formal quando decide sobre a legitimidade do Ministério Público.
A única ilação a tirar é que, se fosse possível aplicar a este despacho, e já vimos que o não é, o regime do artigo 672.° do Código de Processo Civil não haveria problema quanto ao recurso, ao contrário do artigo 313.°, visto aquele despacho de saneamento admitir recurso.
Nada, pois, se pode concluir neste ponto sobre a matéria que nos interessa, ou seja, quanto à questão do caso julgado.
4 - Aproximação conclusiva
4.1 - Resolvida a questão da inaplicabilidade do assento em causa ao processo penal, bem como do regime previsto no artigo 672.° do Código de Processo Civil, resta ainda saber se será possível aplicar ao caso a doutrina civilística limitativa do caso julgado com base no fundamento concreto em que a decisão se apoia, a qual teria como base o artigo 104.°, n.° 2, do Código de Processo Civil.Este normativo estatui, a propósito do despacho saneador em processo civil, que tal despacho só constitui caso julgado em relação às questões concretas de competência que nele tenham sido decididas.
No processo civil, tem-se entendido que esta norma deve aplicar-se, para além da competência, às outras excepções dilatórias.
Mas será que é possível, depois do que se disse, aplicar tal princípio ao processo penal? Principalmente tendo em vista o princípio da harmonização? Na tese do acórdão recorrido, rejeitando-se a aplicação ao caso do referenciado assento, dever-se-ia seguir a doutrina civilística limitativa do caso julgado com base no fundamento concreto em que a decisão se apoia e que teria como apoio o normativo do artigo 104.°, n.° 2, do Código de Processo Civil, segundo o qual o despacho só constitui, porém, caso julgado em relação às questões concretas de competência que nele tenham sido decididas.
E assim nada obstaria a que este princípio se aplicasse às restantes excepções dilatórias.
Entendemos que não está correcto este raciocínio.
Com efeito, o preceito do artigo 104.°, n.° 2, do Código de Processo Civil está inserido numa secção que apenas trata da incompetência e, por isso mesmo, por força do elemento sistemático da interpretação, apenas pode referir-se a esta excepção, sem qualquer alargamento ou extensão a qualquer dos outros.
Mas o que interessa de sobremaneira salientar é que neste caso apenas está em causa a decisão genérica sobre a legitimidade do Ministério Público, pelo que seria extravasar do âmbito do recurso conhecer do caso julgado relativamente à decisão concreta sobre tal legitimidade.
4.2 - Uma questão ainda se poderá colocar e ela consiste no entendimento a dar ao artigo 368.°, n.° 1, do Código de Processo Penal perante a posição assumida.
Na realidade, dispondo este número que o tribunal, já em fase da sentença, começa por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão, poderia considerar-se que esta preclusão do conhecimento poderia apontar para o valor de caso julgado, mesmo da decisão genérica sobre a legitimidade do Ministério Público.
Sem embargo, julgamos que o melhor entendimento a dar ao preceito é no sentido de que não só o mesmo pode ser interpretado de forma que, quando se refere a decisão, poderá ter em vista a decisão concreta, como também pensamos que a verdadeira ratio do mesmo preceito é de não tomar propriamente posição sobre a natureza das decisões a que se refere, mas apenas estabelecer uma ordem de análise das várias questões, pretendendo evitar a repetição da sua apreciação. O mesmo se poderá dizer relativamente ao artigo 338.°, n.° l, do Código de Processo Penal.
4.3 - Em suma:
Concorda-se inteiramente com o acórdão recorrido e assim consideram-se inaplicáveis, por analogia fundada no artigo 4.° do Código de Processo Penal, os artigos 672.° do Código de Processo Civil, conjugado com o Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Fevereiro de 1963, ao despacho de saneamento previsto no artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, em que em termos genéricos se decide da legitimidade do Ministério Público, pelo que tal decisão não reveste o valor de caso julgado formal.
5 - Conclusões
As considerações feitas permitem tirar as seguintes conclusões:1.ª A falta de regulamentação sistemática e específica do caso julgado no Código de Processo Penal não permite, por si própria, o recurso nos termos do artigo 4.° deste Código aos preceitos sobre tal matéria constantes do Código de Processo Civil;
2.ª Em matéria de caso julgado formal, quanto ao despacho previsto no artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, não existe qualquer lacuna que imponha por indício normativo o recurso à analogia para aplicação do regime constante do artigo 672.° do Código de Processo Civil e do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Fevereiro de 1963, ex vi do artigo 4.° do Código de Processo Penal;
3.ª Se se verificasse a existência de lacuna, a sua integração, com base no artigo 4.° do Código de Processo Penal, só se poderia operar desde que se não produzisse uma diminuição dos direitos processuais dos arguidos;
4.ª A aplicação ao processo penal dos normativos processuais civis acima referidos implica uma manifesta diminuição relativa ao estatuto processual dos arguidos;
5.ª Também a aplicação neste caso dos referenciados normativos processuais civis infringe o princípio da igualdade jurídica, essencial entre o caso regulado e o caso a regular, e o princípio da harmonização contido no artigo 4.° do Código de Processo Penal;
6.ª Isto porque não existe a mesma identidade de natureza e finalidade entre o despacho saneador contemplado no artigo 510.°, números 1, alíneas a) e b), e 2, do Código de Processo Civil e o despacho de saneamento a que se refere o artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal;
7.ª Igualmente a aplicação da doutrina do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Fevereiro de 1963 colide e não se harmoniza com os princípios fundamentais do processo penal, tais como o princípio da verdade material, do favor rei e do favor libertatis, sendo nessa parte irrelevante a ressalva contida no mesmo assento que condiciona o efeito de caso julgado formal sobre a legitimidade à superveniência de factos que nela se repercutam;
8.ª O artigo 368.°, n.° 1, do Código de Processo Penal (como, de resto, o artigo 338.°, n.° 1) não tem, quanto à sua preclusão, o valor de estabelecer força de caso julgado formal para o despacho genérico sobre a legitimidade do Ministério Público, proferido anteriormente, mas tem apenas por finalidade estabelecer uma ordem de análise das várias questões, pretendendo evitar a duplicação da sua apreciação;
9.ª Assim, o despacho sobre a legitimidade do Ministério Público, proferido em termos genéricos, ao abrigo do artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, não reveste o valor de caso julgado formal.
6 - Decisão
Portanto e o mais dos autos:Acordam os juízes que constituem a secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça no seguinte:
Negar provimento ao recurso, mantendo inteiramente o acórdão recorrido de harmonia com a decisão que seguidamente se passa a proferir e que estabelece, com carácter obrigatório para os tribunais judiciais, a seguinte jurisprudência:
A decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento.
Sem tributação.
Lisboa, 16 de Maio de 1995. - Sebastião Duarte da Costa Pereira - Bernardo Guimarães de Sá Nogueira - Manuel Luís Pinto Sá Ferreira - José Henriques Ferreira Vidigal - Manuel António Lopes Rocha - Humberto Amado Gomes - José Figueirinhas - António Teixeira do Carmo - José Sarmento Silva Reis - João Magalhães - Herculano Lima - Pedro Elmano Marçal - António de Sousa Guedes - Araújo dos Anjos - Moura Nunes da Cruz - Lopes Pinto.