José de Sousa e mulher, Maria Tinoco da Costa, residentes em Vila Nova de Famalicão, interpuseram recurso para o tribunal pleno do Acórdão proferido por este Supremo Tribunal datado de 1 de Março de 1988, no processo n.° 75 474, da 1.ª Secção, por estar em oposição com o Acórdão do mesmo Supremo datado de 23 de Julho de 1986, proferido no processo n.° 38 485, da 3.ª Secção, relativamente à mesma questão fundamental de direito, que era a seguinte: no acórdão recorrido decidiu-se que, ocorrendo uma colisão entre dois veículos, um conduzido pelo seu proprietário e outro por comissário, e não se tendo averiguado a culpa de qualquer deles, a responsabilidade devia ser repartida na proporção do risco, ao passo que, naquele acórdão fundamento, se decidiu que, nas mesmas condições, a responsabilidade devia ser atribuída ao proprietário do veículo conduzido por comissário, por haver uma presunção legal de culpa contra este.
Após os vistos legais, no julgamento da questão preliminar, reconheceu-se a existência de oposição entre os dois acórdãos.
A seguir, os recorrentes apresentaram a sua alegação e nela concluíram que se deve dar provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido, e lavrar-se assento em que se fixe que:
A primeira parte do n.° 3 do artigo 503.° do Código Civil estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele como lesado e o titular ou titulares do direito a indemnização, o que terá como consequência a condenação dos réus no pedido, o qual deverá ser actualizado, atenta a taxa de desvalorização da moeda e o decurso do tempo (quase seis anos após a propositura da acção).
Os recorridos não alegaram.
Por seu turno, o digno agente do Ministério Público expôs o seu parecer, no qual concluiu:
1.° Deve revogar-se a decisão recorrida;
2.° Deve lavrar-se assento, com a seguinte formulação:
Ocorrendo uma colisão entre dois veículos automóveis, um conduzido pelo seu proprietário e outro por um comissário, na falta de possibilidade de averiguação da culpa, não são aplicáveis as regras da responsabilidade pelo risco, mas antes as da culpa, por força da presunção do artigo 503.°, n.° 3, do Código Civil.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Antes de mais, tem de dizer-se que este tribunal pleno, ao contrário do pretendido pelos recorrentes, não pode actualizar o montante da indemnização pedida em consequência da desvalorização da moeda, uma vez que o acórdão recorrido o não fez.
Os assentos destinam-se a fixar doutrina com força obrigatória e a resolver um conflito de jurisprudência, optando por uma das decisões em confronto (artigos 763.°, n.° 1, e 768.°, n.° 3, do Código de Processo Civil) e nada mais.
Assim, o objecto do recurso para o tribunal pleno é sanar a contradição existente entre decisões sobre a mesma questão de direito, a do acórdão recorrido e a do acórdão fundamento, com vista a uniformizar a jurisprudência e a garantir a certeza jurídica conferindo a força obrigatória à interpretação dada a determinada norma por uma dessas decisões ou até optando por uma interpretação diferente (Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 124.°, pp. 376 e seguintes; Palma Carlos, Direito Processual Civil dos Recursos, ed. da AAFDL de 1965, pp.
195 e seguintes; Castro Mendes, Direito Processual Civil, Recursos, ed. da AAFDL de 1980, p. 99).
É claro que os assentos também se pronunciam sobre as questões concretas decididas pelos acórdãos recorridos, mantendo estes ou revogando-os, mas não podem ampliar as correspondentes decisões, libertando-se delas e passando a decidir o que elas não decidiram, o que, na hipótese concreta, sucederia caso se atendesse o referido pedido de indemnização sem esta questão ter sido considerada no acórdão recorrido.
Posto isto, vejamos se a razão está do lado do acórdão recorrido ou do lado do acórdão fundamento quanto à aplicação do artigo 503.°, n.° 3, primeira parte, do Código Civil, na interpretação do assento de 14 de Abril de 1983, à colisão de veículos prevista no artigo 506.°, n.° 1, do mesmo Código, quando um dos veículos é conduzido pelo dono e o outro por um comissário.
Houve sobre a questão larga divergência na doutrina e na jurisprudência em época mais recuada, a qual, porém, se foi esbatendo a partir daquele assento de 14 de Abril de 1983 e do posterior Acórdão deste Supremo de 17 de Dezembro de 1985, tirado em reunião conjunta das duas secções cíveis (Boletim do Ministério da Justiça, n.° 352, p. 329). De facto, desde então, a jurisprudência, sem dúvida largamente dominante, passou a alinhar com a orientação seguida no acórdão fundamento, de acordo com a qual, ocorrendo uma colisão entre dois veículos, um conduzido pelo seu dono e o outro por um comissário, e não se tendo apurado a culpa de qualquer deles, a responsabilidade deve ser atribuída ao segundo, por haver uma presunção legal de culpa contra ele, na medida em que é aplicável ao artigo 506.°, n.° 1, a presunção legal de culpa do artigo 503.°, n.° 3, primeira parte, interpretado pelo mencionado Assento de 14 de Abril de 1983 (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Fevereiro de 1986, 6 de Maio de 1986, 17 de Junho de 1986, 19 de Fevereiro de 1987, 18 de Maio de 1989, 20 de Junho de 1990, 14 de Janeiro de 1993 e 17 de Março de 1993, respectivamente, Boletim do Ministério da Justiça, n.os 353, p. 422, 357, p.
385, 358, p. 506, 364, p. 845, 387, p. 553, e 3982, p. 488, e Colectânea de Jurisprudência do Supremo, 1993, t. I, p. 34, e t. II, p. 14). Por banda da doutrina, é conhecida a defesa acérrima que o Prof. Antunes Varela, com o aplauso do Prof. Almeida Costa (Direito das Obrigações, 5.ª ed., p. 509, n.° 2), vem fazendo da mesma orientação do acórdão fundamento (Das Obrigações em Geral, vol. I, 7.ª ed., p. 677, n.° 3; Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 124.°, pp. 285 e seguintes, ano 122.°, p. 181, e ano 121.°, pp. 31 e seguintes, máxime pp. 58 e 281, n.° 2).
O cerne da argumentação destas doutrina e jurisprudência pode sintetizar-se assim:
a) Segundo o Assento de 14 de Abril de 1983, a primeira parte do n.° 3 do artigo 503.° estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele como lesante e o titular ou titulares do direito a indemnização;
b) Há diversas razões, como o afrouxamento da vigilância do veículo e da sua manutenção e bom funcionamento, a fadiga do condutor, o subestimar do risco, o facilitar da condução, etc., que justificam se faça distinção entre o dono que conduz o próprio veículo e o comissário ou condutor por conta de outrem e se considere este último mais perigoso, a ponto de se presumir culpado, salvo se provar que não houve culpa da sua parte (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 7.ª ed., p. 657, e Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 122.°, pp. 178 e 179, e ano 121.°, pp. 52 e seguintes);
c) O primeiro dos elementos a ter em conta na reconstituição do pensamento legislativo é a unidade do sistema jurídico (artigo 9.°, n.° 1, do Código Civil), o que pressupõe coerência e lógica no pensamento do legislador, que há-de traduzir-se na uniformidade de critérios dentro de toda a ordem jurídica, pelo que é de todo razoável transportar para a interpretação e aplicação do disposto no artigo 506.°, n.° 1, a presunção legal de culpa do comissário estabelecida no artigo 503.°, n.° 3, primeira parte, devendo entender-se que este último texto proclama a presunção legal de culpa do condutor por conta de outrem em termos gerais, que tanto valem para os danos causados pelo simples atropelamento como para os danos provenientes da colisão de veículos;
d) As razões supra-referidas na alínea b), justificativas da distinção entre o condutor por conta de outrem e o condutor do seu próprio veículo, também valem para o caso da colisão de veículos prevista no artigo 506.°, n.° 1;
e) Este artigo 506.°, n.° 1, não distingue entre culpa efectivamente provada e culpa presumida e não ilidida pelo condutor por conta de outrem, e, como já se disse, não se justifica que se faça tal distinção, porquanto as razões da justiça em que assenta a presunção legal de culpa do artigo 503.°, n.° 3, primeira parte, também colhem para a hipótese da colisão de veículos em que intervenha um condutor por conta de outrem e por isso a culpa referida no artigo 506.°, n.° 1, tanto abrange a culpa efectivamente provada como a culpa apenas presumida;
f) Tanto é culpa a efectivamente provada como a presumida, apenas se diferençando pelo facto de aquela resultar de todos os elementos concretos de prova e de esta última derivar de uma presunção, mas claro é que as presunções são um meio de prova (artigos 344.°, 349.° e 350.° do Código de Processo Civil).
Todo este acervo de razões é deveras conveniente e merece o nosso apoio, pelo que se impõe a revogação do acórdão recorrido e a formulação de assento a consagrar a orientação do acórdão fundamento.
Pelo exposto, revoga-se o acórdão recorrido, para ficar a valer o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação e formula-se o seguinte assento:
A responsabilidade por culpa presumida do comissário, estabelecida no artigo 503.°, n.° 3, primeira parte, do Código Civil, é aplicável no caso de colisão de veículos prevista no artigo 506.°, n.° 1, do mesmo Código.
Custas pelos recorridos.
Lisboa, 26 de Janeiro de 1994. - Fernando Fabião - Silva Reis - Ferreira Dias - Pais de Sousa - Miranda Gusmão - Raul Mateus - Sá Couto - Dias Simão - Costa Pereira - Sousa Guedes - José Magalhães - Mora do Vale - Santos Monteiro - Ramos dos Santos - Cardoso Bastos - Guerra Pires - Abranches Martins - Pereira Cardigos - Zeferino Faria - Chichorro Rodrigues - Sá Ferreira - Silva Cancela - Teixeira do Carmo - Calixto Pires - Cardona Ferreira - Folque Gouveia - Machado Soares - Amado Gomes - Correia de Sousa - Cura Mariano - Ferreira da Silva - Sousa Macedo - Ferreira Vidigal - Miguel Montenegro - Figueiredo de Sousa - Martins da Fonseca - Mário Noronha - César Marques - Sampaio da Silva - Roger Lopes - Ramiro Vidigal - Coelho Ventura - Costa Raposo - Lopes de Melo - Oliveira Branquinho - Sá Nogueira (vencido. Pelos fundamentos invocados no acórdão recorrido, que confirmaria, entendi que não deveria ser aplicada extensivamente ao caso dos autos a doutrina do Assento de 14 de Abril de 1983, que reputo infeliz e violadora da própria justiça concreta das diferentes situações, como o demonstram os diversos recursos que se têm multiplicado nos tribunais relacionados com a matéria, sobretudo quando é público que a doutrina do mencionado assento teve como base uma posição ideológica de presunção obrigatória da culpa do comissário porque, como tal, e por não ser proprietário do veículo, conduziria normal (ou necessariamente?) com falta de atenção e de cuidado) - Carlos Caldas (vencido pelas razões constantes do voto de vencido do Ex.mo Conselheiro Sá Nogueira) - Araújo Ribeiro - Martins da Costa (com declaração de voto que junto).
Declaração de voto
Pode parecer e é efectivamente chocante, em particular para o senso comum, que, em face de acidente de viação por colisão de dois veículos, um conduzido pelo proprietário e o outro por comissário, sem se haver feito a prova de culpa efectiva de qualquer dos condutores, se venha a atribuir o acidente a culpa presumida (em tudo idêntica à culpa efectiva) ao segundo daqueles condutores, ilibando-se o primeiro de toda a culpa, com o consequente direito a indemnização de todos os danos por ele sofridos, enquanto o comissário não terá qualquer direito a indemnização e suportará, sozinho ou em solidariedade com o comitente e a seguradora, o encargo pelo pagamento da indemnização porventura devida ao interveniente proprietário.Esta solução, que é a legal em face do estabelecido no Assento de 14 de Abril de 1983, onde se fez a interpretação do disposto no artigo 503.°, n.° 3, do Código Civil, tem algo de surrealista e pode ser também chocante para um jurista, como o é para o signatário.
O «mal», em nosso modesto entender, vem já do Assento de 21 de Novembro de 1979, no qual se estabeleceu que «o disposto no artigo 493.°, n.° 2, do Código Civil não tem aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre», pois, se tivesse sido fixada doutrina contrária, ou seja, a de presunção de culpa em acidente de viação, por aplicação desse artigo 493.°, n.° 2, como se afigura mais correcto, a solução do caso presente, como de outros, teria melhor razoabilidade.
Na verdade, todos estarão de acordo em que a condução de veículos na via pública, designadamente de veículos motorizados, é «uma actividade perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados», pelo que se deveria aplicar ao causador de danos, no exercício daquela actividade, a presunção de culpa prevista no citado artigo 493.°, n.° 2; a mesma ideia está consignada em diversos outros preceitos do Código Civil, como o citado artigo 503.°, n.° 3, e os artigos 506.°, 508.° e 570.°, n.° 2; tal entendimento não é prejudicado pelo facto de se poder também exigir indemnização com base no risco (n.° 1 do citado artigo 503.°), pois este continuaria a ter o seu domínio de aplicação, que é o de o acidente resultar apenas de causa inerente ao funcionamento do veículo; e a solução justificar-se-ia ainda pelo interesse social de reparação dos danos sofridos pelos lesados e pela normal dificuldade de se fazer a prova de culpa efectiva do condutor do veículo.
Por outro lado, considero que o montante da indemnização devida aos recorrentes, fixada no acórdão da Relação, que passa a subsistir em lugar do acórdão recorrido, deveria ser actualizado pelo menos para o dobro ou por aplicação da taxa legal dos juros de mora, desde a data do primeiro acórdão:
tendo aplicado a teoria do risco e fixado a indemnização no máximo permitido, o acórdão recorrido não poderia ter procedido a qualquer actualização, pelo que é irrelevante a circunstância de o não ter feito; esse acórdão tem a data de 1 de Março de 1988 e, se nele houvesse sido seguida a doutrina fixada agora no assento, os recorrentes poderiam ter exigido então o pagamento do mesmo montante que acaba por lhes ser reconhecido; com a solução adoptada, e dados os vários anos decorridos, configura-se uma situação de injusto e flagrante enriquecimento do devedor da indemnização à custa dos credores, os recorrentes.
Dou ainda por reproduzidas aqui as declarações, feitas em outros assentos, sobre a inconstitucionalidade do disposto no artigo 2.° do Código Civil, na medida em que atribui aos assentos a fixação de doutrina «com força obrigatória geral». - José Martins da Costa