Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 5/2025
Acórdão do STA de 27 de Março de 2025, no Processo 1954/13.2BEPRT-1.ª Secção
Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
I-RELATÓRIO
1-AA, melhor identificada nos autos, propôs no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (TAF do Porto), contra o INSTITUTO PORTUGUÊS DE ONCOLOGIA DO..., EPE (IPO), ação administrativa comum, pedindo:
(i) o pagamento de uma pensão vitalícia por incapacidade parcial permanente;
(ii) a prestação vitalícia de cuidados médicos (de fisioterapia e de ortopedia, material médico e medicamentos);
(iii) o pagamento da aquisição de veículo automóvel adaptado à sua deficiência;
(iv) indemnização por danos morais, no valor de € 58.107,44 e ainda (v) o ressarcimento de todas as despesas suportadas, no montante de € 1.119,21, tudo acrescido dos juros de mora.
Fundamentou estas pretensões, em síntese apertada, em erro médico cometido pelos médicos do R. na cirurgia a que foi submetida, no bloco operatório central do R., que durante aquela intervenção cortaram e danificaram músculos, tendões e nervos, tendo, consequentemente, ficado limitada na sua locomoção, com dificuldades na realização de cuidados pessoais, lides domésticas, vida sexual, condução automóvel e vida profissional, para além de passar a sentir-se triste, frustrada e angustiada, a necessitar de apoio de terceiros e de material ortopédico, e a carecer de medicação para as dores, insónias e depressão.
2-O R. contestou, alegando, em síntese, que as queixas da A. após a intervenção cirúrgica a que foi submetida são compatíveis com o normal ajustamento do corpo à extração de órgãos que obrigatoriamente resulta da operaçãoextração do útero, das trompas, dos ovários e dos ligamentos de suporte, recusando que tenha sido praticada pelos seus médicos uma lesão direta dos nervos femoral e obturador na decorrência da intervenção. Mais alega, em tese, que ainda que tivesse ocorrido essa lesão direta e ainda que tivessem sido observadas todas as “leges artis”, a ocorrência dessas lesões é sempre um risco associado à cirurgia em causa, atendendo à proximidade orgânica e continuidade física, reiterando que foram cumpridas as “leges artis”.
Pugna pela improcedência total da presente ação.
3-Concluída a instrução, discussão e julgamento da causa, o Senhor Juiz de Direito do TAF do Porto, por sentença proferida em 13 de fevereiro de 2020, depois de no julgamento se ter socorrido de prova pericial, prova testemunhal e ainda de presunções judiciais, julgou a ação parcialmente procedente, constando da mesma o seguinte segmento decisório:
V-Decisão final.
Ante o exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, consequentemente, condeno o R. no pagamento à A. de uma indemnização em dinheiro, fixando, equitativamente, os seguintes montantes indemnizatórios (parciais e global):
a) Pelo défice funcional temporário total-43 dias-€680,00 (seiscentos e oitenta euros)-(considerando que o SMN vigente em 2010 ascendia a €475,00:
30dias=€15,83X43dias=€680,00-cf. “PORDATA”);
b) Pelo défice funcional temporário parcial-entre../../2010 e../../2015-1613 dias(considerando a média dos SMN vigentes em 2010 e 2015-€475,00 e €505,00, respetivamente=€490,00, aplicando-se a redução do parcial de défice funcional para um nível de 1/3 daquele valor médio=€490,00:
3=€163,33, divisível ainda pelos 30 dias de calendário=€5,44X1613 dias=€8.774,72-cf. “PORDATA”)-o valor parcial €8.774,72 (oito mil e setecentos e setenta e quatro euros e setenta e dois cêntimos);
c) Pela repercussão temporária total na atividade profissional-43 dias-€680,00-(seiscentos e oitenta euros)-(segundo o critério já atrás definidovalores do SMN);
d) Pela repercussão temporária parcial na atividade profissional-1613 dias-€8.774,72-(oito mil e setecentos e setenta e quatro euros e setenta e dois cêntimos)-(segundo o critério já atrás definidovalores do SMN);
e) Pelo défice funcional permanente de integridade físico-psíquica-dano permanente“Parésia do nervo obturador direito”-desvalorização de 3 pontos, num coeficiente da tabela da TNI previsto de 1 a 3-€10.968,40-(dez mil e novecentos e sessenta e oito euros e quarenta cêntimos)-(o valor da repercussão temporária parcial na atividade profissional acrescida de mais 25 %);
f) Pela repercussão permanente na atividade profissional (dano futuro, posto que, no passado, este dano já foi assegurado nos itens antecedentes)-considerando que a A. tem 21 Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto atualmente 76 anos de idade e que a esperança de vida à nascença fixada para um indivíduo do sexo feminino em 2017, o último ano com dados estatísticos disponíveis, estava fixada em 83,4 anos de idadecf. “PORDATA”-fixa-se em €16.920,98 (dezasseis mil e novecentos e vinte euros e noventa e oito cêntimos)-(considerando os €163,33 mensais de ganho em resultado do défice funcional adquirido pela A.X14 mesesX7,4 anos de esperança de vida à nascença);
g) Pela repercussão na atividade sexualnum grau 2 em 7-fixa-se €2.000,00 (dois mil euros);
h) Pelo quantum dolorisfixado num grau de 4 em 7-e pelos danos não patrimoniais mencionados no ponto 19.º do probatório-fixa-se em €4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros);
i) Pela ajuda técnicaadaptação de veículo automóvel-fixa-se em €650,00 (seiscentos e cinquenta euros);
j) Pelas despesas e honorários de advogado-fixa-se o montante de €1.500,00 (mil e quinhentos euros);
-Tudo no montante global de indemnização de €55.448,82 (cinquenta e cinco mil e quatrocentos e quarenta e oito euros e oitenta e dois cêntimos), acrescido ainda dos correspondentes juros de mora vencidos e vincendos, a contarem desde a citação e até ao efetivo e integral pagamento.
Custas a cargo da A. e do R., na proporção do respetivo decaimento, cuja responsabilidade se fixa em 5 % para a A. e em 95 % para o R.-cf. artigos 527.º, n.º 1, do CPC, 1.º e 189.º do CPTA e 6.º, n.º 1, do RCP.
»4-O R. interpôs desta sentença recurso ordinário de apelação para o Tribunal Central Administrativo do Norte (TCAN), no qual invocou erro de julgamento sobre a matéria de facto e erro de julgamento em matéria de direito, alegando para o efeito e, em síntese, que:
-os factos dados como provados nos artigos 5.º, 6.º e 19.º devem ser remetidos para os factos dados como não provados;
-a falta de preenchimento de vários pressupostos da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, o que impede a aplicação do mecanismo indemnizatório, uma vez que:
(i) relativamente ao pressuposto da ilicitude, a sentença não dá como provados quaisquer factos constitutivos da ilicitude de qualquer conduta imputada ao R., antes efetua uma fundamentação à base de presunções, sem qualquer suporte factual e legal;
(ii) relativamente ao pressuposto da culpa, o Tribunal entende que é de se aplicar, ao caso concreto, a presunção de culpa leve à Ré, por aplicação do disposto no artigo 10.º, n.º 2, da Lei 67/2007, o que carece de todo e qualquer fundamento, em virtude de não estamos perante a prática de atos jurídicos ilícitos, antes no âmbito da prática de atos materiais médicos; mesmo que assim não se entendesse, sempre assistiria razão à Apelante relativamente ao não preenchimento do pressuposto da culpa, porquanto a mesma consegue provar o cumprimento irreprovável de todas as leges artis, procedimentos e demais orientações, ora por via da prova documental (relatórios das operações efetuadas), ora por via da prova pericial à contrario.
5-O TCAN, por acórdão de em 19 de maio de 2023, manteve a decisão da matéria de facto proferida pela 1.ª instância, mas julgou não verificado o pressuposto da ilicitude, pelo que, concedeu provimento ao recurso, revogou a decisão recorrida e, em consequência, julgou a ação totalmente improcedente.
6-É deste acórdão que a A./Recorrente vem interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal Administrativo (STA), nos termos do artigo 150.º do CPTA, para o que apresentou alegações que culminou com a formulação das seguintes conclusões:
1-O recurso para o STA é admissível. Pois, nomeadamente
2-As questões são de enorme relevância jurídica e social:
más práticas médicas que podem afectar qualquer cidadão/ã.
3-E há violação do artigo 1.º, 3.º, 6.º, 8.º e 14.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, desrespeito pela jurisprudência do Tribunal Europeu, o único que pode fazer uma interpretação autêntica daqueles artigos.
4-E violação das normas da União Europeia, nomeadamente da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
5-O direito europeu e convencional têm primado sobre o direito nacional, que deve ser interpretado em conformidade com aqueles.
6-Houve violação da jurisprudência dos tribunais nacionais superiores.
7-O STA já admitiu o recurso em questões idênticas ou similares.
8-As questões que o STA deve examinar são, pelo menos, as seguintes:
a) Se foi prestado consentimento informado, informando a autora de que poderiam surgir as intercorrências que se deram provadas. Ou seja “que o consentimento foi prestado na posse das informações relevantes sobre o acto a realizar, tendo em conta as concretas circunstâncias do caso, sob pena de não poder valer como consentimento legitimador da intervenção” (sic, ac. STJ de 02/11/2017, abaixo sumariado/transcrito)
b) A quem compete o respetivo ónus da prova do consentimento.
c) Se o consentimento não existe ou é ineficaz, se a atuação do médico/hospital será ilícita por violação do direito à autodeterminação e se correm por sua conta todos os danos derivados da intervenção não autorizada.
d) Quem tem o ónus de alegar ou provar a negligência ou culpa ou violação das leges artis. Ou seja, quem tem o ónus de alegar e provar o facto ilícito e a culpa do autor da lesão.
e) Quem tem de fazer prova do cumprimento das leges artis.
f) Se a indemnização deve estar sujeita à prova de culpa ou dolo face às normas europeias.
g) Se há violação do princípio da igualdade se as normas sobre a responsabilidade civil dos médicos/estabelecimentos hospitalares públicos forem interpretadas diferentemente relativamente aos privados, em detrimento das vítimas da assistência pública.
h) Se há violação dos princípios da igualdade, legalidade e segurança jurídica face a interpretações diferentes da mesma lei, conforme jurisprudência abaixo transcrita.
i) Se há violação dos artigos 1, 3, 6, n.º 1, 8 e 14 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
j) Se há violação das normas europeias, nomeadamente da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
k) Se se deve proceder ao reenvio prejudicial nos termos do artigo 267 do Tratado da União Europeia.
l) Se o réu violou as leges artis.
m) Se foi provada matéria suficiente para condenar o réu.
n) Se o acórdão violou todas as regras, princípios e valores que constam das alíneas anteriores.
9-O réu/TCAN não pode pretender pôr em causa os próprios documentos emitidos pelos seus médicos e serviços.
10-O réu esquece que as provas e a matéria provada resultaram de perícias médicas todas concludentes.
11-Perante tantos danos, houve e há preocupação, frustração e desilusão.
12-E aqueles danos provocados, foramno depois da cirurgia, consequência da cirurgia, claro está.
13-Erradamente, o TCAN põe em causa todos os pressupostos da responsabilidade do réu.
14-Ninguém informou a autora que iria sair do Hospital estropiada, senão poderia ter ido a outros médicos ou outros hospitais.
15-Ninguém a informou que:
Dessa cirurgia resultavam as seguintes complicações para a A.:
“lesão dos nervos obturador e femoral direitos; e lesão neurológica ao nível da pélvis (cf. pontos 9.º e 10.º do probatório)”, e respetivas sequelas dadas como provadas.
16-Sobre isso nada consta da informação do réu.
17-O consentimento do paciente prestado de forma genérica não preenche, só por si, as condições do consentimento devidamente informado, sendo, além disso, necessário, em caso de repetição de intervenções, que tais esclarecimentos sejam atualizados, tendo em conta, designadamente, que os riscos se podem agravar com a passagem do tempo.
18-O ónus da prova do consentimento pertence ao médico/hospital, conforme acórdãos do STA e STJ.
19-O consentimento do paciente é um dos requisitos da licitude da atividade médica artigos 5.º da CEDHBioMed e 3.º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) e tem que ser livre e esclarecido para gozar de eficácia:
se o consentimento não existe ou é ineficaz, a atuação do médico será ilícita por violação do direito à autodeterminação e correm por sua conta todos os danos derivados da intervenção não autorizada.
20-Faltam os requisitos do consentimento hipotético, em relação a intervenções cirúrgicas suscetíveis de causar riscos graves, como dores intensas e incapacidade para manter relações sexuais, andar e trabalhar, tendo de se concluir que a autora, se soubesse dos riscos da mesma, teria recusado o consentimento.
21-No âmbito da responsabilidade civil extracontratual da administração do Estado no âmbito da saúde, o ónus de provar a ausência de culpa do autor da lesão incumbe ao Estado ou réu.
22-Se não fosse assim, haveria violação do artigo 6.º, n.º 1, da Convenção combinado com o artigo 14.º:
Discriminação dos cidadãos perante os hospitais públicos face aos privados.
23-A indemnização das pessoas lesadas em matéria de saúde não pode ficar subordinada à prova da existência de culpa ou dolo.
24-Em casos similares de hospitais públicos o STA condenouos a pagar indemnizações.
25-O STA tem vindo a entender ser aplicável à responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos fundada em ato ilícito a presunção de culpa estabelecida no artigo 493.º° n.º 1 do CC.
26-O autor só tem de provar o resultado da atuação do Hospital.
27-Feita essa prova, o réu só não responderá civilmente se, não obstante, provar que tal resultado se verificaria ainda que tivessem sido cumpridas as “legis artis”.
28-Porém, o réu nada alegou ou provou.
29-É enquadrável no âmbito da responsabilidade civil extracontratual a pretensão indemnizatória da autora, relativa a danos emergentes de um procedimento médico-cirúrgico de que foi alvo, num estabelecimento de saúde pública, ao qual recorreu na qualidade de utente.
30-Não há diferenças de regime de responsabilidade entre públicos e privados.
31-No domínio da responsabilidade civil por ato médico, está ultrapassada a distinção entre a responsabilidade civil contratual e a responsabilidade civil extracontratual e as inerentes diferenças de regime.
32-Não há distinção entre responsabilidade contratual e extracontratual nos atos médicos.
33-A responsabilidade civil em causa é fundada também na violação dos direitos subjetivos da paciente à integridade física e moral, ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação (arts 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1 da CRP e 70.º, n.º 1 do CC).
34-Provados os danos e sequelas, o réu só não responderá civilmente se, não obstante, provar que tal resultado se verificaria ainda que tivessem sido cumpridas as “legis artis”.
35-Porém, o réu nada alegou ou provou.
36-O réu nada provou em como respeitou as leges artis. Pelo contrário, até admitiu, por escrito, nos seus relatórios, atrás dados como provados, que as violou.
37-Estando provado, no caso concreto, que o resultado espúrio foi originado, em termos causalmente adequados, pela intervenção cirúrgica efetuada e gorado o intento da Ré de demonstrar que isso estava incluído no universo dos riscos próprios, normais e comuns da cirurgia em causa, está justificada a convicção do tribunal a quo, que considerou provada a violação das leges artis.
38-Presume-se, natural ou judicialmente, que a intervenção não foi feita com o cuidado devido e que tal se deveu a culpa do cirurgião, cabendo a este ou provar que as lesões provocadas não tiveram nada a ver com uma atuação deficiente (afastando a ilicitude), ou que conformou a sua conduta à de um cirurgião medianamente diligente e prudente, colocado nas mesmas circunstâncias, afastando a culpa.
39-Jurisprudência divergente sobre o mesmo assunto viola o artigo 6.º n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
40-Segundo as novas conceções jurisprudenciais e doutrinais europeias, presume-se a culpa dos autores do ato médico.
41-As regras de responsabilidade por negligência ilidível são muitas vezes aplicadas nos casos em que o réu possui mais informações sobre a causa do dano do que o autor”. Tal como “nos hospitais”. (sic TEDH)
42-Porque o hospital tem mais informação que a vítima. Doutra forma, a prova era muito difícil ou impossível para as vítimas. Ibidem.
43-Assim o diz o TEDH (TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM), em aplicação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, assinada e ratificada por Portugal, e que o obriga, nos termos do artigo 1.º da mesma e nos termos do artigo 8.º da Constituição, interpretando o artigo 3.º da Convenção e 6.º, n.º 1, da mesma.
44-O procedimento previsto pela Convenção nem sempre se presta a uma aplicação rigorosa do princípio “firmanti incumbit probatio” (o ónus da prova cabe a quem alega). TEDH.
45-Há violação do artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem:
direito a um processo equitativo, porque o tribunal obriga os requerentes a fazer prova do impossível ou difícil.
46-O acórdão do TCAN viola os artigos 1.º, 3.º, 6.º, n.º 1, 8.º e 14.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
47-O réu nada provou que justificasse os danos e sequelas causadas.
48-A prova está nos factos. A autora saiu do hospital deficiente física, lesionada. Ou será que todos os que entram no Réu saem de lá todos estropiados?
49-Ninguém informou a autora que a cirurgia tinha esses riscos nem vêm mencionados no folheto do réu, nem foi alegado ou provado que tinha esses riscos.
50-A autora poderia optar por um hospital privado se soubesse que a iam pôr deficiente.
51-Segundo as regras técnicas e científicas, a autora não podia sair do réu aleijada, como aconteceu. Logo, foram violadas as leges artis.
52-Afirmar que “A lesão apresentada pela autora é uma complicação cirúrgica que pode ocorrer, inerente ao tipo de cirurgia, e não necessariamente, decorrente de um mau atendimento ou uma imperícia técnica,” é uma afirmação não fundamentada.
53-Nem o hospital réu teve a coragem de alegar e muito menos provar isso.
54-Pelo que o acórdão viola princípios básicos consagrados no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção.
55-E de falta de fundamentação prevista no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
56-Existe lei e até jurisprudência nacional e europeia em sentido contrário ao acórdão, bem como há a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que o Estado se obriga a cumprir por força do artigo primeiro daquela e artigo 8 da Constituição.
57-Pelo que, se tem que concluir-se que o Réu cometeu a ilegalidade que lhe foi assacada.
58-Um facto negativo não prova o seu oposto, como pretende o TCAN no seu acórdão.
59-Este processo deve ser especialmente célere atento o que está em causa e a saúde da autora.
60-A autora tem 80 anos e está praticamente inválida.
61-Deve-se proceder ao reenvio prejudicial nos termos do artigo 267 do Tratado da União Europeia, formulando-se as questões que constam do n.º XIII, que aqui se dão reproduzidas.
62-Pelo que foram violadas todas as regras e artigos, incluindo os da Convenção e Constituição atrás alegados, bem como os artigos 3.º, n.º 2, alínea b), e artigo 20 e 21 e 35 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
63-Que deveriam ter sido interpretados e aplicados no sentido das presentes conclusões.
64-Devendo revogar-se o acórdão e manter a decisão de primeira instância, repristinando-a.
».
7-O R., ora Recorrido, apresentou contraalegações, as quais termina com as seguintes conclusões:
“Quanto à não admissão do recurso de revista
1.ª As alegações da recorrente não organizam de forma autónoma o enunciado nem, por conseguinte, as conclusões destinadas a operacionalizar a decisão a que se referem as normas dos n.os 1 e 6 do artigo 150.º do CPTA;
2.ª E as que irregularmente apresentam não se mostram enunciadas como uma breve síntese do enunciado exposto, mas sim como simples proclamações;
3.ª O que se evidencia pelo respetivo teor (vg ao afirmar que
houve violação de jurisprudência dos tribunais nacionais superiores
» eo STA já admitiu o recurso em questões idênticas ou similares
»-conclusões 6 e 7) desacompanhado de identificação conexa, e pela interseção de fundamentos que se repetem e interpenetram, para fundamentar tanto a admissibilidade do recurso como para o fundamentar, o que só por si inviabiliza a admissibilidade do recurso;
4.ª Impondo ao Tribunal “ad quem” a pesquisa no enunciado de argumentação e de enunciação de múltiplos arestosdas áreas da jurisdição administrativa e da jurisdição comum sem distinção temáticaos fundamentos respetivos e conexos com tais afirmações;
5.ª Ao que acresce terem as questões colocadas, não obstante o seu relevo intrínseco, merecido já ampla abordagem e estabilização pela jurisprudência nacional;
6.ª Ou seja, a recorrente desvia-se das normas, por um lado, 639.º n.º 1 e 2 e 640.º n.os 1 e 2 do CPC quanto à não enunciação, em síntese, de conclusões que permitam de forma clara e suficiente, captar a delimitação e o objeto do recurso;
7.ª No que concerne à sistemática e à organização das conclusões, o recorrente apresenta enunciado em que se insurge contra tudo, sem qualquer autonomia entre fundamentos de admissibilidade e, após essa ponderação e conhecimentos, fundamentos de procedência, não discernindo bem o que pretende atacar que ponha em causa a estruturação do Acórdão recorrido;
Tudo o que deverá conduzir à rejeição do recurso de revista ou, no mínimo, à formulação de um convite à recorrente a aperfeiçoar as alegações.
Sem prescindir, subsidiariamente:
Quanto às questões de fundo para a revista 8.ª A reserva da recorrente de que o Acórdão recorrido
não pode pretender pôr em causa os próprios documentos emitidos pelos seus médicos e serviços
»(da conclusão 9), não é inteligível, só podendo dever-se a lapso da recorrente, por ser desconforme ao sentido da decisão!
9.ª A matéria relativa à observância e regime do consentimento informadoque tutela o valor relativo à autodeterminação em cuidados de saúde e não a integridade física da pacientenão consubstanciou o objeto do processo da instância inicial, nem subsequente, não tendo, por consequência sido apreciado e conhecido pelo Acórdão recorrido, em razão do que não pode, tratando-se de questão e matéria nova, ser inserida no âmbito do recurso de revista submetido ao Venerando STA;
10.ª Acrescendo inexistir controvérsia, aparentemente, nem doutrinária ou jurisprudencial sobre a quem incumbe o ónus da prova da promoção e obtenção do consentimento informado dos pacientes;
11.ª O sentido da decisão do Acórdão do TCAN recorrido, quanto à apreciação e conhecimento da matéria de facto no segmento da ilicitude (no segmento das leges artis) e da culpa (quanto ao dever geral de cuidado) dos agentes médicos não é passível de recurso por se tratar de matéria de facto e, como tal, excluída do âmbito de aplicação dos recursos de revista, ex vi da norma do artigo 150/2 do CPTA;
12.ª Inexiste norma jurídica no regime da Lei 67/2007, de 31-12 que faça impender sobre os hospitais do SNS enquanto entidades da Administração Pública da saúde o ónus de
provar a ausência de culpa do autor da lesão
»(conclusão 21 da recorrente), norma que a recorrente também não identifica nem explicita;
13.ª Do Acórdão do STA de 2022-11-22 se extrai que
II-O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. IIIAs leges artis, enquanto “normas técnicas” da prática médica, não podem ser analisadas, interpretadas e mobilizadas pelo julgador, como se de normas jurídicas se tratasse, para “determinar” a existência ou não de um ilícito. As leges artis são, como o nome indica, as “regras da arte” de um determinado domínio extrajurídico e a sua violação ou não é uma questão de facto, apreciada e valorada no âmbito da produção de prova, através dos meios probatórios adequados para o efeito, em regra, a prova testemunhal e pericial.
»14.ª E ainda que
…a prova da negligência médica não obedece a regras jurídicas especiais em matéria de produção de prova, cabendo às instâncias a quem a lei confere competência para o julgamento da mesma determinar a existência ou não de violação das leges artis em função da valoração que em sede própria se faça da prova produzida. As normas técnicas da profissão médica não são normas jurídicas e o julgador “acede” ao respetivo conteúdo para efeitos de determinar a violação ou não das mesmas por intermédio dos meios de prova legalmente previstos (documentos, testemunhas e peritos), formando o seu juízo de ilicitude com base na valoração que faz da prova produzida
»(2.3.2 § 2.º do aresto);
15.ª Orientação de onde decorre que o sentido e o alcance do Acórdão recorrido não podem ficar sujeitos à pretendida revista;
16.ª Quanto ao requerido ‘reenvio prejudicial’ não se mostram verificados os pressupostos da sua viabilidade, quanto à matéria relativa ao consentimento informado por estar precludido o direito do seu conhecimento em sede de recurso de revista, com efeitos sobre o incidente processual do reenvio; e quanto à matéria da desigualdade dos pressupostos, em geral, da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública da Saúde e do setor privado, não acolhido pelo Direito Europeu, por não estar demonstrada essa verificação, nem identificadas as normas a que tal matéria seria subsumível;
17.ª O douto Acórdão recorrido não merece, pois, qualquer censura, devendo manter-se incólume na sua estrutura lógica e jurídica.”.
8-A revista foi admitida por Acórdão proferido em formação de apreciação preliminar, de 07 de setembro de 2023, com fundamento na seguinte ordem de razões:
“[...] Efetivamente, as questões suscitadas nas alegações de revista sobre a responsabilidade civil extracontratual em casos como o presenteresponsabilidade civil decorrente da prática, ou da omissão, de atos médicos, em estabelecimentos de saúde do Serviço Nacional de Saúde e sobre as quais o acórdão recorrido se pronunciou, revestem-se do maior relevo social e jurídico, por se tratar de situações suscetíveis de repetição, sendo de todo o interesse da comunidade que sobre elas haja entendimento tendencialmente estabilizado, e ainda porque, como é patente das
decisões díspares
» dos tribunais de instância, este litígio se mostra de apreciação jurídica algo complexa, a impor a intervenção esclarecedora do órgão supremo da jurisdição administrativa. Deste modo, quer em nome da relevância sociai e jurídica da questão, quer em nome da necessidade da clarificação da sua abordagem e solução, justifica-se a admissão do recurso de revista interposto por AA.”.9-O Ministério Público junto deste STA, notificado nos termos e para efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 146.º do CPTA, não emitiu parecer.
10-O processo vai à Conferência para julgamento em formação alargada. IIDELIMITAÇÃO DO ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO E INDIVIDUALIZAÇÃO DAS QUESTÕES CONCRETAS A DECIDIR.
11-Tendo em conta as conclusões das alegações apresentadas pela Recorrenteas quais delimitam o objeto do recurso, nos termos dos artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do CPC, ex vi, artigos 1.º e 140.º, n.º 3 do CPTA (sem prejuízo de eventual matéria de conhecimento oficioso)-está em causa saber se o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento ao revogar a sentença proferida pela 1.ª instância, julgando a ação proposta pela Autora totalmente improcedente, e absolvendo o Réu dos pedidos formulados, o que passa por saber se o acórdão recorrido:
a) 1. Errou na interpretação e aplicação o disposto no artigo 7.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei 67/2007, de 31/12, dando como não preenchido o pressuposto da ilicitude (e da culpa);
a) 2. Violou o direito a um processo equitativo (prova difícil ou impossível) e os artigos 1.º, 3.º, 6.º, 8.º e 14.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
a) 3. Violou as normas europeias, nomeadamente da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e do pedido de reenvio prejudicial para o TJUE;
a) 4. Violou os direitos subjetivos à integridade física e moral, ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminaçãoartigos 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1 da CRP e 70.º, n.º 1 do CC.
** IIIFUNDAMENTAÇÃO A-DE FACTO
12-Os factos materiais em que as instâncias assentaram são os seguintes:
1.º-A A., no dia 02/07/2010, foi admitida no Serviço de Urgência, área de...-..., da ULS de..., E. P.E (cf. fls. 297 do processo clínico da ULS.);
2.º-A A., na ULS..., foi observada em consultas externas de..., de 12/07/2010 e de 26/07/2010, aí tendo realizado exame histológico, cujo relatório de 20/07/2010 concluiu pelo diagnóstico de:
“... do... com áreas pouco diferenciadas” (cf. fls. 309, 311 e 330 do processo clínico da ULS.);
3.º-A A., proposta para cirurgia, no dia.../…/2010 foi submetida no bloco operatório central do R. a uma intervenção de “estadiamento cirúrgico de... do...” (cf. fls. 3 a 15 do processo clínico-PA-do IPO.);
4.º-A A., em tratamento ambulatório posterior no R., foi sujeita a três sessões de aplicação de produto de braquiterapia (cf. fls. 6, frente e verso, do processo clínico-PA-do IPO.);
5.º-Em 07/11/2011, no que concerne à situação da ora A., a Direcção Clínica do IPO..., por intermédio do Dr. BB, elaborou o seguinte relatório (por excertos)-(cf. fls. 15 do processo clínico-PA-do IPO.):
[IMAGEM]
6.º-Em 18/01/2012, no que respeita à situação da ora A., a Direcção Clínica do IPO..., por intermédio do Dr. CC, elaborou o seguinte relatório (por excertos)-(cf. fls. 12 e 13 do processo clínico-PA-do IPO.):
[IMAGEM]
7.º-Sobre o estado da A., no diário das consultas de... do IPO..., de 25/02/2011, 21/06/2011 e 14/10/2011, foram inscritas, entre outras, as seguintes anotações:
“dificuldade de marcha”
;
“mesmo estado relativamente à dificuldade funcional do membro inferior direito”
;
“mantém dificuldade em deambular” (cf. fls. 7 a 9 do processo clínico-PA-do IPO.);
8.º-Em 26/07/2011, a A. foi submetida no IPO... a exame de electromiografia, constando do seu relatório e conclusão o seguinte:
“atrofia neurogénea moderada, sem sinais de desnervação activa nos músculos...,... e... direitos...”
;
“Diminuição da amplitude da resposta motora evocada no músculo... direito”
;
“Os resultados obtidos são compatíveis, no contexto clínico, com um compromisso moderado do plexo lombar ou dos seus nervos emergentes Femoral e Obturador direitos” (cf. fls. 28 e 29 do processo clínico-PA-do IPO.);
9.º-Da cirurgia que a A. realizou no dia …/…/2010, nas instalações do R., resultou uma lesão dos nervos obturador e femoral direitos;
10.º-Após a cirurgia suprarreferida, verificou-se na A. uma lesão neurológica ao nível da pélvis;
11.º-Das lesões indicadas nos dois pontos antecedentes, advieram para a A. as seguintes consequências:
a) Défice funcional temporário total nos actos correntes da vida diária, familiar e social-43 dias(entre a cirurgia e o último dia de sessão de braquiterapia realizada no R.);
b) Défice funcional temporário parcial-entre../../2010 e../../2015-1613 dias“período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização dos actos correntes da vida diária, ainda que com limitações”
;
c) Repercussão temporária total na actividade profissional-43 dias;
d) Repercussão temporária parcial na actividade profissional-1613 dias;
e) Défice funcional permanente de integridade físico-psíquica-A A., em resultado da cirurgia, adquiriu um dano permanente, qualificado de “Parésia do nervo obturador direito”, que não afecta a A. em termos de “autonomia e independência”, mas é causa de “sofrimento físico”, com limitações em “termos funcionais”-com desvalorização de 3 pontos, num coeficiente da tabela da TNI previsto de 1 a 3;
f) Repercussão permanente na actividade profissional“as sequelas da A. são compatíveis com o exercício de actividade habitual, mas implicam esforços suplementares, nomeadamente na condução de veículos automóveis”, “assim como dificuldade em subir e descer degraus”
;
g) Repercussão na actividade sexual“limitação total ou parcial do nível desempenho/gratificação de natureza sexual, decorrente de sequelas físicas e/ou psíquicas”-fixado, no caso da A., num grau 2 em 7;
h) Quantum doloris-A A. sofreu dores entre a data da cirurgia e a consolidação das lesões-fixado num grau de 4 em 7;
i) Ajuda técnica-A A., em função das repercussões da cirurgia, necessita da adaptação de veículo automóvel para que lhe seja possibilitada a condução do mesmo;
12.º-A A., depois da cirurgia de …/…/2010, foi consultada na Medicina Física e de Reabilitação do R. e realizou fisioterapia (cf. fls. 30 do processo clínico do IPO.);
13.º-A A. nasceu em../../1943 (cf. fls. 295 do PA da ULS..., EPE);
14.º-A A. aufere pensão de velhice desde../../2008 (cf. fls. 19 e 20 dos autos);
15.º-A A., em 2010, declarou à Administração Fiscal início de actividade sob os códigos CAE 82190 e 82990 (cf. fls. 24 e 25 dos autos);
16.º-A A. é dona do veículo automóvel de matrícula...-...-CJ, marca..., modelo... (cf. fls. 27 a 30 dos autos);
17.º-A A. possui título de condução válido (cf. fls. 31 a 33, 650 e 651 dos autos);
18.º-A A. assinou os documentos deConsentimento Informado-para a realização da cirurgia de “Estadiamento cirúrgico de …do...” e para “Anestesia geral+epidural”, respectivamente, em 27/08/2010 e em 10/09/2010 (cf. fls. 80 e 81 do processo clínico do IPO.);
19.º-A A., depois da cirurgia, vive preocupada, frustrada e desiludida.
Factos não provados 1.º-Que a A. passasse a padecer de alergias, constipações, gripes, infecções víricas, rinite alérgica, desequilíbrios, quedas, síndrome vertiginoso, dores nas articulações, desmaios, tonturas devidas à aplicação de epidural, hipertensão e agravamento da tensão arterial, tudo em resultado da cirurgia;
2.º-Que a A. adquirisse um quadro de alterações ao nível da coluna lombosagrada em resultado da cirurgia;
3.º-Que a A. necessitasse de medicação analgésica, cinta lombar e de bengala em resultado da cirurgia;
4.º-Que a A. sofra, em resultado da cirurgia, de ansiedade psíquica ou somática;
5.º-Que a A. sofra, em consequência da cirurgia, de perturbação de stresse póstraumático ou de sintomatologia ansiosa fóbica, ideação depressiva, ou perturbação da autoestima ou da autoimagem;
6.º-Que a A. fosse obesa e que essa alegada obesidade tivesse contribuído para as lesões dos nervos obturador e femoral aquando da cirurgia;
7.º-Que, na cirurgia, os agentes do R. tivessem cortado/seccionado músculos, tendões e os nervos femoral e obturador da Autora;
8.º-Medicação descrita nos artigos 141.º e 142.º da p.i. e respetivos custos de aquisição.
Da análise crítica das provas conducentes aos factos provados:
A matéria de facto inclusa nos pontos 1.º a 8.º, 12.º e 18.º do probatório dimana da prova documental aí referida, sobretudo, os citados documentos do processo clínico-PA-do IPO..., produzidos pelo próprio R. e que as partes não impugnaram.
A convicção do Tribunal no que concerne à factualidade inscrita nos pontos 9.º a 11.º do probatório assenta na prova pericial produzida para o presente processo. Trata-se do “Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Civil” (cf. fls. 821 a 828 dos autos), elaborado por Perito Médico e Especialista em Medicina Legal do INMLCF, I. P., que aqui se qualifica de “serviço oficial apropriado”, nos termos do artigo 467.º, n.º 1, do CPC, “ex vi” do artigo 1.º do CPTA, cujas respostas periciais, atenta a complexidade e o conhecimento da ciência médica que o presente processo exige, dá um contributo decisivo para o esclarecimento das questões eminentemente técnicas.
Mas não só. O Tribunal funda a sua convicção na prova pericial atrás referida, posto que, a mesma advém de órgão e perito externo, independente, isento e desinteressado face às conveniências das partes, comungando este meio de prova da necessária objectividade e capacidade de convencimento do julgador quanto às matérias de índole técnica.
Ademais, cumpre realçar que a importância deste meio probatório é reforçada pela circunstância da própria A. ter sido observada directamente pelo respetivo Perito Médico, em organismo público oficial, experiente e vocacionado para a peritagem médica, constituindo tal diligência de observação directa da A. um elemento acrescido de imediação e confiança para as observações e conclusões técnicas formulados pelo Perito.
Enfatiza-se que a perícia admite claramente a “existência de nexo de causalidade entre a cirurgia realizada em …-…-2010 e o dano (lesão do nervo obturador direito... se exclui a existência de uma causa estranha e a préexistência do dano corporal” (cf. fls. 825, verso, dos autos).
A mesma perícia reforça a ilação supra com a alusão ao
registado “Em 08-09-2011-fez EMG que confirmou hipótese de lesão do nervo obturador e femoral e/ou plexo lombar; registado “Em 08-09-2011-fez EMG que confirmou hipótese de lesão do nervo obturador e femoral e/ou plexo lombar; possível iatrogenia
»;“e em EMG de 18-03-2014 (já mais de 2 anos depois da EMG atrás descrita):
“atrofia neurogénea, com características de cronicidade, nos músculos...,... e... D, compatível com um sofrimento moderado do plexo lombar ou dos seus ramos emergentes (Femoral e Obturador direitos). Os resultados são sobreponíveis aos realizados no exame anterior”
; pelo que se infere pelo carácter crónico, permanente e tido como sequela na avaliação em apreço enquanto Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica” (cf. fls. 828 dos autos).
A convicção do Tribunal provem ainda do resultado da “Consulta técnico-científica” feita ao Conselho MédicoLegal do INMLCF, I. P., que admite em cirurgias como aquela a que foi submetida a ora A. o surgimento de “complicações neurológicas a nível da pélvis”, admitido, também, que “é muito provável que a lesão nervosa referida nos registos clínicos e por diversas vezes confirmada em EMG, se trate de uma lesão de natureza iatrogénica, resultante da cirurgia ginecológica a que a doente foi submetida em... 2010 no IPO..., por... do...”.
Comparando o relatório pericial e o teor da consulta-técnico-científica, conclui-se que ambos se compatibilizam e são coerentes entre si, sobretudo, na medida em que ambas as perspectivas técnicas admitem a iatrogenia (resultante de acto ou prática médica) da lesão nervosa (sem outra causa estranha, externa ou pré-existente) e a sua relação causal com os actos cirúrgicos praticados à A. nas instalações do Réu.
Assim sendo, tendo presente o objecto da prova pericial definido no artigo 388.º do Código Civil (CC), fixa-se força probatória plena e decisiva às respostas periciais atrás aludidas, nos termos do previsto no artigo 389.º do CC.
Neste contexto, pelos motivos atrás explicados, a prova pericial acima destacada foi determinante para a formação da convicção do julgador, que, deste modo, retira importância aos depoimentos testemunhais dos profissionais médicos e de enfermagem que realizaram e assistiram a A. aquando da cirurgia.
Não porque se reputem os seus depoimentos de falsos ou errados. O desvalor desses depoimentos não resulta de tais patologias, que não foram detectadas em sede de audiência de julgamento, mas sim pela simples circunstância que essas mesmas testemunhas, bem vistas as coisas, se limitaram a confirmar, após uma leitura recente, os dados e os relatos já inscritos documentalmente no processo clínico, conferindo, sobretudo, os profissionais intervenientes na cirurgia, uma natural interpretação defensiva do seu trabalho, mas que não esclareceu o Tribunal sobre os temas de prova que importavam apurar.
A factualidade levada aos pontos 13.º a 17.º do probatório decorre da prova documental nos mesmos indicada, sobre a qual o Tribunal não vê razões para, em condições de normalidade e segundo regras de experiência, duvidar da sua fidedignidade e da sua emissão, registo ou recepção pelas entidades públicas em causa.
Por seu turno, a matéria de facto levada ao ponto 19.º do probatório é a única que, ao nível do patamar psicológico ou psiquiátrico da A., pode, em termos de padrões de razoabilidade e normalidade, ser admitida pelo Tribunal, nomeadamente, com apelo do julgador às regras de experiência, cujo recurso é permitido pelo artigo 607.º, n.º 4, in fine, do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA.
Melhor explicando:
admite-se que o quadro clínico e pósoperatório da A., sobretudo, as limitações que passaram a condicionar a vida da Impetrante, referidas no ponto 11.º do probatório, comportam aptidão suficiente para provocar na A. os sentimentos inscritos no ponto 19.º do probatório. Mais não pode o Tribunal considerar ao nível psíquico da A., posto que, o “Relatório da Perícia Médico-Legal” em Psiquiatria, do INMLCF, I. P., não confirmou outras sequelas, perturbações ou patologias advenientes da cirurgia e com reflexo no quadro de saúde mental da Impetrante.
Por fim, resta dizer que o Tribunal desconsidera as declarações de parte da Autora. E desconsideraas porque a Impetrante é a parte activa do processo, interessada directamente num desfecho favorável da demanda, designadamente, na obtenção da clamada indemnização em dinheiro, o que, naturalmente, torna as suas declarações impregnadas de subjectividade, de enfatização e dramatização do quadro clínico e emocional vivido, o que, sendo humanamente compreensível, não contribui para o Tribunal, contudo, adquirir uma visão objectiva e distanciada sobre os factos e que contribua para a formação firme e segura da sua convicção.
Sendo livre a apreciação do Tribunal sobre as declarações de parte da A., conforme preceitua o artigo 466.º, n.º 3, do CPC, são as mesmas desconsideradas no caso vertente.
E, no mesmo sentido, são igualmente desconsiderados os depoimentos das testemunhas apresentadas pela A., visto tratarem-se, nomeadamente, do marido, filhos, nora e empregada doméstica da Impetrante, cuja ligação familiar e emocional, mas também de natureza laboral (empregada doméstica), naturalmente, retirou aos seus depoimentos a isenção e o distanciamento necessário face aos interesses em conflito, pois, como é óbvio, atentas tais relações, os depoimentos são direccionados para a confirmação acrítica de factos favoráveis.
Da análise crítica aos factos não provados:
O Tribunal dá como não provada a factualidade contida nos pontos 1.º a 5.º dos “factos não provados”, posto que, novamente, a prova pericial do INMLCF, I. P., incluindo o “Relatório da Perícia Médico-Legal” em Psiquiatria, feita separadamente à ora A., com as características já atrás apontadas, respondeu negativamente às questões de ciência médica em causa. Por outro lado, quanto ao ponto 6.º dos “factos não provados”, o R. não logrou demonstrar pela prova apresentada que a A., por ocasião da cirurgia, apresentasse a condição de mulher obesa ou que essa eventual obesidade tivesse contribuído para a lesão dos nervos femoral e obturador.
Aliás, a perícia colegial de fls. 864 a 868 dos autos responde sobre tal matéria, dizendo que, na data da cirurgia, a A. pesava 61kgs, “o que não configura obesidade”.
No que respeita ao ponto 7.º dos “factos não provados”, considera-se que nenhum meio de prova comprovou o alegado. Isto é, nem a prova pericial, nem a prova testemunhal, nem, muito menos, os registos clínicos disponíveis nos autos e no PA enviado pelo IPO..., lograram convencer o Tribunal de que os cirurgiões intervenientes na cirurgia da A. tivessem, voluntaria ou involuntariamente, realizado um concreto acto material de corte ou de seccionamento (total ou parcial), através de instrumento cirúrgico, dos alegados elementos anatómicos da Impetrante.
No que concerne ao ponto 8.º dos “factos não provados”, entende-se que a prova testemunhal apresentada pela A. não mostrou um conhecimento preciso e rigoroso sobre a designação ou posologia dessa medicação, nem sobre os seus custos específicos, acrescendo a circunstância de que a documentação apresentada pela Impetrante sobre a temática em causa foi impugnada pelo Réu.
». IIIDE DIREITO
13-Enquadramento geral:
dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito.
13.1-Com a instauração da presente ação administrativa comum, a Autora pretendia ser indemnizada pelos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes das lesões e respetivas sequelas por ela sofridas após ter sido sujeita à intervenção cirúrgica a que foi submetida no bloco operatório central do R. de “estadiamento cirúrgico de... do...”, no dia …/…/2010.
13.2-A responsabilidade médica, na falta de regime especial, tem sido enquadrada pela doutrina e pela jurisprudência, quer no âmbito da responsabilidade contratualquando estejam em causa atos médicos ocorridos no seio do exercício da medicina privada-, quer no domínio da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas-quando estejam em causa atos médicos praticados no âmbito do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
13.3-A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA) é consolidada no sentido da responsabilidade civil decorrente da prática de atos médicos em estabelecimento do Serviço Nacional de Saúde (SNS), ser de natureza extracontratual ou aquiliana.
Nesse sentido e a título meramente exemplificativo, apontam-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo:
-de 09/06/2011, proferido no processo 0762/09 no qual se escreveu que
A responsabilidade por atos ou omissões na prestação de cuidados de saúde em estabelecimentos públicos tem natureza extracontratual, incumbindo ao lesado o ónus de alegar e provar os factos integradores dos pressupostos dessa responsabilidade, regulada, fundamentalmente, no decretolei 48 051, de 21 de novembro de 1967
»;-de 16/01/2014, proferido no processo 0445/13 no qual igualmente se refere que
A responsabilidade civil decorrente de factos ilícitos imputados a um Hospital integrado no Serviço Nacional de Saúde não tem natureza contratual, sendolhe aplicável o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos
».
Em igual sentido, tome-se também em consideração o Acórdão do STJ de 25/02/2015, proferido no processo 804/03.2TAALM.L.S1, no qual aquela alta instância, acompanhando a jurisprudência já expressa nos referidos acórdãos do STA, reiterou uma vez mais tal entendimento, ao expender que
O ato médico praticado em hospital público integrado no SNS representa um ato técnico no exercício de uma dada profissão de acordo com certas prescrições, naturalmente que da ciência médica, constituindo uma função pública, integrada na denominada “função técnica do Estado”, qualquer que seja a natureza de que se revista o hospital, com ou sem autonomia patrimonial, empresarial ou sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, segundo a classificação adotada na Lei de Gestão Hospitalar n.º 27/2002, de 08-11.
É, pois maioritária a posição-excluindo-se, ainda a conceção da natureza atípicaque perfilha o entendimento de que a prestação de serviços médicos nos hospitais públicos se não enquadra no contrato de prestação de serviços previsto no CC, no art. 1154.º e ss., antes assumindo uma simples prestação de serviço público, em que, como regra, o médico é desconhecedor da pessoa do doente, e este da pessoa do médico, surgido acidentalmente, ignorando as suas qualidades técnicas, de quem espera o melhor desempenho na aplicação dos melhores e mais oportunos conhecimentos da sua ciência e que não recebe do beneficiário ordens ou instruções, gozando de uma quase total ou, melhor dizendo, total independência
»-.cf. Acs. do STJ, de 24/5/2011, Processo 1347/04.2TBPNF.P1.S1; de 29/10/2015, Processo 2198/05.2TBFIG.C1.S1.
13.4-Esta jurisprudência filia-se no entendimento de que nas relações entre o utente e o SNS se aplica o regime da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, e isso porque, os cuidados de saúde que são prestados aos pacientes por estabelecimentos ou profissionais do SNS emergem da obrigação constitucional e legal do Estado de assegurar a todos os cidadãos que careçam de cuidados médico-cirúrgicos essa prestação de serviço público, não estando na disponibilidade dos profissionais/estabelecimentos hospitalares que integrem a rede do SNS a possibilidade de recusarem a prestação dos cuidados de saúde a quem deles necessite e se socorra desses serviços. E bem assim, na circunstância de os estabelecimentos que integram o SNS prosseguirem uma atividade de prestação de cuidados de saúde que não visa obtenção de lucro, mas antes cumprir uma incumbência constitucional por via da qual a coletividade se dispõe a assegurar cuidados de saúde a quem deles careça sem que na base da relação doente/médico ou hospital subjaza qualquer relação de natureza contratual privada.
13.5-Os hospitais públicos-em sentido amplo-, sejam os que estão enquadrados no setor público administrativo, como os que apenas fazem parte do setor empresarial do Estado e as Parcerias Público-Privadas, todos eles, atuam no exercício de prerrogativas de poder público e/ou exercem atividades reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, pelo que os atos médicos-sejam ações ou omissões-neles praticados correspondem, inequivocamente, ao exercício da função administrativa.
13.6-Foi também este o entendimento subscrito pelas Instâncias, em cujas decisões não se questiona que a efetivação da responsabilidade médica por ato médico realizado no estabelecimento hospitalar demandado, integrado no SNS, é de natureza extracontratual ou aquiliana, o que conforme resulta do que se acaba de expender se mostra conforme à jurisprudência largamente maioritária da jurisdição administrativa, a qual se subscreve.
13.7-Concretizando o comando constitucional do artigo 22.º, o legislador nacional aprovou a Lei 67/2007, de 31 de dezembro, alterada pela Lei 31/2008, de 17 de julho, que contém o “Regime da Responsabilidade Civil do Estado e Demais Entidades Públicas (doravante, RRCEE). O n.º 1 do artigo 7.º do RRCEE, prevê que o Estado e as demais entidades públicas respondem civilmente pelos danos que resultem de ações ou omissões ilícitas cometidas com culpa leve pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício das respetivas funções e por causa desse exercício.
13.8-É consensual que os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado de demais Entidades Públicas decorrente de atos ilícitos praticados pelos seus agentes são idênticos aos do regime da responsabilidade civil extracontratual prevista e regulada no artigo 483.º Código Civil. A este respeito, lê-se no Acórdão do STA, de 3/07/2007, proferido no processo 0443/07, que
A responsabilidade civil extracontratual do Estado e pessoas coletivas por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes assenta nos pressupostos da idêntica responsabilidade prevista na lei civil, que são o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante (culpa), o prejuízo ou dano, e o nexo de causalidade entre este e o facto
».
13.9-Cingindo-se especificamente à responsabilidade médica e quanto ao ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, o STA, no seu Acórdão de 20/04/2004, proferido no processo 982/03, deixou claro que “Nas ações de responsabilidade médica tem aplicação o regime geral do nosso ordenamento jurídicoart. 342.º, n.º 1 do CC-, de acordo com o qual cabe à Autora fazer a prova dos factos constitutivos do direito à indemnização, salvo nos casos de presunção legalart. 344.º, n.º 1 do CCou quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao oneradoart. 344.º, n.º 2 do CC (vide neste sentido, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Sobre o Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica”, in “Direito da Saúde e Bioética”, 1996, ed. AAFDL, pp. 130 e segs. e, entre outros, o acórdão STA de 2000.03.09-recº n.º 42 434).”
14-Deriva do que se vem dizendo que ancorando-se a pretensão indemnizatória a que a Autora se arroga titular perante o hospital público Réu (IPO.) no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por ato ilícito de um ente público, cabe àquela o ónus da alegação e da prova da verificação dos requisitos gerais cumulativos da responsabilidade civil aquiliana, os quais se reconduzem ao facto, à ilicitude, à culpa, ao dano e ao nexo de causalidade adequada entre o facto e o danoneste sentido veja-se ainda os Acs. do STA, de 20/05/1999, Rec. 39535;
2/12/2009, Processo 0763/09;
10/05/2001, Proc. 47173; e de 14/04/2005, Proc. 0677/03;
14.1-Considerando que a cirurgia a que a Autora se submeteu junto do IPO/Réu teve lugar no dia …de …de 2010, altura em que se encontrava em vigor a Lei 67/2007, de 31 de dezembro (alterada pela Lei 31/2008, de 17 de julho), será à luz deste diploma que terá de se aferir do preenchimento ou não dos enunciados pressupostos legais constitutivos do direito indemnizatório a que aquela se arroga titular perante o hospital demandado, como, de resto, o fizeram ambas as instâncias.
14.2-A situação sob análise enquadra-se na responsabilidade civil extracontratual por atos praticados no âmbito da função administrativa, a respeito do erro médico, recaindo no âmbito de aplicação definido no artigo 7.º, n.º 1, daquele RRCEE.
14.3-O primeiro pressuposto da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito é a existência de um facto voluntário, ativo ou omissivo. O facto tem de ser controlável ou dominável pela vontade humana, sendo de afastar a responsabilidade sempre que o facto decorra de causas alheias à vontade humana, como sucede em todas aquelas situações em que os danos são provocados por causas de força maior ou o resultado de forças irresistíveis. Segundo Freitas do Amaral “[...] tal como no direito civil, a existência de um facto voluntário pode corresponder a um facto positivouma ação-ou a um facto negativo ou abstençãouma omissão. A voluntariedade de tais factos significa apenas que os mesmos têm de ser objetivamente controláveis ou domináveis pela vontade. Como ensina Antunes Varela,
para fundamentar a responsabilidade civil basta a possibilidade de controlar o ato ou omissão; para fundamentar a responsabilidade civil basta a possibilidade de controlar o ato ou omissão; não é necessária uma conduta predeterminada, uma ação ou omissão orientada para certo fim (uma conduta finalista). Fora dos casos da responsabilidade civil ficam apenas os danos provocados por causas de força maior ou pela atuação irresistível de circunstâncias fortuitas (...)
».”-cf. Freitas do Amaral, “Curso de Direito Administrativo”, volume II, 3.ª Edição, Almedina, 2016, pág. 584.
A voluntariedade do facto consiste, por conseguinte, na mera suscetibilidade de controlo ou domínio pela vontade humana da ação ou omissão causadora do dano.
14.4-Contudo, para que se possa imputar a terceiro a obrigação de indemnizar os danos que possa ter causado, além de voluntário, o facto terá de ser ilícito e culposo.
14.5-No caso sobre o qual versamos, por se tratar de uma situação fundada em erro médico, impõe-se a análise conjunta dos dois requisitos, embora se trate de requisitos distintos. Essa imposição resulta da constatação de que enquanto “[...] o juízo de ilicitude é um juízo de censura, dirigido a um comportamento (ação ou omissão), o juízo de culpa é um juízo de censura, dirigido a uma pessoa (ao agente ou omitente), por ter adotado um comportamento ilícito (desconformidade ao direito), quando podia e devia ter adotado um comportamento lícitoconforme ao direito. (...) O conceito de ilicitude indica que houve algo de errado na atuação do médico e o conceito de culpa, que aquilo que houve de errado na atuação do médico deve serlhe assacado ou imputadopor dolo ou, como é praticamente a regra, por negligência”-cf. Nuno Pinto Oliveiracf. “Ilicitude e Culpa na Responsabilidade Médica”, pág. 7, disponível em https:
//www.centrodedireitobiomedico.org/sites/cdb-dru7-ph5.dd/files/Imateriais_1.pdf.
Diz ainda o mesmo autor que “Excluídos os casos de dolo, por serem praticamente insignificantes, os critérios da tipicidade, da ilicitude e da culpa têm como ponto de referência comum o conceito de diligência. O médico comportar-se-á com diligência desde que se conforme com os padrões ou standards de conduta do seu círculo profissional e com negligência desde que não se conforme com tais padrões ou com tais standards. Estando em causa o comportamento dos médicos, o conceito de diligência é um caso particular-e só é um caso particularpelo facto de o conteúdo do dever de diligência ser um conteúdo de alguma forma determinado pelas leis da arte e da ciência médicas.”-cf. ob. cit. pág.73/74.
Exatamente por isso, em matéria de responsabilidade fundada em ato médico, como a apreciação dos dois requisitos tem esse ponto comum, a respetiva análise deve ser levada a cabo conjuntamente.
Definida a autonomia dos requisitos em análise, mas com a justificação do seu conhecimento conjunto, importa de seguida atentar nas respetivas disposições normativas.
14.5-Em termos legais, o requisito da ilicitude vem previsto no artigo 9.º do RRCEE, em cujo n.º 1 (o único que aqui interessa) se estabelece:
“1-Consideram-se ilícitas as ações ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares, ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos.”
Consagra-se neste preceito um conceito amplo (não coincidente com o de ilegalidade) e subjetivo de ilicitude. A ilicitude não corresponde, apenas, à violação de disposições ou princípios normativos, mas abrange também o desrespeito por regras de natureza técnica ou, até, de simples deveres objetivos de cuidado. Ou seja, a ilicitude não diz respeito apenas à violação de normas jurídicas, podendo também referir-se à violação doutro tipo de normas, veja-se, de ordem técnica ou de prudência. A par da ordem jurídica, existem outras ordens normativas, assim como existe um vasto conjunto de normas técnicas que, não gozando de força ou vinculatividade jurídica, estabelecem padrões de conduta ou critérios de decisão em domínios de conhecimento especializado, cujo cumprimento é tutelado por via do instituto da responsabilidade civil“cf. Acórdãos do STA, de 03/07/2007, processo 0443/07; de 26/04/2012, processo 0738/10 Consagra-se neste preceito um conceito amplo (não coincidente com o de ilegalidade) e subjetivo de ilicitude. A ilicitude não corresponde, apenas, à violação de disposições ou princípios normativos, mas abrange também o desrespeito por regras de natureza técnica ou, até, de simples deveres objetivos de cuidado. Ou seja, a ilicitude não diz respeito apenas à violação de normas jurídicas, podendo também referir-se à violação doutro tipo de normas, veja-se, de ordem técnica ou de prudência. A par da ordem jurídica, existem outras ordens normativas, assim como existe um vasto conjunto de normas técnicas que, não gozando de força ou vinculatividade jurídica, estabelecem padrões de conduta ou critérios de decisão em domínios de conhecimento especializado, cujo cumprimento é tutelado por via do instituto da responsabilidade civil“cf. Acórdãos do STA, de 03/07/2007, processo 0443/07; de 26/04/2012, processo 0738/10; e de 07/12/2010, processo 0746/10.”
Esta constatação não deixa de ser relevante para o caso concreto, dado que as designadas leges artis (conceito que adiante se desenvolverá), independentemente de se encontrarem escritas ou decorrerem da boa prática médica comummente aceite por essa área científica, constituirão sempre, e pelo menos, regras de ordem técnica a observar pelo profissional da medicina.
Depois, a subjetividade da ilicitude resulta da ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos. Neste sentido, Carlos Alberto Fernandes Cadilha afirma que esta última parte do n.º 1 do artigo 9.º do RRCEE “deixa claro que o conceito de ilicitude não se reconduz a um comportamento objetivamente antijurídico (...) exigindo também um desvalor da conduta quanto ao resultado, traduzido na violação de um direito ou interesse do particular (...)”-cf. Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2011, pág. 178.
Conforme se obtempera no Acórdão do STA, de 20/04/2004, proferido no processo 0982/03:
“[...] A lei não se basta com a produção causalmente adequada da ofensa dos direitos de terceiros ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses (art.3.º do DL 48 051, de 1967.11.21). Exige a infração de regras técnicas e/ou do dever geral de cuidado, como dimensão ineliminável de um comportamento ilícito, significando que a ilicitude não está centrada exclusivamente no resultado danosoilicitude de resultado-e que, igualmente, está sempre na dependência do desvalor de um determinado comportamentoilicitude de conduta (vide, neste sentido, na doutrina GOMES CANOTILHO, RLJ, Ano 125.º, p. 84, MARCELO REBELO DE SOUSA, “Responsabilidade dos Estabelecimentos Públicos de Saúde:
Culpa do Agente ou Culpa da Organização?”, in “Direito da Saúde e Bioética”, ed, AAFDL, 1996, p. 172 e MARGARIDA CORTEZ, “Responsabilidade Civil da Administração por Atos Administrativos llegais e Concurso de Omissão Culposa do Lesado”, pp. 50/53 e na jurisprudência deste Supremo Tribunal, por exemplo, o acórdão de 1998.03.17-recº n.º 42 505). Posto isto, podemos concluir que na responsabilidade civil extracontratual, por acto cirúrgico ilícito, o desvalor da ação do agente-a violação das legis artis ou do dever geral de cuidado-é um dos pressupostos constitutivos da obrigação de indemnizar. [...]”.
Como bem observa Vera Lúcia Raposo
A ilicitude da atividade médica não resulta necessariamente de violação da lei, do contrato, e nem mesmo do interesse de outrem, mas sim da violação das regras próprias da prática médica, consagradas nos mais diversos locais
».
No domínio da responsabilidade civil médica,
só existe falta médica quando o médico viola, cumulativamente, uma lei da arte e o dever de cuidado que lhe cabe, e assim se afasta daquilo que dele é esperado naquele caso (o que, no mundo anglosaxónico, é conhecido como common practises)…
Noutros casos a falta médica não radica no ato praticadoaquele resultado nefasto pode até ser considerado um dos riscos possíveis e inevitáveis do ato médico, ou uma consequência que no caso concreto não se ficou a dever a uma falta do agentemas sim na ausência do subsequente ato que corrigiria o resultado lesivo
».-in “Do ato médico ao problema jurídico. Breves Notas sobre o Acolhimento da Responsabilidade Médica Civil e Criminal na Jurisprudência Nacional”, Coimbra, 2015, pág. 17.
No âmbito deste requisito averigua-se se um dado comportamento despido dos elementos relacionados com o seu autor merece censura à luz do nosso ordenamento jurídico:
formula-se um juízo objetivo.
Tiago Antunes, nota ainda que “seja qual for o fundamento da ilicitude, ela só releva para efeitos ressarcitórios se conduzir à ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos. É esse o sentido da parte final do artigo 9.º, n.º 1, do RRCEE.”-in “O Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado de Demais Entidades Públicas:
Comentários à Luz da Jurisprudência”, 2.ª Edição, 2018, AAFDL, pág. 635. Nesse sentido, sublinha que para que se possa afirmar a ilicitude (ou, pelo menos, a ilicitude relevante para efeitos de responsabilidade civil) não basta a constatação de ter sido violado um determinado preceito normativo, uma regra de ordem técnica ou um dever objetivo de cuidado. É também necessário que essa violação ocorra no círculo de interesses protegidos pela norma violadacf. Tiago Antunes, op. cit., pág. 637.
Por fim, importa sublinhar que a ilicitude não decorre imediatamente da verificação do dano (lesão de um direito subjetivo) e da sua decorrência em termos de causalidade adequada da ação imputada ao réu. Como este STA já expendeu em Acórdão de 09/05/2012, processo 093/12:
I-Não sendo o exercício da medicina uma ciência exata em que o diagnóstico e o tratamento que lhe corresponde tenham de ser um único, é forçoso concluir que um mau resultado não prova, sem mais, um mau diagnóstico e/ou um mau tratamento.
14.6-Para além de o facto gerador de responsabilidade civil ser ilícito, tem o médico de o praticar com culpa. Relativamente à norma que versa sobre a culpa, está em causa a interpretação e aplicação do artigo 10.º do RRCEE, assumindo particular interesse, para este efeito, o n.º 1, no qual se dispõe que:
“1-A culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor.”
O preceito, naturalmente, não é alheio à situação dos autos, dado que sempre estará em causa avaliar se os médicos que realizaram a intervenção cirúrgica a que a Autora foi submetida atuaram de acordo com a diligência e aptidão que era razoável exigir na situação concreta.
Isto é, tem de provar-se que o lesante, pelas suas capacidades e em face da circunstância concreta, “podia e devia ter agido de outro modo”, merecendo o seu comportamento, por isso, censura ou reprovação. A culpa surge, assim, como uma relação de desconformidade entre o comportamento observado e a conduta devida “no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais teria tido em circunstâncias semelhantes”. Existe um nível mínimo de exigência que não pode ser postergado:
a culpa começa quando terminam as discussões científicas. A culpa surge quando um dado ato terapêutico, à luz dos conhecimentos médicos atuais, não serve a função de aproveitamento das chances de obtenção do resultado final pretendidocf. João Carlos Gralheiro, in ob. cit., pág.65-66.
Precise-se que enquanto pressuposto necessário para a efetivação da responsabilidade civil a culpa deve ser entendida de uma perspetiva normativa, ou seja, como um juízo de censura formulado pelo Direito, relativamente à conduta ilícita do agente.
Como já acima demos nota, existe uma interligação entre os pressupostos da ilicitude e da culpa, assistindo-se a “uma tendência especialmente reforçada no novo regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, para uma objetivação/simplificação da apreciação da culpa”-cf. Mariana Melo Egídio “Presunção de culpa de autarquia local por omissão de dever de vigilância-Anotação ao Acórdão do STA, de 23 de fevereiro de 2012 (por. 01008/11)”, Direito da Responsabilidade Civil Extracontratual das Entidades Públicas-anotações de jurisprudência, coordenação de Carla Amado Gomes/Tiago Serrão, e-book do ICJP, 2103, pp.117-140, p.134.
De todo o modo, e ao abrigo do acima exposto, o ponto essencial é, precisamente, o da diligência na atuação, enquanto critério aferidor da culpa (e, em simultâneo, da própria ilicitude, como também se anotou).
Note-se que o nosso ordenamento jurídico, de modo similar ao que acontece na generalidade dos países, consagrou a responsabilidade subjetiva como regra e essa regra foi também transposta para a área médica, de tal modo que, os profissionais de saúde, em regra, só devem responder pelos danos provocados na esfera jurídica de outrem quando tiverem atuado com culpa. Tal não significa que não existam setores de atividade médica em que se verifica uma rutura com a regra geral da responsabilidade subjetiva. Trata-se de áreas em que o legislador entendeu que os riscos excecionais associados a alguns setores médicos justificavam a adoção do regime de exceção da responsabilidade objetiva. Considerando que o art. 482.º n.º 2 do Código Civil determina que “só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei”, importa reter que, atualmente, a responsabilidade pelo risco na área médica, apenas pode ocorrer nos casos legalmente consagrados, a saber, no campo dos ensaios clínicos de medicamentos (art. 14.º n.º 1 da Lei 46/2004 de 19 de Agosto), doação de órgãos para transplante (art. 9.º n.º 1 da Lei 12/93 de 22 de Abril), utilização de material radioativo (art. 10.º do DL 348/89 de 12 de Outubro e art. 3.º do DL 153/1996 de 30 de Agosto) e no caso de responsabilidade civil do produtormedicamentos defeituosos (art. 1.º do DL 383/89 de 6 de Novembro). A situação dos autos não se reconduz a nenhuma desses casos de responsabilidade independente de culpa.
14.7-Aqui chegados, importa ainda aprofundar/dissecar o conceito de leges artis, uma vez que, como já se disse, a ilicitude na medicina consiste numa infração aos procedimentos médicos adequados, havendo ilicitude apenas quando se prove que os médicos violaram a legis artis.
Pode dizer-se que as designadas “leges artis” constituem um conjunto disforme de regras, que tanto podem estar escritas como não escritas, que nas concretas circunstâncias do caso devem ser tidas em conta pelos profissionais de saúde. Em todo o caso, quando referidas ao modo de execução em concreto de certo tratamento, serão normalmente regras de ordem técnica, mas também poderão ser regras de ordem jurídica, por exemplo, quanto aos deveres que decorrem do código deontológico e da própria lei no sentido de garantir o consentimento informado, garantir o registo clínico de todos os eventos.
As
leges artis
», escritas ou não, constituem regras da medicina aceites e seguidas no universo da especialidadecf. Acórdão do STJ de 15.12.2020, proferido no processo 765/16.8T8AVR.P1.S1.
Quando não escritas, são métodos ou procedimentos, comprovados pela ciência médica, que dão corpo a standards contextualizados de atuação, aplicáveis aos diferentes casos clínicos, por serem considerados pela comunidade científica, como os mais adequados e eficazescf. Acórdão do colendo STA de 09.10.2014, proferido no processo 0279/14.
Como se sintetiza no Acórdão do STA, de 13/03/2012, proferido no recurso n.º 0477/11:
As leges artis são regras a seguir pelo corpo médico no exercício da medicina. Umas são normas escritas, contidas em lei do Estado (Vide, por exemplo, o art. 13.º do DL n.º 282/77, de 5 de Julho (Estatuto do Médico)) e/ou em instrumentos de autorregulação (vejam-se as prescrições do Código Deontológico da Ordem dos Médicos e as que estão vertidas em guias de boas práticas ou protocolos de atuação). Outras, na sua maioria, são regras não escritas, são métodos e procedimentos, comprovados pela ciência médica, que dão corpo a standards contextualizados de atuação, aplicáveis aos diferentes casos clínicos, por serem considerados pela comunidade científica, como os mais adequados e eficazes. (Cfr., a propósito, Sónia Fidalgo, “Responsabilidade Penal Por Negligência No Exercício da Medicina Em Equipa”, p. 74 e segs.) No caso concreto, não se aponta à médica otorrinolaringologista que observou o menor C…a violação de qualquer norma técnica escrita.
Deste modo, cumpre ao tribunal indagar se, tendo em conta as condições concretas em que atuou, aquela médica especialista respeitou, ou não, o standard técnico/científico de comportamento que lhe era exigível na abordagem do caso clínico singular.
E para saber se aquela profissional se desviou do padrão de atuação que devia e podia seguir, tem de proceder-se a um juízo póstumo de avaliação no qual, para ser o mais objetivo possível, deve o tribunal, primeiro, postar-se na situação “primordial”, no estado inicial, reconstituindo o caso clínico, tal como o mesmo se apresentou à Dr.ª D…na consulta de 23 de Outubro de 2000 e, segundo, despindo-se do conhecimento da posterior evolução real do caso, comparar o que a médica fez com o que os ditames coevos das leges artis lhe determinavam que fizesse.
»-cf. no mesmo sentido, Acórdão do STA, de 10/09/2014, processo 0812/13.
Assim, as leges artis, também denominadas medical standard of care, correspondem às regras de conduta reconhecidas pela ciência médica como aquelas que habitualmente seria de esperar que fossem conhecidas e aplicadas por um profissional de saúde com experiência mediana na mesma área de especialidade.
14.8-Um erro médico será, portanto, e em primeiro lugar, uma violação das
leges artis
» aplicáveis no caso concreto, podendo o mesmo ser cometido por “imperícia, imprudência ou negligência.”O entendimento que tem sido seguido pela doutrina e pela jurisprudência administrativa que acabamos de enunciar, nos termos do qual, a ilicitude terá de radicar na violação pelo médico da legis artis própria da sua atividade e/ou na violação do dever geral de cuidado, não deixa de se mostrar conforme com a circunstância de, no ato médico, o prestador do ato não se obrigar a curar o doente da patologia de saúde que o afeta, mas sim a prestarlhe tratamento adequado para essa patologia, mediante observância diligente e cuidada das regras da ciência e da arte médicas (legis artis), porquanto a prática da medicina envolve, em regra, uma natureza complexa e aleatória derivada da própria complexidade dos sistemas psicossomáticos humanos, a par do estado e desenvolvimento dos conhecimentos científicos e técnicos disponíveis e, nessa medida, a obrigação de prestar o ato médico configura-se, não como uma obrigação de resultado, mas de meios, em que o médico se obriga tão só a diligentemente, atento o conhecimento científico e o desenvolvimento da arte médica, a prestar o tratamento médico adequado ao doentecf. Acórdão do STJ, de 23/03/2017, Proc. 296/07.7TBMCN.P1.S1.
Como ensina Almeida Costa, “as obrigações de meios” são aquelas em que o devedor se compromete a desenvolver, prudente e diligentemente, certa atividade para a obtenção de um determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produzacf. Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 11.ª ed., Almedina, pág. 1039.
Sendo assim, a ilicitude nunca poderia resultar do ato médico praticado ou omitido ter tido como resultado a ofensa dos direitos subjetivos do doente ou de disposições legais destinadas a proteger os interesses destes, mas apenas pode derivar da circunstância do médico não ter agido de acordo com a legis artis próprias da sua arte (profissão) e do estado de desenvolvimento desta ou ter infringido o dever geral de cuidado, de que resultaram danos na esfera jurídica do paciente.
14.9-Logo, deriva do que se vem dizendo que para se aferir do requisito da ilicitude é necessário que, no caso, a Autora tenha alegado e provado factos com poder persuasivo bastante para num juízo corrente de probabilidade firmar o convencimento de que o resultado danoso verificado na sua pessoa foi antecedido de gestos clínicos e/ou cirúrgicos dos serviços do Réu praticados ou omitidos com desrespeito das regras de ordem técnica e/ou do dever geral de cuidado, próprios da atividade médicacf. Acórdão do STA de 16/01/2014, Proc. 0445/13. E como bem sublinha Vera Lúcia Raposoin ob. cit., pág.48, “a ilicitude do ato médico tem de ser sempre demonstrada pelo lesado, nunca se presume…”.
15-Quanto ao pressuposto do dano, o RRCEE não se apresenta como um regime especial em relação àquele que consta do Código Civil. A bem dizer, limita-se a remeter para este compêndio civilista, estabelecendo no n.º 3 do seu artigo 3.º que “a responsabilidade prevista na presente lei compreende os danos patrimoniais e não patrimoniais, bem como os danos já produzidos e os danos futuros, nos termos gerais de direito.”
Como explicava Antunes Varela, “o dano é a perda in natura que o lesado sofreu, em consequência de certo facto, nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar. É a lesão causada no interesse juridicamente tutelado, que reveste as mais das vezes a forma de uma destruição, subtração ou deterioração de certa coisa, material ou incorpórea.”-cf. Das Obrigações em Geral, volume I, 10.ª Edição, Almedina, 2000, pág. 598.
O dano, por sua vez, pode ser patrimonial ou não patrimonial. No caso do primeiro, estamos perante prejuízos que são suscetíveis de avaliação pecuniária e que, portanto, pode ser reparado, direta ou indiretamente.
Trata-se de repor a esfera jurídica do lesado no estado patrimonial em que se encontrava antes do prejuízo sofrido. No segundo caso, como melhor se explanará adiante, estão em causa outros interesses, não avaliáveis em termos pecuniários.
Sobre a matéria dos danos não patrimoniais, o Código Civil (para o qual remete o RRCEE) diznos o seguinte, no seu artigo 496.º:
“1-Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
2-Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
3-Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.
4-O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.”
Portanto, é este o direito constituído a aplicar nesta sede. E sobre a norma transcrita, o professor Antunes Varela escreveu o seguinte:
“(...) O Código Civil, na esteira de outros diplomas anteriores, tomou abertamente partido na contenda, aceitando em termos gerais, mas só no domínio da responsabilidade extracontratual, a tese da reparabilidade dos danos não patrimoniais, mas limitando-a àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496.º, I).
A gravidade do dano háde medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada). Por outro lado, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito:
o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação pecuniária ao lesado.
Por último, a reparação obedecerá a juízos de equidade, tendo em conta as circunstâncias concretas de cada caso, como se depreende, quer dos termos (equitativamente), em que a lei (art. 496.º, n.º 3) manda fixar o montante da chamada indemnização, quer da remissão feita para os factores discriminados no artigo 494.º A indemnização, tendo especialmente em conta a situação económica do agente e do lesado, é assim mais uma reparação do que uma compensação, mais uma satisfação do que uma indemnização.”-cf. “Das Obrigações em Geral”, volume I, 10.ª Edição, Almedina, 2000, pág. 605/606.
Em suma, a lei estabelece que nem todos os danos não patrimoniais são ressarcíveis, sendo-o apenas aqueles que mereçam a tutela do direito. Depois, em sede de fixação do quantum devido a título de danos não patrimoniais, a lei manda atender à equidade, remetendo para os critérios do artigo 494.º do Código Civil, v.g., o grau de culpabilidade do agente e a sua situação económica, bem como a do lesado, e ainda as demais circunstâncias do caso.
15.1-Por fim, para que se afirme uma situação de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, há que aferir se existe nexo de causalidade entre o facto e os danos invocados
Constitui entendimento pacífico que vigora no nosso ordenamento jurídico a chamada teoria da causalidade adequada, consagrada no artigo 563.º do Código Civil, em cujo preceito se lê que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
Neste sentido, já no acórdão do STA de 04.05.1995, proferido no processo 37433A, ficou escrito que “segundo a teoria da causalidade adequada, é necessário que o ato tenha sido condição dos danos (prováveis), intervindo depois um juízo de adequação, de acordo com a formulação negativa de Enneccerus-Lehman”.
Portanto, e em termos sumários, o nexo de causalidade entre o facto e o dano depende de apreciar se, em primeiro lugar, aquele é condição adequada à ocorrência deste (nexo de adequação) e, depois, se foi a sua efetiva causa (nexo naturalístico). Enquanto a primeira questão é, no essencial, jurídica, a segunda é sobretudo de facto, consistindo na prova da causa naturalística (direta ou indireta) do dano.
15.2-Posto isto, vejamos, então, se no caso concreto o acórdão recorrido enferma dos erros de julgamento que lhe são dirigidos e se, consequentemente, se encontram verificados os pressupostos da ilicitude e culpa, cuja verificação cumulativa com os demais pressupostos, é imprescindível para que o Réu possa ser condenado em indemnização pelos danos que a Autora, ora recorrente, sofreu na decorrência da cirurgia a que se submeteu. b.1. Da não verificação dos pressupostos da ilicitude e da culpa
16.5-O TCAN revogou a sentença proferida pela 1.ª Instância que julgara a presente ação parcialmente procedente e que, em consequência, condenara o R., aqui recorrido, a pagarlhe uma indemnização no montante global de €55.448,82 (cinquenta e cinco mil e quatrocentos e quarenta e oito euros e oitenta e dois cêntimos), acrescido ainda dos correspondentes juros de mora vencidos e vincendos, a contarem desde a citação e até ao efetivo e integral pagamento.
16.6-Para o efeito, julgou improcedente o erro de julgamento assacado pela autora aos pontos 5.º, 6.º e 19.º do elenco dos factos assentes constante da sentença proferida pela 1.ª Instância, mantendo inalterada a fundamentação de facto da sentença em causa, mas diversamente do que foi entendido pela 1.ª Instância, considerou que no caso não estava preenchido o pressuposto da responsabilidade civil atinente à ilicitude da atuação do IPO em que a autora baseia a sua pretensão indemnizatória, e assim entendeu que ficava
prejudicado o conhecimento dos demais requisitos
», julgando a ação improcedente. No acórdão recorrido ponderou-se que pese embora ninguém deva sofrer danos no seu corpo e seja compreensível, perante uma intervenção cirúrgica de que tenham resultado danos
o anseio por vias de compensação
» a verdade é que, na falta de previsão legal que assegure o direito a uma indemnização quando não se verifiquem todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, como sucede no caso, em que falta o pressuposto da ilicitude da atuação do Réu, não pode senão absolver-se o Réu da pretensão indemnizatória formulada pela Autora.16.7-Entendeu o TCAN que
[...] a factualidade apurada em nada nos habilita a concluir que ao Réu fosse de imputar a prática de qualquer ato ilícito, não se tendo demonstrado a violação da “legis artis”, na medida em que se não detetaram comportamentos desconformes com as regras técnicas e científicas que deviam nortear a intervenção médica exigível perante o quadro clínico da Autora.
Seria pela via da prova concreta e objetivaainda que facilitada devido à particularidade da matériada ilicitude da conduta da Ré, que o Tribunal deveria dar por preenchido o pressuposto da ilicitude, o que não ocorreu e muito menos por presunções.
». Depois de afirmar que “as pessoas quando vão para o Hospital é para saírem curadas e não estropiadas” enfatizou-se no acórdão recorrido que “em cirurgias complicadas podem surgir intercorrências que não conseguem ser evitadas, existindo um risco associado”, sublinhando-se que no caso “a autora foi submetida a estadiamento cirúrgico de... do... e foi efetuada histerectomia total, anexotomia bilateral, linfadenectomia pélvica bilateral e lomboaórtica (extração do útero, das trompas, dos ovários e dos ligamentos de suporte) tendo sido estadiado como... de... em estádio 1.ª G3, intervenção cirúrgica complicada e tendo efetuado terapêutica adjuvante na forma braquiterapia, o que também poderia ter interferência nas lesões detetadas.”.
Ademais, refere-se no acórdão recorrido, que na “Consulta técnico-científica” efetuada ao Conselho Médicolegal do INMLCF, I. P., se admite “em cirurgias como aquela a que foi submetida a ora A. o surgimento de complicações neurológicas a nível da pélvis”, admitindo, também, que “é muito provável que a lesão nervosa referida nos registos clínicos e por diversas vezes confirmada em EMG, se trate de uma lesão de natureza iatrogénica, resultante da cirurgia ginecológica a que a doente foi submetida em …2010 no IPO..., por... do...”.
16.8-O Tribunal recorrido ajuizou, e bemtendo em conta os factos provados e não provados-, não se ter provado que na cirurgia os agentes do R. tivessem cortado/seccionado músculos, tendões e os nervos femoral e obturador da Autora, uma vez que “nenhum meio de prova comprovou o alegado. Isto é, nem a prova pericial, nem a prova testemunhal, nem, muito menos, os registos clínicos disponíveis nos autos e no PA enviado pelo IPO..., lograram convencer o Tribunal de que os cirurgiões intervenientes na cirurgia tivessem, voluntária ou involuntariamente, realizado um concreto ato material de corte ou de seccionamento (total ou parcial), através de instrumento cirúrgico, dos alegados elementos anatómicos da Impetrante”. Note-se que o Tribunal a quo não colocou em crise, antes deu como certo que
da cirurgia que a A. realizou no dia …/…/2010, nas instalações do R., resultou uma lesão dos nervos obturador e femoral direitos e que após a cirurgia suprarreferida, verificou-se na A. uma lesão neurológica ao nível da pélvis. Porém, diferentemente da 1.ª Instância considerou que “tal não quer dizer que houve uma má abordagem cirúrgica, nem sequer a autora adianta quaisquer factos, nem existe qualquer prova pericial ou documental que diga que são decorrências de má prática médica
».
16.9-A Recorrente não se conforma com o assim decidido, alegando que a indemnização em matéria de saúde não pode ficar subordinada à prova da existência de culpa ou de dolo, valendo a presunção de culpa do artigo 493.º do Código Civil (CC), tendo o Autor só de provar o resultado da atuação do Hospital, pelo que, feita essa prova, o réu só não responde se provar que tal resultado danoso se verificaria ainda que tivessem sido cumpridas as leges artis, sendo que, no caso, o Réu nada alegou, nem provou. Para a Recorrente, estando provado que o resultado foi originado em termos causalmente adequados à cirurgia efetuada e não provado que isso estava incluído no universo dos riscos próprios, normais e comuns da cirurgia, está justificada a convicção acerca da prova da violação da leges artis, por se presumir, natural ou judicialmente, que a intervenção não foi feita com o cuidado devido e que tal se deveu a culpa do cirurgião, cabendo a este provar que as lesões provocadas não tiveram nada a ver com uma atuação deficiente, afastando a ilicitude, ou que conformou a sua conduta à de um cirurgião diligente e prudente, afastando a culpa. Pelo que, se impõe a revogação do acórdão recorrido, confirmando-se a sentença proferida pela 1.ª Instância.
17-O Recorrido, diversamente, pugna pela confirmação do acórdão recorrido. Invoca que o decidido no acórdão recorrido em relação à apreciação e conhecimento da matéria de facto da ilicitude e da culpa não é passível de recurso, por se tratar de matéria de facto e como tal, excluída do âmbito do recurso, pelo artigo 150.º, n.º 2 do CPTA. Ademais, invoca inexistir norma no regime da Lei 67/2007, de 31/12 que faça impender sobre os hospitais do SNS o ónus de provar a ausência de culpa do autor da lesão, norma que a Recorrente também não invoca.
Avançando.
17.1-Nos autos discute-se se assiste à Autora o direito a ser indemnizada pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência de uma alegada violação dos deveres impostos pela leges artis da medicina e das normas de boas práticas clínicas na intervenção cirúrgica a que a autora se submeteu de “estadiamento cirúrgico de... do...”, no âmbito da qual lhe foi efetuada uma histerectomia total com anexectomia bilateral e linfadenectomia pélvica bilateral e lomboaórtica bilateral e, posteriormente, em tratamento ambulatório, braquiterapia adjuvante, na sequência da qual, desde a intervenção, resultou o compromisso moderado do plexo lombar ou dos seus nervos emergentes femoral e obturador direito, ficando a autora a padecer de limitação na deambulação por diminuição da força muscular do membro inferior direito, com incapacidade para efetuar a adução, com limitação para a marcha, nomeadamente em subidas e nas escadas e impedida do normal desempenho da atividade de condução de veículos automóveis.
17.2-Nos pontos 9.º e 10.º do elenco dos factos provados a 1.ª Instância deu como assente-e a 2.ª Instância manteve esse julgamento sobre a matéria de factoque “da cirurgia que a A. realizou no dia …/…/2010, nas instalações do R., resultou uma lesão dos nervos obturador e femoral direitos” e que “após a cirurgia suprarreferida, verificou-se na A. uma lesão neurológica ao nível da pélvis”.
Por outro lado, no ponto 7.º do elenco dos factos não provados, deu-se como não provado que na cirurgia em causa “os agentes do R. tivessem cortado/seccionado músculos, tendões e os nervos femoral e obturador da Autora”.
17.3-Da conjugação dos referidos factos dados como provados com a facticidade dada como não provada no referido ponto 7, resulta de forma clara que a Recorrente não provou que tivesse havido violação da legis artis por parte dos agentes do R. que realizaram a intervenção cirúrgica a que a mesma se submeteu. Ou seja, a autora não provou que os médicos que a operaram tivessem violado os seus deveres de atuação técnica, ou seja, que aqueles não lhe tivessem prestado os melhores cuidados possíveis, não se podendo concluir, como pretende a Recorrente, que os mesmos cumpriram de forma defeituosa a prestação médica a que estavam obrigados.
A Autora apenas provou que em consequência da cirurgia a que foi submetida nas instalações do Réu resultaram para si danos, mas não provou que esses danos tenham sido o resultado de uma atuação ilícita e negligente dos médicos que a operaram.
17.4-O que se constata é que a Autora tentou provar a violação das leges artis sustentada no resultado defeituoso da cirurgia, mas como já acima expendemos, a ilicitude não resulta automaticamente da existência de danos, por mais relevantes que os mesmos possam, infelizmente, ser. Na situação vertente, pese embora resulte provada a causalidade do resultado danoso com a cirurgia, é claríssimo não se ter provado que a ilicitude na cirurgia ou emergente de operações materiais realizadas durante a cirurgia, na medida em que se deu como não provado que na cirurgia em causa “os agentes do R. tivessem cortado/seccionado músculos, tendões e os nervos femoral e obturador da Autora”.
O facto de haver uma lesão ou várias lesões resultantes de um ato médico, não permite concluir que houve uma atuação ilícita, quando não se provou, como sucede nos presentes autos que tivesse havido violação das regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado, nem se provou que os agentes do Réu que intervieram na cirurgia realizada à Autora tivessem atuado com um dever de cuidado inferior ao normal. Para que uma atuação médica seja considerada licita a mesma não tem de ser
coroada de êxito
».
17.5-É certo que conforme se asseverou em acórdão do STA, de 09/05/2012, proferido no processo 093/12,
É sempre difícil e delicado considerar se a realização de determinado ato ou tratamento de natureza médica foi o mais correto e adequado às circunstâncias ou se, pelo contrário, na realização dessa atividade houve violação das regras de ordem técnica (as leges artis) e/ou das regras de cuidado e prudência comum que deviam ter sido observadas, pois não sendo o exercício da medicina uma ciência exata em que o diagnóstico e o tratamento que lhe corresponde tenham de ser um único, é forçoso concluir que um mau resultado não prova, sem mais, um mau diagnóstico e/ou um mau tratamento.
(...)
». Lê-se ainda neste Acórdão do STA que
E, por ser assim, não é fácil definir quando é que no exercício dessa atividadeonde intervêm as mais variadas condicionantes e onde se colocam (ou podem colocar) inúmeras dúvidas e incertezasfoi cometido um erro e, mais difícil ainda, afirmar que esse erro resultou da falta de cuidado, da falta dos conhecimentos técnicos exigíveisas designadas leges artis. (...) Tanto mais quanto é certo que o médico, quer no diagnóstico quer no tratamento, não pode prever todas as hipóteses nem antecipar todos os riscos pelo que é errado pensar que as leges artis e as demais regras só estão cumpridas quando a sua ação é coroada de êxito. Daí que só se lhe possa exigir que represente os riscos prováveis ou os que, comummente, se produzem e, “de entre os demais possíveis, os que, por não serem extraordinários ou fortuitos, possam ainda caber nas expectativas de um avaliador prudente”. (...) Nesta conformidade, o erro médico capaz de desencadear os mecanismos indemnizatórios terá de ser aferido não em função do (mau) resultado obtido mas em função do juízo que se faça sobre a forma como o profissional agiu e desse juízo resultar a conclusão de que houve uma culposa violação das regras que ele devia respeitar e de que se ela não se tivesse verificado, os danos cuja reparação se peticiona não teriam sido existido. Ou seja, a apontada responsabilidade pressupõe a formulação de um juízo de reprovação que parte da existência de um comportamento padrão que o agente podia e devia observar e de que ele não foi observado e que foi esse desvio que provocou os danos que se impõe ressarcir.
».
17.8-A Recorrente, recorde-se, sustenta que o acórdão recorrido errou ao julgar que a mesma não logrou provar os pressupostos da ilicitude e da culpa, quando a seu ver, resulta suficientemente provada matéria de facto demonstrativa da atuação ilícita da Entidade Demandada, além da presunção judicial em relação à violação das normas técnicas integrativas da leges artis da medicina.
17.9-A violação das leges artis é em si uma questão de facto, apreciada e valorada no âmbito da produção de prova, não podendo o STA revogar uma decisão com fundamento em erro de julgamento sobre a matéria de facto, encontrando-se vinculado aos factos fixados pelas instâncias.
18-Nos termos do disposto no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.” Conforme decorre deste preceito, a prova serve para criar no espírito do julgador a convicção acerca da veracidade de cada um dos factos.
A prova não é uma certeza lógica, mas tão só um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica).
Não se pode pretender uma certeza absoluta, própria das ciências matemáticas. Os factos sobre que versa são geralmente ocorrências da vida quotidiana que se situam no passado, os quais dificilmente poderiam ser integralmente reconstituídos.
A prova visa apenas, de acordo com critérios de razoabilidade essenciais à aplicação do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto
»-cf. Jorge Augusto Pais de Amaral, in “Direito Processual Civil”, 2016, 12.ª Edição, Almedina, pág.287.
Por outro lado, as provas são apreciadas livremente pelo juiz, a não ser que estejamos perante casos de prova tabelada, i.é, situações em que os meios de prova tenham um valor legal prédeterminado. Tal não significa que o juiz tenha a liberdade de julgar os factos de forma arbitrária ou caprichosa, ou como lhe aprouver, mas apenas que o juiz não está subordinado a regras ou critérios formais estabelecidos na lei, decidindo antes segundo a sua experiência prática da vida, e a sua prudência, i.é, de acordo com “a objetividade da vida”, convocando a sua experiência ou vivência pessoal, e o património de saberes e experiências comum ou da comunidade em que se insere.
No julgamento de facto, exige-se ao juiz que considere as provas recolhidas e as valore, pelo que, nesse exercício o mesmo tem de convocar a sua experiência de vida, e é desejável que o faça, e sobretudo que a tenha, pois a experiência é parte componente da prudência.
Trata-se de uma livre valoração das provas, mas de uma valoração que é racional e não arbitraria, exigindo-se ao juiz que fundamente como chegou a determinado resultado probatório.
Outrossim, se o juiz ficar na dúvida, nem por isso lhe é permitido que se abstenha de julgar (cf. artigo 8.º, n.º 1 do Cód.Civil), impondo-se-lhe, em tais casos, que profira decisão contra a parte a quem cabia o ónus de provar o facto. Aliás, são as regras do ónus da prova que definem o critério que o juiz deve adotar para proferir a decisão.
18.1-Na formação da sua convicção, o juiz pode e deve recorrer, sempre que tal se justifique e seja possível, a presunções judiciais. Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 349.º do Cód.Civil, “Presunções, são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”. A presunção pode ser estabelecida pela lei (presunção legal) ou admitida pelo julgador (presunção judicial, natural ou de facto).
Em relação à denominada “prova por presunções”, como elucida Cunha Gonçalves:
“Posto que o legislador haja incluído entre as provas as presunções, a verdade é que estas não constituem prova, nem mesmo indireta ou circunstancial, porque são, apenas, processo mental de investigar, por meio de induções e deduções, uma verdade provável, revelada por determinadas circunstâncias, ou como tal havida por disposição expressa da lei”-in Tratado de Direito Civil, XVI, pág. 376. As presunções judiciais são assim meios lógicos ou mentais, ou afirmações formadas/assentes em regras práticas da experiência em que o juiz
valendo-se de certo facto e de regras de experiência conclui que aquele denuncia a existência doutro facto. Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode utilizar o juiz a experiência de vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro:
procede então mediante uma presunção ou regra da experiência ou, se se quiser, vale-se de uma prova de primeira aparência
»-cf. A. Lopes Cardoso:
RT, 86.º-112 e Autores aí citados.
A presunção exige, por conseguinte, a concorrência de dois factos:
o facto base, que tem de ser conhecido, e o facto ilação, que é aquele a que se chega, por dedução, partindo do anterior.
A prova por presunções judiciais só é admitida nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhalcf. artigo 351.º do Cód.Civil.
Deve ainda ter-se presente que nos termos do n.º 1 do artigo 342.º do CPC, “quem alega, deve provar”.
18.2-Acontece que o Supremo Tribunal Administrativo é um tribunal de revista, pelo que, o mesmo não controla a decisão da questão de facto e não revoga por erro de facto, controlando apenas a decisão de direito, e apenas revoga a decisão quando a mesma enferme de erro de julgamento em matéria de direito, limitação que tem a sua razão de ser na função que lhe é reservada de harmonização jurisprudencial sobre a interpretação e aplicação da lei que é característica e própria dos tribunais supremos. Significa tal, que o STA está vinculado aos factos fixados pelas instâncias, não podendo alterar, salvo em casos excecionais, essa matéria.
Assim, o STA não pode controlar a apreciação da prova, em especial, não pode controlar a prudência ou a imprudência da convicção das instâncias sobre a prova produzida, sempre que se trate de provas submetidas ao princípio da liberdade de apreciação da prova (artigo 607.º, n.º 1 do CPC), estandolhe vedado que o conhecimento de eventual erro na valoração das provas e na fixação dos factos materiais da causa, apenas dispondo de competência funcional ou decisória para controlar a atuação da 2.ª Instância nos casos de prova vinculada ou tarifada, ou seja, quando está em causa um erro de direito.
18.3-Contudo, o STA dispõe de competências de controlo sobre o uso, uso incorreto, ou não uso pela 2.ª Instância dos seus poderes específicos sobre a matéria de facto:
o poder de correção da decisão recorrida, o poder de controlo sobre os meios de prova e o poder de anulação da decisão impugnada (artigo 662.º, n.os 1 e 2, al.a), c) e d) do CPC).
18.4-No caso, a 1.ª Instância pese embora tenha dado como não provada a matéria que consta do ponto 7.º do elenco dos factos não provados, ou seja, como não provado “Que na cirurgia, os agentes do R. tivessem cortado/seccionado músculos, tendões e os nervos femoral e obturador da Autora”, em sede de subsunção jurídica acabou a sustentar ser
inultrapassável, todavia, a comprovação de que, em resultado da mesma cirurgia, ocorreu uma lesão dos mencionados nervos. Deste facto conhecido, retira-se a ilação, por presunção judicial, que a referida lesão só pode ter ocorrido no decurso da cirurgia realizada à Autora, nas instalações e pelos agentes do Réu
» concluindo queno caso em apreço, a lesão provocada à A. e nos moldes atrás explicitados traduz uma intervenção ilícita, porque abaixo de um padrão ou standad de atuação normal ou comum para a cirurgia em causa, ainda que involuntária por parte dos agentes do R. praticantes da cirurgia
». E, nessa sequência, ajuizou que
demonstrado que ficou o pressuposto da ilicitude, está igualmente presumida a existência de culpa, ainda que leve, na prática dos atos cometidos pelos agentes do R. aquando da cirurgia realizada à ora Autora
».
18.5-Este julgamento assim efetuado pela 1.ª Instância, não convenceu o Tribunal recorrido, que considerou, com base nos factos provados e não provados, não se verificar o pressuposto da ilicitude. A este respeito lê-se no acórdão recorrido que:
[...] para além de não existir no probatório qualquer facto considerado como “provado” que concretize a ilicitude da conduta (por exemplo, o incumprimento de qualquer procedimento, a omissão de qualquer ato, a violação de qualquer leges artis), em boa verdade, todos os meios de prova que habilitam o processonomeadamente os relatórios internos do IPO (prova documental) e as várias perícias médicasnenhum aponta qualquer incumprimento, qualquer violação, qualquer omissão que pudesse concretizar o plano da “ilicitude”, pressuposto da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas. Como resulta dos auto, nem a cirurgia realizada, nem o posterior acompanhamento à autora configurou negligência médica, nem violação das leges artis, por se tratar de um risco associado à cirurgia em causa, atendendo à proximidade orgânica e continuidade física consequente do ato cirúrgico e que vem descrito na literatura. Acresce dizer que resulta dos autos que pode a lesão dos nervos obturador e femoral e lesão neurológica ao nível da pélvis, ser compatível com a cirurgia, possivelmente de origem iatrogénica, mas em nenhum documento ou prova pericial se afirma com certeza
».
18.6-A Recorrente assentou a violação da legis artis na circunstância de durante a cirurgia terem sido cortados/seccionados músculos, tendões e os nervos femoral e obturador. Acontece que estando não provado que durante a cirurgia os agentes do réu tivessem cortado/seccionado músculos, tendões e os nervos femoral e obturador da Autora não se podia, por via de presunção judicial concluir, como fez a 1.ª Instância, pela prova de um facto que na sequência da prova produzida, foi julgado não provado.
Pretender a Recorrente que por via de presunção judicial se conclua que ocorreu violação da legis artis, como fez a 1.ª Instância, significaria colocar o Tribunal a extrair uma conclusão contrária à facticidade julgada não provada no ponto 7.º, uma vez que, a Recorrente, nada mais alegou como fundamento da sua pretensão indemnizatória, e por isso, nada mais pode provar no sentido de que a violação da legis artis decorreu de outra conduta do corpo clínico que a intervencionou que não a decorrente daqueles factos dados como não provados.
18.7-Ademais, a presunção judicial teria de ser-e certamente o foi-, ponderada em sede de julgamento da matéria de facto realizado pela 2.ª Instância que sindicando o julgamento da matéria de facto efetuado pela 1.ª Instância, a partir dos factos que eram de si conhecidos, aquilatou se as lesões apresentadas pela Recorrente foramou não-provocadas pelos agentes do Réu/ Recorrido aquando da intervenção cirúrgica a que a autora se submeteu, sendo quecomo é incontornávelambas as instâncias vieram a concluir pela não prova dessa facticidade conforme consta do ponto 7.º do elenco dos factos não provados.
18.8-Quanto ao STA, estandolhe subtraído o julgamento da matéria de facto-encontrando-se vinculado ao julgamento da matéria de facto realizado pelas instâncias-, não se vislumbra como possa em sede de julgamento da matéria de direito, por presunção judicialcomo pretende a Recorrenteeste Supremo Tribunal concluir que ocorreu violação da legis artis, o que, no caso, equivaleria a dizer-se que os agentes do réu, na cirurgia que realizaram, cortaram/seccionaram músculos, tendões e os nervos femoral e obturador da Autora, quando essa matéria foi julgada como não provada por ambas as instâncias e quando se verifica que em sede de causa de pedir a Autora nada mais alegou para sustentar a ilicitude da atuação dos agentes do R. que não aquele fundamento julgado não provado.
18.9-Acresce referir, que a ser como pretende a Recorrente, estar-se-ia a confundir, por um lado, o julgamento da matéria de facto onde a questão da presunção judicial efetivamente se colocamas que não permitiu às instâncias extrair o facto alegado pela Recorrente-, com o julgamento da matéria de direito, em que apenas se impõe subsumir a facticidade julgada provada e não provada ao quadro jurídico aplicável de modo a concluir-se-ou nãopelo preenchimento do requisito da ilicitude necessário à afirmação da responsabilidade civil extracontratual do Estado e das Demais Entidades Públicas por facto ilícito, em que a Recorrente filia a sua pretensão indemnizatória. E, por outro lado, estaria o STA a apreciar o julgamento da matéria de facto confundindo também ele, esse julgamento, com o julgamento da matéria de direito, para chegar a uma conclusão por pretensa presunção judicial contrária à facticidade julgada não provada no ponto 7.º do elenco dos factos não provados.
18.10-O STA não pode, como pretende a Recorrente, controlar a apreciação que foi realizada pelo Tribunal a quo quanto à matéria de facto e muito menos, apelar a presunções judiciais. As limitações do STA quanto à modificação da matéria de facto, impede também o STA de lançar mão de presunções judiciais para infirmar o julgamento da matéria de facto que foi efetuada pelo Tribunal recorrido, sendo que, apenas pode reapreciar a avaliação probatória feita pelas instâncias no domínio das presunções judiciais em casos de manifesta ilogicidade.
[...]
20-Em suma, não conhecendo o STA de facto, este não pode utilizar presunções judiciais que contrariem o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal recorrido, onde se encontra em definitivo julgado como não provado que os agentes do réu tivessem cortado/seccionado músculos, tendões e os nervos femoral e obturador da Autora. E não tendo a Recorrente, sobre a qual impende o ónus da prova da facticidade integrativa dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Réu, onde se inclui o requisito da ilicitude, alegado outra factualidade que não a que se deu como não provada, única em que a alicerçou a verificação desse requisito, tendo-se este quedado por não provado, claudica esse requisito e com ele a pretensão indemnizatória da Recorrente.
20.1-Como já se disse, e repete-se há que distinguir “muito claramente o comportamento ilícito do resultado danoso, procurando ao máximo evitar qualquer mescla ou confusão entre os vários requisitos da responsabilidade civil. [...] Uma coisa é a lesão de posições jurídicas individuais dignas de tutela, que faz parte do conceito de ilicitude como elemento necessário para desencadear, não apenas uma reintegração do ordenamento, mas o ressarcimento da esfera jurídica ou dos interessados afetados. Outra coisa, mas distinta-é o prejuízo quantificável, que resulta dessa mesma lesão jurídica, o qual consiste num requisito autónomo da responsabilidade civil, essencial designadamente para o cômputo da indemnização”-cf. Tiago Antunes “A Ilicitude”, pág.565, in “O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas:
Comentários à Luz da Jurisprudência”, Coord. Carla Amado Gomes, Ricardo Pedro e Tiago Serrão, 2017, Almedina.
20.2-Como diz Margarida Cortez “não é em sede de dano que se deve discutir a ofensa de direitos de terceiros ou das disposições destinadas a proteger os seus interesses, sob pena de estar a confundir-se a lesão de uma posição jurídica subjetiva com as suas consequências patrimoniais ou extra-patrimoniais”-cf. Margarida Cortez, in Responsabilidade civil da Administração por atos administrativos ilegais e concurso de omissão culposa do lesado, pág. 70.
Termos em que, sem necessidade de mais desenvolvimentos, improcedem os invocados fundamentos de recurso, não se podendo assacar aos agentes do Réu, em face dos factos provados e não provados, uma atuação ilícita e culposa. b.2. Da alegada violação do direito a um processo equitativo (prova difícil ou impossível) e dos artigos 1.º, 3.º, 6.º, 8.º e 14.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem Termos em que, sem necessidade de mais desenvolvimentos, improcedem os invocados fundamentos de recurso, não se podendo assacar aos agentes do Réu, em face dos factos provados e não provados, uma atuação ilícita e culposa. b.2. Da alegada violação do direito a um processo equitativo (prova difícil ou impossível) e dos artigos 1.º, 3.º, 6.º, 8.º e 14.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem 20.3-A Recorrente alega que o regime jurídico da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidade Públicas, ao impor neste caso à lesada a obrigação de fazer prova da ilicitude, viola a CEDHindica para o efeito, sem rigor e fundamentação adequada, a violação dos artigos 1.º (obrigação de respeitar os direitos do Homem), 3.º (proibição de tortura) 6.º (direito a um processo equitativo) 8.º (respeito pela vida privada e familiar) e 14.º (proibição de discriminação).
20.4-Mas sem qualquer razão e sem qualquer fundamento adequado.
A Requerente alega que o acórdão do TCA Sul viola a jurisprudência do TEDH a respeito do artigo 6.º, mas sustenta essa violação na referência a diferentes casos julgados por aquele tribunal sem qualquer conexão com a questão recursiva aqui em apreço. Senão vejamos.
Começa por alegar que Portugal já foi condenado por violação do artigo 6.º da CEDH fazendo referência ao acórdão SANTOS PINTO c. PORTUGAL (Recurso n.º 39005/04) [no qual o TEDH condenou o Estado português por considerar que num caso em que se discutia uma expropriação foram proferidas decisões diferentes a respeito das consequências da falta de representação por um advogado que depois tiveram consequências na decisão material do litígio], sem que desse caso resulte qualquer paralelo com a situação dos autos, pois inexiste aqui qualquer insuficiência na produção da prova, que foi extensa, e tal como inexistem vícios respeitantes à produção da prova, apenas se conclui que o resultado da mesma não foi o que a A. pretendia, e por isso não se percebe a referência a este caso.
No mesmo diapasão incluiu a referência ao caso FERREIRA SANTOS PARDAL c. PORTUGAL (Recurso n.º 30123/10) [no qual o TEDH condenou Portugal por não dispor de um regime jurídico sobre a responsabilidade civil do Estado por atos da função jurisdicional], de onde também não é possível retirar qualquer paralelo com o caso dos autos, pois Portugal dispõe de um regime legal sobre a responsabilidade civil extracontratual do Estado, que vale para os casos de responsabilidade médica por atos ilícitos, sempre que fique demonstrada a violação das leges artis ou do dever de cuidado, o que sucede é que neste caso a A. não consegui fazer prova da ilicitude, mas esta é uma questão factual e não resultante de quaisquer limitações que juridicamente tenham sido impostas à produção da prova.
Em terceiro lugar, a A. faz referência ao caso BALJAK E OUTROS v. CROÁCIA [em que um cidadão croata foi encontrado numa vala comum com um tiro na cabeça depois de ter sido detido por soldados durante a guerra, mas no processo judicial que os familiares interpuseram contra o Estado para o reconhecimento de que aquele era um crime de guerra os tribunais croatas concluíram que não tinha sido feira prova de que ele havia sido assassinado pelos soldados, e o TEDH conclui que exigir essa prova aos familiares, que era impossível, constituía uma violação do artigo 6.º da CEDH] e ao caso BLOKHIN v. RÚSSIA [um jovem russo com doze anos, diagnosticado com patologia de “transtorno de défice de atenção e hiperatividade (TDAH)” foi detido pelas autoridades num centro de detenção de menores para “correção da patologia”, tendo o TEDH condenado a Federação Russa por violação do artigo 3.º da CEDH (tendo ficado provado que durante a detenção o estabelecimento estava sobrelotado, as luzes nunca se desligavam e não fora providenciado tratamento ao menor para a patologia de que padecia), do artigo 5.º da CEDH (por a detenção não ter um fundamento legal válido) e do artigo 6.º da CEDH (por falta de assistência jurídica adequada durante o processo prévio à ordem de detenção)] para alegar que também no caso dos autos a A. estava “à guarda” do Estado no Hospital, foi nesse período que sofreu a lesão e constitui um ónus excessivo obrigála a fazer prova da ilicitude, por ser uma questão técnica (a violação das leges artis) e por não estar na disponibilidade da A. fazer essa prova.
20.5-Porém nenhuma destas alegações é minimamente adequada ou razoável. Não é razoável o paralelo que se tenta fazer com os casos invocados, pois nenhuma similitude existe.
E não é correto sequer dizer que da jurisprudência do TEDH resulta que a prova da ilicitude nos casos de responsabilidade médica viola o artigo 6.º da CEDH por ser uma prova impossível ou muito difícil. Pelo contrário, o que a jurisprudência do TEDH diz é que, sendo a informação sobre o que sucedeu nos atos médicos um registo que consta dos arquivos do Hospital, quando esse registo não existe ou não é fidedigno, há lugar a uma inversão do ónus da provapor todos LOPES DE SOUSA FERNANDES v. PORTUGAL (Recurso n.º 56080/13), onde se pode ler “[...] Se o processo clínico do requerente não contiver registos do período de tempo relevante, será considerado que o Governo não cumpriu o ónus da prova acerca da supervisão médica [...]”. Neste caso existem todos os registos clínicos e eles constam do processo administrativo junto aos autos e foram amplamente escrutinados na prova, inexistindo fundamento para qualquer inversão do ónus da prova.
20.6-Acresce que o caso VILELA c. PORTUGAL (Recurso n.º 63687/14), igualmente citado pela A. nas alegações, é bem ilustrativo de que o regime jurídico português em matéria de responsabilidade médica não viola substantivamente a CEDH quando exige a prova da ilicitude a cargo do requerente dessa responsabilidade.
20.7-Nas alegações, a A. sustenta ainda que a decisão recorrida faz o Estado português incorrer em responsabilidade por violação da CEDH ao impor um regime diferente de responsabilidade médica em hospitais públicos e privados, uma alegação que não vem substanciada na factualidade dos autos e que por isso não pode ser conhecida.
20.8-E acrescenta ainda que existe violação do artigo 6.º da CEDH por não haver fundamentação da decisão, alegação que tem manifestamente de improceder, pois o que resulta evidente da decisão recorrida é que a mesma se fundamentou na falta de prova da ilicitude por parte da A. e que os elementos de facto constantes dos A. não permitiam que o direito pudesse conduzir a um resultado diferente.
20.9-Por último, importa ainda sublinhar que a A. alega que a violação da CEDH resulta da circunstância de a lei portuguesa impor uma prova impossível ou mesmo diabólica no que respeita à violação do dever de cuidado ou das leges artis, devendo essa prova resultar indiretamente da prova da existência do dano e da sua relação causal com o ato médico, não sendo necessário, nesses casos, fazer prova da ilicitude. Mas nada desta argumentação tem sustentação na jurisprudência do TEDH.
21-O que o TEDH já afirmou, com pertinência para o tema da responsabilidade médica, mas igualmente sem aplicação ao caso dos autos, foi:
i) que os Estados são responsáveis por não “[...] adotar regras apropriadas para verificar a capacidade de decisão dos pacientes, incluindo o seu consentimento informado em relação ao tratamento [...]” [caso Arskaya c. Ucrânia, recurso n.º 45076/05];
ii) que os Estados são responsáveis “[...] para além do mero erro ou da negligência médica [quando] o pessoal médico, em violação das suas obrigações profissionais, não prestou tratamento médico de urgência apesar de estar consciente de que a vida de uma pessoa seria colocada em risco se não lhe fossem prestados cuidados [...]” [casos Mehmet Şentürk e Bekir Şentürk c. Turquia, recurso n.º 13423/09]
iii) que os Estados são responsáveis em caso de “disrupção” dos serviços médicos [casos Aydoğdu c. Turquia, recurso n.º 40448/06 e Asiye Genç c. Turquia, recurso n.º 24109/07];
iv) que mesmo na vertente processual de escrutinar e apurar se houve ou não responsabilidade médica não estamos perante uma “[...] obrigação de resultados mas apenas de meios [...], o simples facto de um processo referente a negligência médica não ter terminado de forma favorável para a pessoa em questão não significa, por si, que o Estado demandado não tenha cumprido a sua obrigação positiva decorrente do artigo 2.º da Convenção [...]” [Besen c. Turquia, recurso n.º 48915/09];
v) que a inversão do ónus da prova pode ser aceitável quando o médico se desvia do tratamento ou ato terapêutico padronizado (das guidelines), porque neste caso ele adota um comportamento que não coincide com o consenso profissional e, por isso, impende sobre ele a obrigação de explicar o desvio padrão, que se qualifica como imprudência ou violação do dever de cuidado, mas cabe ao paciente provar que houve o desvio ao comportamento padronizado.
21.1-Nenhum destes fundamentos foi demonstrado na factualidade assente, pelo que inexiste qualquer violação das regras da CEDH. Acresce que a doutrina da margem de apreciação dificilmente permitiria chegar a outro juízo atenta a inexistência de prova da ilicitude, a inexistência de prova de que tenham sido impostos limites ao direito da lesada em produzir prova ou mesmo a inexistência de prova de que tenha havido qualquer imprudência ou imperícia no atendimento médico. b.3. Da alegada violação das normas europeias, nomeadamente da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e do pedido de reenvio prejudicial para o TJUE.
21.2-A Recorrente alega depois que no caso também se verifica uma violação dos artigos 20.º (princípio da igualdade), 21.º (não discriminação) e 35.º (proteção na saúde) da CDFUE e alega no essencial que se deve realizar um reenvio prejudicial para questionar o TJUE a respeito da conformidade jurídica do direito nacional com aqueles preceitos da CDFUE na parte em que impõe ao lesado a prova da ilicitude e da culpa do médico. Mas também neste ponto o recurso tem de improceder.
21.3-O reenvio prejudicial visa esclarecer o tribunal a respeito de uma interpretação das regras do direito europeu ou da interpretação das regras do direito nacional em conformidade com as disposições do direito europeu. E no caso inexistem fundamentos para que este Tribunal proceda a um tal reenvio. O regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado, mesmo aplicado a casos de responsabilidade médica, não tem regulação no nível europeu e não apresenta quaisquer dúvidas a respeito da sua conformidade com as normas da CDFUE que são, sem substanciação jurídica, alegados pela Recorrente
21.4-O reenvio é determinado por uma necessidade objetiva de interpretação identificada pelo Tribunal do Estadomembro e não por um pedido a se formulado pelas partes. Elas podem sugerir o reenvio, identificar questões prejudiciais e sugerilas nos articulados, mas a decisão quanto à necessidade do reenvio é do Tribunal e não das partes.
21.5-E neste caso inexiste qualquer fundamento para proceder ao reenvio, desde logo porque o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado por ato médico é um regime jurídico de direito nacional e não europeu e sobre este regime são existe regulação em nenhum dos artigos da CDFUE alegados pela Recorrente, pelo que não pode ser pedido ao TJUE que se pronuncie sobre a interpretação das normas do direito nacional que disciplinam a responsabilidade civil do Estado neste caso, com qualquer parâmetro europeu, sendo o mesmo inexistente.
21.6-Aliás, tanto é assim que alguns Estadosmembros nem sequer dispõem de um regime jurídico para a responsabilidade civil extracontratual do estado, socorrendo-se de princípios gerais e de precedentes jurisprudenciais, como sucede no direito alemão. E também as soluções em matéria de requisitos de ilicitude, culpa e danos indemnizáveis não são uniformes nos diversos países, incluindo no que respeita ao direito das obrigações. Foi de resto essa a razão pela qual a comunidade académica (no contexto do denominado “European Group on Tort Law”), à margem das instituições europeias, tem tentado consensualizar princípios e regras comuns nesta matéria de responsabilidade civil, mas que não têm qualquer natureza ou força jurídica. b.4. Da alegada violação dos direitos subjectivos à integridade física e moral, ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação (arts 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1 da CRP e 70.º, n.º 1 do CC). Da falta de prestação de consentimento informado:
questão nova?
21.7-Nas conclusões 14.ª a 20.ª e 49.ª a Recorrente alega que ninguém a informou de que da cirurgia a que se submeteu resultavam como complicações a “lesão dos nervos obturador e femoral direitos”, assim como, “lesão neurológica ao nível da pélvis” e respetivas sequelas, que vêm dadas como provadas. Advoga que o consentimento do paciente prestado de forma genérica não preenche, só por si, as condições do consentimento devidamente informado, sendo, além disso, necessário, em caso de repetição de intervenções, que tais esclarecimentos sejam atualizados, tendo em conta, designadamente, que os riscos se podem agravar com a passagem do tempo. Ademais, refere que o consentimento do paciente é um dos requisitos da licitude da atividade médica (artigos 5.º da CEDHBioMed e 3.º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) e tem de ser livre e esclarecido para gozar de eficácia:
se o consentimento não existe ou é ineficaz, a atuação do médico será ilícita por violação do direito à autodeterminação e correm por sua conta todos os danos derivados da intervenção não autorizada.
Invoca, concluindo, que no caso em discussão “faltam os requisitos do consentimento hipotético, em relação a intervenções cirúrgicas suscetíveis de causar riscos graves, como dores intensas e incapacidade para manter relações sexuais, andar e trabalhar, tendo de se concluir que a autora, se soubesse dos riscos da mesma, teria recusado o consentimento.”
21.8-Em relação a este fundamento do recurso de revista, o Recorrido contrapõe que a questão da observância e regime do consentimento informado não integrou o objeto da instância inicial, nem subsequente, não tendo sido matéria apreciada e decidida no acórdão recorrido, pelo que, não pode agora ser conhecida, por ser questão nova.
Na motivação das contraalegações que apresentou, o Recorrido aduz que nunca a ora recorrente, até às agora apresentadas alegações de recurso, suscitara qualquer reserva ou crítica relativa à observância pelo hospital réu do cumprimento do dever de promover e obter o consentimento informado da paciente, pelo que esta matéria constitui uma questão nova. Refere que o objeto processual manteve-se inalterado ao longo da instância e até às alegações de recurso de revista, a autora ora recorrente nunca invocou qualquer dano inerente à tutela do seu direito de autodeterminação em cuidados de saúde, não havendo qualquer facto apresentado na petição inicial ou em articulado supervenienteou em qualquer ampliação da causa de pedir e pedido, que tivesse submetido à jurisdição do TAF do Porto a esse respeito. Por fim, diz tratar-se de matéria de facto, de que o STA não pode conhecer.
21.9-É jurisprudência consolidada que os recursos são meios de obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos Tribunais inferiores, e não vias abertas para a emanação de decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do Tribunal de que se recorre.
Sobre o que se entende por questão nova existe abundante jurisprudência, citando-se a título exemplificativo o Acórdão deste STA de 04/11/2021, proferido no processo 01960/20.0BEPRT no qual se sumariou o seguinte entendimento:
I-Se o tribunal de 1.ª instância apenas apreciou e decidiu a questão que lhe fora colocada pela Autora, ao impugnar o fundamento do ato de exclusão do concurso da sua proposta, praticado pela entidade adjudicante, não pode a Contrainteressada, concordando expressamente com a Autora quanto à ilegalidade de tal fundamento de exclusão, apelar daquela sentença invocando, no recurso, que outra diferente causa de exclusão da proposta da Autora imporia a mesma decisão por parte da entidade adjudicante.
II-É que se trata, no caso, de invocação de “questão nova”, não apreciada na sentença recorrida (e que também não fora apreciada no procedimento administrativo concursal), sendo certo que os recursos destinam-se a apreciar as decisões recorridas e não a conhecer “questões novas” não apreciadas nas decisões recorridasarts. 627.º n.º 1, 635.º n.os 2 e 3 e 639.º n.º 1 do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º n.º 3 do CPTA. IIIAssim, tal questão novaque não é de conhecimento oficiosoera insuscetível de ser conhecida pelo TCAN enquanto tribunal de recurso de apelação, como é insuscetível de ser conhecida por este STA, enquanto tribunal de recurso de revista, pois que, além do mais, se assim não fosse, funcionariam estes como tribunais de 1.ª instância relativamente a tal “questão nova”
».-no mesmo sentido, ainda, vide acórdãos do S.T.A.-2.ªSecção, de 29/05/2013, rec.552/13; de 25/10/2017, rec.1409/16; de 23/10/2019, rec.179/19.8BEPFN; e ainda, na doutrina, António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Novo Regime, 4.ª Edição, 2017, Almedina, pág.109 e seg.;
Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª Edição, Almedina, 2009, pág.153 e seg.;
José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, C.P. Civil anotado, Volume 3.º, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2008, pág.45).
O Tribunal “ad quem” pode, contudo, conhecer de questões novasnão suscitadas no Tribunal recorrido ―, desde que sejam de conhecimento oficioso e ainda não decididas com trânsito em julgado. E essas questões podem referir-se, quer à relação processual (v.g. exceções dilatórias), quer à relação material controvertida.
Destinando-se os recursos a modificar as decisões de que se recorre, e não a criar decisões sobre matéria nova, percebe-se que não seja lícito às partes neles invocar questões que não tenham sido objeto das decisões impugnadas. Tais questões, atenta a sua novidade, não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos que, como se afirmou, se destinam a reapreciar questões e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprir um ou mais graus de jurisdição, em prejuízo da parte vencida.
22-Na situação em análise, considerando as premissas que se acabaram de enunciar sobre o que se entende/constitui questão nova, a invocação pela Recorrente nas conclusões do presente recurso de que
faltam os requisitos do consentimento hipotético, em relação a intervenções cirúrgicas suscetíveis de causar riscos graves, como dores intensas e incapacidade para manter relações sexuais, andar e trabalhar, tendo de se concluir que a autora, se soubesse dos riscos da mesma, teria recusado o consentimento
» não é uma questão nova.22.1-Na sentença prolatada pela 1.ª Instância, o Senhor Juiz que a proferiu deu como provado a prestação de consentimento informado por parte da Autora, e referindo-se ao mesmo decidiu o seguinte:
Essa efetiva lesão, sindicada por referência à data da cirurgia e de acordo com a boa prática das leges artis em termos de normalidade esperada para esse preciso momento, não consubstancia um cenário consequente e terapêutico expectável para o tratamento da doença do foro ginecológicooncológico de que enfermava a Impetrante, tanto mais que as preditas lesões não constam como consequências previsíveis nos “consentimentos informados” subscritos pela A., nem resultou da prova produzida que as mesmas alguma vez tivessem sido explicadas dessa forma à A., isto é, como decorrências normalmente esperadas para a cirurgia que a mesma iria submeter-se
».
22.2-Também se constata que nas conclusões das contraalegações que a Autora, aqui Recorrente, apresentou no âmbito da apelação interposta para o TCAN da sentença de 1.ª Instância, a mesma invocou que:
16-As pessoas quando vão para o Hospital é para saírem curadas e não estropiadas, como foi o caso./ 17-Ninguém informou a autora que iria sair do Hospital estropiada, senão poderia ter ido a outros médicos ou outros hospitais. /18-Ninguém a informou que:
Dessa cirurgia resultavam as seguintes complicações para a A.:
lesão dos nervos obturador e femoral direitos; lesão dos nervos obturador e femoral direitos; e lesão neurológica ao nível da pélvis (cf. pontos 9.º e 10.º do probatório). /19-O réu tinha de provar que todas as pessoas que eram submetidas à mesma cirurgia saiam do Hospital com lesão dos nervos obturador e femoral direitos; lesão dos nervos obturador e femoral direitos; lesão dos nervos obturador e femoral direitos; e lesão neurológica ao nível da pélvis (cf. pontos 9.º e 10.º do probatório). /19-O réu tinha de provar que todas as pessoas que eram submetidas à mesma cirurgia saiam do Hospital com lesão dos nervos obturador e femoral direitos; e lesão neurológica ao nível da pélvis.
»23.3-A Recorrente sustenta que foi violado do direito fundamental à sua integridade física (artigo 25.º da CRP) e à sua autodeterminação (artigo 26.º da CRP), porque saiu “estropiada” da cirurgia a que se submeteu. Acontece que, como resulta da matéria de facto provada a mesma prestou consentimento informado válido para a intervenção cirúrgica a que foi submetida. Logo, não sendo o caso de aquela não ter prestado um consentimento informado, as lesões resultantes da intervenção médica, por terem sido devidamente consentidas, não se podem considerar violadoras daqueles preceitos constitucionais.
23.4-E no que contende com a sequela em causa, sendo a mesma resultante da cirurgia e não se tendo provado violação das leges artis, tem a mesma de considerar-se abrangida por aquele consentimento. Senão vejamos.
23.5-A Recorrente alega que a lesão em concreto de que padece não constava expressamente do texto do consentimento assinado, pelo que não pode considerar-se que a mesma ficou abrangida por aquele. Porém, deve atentar-se no seguinte:
i) da prova produzida não resulta que tenha havido negligência na não indicação desta possível sequela, o que se pode dever ao facto de a mesma não ser comum e não ter sido, sem culpa, prefigurada como possível no caso concreto;
ii) o ato cirúrgico de onde emerge a lesão é uma cirurgia oncológica, ou seja, uma intervenção essencial para a sobrevida da Recorrente;
iii) a Recorrente aceitou, por via do consentimento assinado, consequências mais gravosas que poderiam ter resultado daquele ato do que a lesão atual. E a conjugação destes três elementos é suficiente para concluir que a lesão não é imputável a violação de leges artis, que decorre de um ato médico com potencial lesivo grave que é aceite pela Recorrente por ser o ato adequado a assegurarlhe sobrevida com qualidade, se encontra também a coberto do consentimento prestado ou que, derradeiramente, a não inclusão dessa referência no documento do consentimento informado não pode qualificar-se como fonte jurídica do dever de indemnizar por falta de consentimento prévio.
23.6-Por último, a Recorrente alega também violação do artigo 70.º do Código Civil, ou seja, uma ofensa ilícita à sua personalidade jurídica e moral. O que, pelas razões antes aduzidas, não pode proceder, uma vez que, a cirurgia foi com intuito curativo, a autora aceitou os riscos, não se provou que tivesse havido violação das leges artis e a obrigação do médico é de meios e não de resultado, o que, tudo ponderado, impede que se possa preencher o requisito da ilicitude, logo de qualquer ofensa a direitos de personalidade da A. e aqui Recorrente.
Termos em que improcedem todos os fundamentos de recurso invocados pela Recorrente, impondo-se confirmar o Acórdão recorrido. IVDECISÃO Pelo exposto, decidindo em formação alargada, acordam em conferência os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo, de harmonia com os poderes conferidos pelo disposto no artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa, em negar provimento ao recurso interposto pela autora, e em consequência, confirmam o acórdão recorrido.
Custas pela Recorrente, dado ser vencida (cf. artigo 527.º, n.os 1 e 2 do CPC).
Notifique.
Lisboa, 27 de março de 2025.-Maria Helena Mesquita Ribeiro (relatora por vencimento)-Teresa Maria Sena Ferreira de SousaJosé Francisco Fonseca da PazSuzana Maria Calvo Loureiro Tavares da SilvaCláudio Ramos Monteiro (vencido, nos termos da declaração da conselheira Ana Celeste Carvalho)-Pedro José Marchão MarquesAna Celeste Catarilhas da Silva Evans de Carvalho (com declaração de voto de vencida em anexo)-Catarina de Moura Ferreira Ribeiro Gonçalves JarmelaAntero Pires Salvador (subscrevo o voto da Sr.ª juíza conselheira Dr.ª Ana Celeste Carvalho)-Frederico Macedo Branco.
Processo 1954/13.2BEPRT VOTO DE VENCIDA 1-Com o devido respeito pela posição maioritária, enquanto anterior Relatora do processo, fico vencida em relação à decisão de não verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado por facto ilícito, fundada em erro médico ou na violação das leges artis da medicina, da ilicitude e da culpa.
2-A Autora veio interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal Administrativo (STA), do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), em 19/05/2023, que concedeu provimento ao recurso, revogou a decisão recorrida e, em consequência, julgou a ação totalmente improcedente.
3-Por sentença do TAF do Porto, de 13/02/2020, a ação foi julgada parcialmente procedente, sendo a Entidade Demandada condenada no pagamento à Autora do montante global de € 55.448,82, a título de indemnização por responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos.
4-Constitui objeto do presente recurso de revista decidir se o acórdão do TCAN, ao conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar a ação totalmente improcedente, com fundamento na não verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, da ilicitude e da culpa, incorreu em erro de julgamento de direito, por errada interpretação e aplicação dos artigos 1.º, 3.º, 6.º, 8.º e 14.º da CEDH, 3.º n.º 1 al. b), 20.º, 21.º e 35.º do CDFUE, 25.º n.º 1 e 26.º n.º 1 da CRP e 70.º do CC.
5-Mantendo integralmente o julgamento da matéria de facto constante da sentença, com relevo para a prova dos requisitos da ilicitude e da culpa, o acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos:
“9.º-Da cirurgia que a A. realizou no dia …/…/2010, nas instalações do R., resultou uma lesão dos nervos obturador e femoral direitos;
10.º-Após a cirurgia supra referida, verificou-se na A. uma lesão neurológica ao nível da pélvis;
”.
6-Em relação à matéria de facto não provada, resulta o seguinte ponto:
“7.º-Que, na cirurgia, os agentes do R. tivessem cortado/seccionado músculos, tendões e os nervos femoral e obturador da Autora;
”.
7-Da fundamentação do julgamento de facto extrai-se que:
“A convicção do Tribunal no que concerne à factualidade inscrita nos pontos 9.º a 11.º do probatório assenta na prova pericial produzida para o presente processo. [...] Enfatiza-se que a perícia admite claramente a “existência de nexo de causalidade entre a cirurgia realizada em …-…-2010 e o dano (lesão do nervo obturador direito...se exclui a existência de uma causa estranha e a préexistência do dano corporal” (cf. fls. 825, verso, dos autos). A mesma perícia reforça a ilação supra com a alusão ao
registado “Em 08-09-2011-fez EMG que confirmou hipótese de lesão do nervo obturador e femoral e/ou plexo lombar; registado “Em 08-09-2011-fez EMG que confirmou hipótese de lesão do nervo obturador e femoral e/ou plexo lombar; possível iatrogenia
»;[...] A convicção do Tribunal provem ainda do resultado da “Consulta técnico-científica” feita ao Conselho MédicoLegal do INMLCF, I. P., que admite em cirurgias como aquela a que foi submetida a ora A. o surgimento de “complicações neurológicas a nível da pélvis”, admitido, também, que “é muito provável que a lesão nervosa referida nos registos clínicos e por diversas vezes confirmada em EMG, se trate de uma lesão de natureza iatrogénica, resultante da cirurgia ginecológica a que a doente foi submetida em …2010 no IPO..., por... do...”. [...] No que respeita ao ponto 7.º dos “factos não provados”, considera-se que nenhum meio de prova comprovou o alegado. [...]”.
8-O objeto do recurso incide sobre os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado da ilicitude e da culpa, no âmbito da prestação de cuidados de saúde realizados à Autora, em …/…/2010, em estabelecimento de saúde público, tendo aplicação o regime aprovado pela Lei 67/2007, de 31/12, que aprova o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado (RRCEE) e demais entidades públicas.
9-Estabelece o n.º 1, do artigo 7.º do RRCEE sobre a responsabilidade das entidades públicas, no sentido de responderem civilmente pelos danos que resultem de ações ou omissões ilícitas cometidas com culpa leve pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício das respetivas funções e por causa desse exercício.
10-Concernente à ilicitude, o n.º 1 do artigo 9.º do RRCEE determina que se consideram ilícitas as ações ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica e deveres objetivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos.
11-O citado regime abrange não só os atos materiais e omissões que ofendam direitos de terceiros ou disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, como ainda os atos ou omissões que ofendam as regras técnicas e de prudência comum ou o dever geral de cuidado que devam ser tidos em consideração.
12-Ilicitude e culpa são conceitos diferentes:
o primeiro refere-se à contrariedade ao direito e um juízo de censura externo, que se traduz no caso em apreço num erro na atuação do médico ou numa infração aos procedimentos adequados ou dos deveres impostos, impondo-se outra atitude e o segundo consiste num juízo interno, que traduz que o agente podia ter agido de outro modo, revelando um menor zelo ou negligência na prática do ato médico.
13-Assim, a ilicitude na medicina consiste numa infração aos procedimentos médicos adequados ou às regras da leges artis, enquanto agir com culpa significa atuar em termos de a conduta do agente merecer reprovação ou censura, por, em face das circunstâncias concretas da situação, o agente poder e dever ter agido de outro modo.
14-No caso da ilicitude, o doente lesado tem o ónus de provar o incumprimento das obrigações do médico, no sentido de não lhe terem sido prestados os melhores cuidados possíveis, não tendo o médico cumprido os seus deveres de atuação técnica ou não ter respeitado as leges artis.
15-A respeito da ilicitude afirma a doutrina que “o incumprimento ou cumprimento defeituoso da prestação médica é objeto de prova por parte do Autor.”, o que tanto vale no caso da responsabilidade contratual, como extracontratual, André Gonçalo Dias Pereira, “Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica”, Centro de Direito Biomédico, n.º 22, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2015, Coimbra Editora, pág. 708 e segs. e Teixeira de Sousa, “Sobre o ónus da prova nas ações de responsabilidade civil médica”, Direito da Saúde e Bioética, 1996, pp. 137 e 140.
16-Assim, em face do regime legal aplicável, decorrente da aplicação do disposto no artigo 483.º do CC e do regime aprovado pelo RRCEE, cabe ao Autor lesado o ónus da prova da violação das leges artis (ilicitude).
17-No caso dos autos, efetuando o enquadramento normativo da factualidade constante do elenco dos factos provados, está em causa a demanda indemnizatória da entidade pública demandada, ora Recorrida, assente na alegada violação dos deveres impostos pela leges artis da medicina e das normas de boas práticas clínicas na intervenção cirúrgica realizada à Autora, de “estadiamento cirúrgico de... do...”, em que foi efetuada histerectomia total com anexectomia bilateral e linfadenectomia pélvica bilateral e lomboaórtica bilateral e, em tratamento ambulatório posterior, braquiterapia adjuvante, na sequência da qual, desde a intervenção, resultou o compromisso moderado do plexo lombar ou dos seus nervos emergentes femoral e obturador direito, ficando a Autora com limitação na deambulação por diminuição da força muscular do membro inferior direito, com incapacidade para efetuar a adução, com limitação para a marcha, nomeadamente em subidas e nas escadas e impedida do normal desempenho da atividade de condução de veículos automóveis.
18-Mais se encontra provado que da cirurgia que a Autora realizou no dia …/…/2010, nas instalações da Entidade Demandada, resultou uma lesão dos nervos obturador e femoral direitos e que após a cirurgia se verificou uma lesão neurológica ao nível da pélvis, lesões estas que causaram à Autora um conjunto de danos temporários, como o défice funcional, a repercussão na atividade profissional e dores entre a data da cirurgia e a consolidação das lesões, como descrito no ponto 11 da matéria de facto provada, mas também os seguintes danos permanentes:
a parésia do nervo obturador direito, que não afeta a Autora em termos de autonomia e independência, mas é causa de sofrimento físico, com limitações em termos funcionais, a repercussão permanente na atividade profissional, ao implicar esforços suplementares, nomeadamente, na condução de veículos automóveis e a dificuldade em subir e descer degraus e a repercussão na atividade sexual, com limitação do nível de desempenho/gratificação de natureza sexual, decorrente de sequelas físicas e/ou psíquicas, a que acresce a ajuda técnica de necessitar da adaptação de veículo automóvel para que lhe seja possibilitada a respetiva condução.
19-Tal factualidade é extraída do julgamento de facto, estando agora em causa uma tarefa de subsunção dos factos provados ao direito aplicável.
20-Como antes decidido, “não pode este Tribunal aquilatar do correto julgamento de facto realizado pelas instâncias, mas apenas o eventual erro de julgamento de direito, no respeitante à aplicação dos normativos de direito aplicáveis”, pois “o que está verdadeiramente vedado ao STA é firmar o juízo probatório, de valoração dos factos em razão das provas, por esse apenas caber às instâncias”, Acórdão do STA, de 14/09/2023, Processo 533/11.3BEPRT.
21-Perante os factos controvertidos cuja prova seja de livre apreciação (prova testemunhal, pericial, por declarações de parte e inspeção), não cabe ao STA emitir qualquer pronúncia, por o juízo probatório estar fora da sua competência jurisdicional, segundo o disposto no n.º 3, do artigo 674.º e n.º 2, do artigo 682.º, do CPC, mas tem o poder de controlar a decisão sobre a matéria de facto na perspetiva da sua coerência ou da sua “respetiva lógica interna”, por esta entrar no campo da questão de direito, além de poder conhecer das contradições do julgamento de facto que inviabilizam a solução de direito dada ao caso, assim como, servir-se das presunções judiciais e legais.
22-Nos termos do artigo 351.º do CC as presunções judiciais dependem de estar em causa matéria em que seja admissível a prova testemunhal, como no presente caso, pois se este meio de prova não for admissível no caso, não é possível ao juiz extrair de factos conhecidos o facto desconhecido ou presumido, Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 108.º, n.os 3559 e 3560, pág. 347-352 e 355-358, em particular, pág. 352.
23-Além de que, no tocante à competência do STA para conhecer do quadro factual por via das presunções judiciais e legais, nos termos dos artigos 349.º e 350.º do CC, a doutrina vai no sentido de que nada impede que o Supremo controle o uso por parte das instâncias em matéria de presunções judiciais, Urbano A. Lopes Dias, “Limites do poder cognitivo do juiznas instâncias e no STJ”, Blog do Instituto Português do Processo Civil, 2017, pág. 15 e Cláudia Sofia Alves Trindade, “A Prova de Estados Subjetivos no Processo CivilPresunções Jurídicas e Regras de Experiencia”, Almedina, 2016, pág. 381.
24-Sendo controvertida, à luz da jurisprudência do STJ, a questão de saber se o Supremo pode controlar o não uso das presunções judiciais, tendo-se decidido, por maioria, no Acórdão do STJ, de 12/02/2009, Processo 08S3082, que “Traduzindo-se as presunções judiciais em juízos de valor formulados perante os factos provados, as mesmas referem-se ao julgamento da matéria de facto, por isso, não cabe ao Supremo Tribunal de Justiça extrair ilações da matéria de facto assente, mas sim aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido.” e, no mesmo sentido, no Acórdão do STJ, de 26/06/2019, Processo 763/16.1T8AVR.P1S1.
25-Porém, tal questão nem sequer se coloca nos presentes autos, não havendo de distinguir entre o uso e o não uso das presunções judiciais, por a sentença proferida em primeira instância ter usado a presunção judicial e o acórdão recorrido, divergindo do decidido quanto à verificação dos requisitos da ilicitude de da culpa, ser objeto do presente recurso, recaindo sobre este STA ajuizar da correção do que nele foi decidido acerca de tais requisitos da responsabilidade civil extracontratual da Entidade Demandada e, se caso disso, manter o decidido em primeira instância, donde não se colocar qualquer limitação aos poderes cognitivos deste Supremo Tribunal.
26-A que acresce, nos termos do Acórdão deste STA, de 18/10/2018, Processo 0144/17.0BCLSB 0297/18, se ter decidido que as presunções judiciais como ilações que o julgador tira de um facto conhecido para, através de um raciocínio lógicodedutivo, afirmar um facto desconhecido, se fundarem nas regras da vida e da experiência comum, admitindo que o Supremo possa sindicar, quer o seu não uso, quer o juízo presuntivo efetuado pelas instâncias, se estiver em causa um erro de direito, ofendendo qualquer norma legal ou o julgamento de facto enfermar de ilogicidade.
27-Assim, sem prejuízo de se entender que este STA pode tirar ex novo presunções judiciais, por as presunções não implicarem o conhecimento de matéria de facto nova, mas apenas a inferência de factos a partir dos factos apurados no processo, sendo um juízo através do qual o tribunal infere um facto de outro facto já provado nos autos com base no acervo da experiência comum, no presente caso, resulta efetivamente que a sentença se socorreu da presunção judicial, julgando provada a violação das normas que integram a leges artis da medicina.
28-Quanto à violação das leges artis em contexto de cuidados médicos, como decidido pelo STA, em 10/09/2014, no Processo 0812/13, “Estando em causa a prestação de cuidados médicos [...], haverá ou não ilicitude se os funcionários e agentes do réu violaram ou não as “leges artis” ou seja o conjunto de regras e procedimentos que, naquelas circunstâncias, devam ser tidas em conta. Podem ser normas legais (ex. o art. 13.º do Dec. Lei 282/77, de 5 de Julho, normas regulamentares (Código Deontológico da ordem dos Médicos, ou vertidas em guias de boas práticas ou protocolos de actuação) ou ainda, em regras não escritas, traduzindo métodos e procedimentos comprovados pela ciência médicacf. acórdão deste STA de 13-3-2012, proferido no recurso 0477/11 e de 20-4-2004, proferido no recurso 0982/03.”.
29-Por leges artis deve entender-se o conjunto de regras da arte médica, isto é, as regras reconhecidas pela ciência médica em geral como as apropriadas à abordagem de um determinado caso clínico, na concreta situação em que tal abordagem ocorrecf. Maria de Fátima Galhardas, “Negligência médica no código penal revisto”, Sub Judice, n.º 11, janeirojulho, 1996, apud André Gonçalo Dias Pereira, “Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica”, Centro de Direito Biomédico, n.º 22, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2015, Coimbra Editora, pp. 708.
30-Está em causa um dever geral de cuidado médico, que visa o cumprimento adequado e segundo um padrão de qualidade dos deveres principais de prestação de cuidados de saúde, mas também o respeito pelos deveres secundários ou acessórios de conduta, os quais, consoante os casos, podem configurar deveres autónomos, visando evitar erros de tratamento, de métodos ou de procedimentos, que, entre outros, podem resultar de um erro de diagnóstico, da execução de cuidados ou procedimentos errados ou da omissão de tratamentos, na violação do dever de informar um risco ou de afastar esse risco através de medidas apropriadas.
31-Nos termos do probatório assente, resulta apurado que, em resultado da cirurgia, a Autora passou a sofrer de múltiplas lesões, que a afetam definitivamente, o que constitui um dano juridicamente relevante, comprovando-se assim nos presentes autos, o facto, o dano e ainda, o nexo causal entre o facto e o dano.
32-A controvérsia coloca-se no plano da ilicitude e da culpa, sendo nosso entendimento que, ao contrário do decidido no acórdão recorrido e a posição que faz vencimento, resulta suficientemente provada matéria de facto demonstrativa da atuação ilícita da Entidade Demandada, além da presunção judicial em relação à violação das normas técnicas integrativas da leges artis da medicina.
33-As instâncias de acordo quanto à produção dos múltiplos danos produzidos sobre a esfera jurídica da Autora, que afetam o direito à sua integridade física, assim como, que as lesões causadas à Autora resultaram da cirurgia realizada em …/…/2010, nos termos que resulta do facto provado 9.º
34-Resulta da fundamentação do julgamento da matéria de facto que nos termos da prova pericial produzida, não só se provou que as lesões dos nervos são causa da cirurgia realizada à Autora, como se provou o afastamento da existência de uma outra causa para essas lesões ou, sequer, que as mesmas fossem preexistentes à realização da cirurgia, pelo que, resulta que ambas as instâncias estão de acordo ao julgarem provado que as múltiplas lesões causadas à Autora, isto é, a lesão dos nervos obturador e femoral direitos (facto provado 9.º) são resultado da cirurgia que lhe foi realizada, embora sem que tenha sido julgado provado, por “nenhum meio de prova comprovou o alegado”, que durante a cirurgia os agentes da Entidade Demandada tivessem cortado/seccionado músculos, tendões e os nervos femoral e obturador da Autora (facto não provado 7.º).
35-Tal como decidido na sentença proferida em 1.ª instância, a ausência da prova do corte/secção dos músculos, tendões e dos nervos femoral e obturador da Autora, não põe em causa a prova plena produzida acerca da lesão desses mesmos músculos, tendões e dos nervos femoral e obturador da Autora como causa da cirurgia, sendo de considerar relevante para efeitos de verificação do requisito da ilicitude, a prova de que essa lesão efetivamente existiu e foi causada pela cirurgia que foi realizada.
36-O facto 9.º que consta do elenco dos factos provados mostra-se determinante, assim como suficiente, para que se dê por verificada a ilicitude da atuação dos agentes ao serviço da Entidade Demandada, por não ser de impor ou exigir, perante o concreto circunstancialismo de facto apurado, que além da prova da lesão dos nervos obturador e femoral direitos, a Autora estivesse ainda onerada com a prova da causa dessa lesão, ou seja, que essa lesão ocorreu em virtude do corte/secção dos músculos, tendões e nervos femoral e obturador.
37-Foi produzida prova suficiente que permite atestar a verificação do facto ilícito, de em consequência da cirurgia realizada, a Autora ter passado a sofrer de muitas lesões, com destaque para a lesão dos nervos obturados e femoral direitos, sendo que quanto à prova da causa dessa lesão ou de ter existido um invocado corte/secção, é de entender estar em causa um caso de dificuldade/impossibilidade de prova, que determina que não se imponha à lesada a demonstração da concreta atuação que foi desenvolvida pelos diversos agentes durante o ato cirúrgico realizado.
38-No presente caso, exigir à Autora que provasse a causa da lesão, traduzida na violação das técnicas, métodos ou procedimentos médicos, era equivalente a exigível uma prova diabólica, o que não se compadece com o regime constitucional e legal aplicável em matéria de responsabilidade dos poderes públicos, em que vigora o princípio constitucional de responsabilidade civil extracontratual pelos danos causados, em que a tónica essencial assenta no dano.
39-Não significa que a responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos dispense a verificação do requisito da ilicitude, mas apenas que no específico domínio da responsabilidade civil por atos e omissões de cuidados de saúde, em face da prova quanto ao facto de ter existido uma lesão do nervos obturador e femoral direitos e de essa lesão ter resultado da cirurgia, assim como, perante a dificuldade quanto à prova da ilicitude, num domínio em que não está em causa a violação de normas legais, mas antes de normas técnicas ou de procedimentos, de difícil sindicabilidade judicial, seja de admitir que não se possa onerar o lesado com a prova dificílima da falta de diligência ou de cuidado ou da violação da leges artis da medicina associada à lesão dos nervos.
40-A responsabilidade civil extracontratual do Estado não dispensa uma ação violadora dos direitos do lesado, pois, mesmo adotando-se um conceito lato de ilicitude, que inclui não apenas a violação dos direitos e interesses legalmente protegidos e outras posições jurídicas subjetivas, como a violação de deveres de cuidado, a lei não abdica da demonstração do facto ilícito, como pressuposto do dever de indemnizar.
41-Porém, os juízos fácticos que constam da fundamentação de direito da sentença recorrida a respeito da ilicitude encontram devida sustentação nos factos julgados provados, pelo que, estando provado que da cirurgia que a Autora realizou resultou uma lesão dos nervos obturador e femoral direito, está ao alcance do Tribunal formular um juízo de erro de julgamento do acórdão recorrido ao julgar não provado o requisito da ilicitude, tanto mais, perante o uso da presunção judicial, nos termos do artigo 349.º do CC, quanto à verificação da violação de regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado por parte dos agentes ao serviço da Entidade Demandada efetuado na sentença proferida em 1.ª instância.
42-A ilicitude pode ocorrer pela violação das normas ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares, mas também das regras de ordem técnica ou ainda a deveres de cuidado, estando no presente caso as instâncias de acordo quanto à prova de o facto ilícito e danosotraduzido na lesão dos nervos obturador e femoral direitos da Autora-, ter resultado em consequência da atuação cirúrgica realizada à Autora, pelo que, atenta a prova desse facto, aliado à dificuldade ou mesmo a impossibilidade da prova em relação à concreta atuação material desenvolvida pelos agentes da Entidade Demandada durante o ato cirúrgico, não é de impor à Autora o ónus de provar a causa da lesão, isto é, que a lesão dos nervos ocorreu em consequência do corte/seccionamento, para que se dê por verificada a violação das técnicas médicas, próprias da leges artis.
43-Conforme supra referido, segundo o artigo 349.º do CC, as presunções judiciais são as ilações que o juiz tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, servindo-se de um facto que está demonstrado no processo para alicerçar a ilação quanto a outro facto, o facto presumido, o que pressupõe a existência de um facto conhecido, base da presunção, cuja prova incumbe à parte a quem a presunção favorece, segundo os meios probatórios gerais, cf. neste sentido, o Acórdão do STJ, de 04/10/2018, Proc. n.º 588/12.3 TBPVL.G2.S1:
“V. Consistindo as presunções judiciais em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos para dar como provados factos desconhecidos (...)”.
44-São meios lógicos ou mentais ou operações firmadas em regras de experiência, que se fundam nos factos provados que constituem a sua base, dos quais o juiz infere outro ou outros factos, socorrendo-se de regras de experiência.
45-Destaca-se a importância das presunções judiciais para a realização da boa decisão da causa, em especial, nos casos em que a prova é difícil de alcançar, como no presente caso, por o juiz não se poder colocar numa posição passiva perante as evidentes dificuldades de prova de uma das partes.
46-Pertencendo ao juiz fazer o exame crítico das provas, nada o impede de intervir no julgamento dos factos conhecidos no processo para extrair deles, através de um juízo crítico, as respetivas consequências lógicas.
47-A virtualidade da presunção judicial é a de colmatar a dificuldade da prova de certo tipo de factos, caso em que o tribunal fica legitimado a recorrer a presunções para retirar de um facto conhecido, fonte da presunção, a ilação de um facto desconhecido, cf. Acórdão do STJ, de 13/11/2018, Processo 9126/10.1TBCSC.L1.S1:
“Tratando-se de facto dificilmente atingível através de meios de prova directa [...] têm especial relevo as chamadas presunções judiciais.”.
48-Constando do processo os factos indiciários dos quais se possam concluir outros por presunção, pode o juiz na decisão extrair essa conclusão, quer seja o juiz da instância, quer o juiz de recurso, juízo este que foi formulado na sentença proferida em 1.ª instância e que se mostra correto.
49-Como já se afirmou, “Da prova por presunção judicial não se pode retirar que, ao ser adotada, o juiz se substitui às partes no ónus da prova dos factos ou sequer que utiliza o seu saber privado, por o juízo assentar em regras de normalidade e de probabilidade, acessíveis a todos. Do mesmo modo, não tem sustento defender que a presunção judicial opera uma inversão das regras do ónus da prova, pois a parte onerada com a prova não fica desonerada de provar o facto base ou dispensada da restante prova dos factos, por ter de demonstrar o facto sobre que assenta o posterior juízo. Poderia defender-se o entendimento de que a presunção constitui um caso de inversão do ónus da prova, porque favorece a quem a invoca e transfere para a outra parte a prova em contrário. Porém, a presunção não opera uma inversão do ónus da prova porque o facto base de que deriva o facto presumido se terá de dar por provado no processo, em respeito das regras do ónus da prova. [...] preferindo falar-se em facilitação do ónus probatório, no sentido de ajudar ou facilitar a parte onerada com a prova, que mantém sobre si esse ónus, na tarefa de demonstrar certo tipo de factos. Só após a parte onerada alegar e demonstrar o facto do qual se deduz a presunção e na condição de ter procedido a essa prova no processo é que a presunção judicial tem possibilidade aplicativa. Continuam as regras do ónus da prova a aplicar-se, pelo que a presunção não anula, nem derroga o ónus da prova, não sendo com ele incompatível, antes dependendo dele para determinar qual das partes incumbe a prova do facto que deve ser demonstrado e que servirá de indício ao facto presumido. [...] Daí que entre os fins da presunção judicial se possa identificar o de servir de complemento à prova apresentada e produzida no processo pelas partes. Assim, a presunção judicial é uma favorável decorrência para a parte onerada com a prova que efetuou a prova efetiva dos factos essenciais da causa, considerando-se suficiente a conclusão que o juiz deduz e valoriza desses factos, pelo menos desde que a parte contrária não faça contraprova.”, Ana Celeste Carvalho, “O Princípio do Inquisitório na Justiça Administrativa. O Diálogo entre a Lei e a Prática Jurisprudencial”, AAFDL Editora, 2021, pág. 1161.
50-Além de não poder associar-se o caso em apreço com o decidido no Acórdão deste STA, de 14/09/2023, Processo 533/11.3BEPRT, enfrentando o presente processo um circunstancialismo de facto muito diferente, desde logo porque, ao contrário do verificado naquele processo, em que resultou não provado que a lesão causada fosse uma consequência da cirurgia realizada ao paciente, neste caso existe essa prova positiva, constando do elenco dos factos provados que a lesão nos nervos causada à Autora resultou da cirurgia realizada, não devendo obstar a que se dê por verificado o requisito da ilicitude, a não prova da causa dessa lesão, ou seja, a circunstância de ter resultado não provado o corte/secção dos nervos femoral e obturador da Autora pelos agentes da Entidade Demandada que realizaram a cirurgia.
51-Essa lesão só por si é suficiente para se poder dar por verificada a ilicitude da Entidade Demandada, de ter existido uma má prática dos procedimentos ou técnicas próprias da medicina, assim como, a violação de um dever geral de cuidado ou de prudência na execução dos atos médicos, em consequência da prova produzida de as lesões resultarem da cirurgia, por ser dado como provado de que as referidas lesões ocorreram em consequência da atuação dos agentes ao serviço da Entidade Demandada, no decurso da cirurgia realizada, nas suas instalações e ao seu serviço.
52-A que acresce não ter resultado provado nos autos que tais lesões causadas à Autora, a que corresponde o facto 9.º do probatório, sejam uma consequência normal ou comum da cirurgia realizada, para poderem ser consideradas com um risco habitual, frequente ou diretamente associado aos atos cirúrgicos realizados, para que seja a Autora, lesada, a suportar tais riscos, diferindo, pois, do enquadramento normativo a conferir às lesões provadas no facto 10.º do julgamento da matéria de facto provada, em que a prova pericial produzida admite a possibilidade de constituírem uma lesão normal da cirurgia.
53-A prova dos factos não permite que se sustente a normalidade da atuação desenvolvida pelos agentes da Entidade Demandada, no sentido de sustentar que todos os agentes intervenientes na cirurgia tenham agido com a diligência e o rigor indispensáveis à correta utilização da técnica médica ou ainda, que não tenha existido qualquer imperícia ou inaptidão dos agentes intervenientes na cirurgia.
54-Nesta mesma linha decidiu este STA no Acórdão datado de 20/04/2004, Processo 0982/03:
“Estando provado, no caso concreto, que o resultado espúrio-perfuração intestinalfoi originado, em termos causalmente adequados, pela intervenção cirúrgica efectuadalaqueação tubar por laparoscopia-e, gorado o intento da Ré de demonstrar que a perfuração intestinal estava incluída no universo dos riscos próprios, normais e comuns da cirurgia em causa, está justificada a convicção do tribunal a quo, que considerou provada a violação das leges artis.” (sublinhado nosso).
55-Além de que, ainda que não fosse possível subsumir a factualidade provada na atuação ilícita dos agentes ao serviço da Entidade Demandada e, por isso, nos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado por facto ilícito, seria de reconduzir o caso em apreço a situação de responsabilidade por facto lícito, em consequência da produção de danos especiais e anormais na esfera jurídica da Autora, na aceção do disposto nos artigos 2.º e 11.º do RRCEE.
56-Não é de conceder que no atual estado de desenvolvimento do direito, que, segundo o artigo 1.º da Constituição, a soberania do Estado português assenta na dignidade da pessoa humana, com múltiplas refrações, que asseguram o respeito pelo direito à integridade física, nos termos do artigo 25.º e outros direitos pessoais, como o direito à identidade pessoal, segundo o artigo 26.º ou, ainda, recaindo sobre o Estado promover o bemestar e a qualidade de vida, segundo a al. d), do artigo 9.º, todos da lei fundamental, e perante um sistema de direitos, liberdades e garantias, que consagra o princípio geral de responsabilidade dos poderes públicos no artigo 22.º da Constituição, seja, no presente caso, de exigir a prova da causa da lesão ocorrida, porque isso se traduziria em colocar a lesada numa situação de total desproteção jurídica, por se entender que essa lesão já traduz, em si mesma, a violação das regras de ordem técnica médica.
57-A concreta factualidade julgada provada é a bastante para a formulação do juízo de ilicitude, assim como base para a ilação quanto a outros factos, pelo que, não está em causa a consideração de factos não provados, mas o recurso à presunção judicial para dar como provado o facto de que existiu falta de cuidado ou imperícia dos agentes que realizaram a cirurgia, em violação da leges artis da medicina, enquanto requisito da ilicitude da Entidade Demandada.
58-Assim, o concreto circunstancialismo fáctico do caso em presença não permite que se formule um juízo de não prova da ilicitude, considerando a prova produzida de que as lesões causadas à Autora são consequência ou resultado da cirurgia realizada pelos agentes ao serviço da Entidade Demandada e perante a natureza e gravidade dessas mesmas lesões, que a Autora ainda hoje continua a padecer, por serem permanentes, que não se compadecem com um juízo de normalidade do risco associado a qualquer ato cirúrgico ou em concreto daquele que foi realizado à Autora, sob pena de violação das regras do processo equitativo, consagradas no n.º 4, do artigo 20.º da Constituição e do n.º 1, do artigo 2.º do CPTA.
59-Está em causa uma dimensão fundamental do direito processual, na evolução que adotou desde a revisão de 2015 ao CPTA, pelo Decreto Lei 214-G/2015, de 02/10, na introdução do processo equitativo no n.º 1 do artigo 2.º do CPTA e na proteção que tal dimensão normativa confere aos particulares que recorrem à justiça administrativa, ao convocar diretamente a tutela constitucional, mas também dos vários instrumentos normativos europeus e internacionais.
60-Neste sentido, releva a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), que estabelece no n.º 1 do seu artigo 6.º o “Direito a um processo equitativo”, e no seu artigo 13.º, o “Direito a um recurso efetivo”, derivada do artigo 8.º da Constituição, constituindo um instrumento jurídico essencial em matéria de direitos fundamentais, que vincula o Estado português e os Tribunais nacionais, decorrente da sua força jurídica infraconstitucional e supra legal.
61-A que acresce o disposto no 2.º parágrafo do artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), relativo ao “Direito à ação e a um tribunal imparcial”, o qual reafirma os direitos que decorrem das tradições constitucionais e das obrigações internacionais comuns aos países da União Europeia, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, das Cartas Sociais aprovadas pela União Europeia e pelo Conselho da Europa, da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH).
62-No plano da jurisprudência constitucional, as garantias processuais emergentes do conceito de processo equitativo também têm merecido tratamento, pois como se sintetizou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 462/2016:
“o direito de ação ou direito de agir em juízo, efetivado através de um processo equitativo, entendido num sentido amplo, significa não apenas que o processo deverá ser justo na sua conformação legislativa, mas também que deverá ser um processo informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais, de modo a que seja adequado a uma tutela judicial efetiva”. Assim, “a doutrina e a jurisprudência têm procurado densificar o princípio do processo equitativo através de outros princípios:
(1) direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibição de todas as discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias;
(2) direito de defesa e direito ao contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas;
(3) direito a prazos razoáveis de ação ou de recurso, proibindo-se prazos de caducidade exíguos do direito de ação ou de recurso;
(4) direito à fundamentação das decisões;
(5) direito à decisão em tempo razoável;
(6) direito ao conhecimento dos dados processuais;
(7) direito à prova, isto é, à apresentação de provas destinadas a demonstrar e provar os factos alegados em juízo;
(8) direito a um processo orientado para a justiça material sem demasiadas peias formalísticas. (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, págs. 415 e 416).”. Acresce que, “se é certo que a exigência de um processo equitativo não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo, impõe, contudo, no seu núcleo essencial, que os regimes adjetivos proporcionem aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efetiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.”, cf. Acórdão 29/2020, de 16/01/2020 (sublinhados nossos).
63-Também no Acórdão 243/2013, o Tribunal Constitucional afirmou quanto às exigências do processo equitativo, que:
o procedimento de conformação normativa deve ser justo e a própria conformação deve resultar num “processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais” (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anot. XVI ao artigo 20.º, p. 415). Se tal exigência não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta estruturação do processo, a mesma “impõe, antes de mais, que as normas processuais proporcionem aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e paridade entre as partes na dialética que elas protagonizam no processo (Ac. n.º 632/99). Um processo equitativo postula, por isso, a efetividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas” (cf. Rui Medeiros, in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anot. XVIII ao artigo 20.º, p. 441).
».
64-A que acresce se acolher o que consta dos pontos 10 e 13 da declaração de voto constante do Acórdão 260/2017, do Tribunal Constitucional:
“[n]a conformação das regras próprias do processo administrativo não está o legislador ordinário sujeito a uma vinculação constitucional tão intensa quanto a que se verifica a propósito da conformação das regras de processo penal. O Tribunal Constitucional reconhece e declara que a CRP não impõe à ordem jurídica infraconstitucional um certo modelo concreto de processo, deixando à liberdade de conformação legislativa uma ampla margem de apreciação na definição da tramitação do processo, designadamente no que se refere aos requisitos de forma dos atos das partes, aos ónus processuais que sobre estes incidem e às cominações que resultem da inobservância das regras processuais (Acórdãos n.os 335/95, 508/2002, 20/2010 e 186/2010, 629/2013). Todavia, isso não significa que o legislador ordinário detenha uma total liberdade na concreta modelação do processo, como se fosse este um campo vazio de vinculações jurídicoconstitucionais. É ponto assente que esta matéria não é imune aos princípios constitucionais e que os regimes adjetivos deverão mostrar-se funcionalmente adequados aos fins do processo, de modo a não traduzirem imposições sem sentido útil ou razoável, e não poderão impossibilitar ou dificultar de modo excessivo a atuação processual das partes, nem estabelecer consequências ou preclusões que sejam desproporcionadas em relação à gravidade da falta que é imputada. O Tribunal Constitucional tem dito que as normas processuais, como decorrência do princípio do processo equitativo, não podem impossibilitar ou dificultar de modo excessivo a atuação processual das partes, nem estabelecer consequências ou preclusões que sejam desproporcionadas em relação à gravidade da falta que é imputada (Acórdãos n.os 468/01 e 260/02). Nesse sentido, no Acórdão 620/2013 reitera-se que (A)pesar de vigorar, na definição da tramitação do processo civil, uma ampla discricionariedade legislativa que permite ao legislador ordinário, por razões de conveniência, oportunidade e celeridade, fazer incidir ónus processuais sobre as partes e prever quais as cominações ou preclusões que resultam do seu incumprimento, isso não significa que as soluções adotadas sejam imunes a um controlo de constitucionalidade que verifique, nomeadamente, se esses ónus são funcionalmente adequados aos fins do processo, ou se as cominações ou preclusões que decorram do seu incumprimento se revelam totalmente desproporcionadas perante a gravidade e relevância da falta, ou ainda, se de uma forma inovatória e surpreendente, face ao texto legal em vigor, são impostas às partes exigências formais que elas não podiam razoavelmente antecipar, sendo o desculpável incumprimento sancionado em termos irremediáveis e definitivos [...]O princípio do processo equitativo, decorrente do princípio do Estado de direito e consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da CRP, limita as escolhas legislativas na concreta estruturação do processo. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, “(o) significado básico da exigência de um processo equitativo é o da conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efetiva” (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª ed. Coimbra Editora, pág. 415). [...] A consagração do processo equitativo significa que o processo judicial unifica um grupo de garantias sobre o modo como o processo deve, não só ser configurado (in abstracto), como ser realizado (in concretum). Neste sentido, “[a] figura do processo equitativo não pode ser definida in abstrato, antes deve ser verificada segundo as circunstâncias particulares de cada caso, tomando em consideração o processo no seu conjunto; e portanto, não pode ser considerado um elemento isolado, salvo se ele revestir uma importância tal que deva ser considerado decisivo para apreciação global do processo.”, Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 2010, 4.ª edição, Wolters Kluwer Coimbra Editora, pág. 165. A noção do processo equitativo supõe uma contextualização dos vários atos processuais na lógica do processo no seu conjunto [...]” (sublinhados nossos).
65-O instituto da responsabilidade civil assume finalidades não apenas sancionatórias ou de punir o agente causador da lesão, como também ressarcitórias ou de reparação do dano, o que demanda o presente caso, considerando a gravidade e intensidade dos danos produzidos na esfera jurídica da Autora.
66-O regime jurídico da responsabilidade civil dos poderes não aponta para uma mudança de paradigma da compensação dos danos pessoais, não abandonando o princípio da responsabilidade, nem o dogma da culpa, antes alargando o conceito de ilicitude aos deveres de cuidado e, especificamente, no campo da saúde, aos deveres de informação e de esclarecimento e de registo da informação médica que, no presente caso, tal como sustentado pela Entidade Recorrida, não podem ser considerados, considerando não integrarem o objeto do acórdão recorrido.
67-Pelo que, em suma, julgaria verificado o requisito da ilicitude, mantendo o decidido na sentença proferida em 1.ª instância.
68-E do mesmo modo no tocante ao requisito da culpa dos agentes ao serviço da Entidade Demandada.
69-Em consequência, concederia provimento ao recurso, revogaria o acórdão recorrido, por estarem verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos e manteria o decidido na sentença proferida em 1.ª instância.
Lisboa, 27 de março de 2025.
(Ana Celeste Carvalho)
119096353