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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 2/2023, de 1 de Fevereiro

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Sumário

«O perdão de penas de prisão previsto no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, verificados que sejam os demais requisitos legais, só pode ser aplicado a condenados que sejam reclusos à data da sua entrada em vigor»

Texto do documento

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2023

Sumário: «O perdão de penas de prisão previsto no artigo 2.º da Lei 9/2020, de 10 de abril, verificados que sejam os demais requisitos legais, só pode ser aplicado a condenados que sejam reclusos à data da sua entrada em vigor».

Processo 132/15.0TXEVR-F.E1-A.S1

Acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça

I

RELATÓRIO

1 - O recorrente, AA, veio, em 15 de julho de 2021, interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido em 8 de junho de 2021, no processo 132/15.0TXEVR-F.E1, transitado em julgado em 12 de julho de 2021, alegando encontrar-se em oposição com o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 30 de Setembro de 2020, no processo 744/13.7TXCBR-P.C1 (acórdão fundamento), cuja publicação se encontra em www.dgsi.pt.

Alegou, em síntese, que naqueles dois arestos foi julgada a mesma questão fundamental de direito, interpretada a mesma norma jurídica, sobre a mesma questão de facto no âmbito da mesma legislação, tendo os dois acórdãos decidido em sentido diferente.

2 - Recebido o processo no Supremo Tribunal de Justiça, a conferência da 3.ª secção, por acórdão proferido em 10 de novembro de 2021, julgou verificada a oposição de julgados e determinou o seu prosseguimento.

3 - Foram notificados os interessados, nos termos do disposto no artigo 442.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, tendo o recorrente apresentado as seguintes conclusões:

«1 - A jurisprudência não é unânime na interpretação dada ao artigo 2.º da Lei 9/2020, de 10-04.

2 - Sobre esta temática, surgiram três posições, sendo que o recorrente perfilha a posição intermédia.

3 - Defende, por isso, que devem beneficiar do perdão aqueles que se encontrem na situação de reclusos, sendo que esta condição não se restringe aos que a tinham à data da entrada em vigor da Lei 9/2020, de 10-04, mas também aos que a vieram a adquirir durante a vigência da mesma.

4 - Um dos motivos prende-se com as razões que motivaram a elaboração da Lei 9/2020, de 10 de Abril, plasmadas na exposição de motivos da proposta de Lei 23/XIV, que esteve na sua génese.

5 - A Lei 9/2020, de 10 de Abril, teve como objetivo a proteção da população prisional, através da libertação de reclusos e da flexibilização das saídas, a fim de evitar o surgimento de focos de infeção da doença COVID-19 nos estabelecimentos prisionais e prevenir o risco do seu alastramento.

6 - O legislador visou a proteção da população prisional (elemento lógico, correspondente ao espírito da lei), estabelecendo a condição de recluso como pressuposto para a aplicação do perdão (elemento gramatical correspondente à letra da lei) e condicionando a sua concessão à existência de uma condenação transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor da Lei.

7 - O legislador não disse que para além da condição de recluso também era necessário que a mesma se verificasse à data da entrada em vigor da Lei (interpretação restritiva).

8 - Na verdade, conforme tem vindo a ser destacado pela doutrina e jurisprudência, "As medidas de graça, como providências de exceção, constam de normas que devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas."

9 - Neste sentido, não vislumbramos na letra da Lei a exigência de que o condenado tem de reunir a condição de recluso à data da sua entrada em vigor, conforme defende o acórdão recorrido, sendo, no nosso entender, indiferente a aquisição posterior do estatuto de recluso na pendência da vigência da Lei.

10 - Por outro lado, o facto de a Lei prever, no seu artigo 10.º, um período de vigência, e não apenas um marco temporal para as situações merecedoras do direito de graça, à semelhança de anteriores leis de amnistia, corrobora a interpretação de que, enquanto durar a Lei, o condenado que reunir os requisitos nela previstos, designadamente aquele que vier a adquirir a condição de recluso, pode beneficiar do perdão.

11 - A Lei 9/2020, de 10 de Abril, deve ser interpretada em conjugação com os diplomas que o legislador criou dentro do mesmo propósito de combate à pandemia e com as finalidades de cada um.

12 - A aplicação conjugada da Lei 1-A/2020, de 19-03, com a suspensão dos prazos, e da Lei 9/2020, de 10-04, com o perdão de quem fosse recluso à data da entrada em vigor desta Lei, permitiria manter protegida a população prisional, libertando alguns reclusos e impedindo a entrada de novos reclusos, não se justificando, nessa perspetiva, alargar a aplicação do perdão a quem não fosse recluso em 11-04-2020.

13 - Acontece que, a suspensão da emissão de mandados de detenção não é assim tão certa e evidente, uma vez que sempre ficaria à consideração do julgador entender se o ato seria ou não urgente, decidindo, a final, pela emissão ou não dos mandados.

14 - Essa análise a levar a cabo pelo julgador retira, a nosso ver, força ao argumento avançado pela posição mais restrita, dado que, dependendo do entendimento, sempre haveria detidos a entrar no estabelecimento prisional.

15 - Foi, aliás, o que sucedeu no caso do acórdão fundamento, em que o recluso em causa terá sido detido e conduzido ao Estabelecimento Prisional em pleno período pandémico, altura em que, o que se pretendia, era retardar a execução das penas e, por isso, a entrada de condenados em estabelecimento prisional.

16 - Sendo este um elemento inconstante, dificilmente se compreenderia que o legislador o tivesse perspetivado, de forma implícita, como fator de eficácia da solução legislativa apresentada através da Lei 9/2020, de 10 de Abril.

17 - Não cremos, pois, que aqueles dois diplomas se complementavam com a finalidade proposta, sendo certo que as posteriores alterações legislativas vieram acabar com um argumento de peso dos defensores da posição mais restrita.

18 - Com efeito, a suspensão generalizada dos prazos e de atos, mesmo em alguns processos de natureza urgente, introduzida pela Lei 1-A/2020, de 19-03, cessou com a entrada em vigor da Lei 16/2020, 29-05, diploma que revogou o mencionado artigo 7.º daquela Lei.

19 - Simultaneamente, esta Lei 16/2020, 29-05, alterou o artigo 10.º da Lei 9/2020, de 10-04, definindo que esta cessa a sua vigência em data a fixar em lei que declare o final do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença Covid-19.

20 - A Lei 16/2020, 29-05, veio clarificar que o diploma que concede o perdão de penas continuava em vigor até ser declarada, por lei, a cessação do regime excecional de medidas de flexibilização e medidas de graça de combate à pandemia, apesar de os prazos e, salvo algumas exceções, os atos e procedimentos a praticar nos tribunais judiciais retomarem a sua marcha normal.

21 - A suprarreferida evolução legislativa, a par da ausência de criação de qualquer norma que expressamente continuasse a acautelar a entrada de condenados no estabelecimento prisional, quebra a argumentação da tese mais restrita e consolida a posição intermédia.

22 - Com o inevitável crescimento da população prisional - pois, com a entrada em vigor da Lei 16/2020, 29-05, nada impedia ou limitava a emissão e execução de mandados de detenção - não se estaria a acautelar o surgimento de novos focos de infeção junto da população prisional, objetivo fulcral da Lei 9/2020, de 10 de Abril.

23 - Estando o pensamento do legislador no oposto desta realidade não cremos que corresponda a uma interpretação declarativa do diploma o entendimento de que o artigo 2.º, n.º 1, da Lei 9/2020, de 10 de Abril, seja no contexto da sua versão inicial, seja com a entrada em vigor da Lei 16/2020, de 29 de Maio, só se aplica aos condenados que, reunindo as demais condições previstas na lei, se encontravam reclusos em 11-04-2020.

24 - Por todos os motivos expostos supra, sufraga o recorrente a posição intermédia, segundo a qual devem beneficiar do perdão aqueles que se encontrem na situação de reclusos, sendo que esta condição não se restringe aos que a tinham à data da entrada em vigor da Lei 9/2020, de 10-04, mas também aos que a vieram a adquirir durante a vigência da mesma, acompanhando assim a posição defendida no acórdão fundamento.

25 - Deve, por isso, ser fixada jurisprudência com o sentido do acórdão fundamento deste recurso, ou seja: o perdão previsto no artigo 2.º da Lei 9/2020, de 10 de Abril, verificados que sejam os demais requisitos legais, pode ser aplicado tanto a condenados que estavam reclusos à data da entrada em vigor daquele diploma (11-04-2020), como a condenados que, no decurso da vigência da mesma Lei, vieram a estar na situação de reclusão.

26 - Na perspetiva da posição defendida pelo recorrente, o acórdão recorrido violou os artigos 2.º e 10.º da Lei 9/2020, de 10 de Abril; os artigos 3.º e 8.º da Lei 16/2020, de 29 de Maio, assim como, o artigo 9.º do Código Civil.»

4 - O Ministério Público apresentou as suas alegações, tendo concluído nos seguintes termos:

«1 - A Lei 9/2020, de 10 de Abril, veio estabelecer um Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, preceituando o seu artigo 2.º: «são perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos» (n.º 1); «são também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena» (n.º 2); e «o perdão a que se referem os n.os 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada» (n.º 7).

2 - Os números 1, 2 e 7 deste artigo 2.º da Lei 9/2020, de 10 de Abril, e também o seu n.º 4, referem-se invariavelmente a "reclusos", pelo que o primeiro requisito de aplicação o perdão de penas de prisão, é a condição de recluso, só podendo beneficiar desta medida de graça quem esteja em cumprimento de uma pena de prisão.

3 - O segundo requisito é que o "recluso" tenha sido condenado por decisão transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor da Lei 9/2020, de 10 de Abril, o que sucedeu em 11 de Abril de 2020.

4 - A expressão "recluso", em termos literais, como técnico-jurídicos, refere-se "à pessoa que está privada da liberdade, aquele que está preso", e não a quem é susceptível de vir a ser preso.

5 - O artigo 2.º da Lei 9/2020, de 10 de Abril, quando prevê que o perdão de penas de prisão se aplica a "reclusos", cuja condenação tenha transitado em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, não delimita no tempo tal realidade, já que não refere se a situação de encarceramento tem que se verificar antes ou depois da entrada em vigor desse diploma legal.

6 - Dos trabalhos preparatórios que deram origem à Lei 9/2020, de 10 de Abril, conclui-se ter sido intenção do legislador limitar a aplicação do perdão de penas de prisão aos condenados que se encontrassem privados da liberdade no momento da sua entrada em vigor.

7 - Já que, a não ser assim, não se compreenderia o motivo pelo qual o legislador, em vez de aprovar as propostas apresentadas pelo Governo, ou pelo PAN, que abrangiam quer os reclusos que já se encontravam a cumprir pena de prisão, quer quem futuramente ficasse numa situação de reclusão, optou por conferir ao artigo 2.º, n.º 7, da Lei 9/2020, de 10 Abril, a redacção proposta pelo PCP, passando a exigir-se que para beneficiarem do perdão de penas os "reclusos" tivessem sido condenados por decisão transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor da lei.

8 - Resulta da teleologia da norma em evidência que, visando o legislador reduzir drástica e imediatamente a população prisional, existia uma razão para a excepcionalidade do perdão de penas de prisão, em termos de ser concedido apenas àqueles que, nessa altura, possuíam a qualidade de "reclusos", deixando de fora os outros condenados.

9 - Também resulta de uma interpretação sistemática que o legislador estabeleceu, neste diploma legal, para além do perdão de penas de prisão, outras medidas de libertação de "reclusos" que se encontravam em cumprimento de pena de prisão ou em prisão preventiva, à data da sua publicação, tais como "indulto excecional", "saída administrativa extraordinária", "adaptação à liberdade condicional", e reexame dos pressupostos da prisão preventiva.

10 - Sem que, a par, tivesse estabelecido medidas que abrangessem os condenados por sentença transitada em julgado, mas que ainda não tivessem iniciado o cumprimento da respectiva pena, à data da entrada em vigor da Lei 9/2020, de 10 de Abril, omissão que, face à unidade do sistema, só pode ter como significado a sua exclusão do perdão de penas de prisão criado com esta lei.

11 - A circunstância de o legislador ter atribuído a competência para a aplicação do perdão de penas de prisão aos tribunais de execução de penas (artigo 2.º, n.º 8), e não também aos tribunais da condenação, como deveria acontecer, caso o perdão abrangesse os condenados em pena de prisão por sentença transitada em julgado, ainda não privados da sua liberdade, e de ter conferido carácter urgente à sua implementação, reforça a ideia da não aplicação do perdão de penas a quem não se encontrasse em reclusão.

12 - O legislador, para além de ter estabelecido na Lei 9/2020, de 10 Abril, um regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, fixou também, no artigo 7.º da Lei 1-A/2020, de 19 de Março (diploma este que aprovou um conjunto de medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19), um regime de suspensão de prazos e da tramitação processual decorrente das medidas adotadas no âmbito da pandemia da doença COVID.

13 - A aplicação conjugada destas Leis e 1-A/2020, de 19 de Março.º 9/2020, de 10 de Abril, na altura mais crítica da pandemia, permitiu que saíssem das prisões os reclusos abrangidos pelas medidas previstas nesta última, e retardou, pela suspensão de prazos processuais consagrada pela primeira, a execução de outras penas de prisão, levando a que menos condenados iniciassem o cumprimento de pena, assim se obtendo o efeito pretendido pelo legislador, de se alcançar a diminuição da população prisional e evitar surtos de Covid-19 nos estabelecimentos prisionais, sinal, mais um, de que a intenção do legislador foi que o perdão de penas de prisão só abrangesse os reclusos que se encontrassem em cumprimento de pena à data da entrada em vigor da Lei 9/2020.

14 - A doutrina e a jurisprudência têm vindo a considerar, em matéria de amnistia ou perdão, não ser atentatória do princípio da igualdade, com consagração constitucional, eventual diferenciação de tratamento, desde que a mesma surja materialmente fundada em motivações objectivas, razoáveis e justificadas.

15 - No caso da exclusão do perdão de penas de prisão em causa, sendo colocados como são, em plano de igualdade, todos aqueles que não se encontravam em cumprimento de pena de prisão, à data da entrada em vigor da Lei 9/2020, de 10 de Abril, não se verifica tratamento diverso de quem se encontra em situação idêntica, nem tal exclusão comporta um tratamento arbitrário, sendo, como é, explicável e racionalmente compreensível, por razões de saúde, a fim de evitar o risco de contágio nos estabelecimentos prisionais.

16 - A norma do artigo 2.º da Lei 9/2020, de 10 de Abril, na interpretação de só abranger quem, à data da sua entrada em vigor, estivesse já preso em cumprimento de pena, não viola o princípio da igualdade, a que se refere o artigo 13.º da Constituição da República."»

Colhidos os vistos e reunido o Pleno das secções criminais, cumpre decidir.

II

FUNDAMENTAÇÃO

A. Da Verificação dos Pressupostos do Recurso

1 - Antes de mais, e considerando que o pleno das secções criminais pode decidir em sentido contrário ao da conferência da secção (artigo 692.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal), importa verificar se, como aí então se decidiu, se encontram ou não preenchidos os pressupostos do recurso, designadamente a oposição de julgados.

Dispõe o artigo 437.º do Código de Processo Penal que:

"1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3 - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5 - O recurso previsto nos n.os 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público".

Por sua vez, o artigo 438.º do Código de Processo Penal preceitua que:

"1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

2 - No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência."

Em face do teor do referidos normativos, verifica-se que a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende da verificação dos seguintes requisitos formais e substanciais:

- Requisitos de ordem formal:

i) a legitimidade do recorrente (sendo esta restrita ao Ministério Público, ao arguido, ao assistente e às partes civis); e interesse em agir, no caso de recurso interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (já que tal recurso é obrigatório para o Ministério Público);

ii) a identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação, com justificação da oposição entre os acórdãos que motiva o conflito de jurisprudência;

iii) o trânsito em julgado de ambas as decisões;

iv) a interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito da decisão proferida em último lugar.

- Requisitos de ordem substancial:

i) a existência de oposição entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ou entre dois acórdãos das Relações, ou entre um acórdão da Relação e um do Supremo Tribunal de Justiça;

ii) verificação de identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões;

iii) oposição referente à própria decisão e não aos fundamentos (as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções opostas para a mesma questão fundamental de direito);

iv) as decisões em oposição sejam expressas;

v) a identidade de situações de facto.

In casu, mantém-se o entendimento, vertido no acórdão de 10 de novembro de 2021, em que se considerou estar verificada a oposição de julgados, que se encontram integralmente preenchidos os pressupostos formais e substanciais previstos nos artigos 437.º, n.os 1, 2 e 3 e 438.º, n.os 1 e 2, ambos do Código de Processo Penal.

Desta forma, e conforme consta nesse aresto, encontra-se assente a seguinte factualidade:

a) No acórdão recorrido, o arguido/recorrente AA foi julgado no processo 2228/11..., do Juiz... do Juízo Central Criminal..., do Tribunal Judicial da Comarca..., tendo sido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 2 (dois) anos de prisão, por decisão transitada em julgado em 18.10.2018.

b) Em 01.03.2021, o recorrente AA apresentou-se voluntariamente no Estabelecimento Prisional..., para o cumprimento desta pena de 2 anos de prisão, que se iniciou neste mesmo dia.

c) O recorrente AA requereu a concessão do perdão previsto na Lei 9/2020, de 10 de abril, tendo o Juiz... do Juízo de Execução..., por despacho de 21.04.2021, indeferido este pedido, por entender não estarem reunidos os pressupostos legalmente exigidos para o efeito, concretamente, não ter o ora recorrente a qualidade de recluso, à data da entrada em vigor da citada Lei.

d) O arguido AA interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Évora, que proferiu acórdão, no âmbito do qual se concluiu que "[...] o perdão de penas, previsto no artigo 2.º da Lei 9/2020, de 10 de Abril, só pode ser aplicado a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado, em data anterior à da entrada em vigor da mesma Lei. Não podem beneficiar desse perdão os condenados que, embora a decisão condenatória, à data da entrada em vigor da Lei 9/2020, já tenha transitado em julgado, não tenham, a essa data, ingressado no estabelecimento prisional, ou seja, que não tenham a condição de reclusos [...]";

e) Entendeu-se, assim, que não se verificava um dos pressupostos para que o recorrente AA pudesse beneficiar do perdão de pena que o mesmo havia requerido, previsto no artigo 2.º da Lei 9/2020, de 10 de Abril, por não ser recluso à dada da entrada em vigor desta Lei - 11.04.2020 -, e só ter ingressado no Estabelecimento Prisional... em 01.03.2021, por aí se ter apresentado voluntariamente.

f) Por sua vez, no processo 364/18... (onde foi proferido o acórdão fundamento) o aí arguido foi condenado em 1.ª instância pela prática de 2 (dois) crimes de ofensa à integridade física qualificada, como reincidente, previstos e punidos pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, 132.º, n.º 2, al. h), 75.º e 76.º, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano, e 2 (dois) meses de prisão, e ingressou no Estabelecimento Prisional..., em 15.07.2020, para o cumprimento desta pena.

g) O Ministério Público, em 1.ª instância, entendeu ser de conceder ao aí arguido/recluso o perdão previsto na Lei 9/2020, de 10 de abril, promovendo que se procedesse à imediata emissão dos respetivos mandados de libertação.

h) Na sequência desta promoção, foi proferido o seguinte Despacho:

"[...] O recluso A. foi preso em 15.07.2020. Coloca-se a questão da aplicabilidade da Lei 9/2020, de 10 de Abril.

A aplicação do perdão concedido por tal Lei postula a reclusão e bem assim uma condenação transitada antes da data da sua entrada em vigor (11 de Abril de 2020, ex vi o seu artigo 11.º).

Aquela Lei não se aplica a condenados que ingressem no sistema prisional durante a vigência da mesma pois esses não estão, à data da entrada em vigor da Lei, entre os reclusos a quem a mesma se destina.

Na verdade, por referência ao âmbito de aplicação previsto no n.º 1, do artigo 2.º daquela Lei, o arguido em causa era condenado, mas não era recluso.

A condição de reclusão teria de estar verificada à data da entrada em vigor daquela Lei. Assim sendo, o condenado, ora recluso, não pode ser beneficiário do perdão previsto no artigo 2.º, n.º 1, da Lei 9/2020, de 10 de Abril [...]".

i) O Ministério Público interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra, que proferiu acórdão decidindo que:

- O legislador, ao proceder à alteração do artigo 10.º da Lei 9/2020, de 10 de abril, através do artigo 3.º da Lei 16/2020, de 29 de Maio, veio reiterar "[...] a ideia de que os reclusos que se encontrarem nas circunstâncias nela previstas devem beneficiar de perdão, o que só pode querer significar que a lei não se aplica só a quem era recluso à data da entrada em vigor da mencionada Lei 9/2020, pois, quanto a tais cidadãos, já os Tribunais de Execução de Penas decidiram nos dias seguintes àquela [...]";

- O perdão previsto no artigo 2.º da Lei 9/2020, de 10 de abril, verificados que sejam os demais requisitos legais, pode ser aplicado tanto a condenados que sejam reclusos à data da entrada em vigor desta Lei (11.04.2020), como a condenados que, no decurso da sua vigência, venham a estar na situação de reclusão.

2 - Verifica-se, assim, que o recorrente AA, sendo arguido nos presentes autos e tendo sido proferida uma decisão que lhe foi desfavorável, está coberto de legitimidade para intentar o presente recurso de fixação de jurisprudência, nos termos do n.º 5 do artigo 437.º do Código de Processo Penal.

Os acórdãos fundamento e recorrido foram ambos proferidos por tribunais da Relação, aquele de Coimbra e este de Évora, e encontram-se transitados em julgado. Ademais, o recurso de fixação de jurisprudência foi apresentado tempestivamente e o acórdão fundamento foi devidamente identificado.

Como tal, afigura-se que os requisitos de ordem formal se encontram todos preenchidos.

Da mesma forma, e na esteira do teor do acórdão proferido nestes autos a 10 de novembro de 2021, o mesmo sucede relativamente aos requisitos substanciais.

Verifica-se, assim, que as situações fácticas subjacentes às duas decisões são idênticas: estamos perante dois arguidos condenados em penas de prisão cujas decisões condenatórias transitaram em julgado antes de 11 de abril de 2020, foram presos após essa data e praticaram crimes que não constam do catálogo de crimes que ficam à margem do perdão nos termos do artigo 2.º, n.º 6, da Lei 9/2020, de 10 de abril.

Enquanto no acórdão recorrido se entendeu que, não tendo o arguido a qualidade de recluso à data em que entrou em vigor a Lei 9/2020 [11 de abril de 2020], o mesmo não poderia beneficiar do perdão aí previsto no artigo 2.º, já, por seu turno, no acórdão fundamento, e contrariamente, considerou-se que esse perdão abrangeria tanto os condenados que fossem reclusos à data da entrada em vigor desta Lei, como os condenados que, no decurso da sua vigência, viessem a estar na situação de reclusão, tendo, em consequência, determinado a aplicação do perdão.

Como tal, e numa base factual idêntica, os referidos acórdãos, proferidos no domínio da mesma legislação (artigo 2.º da Lei 9/2020), apreciaram de forma distinta a mesma questão de direito.

Em face disso, considera-se, assim, verificada a necessária oposição de julgados, em conformidade com o disposto no artigo 437.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, porquanto os acórdãos assentam em soluções opostas, a partir de idêntica situação de facto, sendo expressa a oposição das respetivas decisões.

B. Dos Casos e do Direito

3 - No acórdão recorrido entendeu-se, como se viu, que o perdão de penas previsto no artigo 2.º da Lei 9/2020, de 10 de abril, apenas poderia ser aplicado a condenados que, à data da sua entrada em vigor, já tivessem ingressado em estabelecimento prisional, ou seja, que tivessem já a condição de reclusos.

Refere, em suma, essa decisão, que a Lei em causa emprega sempre a expressão "recluso", pelo que inexistem dúvidas de que o perdão aí consagrado só poderá ser aplicado a quem esteja efetivamente recluído no estabelecimento prisional, a cumprir uma pena, em decorrência de uma condenação transitada em julgado em momento anterior ao da entrada em vigor dessa mesma Lei.

Por outro lado, tratando-se de medidas de exceção, a interpretação e aplicação da lei que as consagra deve ser feita nos seus precisos termos, sem extensões, nem restrições que nela não venham expressas.

Ou seja, a interpretação deve, no caso, ser feita de forma muito próxima da literalidade (interpretação dita declarativa), qua tale, trait pour trait, Zug um Zug, numa afloração do princípio da especialidade. O qual, nas palavras impressivas e algo metaforicamente exuberantes do Prof. Fernando Capez, explicitando o quid que especifica esse tipo de norma não meramente geral, refere: "a caixa com um laço de fita vermelho prevalece sobre a caixa sem tal adereço"(1).

Finalmente, entende o acórdão em breve comentário inexistir qualquer violação do princípio da igualdade, uma vez que a diferença de tratamento entre condenados e reclusos tem um fundamento material bastante, consubstanciado na necessidade de eliminar os riscos de contágio, que só existem relativamente aos reclusos que se encontram a cumprir pena em meio prisional.

Sendo a ratio legis que leva a uma e a outra das soluções perfeitamente alicerçada na duplicidade e até antítese das situações. Donde, até em termos de equidade, estariam adequadas as leis e a sua interpretação: o tratamento do igual igualmente e o do desigual desigualmente, na medida sua desigualdade.

4 - Por sua vez, o acórdão fundamento considerou que do exame literal ao n.º 1 do artigo 2.º da Lei 9/2020, de 10 de abril, não resulta a solução quanto ao problema de interpretação que está em causa, uma vez que não delimita no tempo a qualidade de "recluso". Mais referiu que a Lei em causa surgiu inserida numa legislação abundante e diversificada, que visou responder a uma situação de emergência, na tentativa de obstar à expansão de uma doença nos estabelecimentos prisionais, durante um período incerto, cessando a sua vigência apenas quando fosse declarado o termo da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica.

Conclui, assim, que o artigo em causa inculca a ideia de que a lei não visou apenas ser dirigida para o imediato, a quem já era recluso, pretendendo contemplar situações de futuros reclusos, devendo a lei ser aplicada não só a quem era já recluso à data em que entrou em vigor, mas também àqueles que viessem a sê-lo durante a vigência da referida Lei.

Parece tratar-se de uma perspetiva abrangente, do tipo da interpretação extensiva. Porém, as normas especiais não consentem esse tipo de alargamento, sob pena de perderam o seu quid specificum, a sua própria ratio.

5 - A questão em causa nos presentes autos respeita unicamente à aplicação do perdão de pena previsto no artigo 2.º, n.º 1, da Lei 9/2020, de 10 de abril.

A referida Lei, entrada em vigor no dia 11 de abril de 2020, em pleno estado de emergência (decretado pelo Presidente da República no dia 18 de março de 2020), estabeleceu um regime excecional de flexibilização da execução das penas e medidas de graça, o qual surgiu pela necessidade de fazer face ao problema de saúde pública, ocasionada pandemia da doença COVID-19 (já classificada como pandemia internacional), nos estabelecimentos prisionais, locais que, face às suas circunstâncias concretas, poderiam dar origem a eventuais focos graves da mesma.

Tal projeto legislativo foi elaborado na sequência da Recomendação 4/B/2020, da Provedora da Justiça, que alertou para as especificidades do meio prisional, do ponto de vista estrutural, dos edifícios e das suas regras de funcionamento.

Referia, assim, a Exma. Senhora Provedora da Justiça que, sendo um "meio fechado por excelência, funcionando em edifícios que não facilitam ou propiciam a separação entre quem se encontra em reclusão, a proximidade do quantitativo da população presente com as vagas existentes no sistema não faz esquecer a desigual distribuição daquela, em termos que significam, em muitos casos, sobrelotação acentuada e, em geral, dificuldade para adoção de esquemas que propiciem, nesta ocasião, distância social mais marcada. Se assim é do ponto de vista estrutural, a população prisional é também consabidamente caracterizada por alta prevalência de problemas de saúde diversos, o que, conjugando com o seu envelhecimento, ocasiona percentagem muito significativa de reclusos que integram os chamados grupos de risco para a infeção por este novo agente patogénico"(2).

Como tal, visou evitar-se o aparecimento de focos de infeção nos estabelecimentos prisionais, atendendo a que, em face da estrutura desses locais, o distanciamento social é manifestamente difícil de manter. Nesta medida, e com vista à proteção da vida e da integridade física dos reclusos, que estão sob a égide do Estado, surgiu a necessidade de adotar medidas legislativas que diminuíssem o risco de surtos.

Nesta senda, e conforme se refere no âmbito da Exposição de Motivos da mencionada Lei, "[a]s Nações Unidas, através de mensagem da Alta Comissária para os Direitos Humanos de 25 de Março, exortaram os Estados-Membros a adotar medidas urgentes para evitar a devastação nas prisões, estudando formas tendentes a libertar os reclusos particularmente vulneráveis à COVID-19, designadamente os mais idosos, os doentes e os infratores de baixo risco.

As especificidades do meio prisional, quer no plano estrutural, quer considerando a elevada prevalência de problemas de saúde e o envelhecimento da população que acolhe, aconselham que se acautele, ativa e estrategicamente, o surgimento de focos de infeção nos estabelecimentos prisionais e se previna o risco do seu alastramento.

Neste contexto de emergência, o Governo propõe a adoção de medidas excecionais de redução e de flexibilização da execução da pena de prisão e do seu indulto, que, pautadas por critérios de equidade e proporcionalidade, permitem, do mesmo passo, minimizar o risco decorrente da concentração de pessoas no interior dos equipamentos prisionais, assegurar o afastamento social e promover a reinserção social dos reclusos condenados, sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade. Estas medidas extraordinárias constituem a concretização de um dever de ajuda e de solidariedade para com as pessoas condenadas, ínsito no princípio da socialidade ou da solidariedade que inequivocamente decorre da cláusula do Estado de Direito."

Como tal, e em conformidade com o disposto no artigo 1.º, com a referida Lei estabeleceu-se, excecionalmente e no âmbito da emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID-19, um perdão parcial de penas de prisão, um regime especial de indulto das penas, um regime extraordinário de licença de saída administrativa de reclusos condenados e uma antecipação extraordinária da colocação em liberdade condicional (artigo 1.º).

No que respeita, concretamente, ao perdão parcial de penas, na Proposta de Lei 23/XIV, o Governo propôs a seguinte redação para o artigo 2.º:

"1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.

2 - São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos.

3 - O perdão referido nos números anteriores abrange as penas de prisão fixadas em alternativa a penas de multa e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única.

4 - Não podem ser beneficiários do perdão referido nos n.os 1 e 2 os condenados pela prática:

[...]

5 - O perdão a que se referem os n.os 1 e 2 é concedido sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à data da entrada em vigor da presente lei, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acrescerá a pena perdoada."

Por sua vez, o Partido Comunista Português (PCP) apresentou uma proposta de alteração, nos seguintes termos:

"4 - Em caso de condenação do mesmo recluso em penas sucessivas sem que haja cúmulo jurídico, o perdão incide apenas sobre o remanescente do somatório dessas penas, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a 2 anos.

[...]

6 - O perdão a que se referem os n.os 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à data da entrada em vigor da presente lei, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acrescerá a pena perdoada.

7 - Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respetivos mandados com caráter urgente."

Tal formulação foi a que veio, efetivamente, a ser aprovada, tendo sido afastadas as demais propostas de alteração, nomeadamente a apresentada pelo Partido das Pessoas, dos Animais e da Natureza (PAN), na qual se pretendia que fossem abrangidas pelo perdão "as penas com duração igual ou inferior a dois anos que entretanto transitem em julgado enquanto vigorar o estado de emergência, sendo que neste caso as penas deverão ser substituídas por multa ou dias de trabalho".

Efetuada a discussão na generalidade da referida proposta de Lei, a Exma. Senhora Ministra da Justiça referiu, nomeadamente, que:

"[T]emos a perceção clara de que estamos perante um conflito de interesses e de valores radical: de um lado, a proteção da saúde, da vida dos reclusos e de quem os guarda; do outro lado, o respeito pelas vítimas, a proteção das vítimas, a segurança e a manutenção da ordem pública reposta com a condenação. Fizemos uma escolha que consideramos equilibrada no tempo e no modo. Desenhámos medidas cautelosas que, respondendo com adequação à emergência de saúde pública que vivemos, não descolam dos princípios essenciais, regentes dos nossos sistemas penal e de execução das penas."

Previa-se, assim, a libertação de cerca de 2000 reclusos, com o objetivo direto de diminuir significativamente e com rapidez a população prisional, o que conduziria a que, a par das demais medidas previstas (regime especial de indulto das penas, regime extraordinário de licença de saída administrativa e antecipação da colocação em liberdade condicional), as medidas sanitárias adotadas em contexto prisional tivessem uma maior eficácia.

Assim, o artigo 2.º da Lei 9/2020 foi aprovado nos seguintes termos:

"1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.

2 - São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena.

3 - O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única.

4 - Em caso de condenação do mesmo recluso em penas sucessivas sem que haja cúmulo jurídico, o perdão incide apenas sobre o remanescente do somatório dessas penas, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos.

5 - Relativamente a condenações em penas de substituição, o perdão a que se refere este artigo só deve ser aplicado se houver lugar à revogação ou suspensão.

6 - Ainda que também tenham sido condenados pela prática de outros crimes, não podem ser beneficiários do perdão referido nos n.os 1 e 2 os condenados pela prática:

a) Do crime de homicídio previsto nos artigos 131.º, 132.º e 133.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, na sua redação atual;

b) Do crime de violência doméstica e de maus tratos previstos, respetivamente, nos artigos 152.º e 152.º-A do Código Penal;

c) De crimes contra a liberdade pessoal, previstos no capítulo IV do título I do livro II do Código Penal;

d) De crimes contra a liberdade sexual e autodeterminação sexual, previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal;

e) Dos crimes previstos na alínea a) do n.º 2 e no n.º 3 do artigo 210.º do Código Penal, ou previstos nessa alínea e nesse número em conjugação com o artigo 211.º do mesmo Código;

f) De crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, previstos no título III do livro II do Código Penal;

g) Dos crimes previstos nos artigos 272.º, 273.º e 274.º do Código Penal, quando tenham sido cometidos com dolo;

h) Do crime previsto no artigo 299.º do Código Penal;

i) Pelo crime previsto no artigo 368.º-A do Código Penal;

j) Dos crimes previstos nos artigos 372.º, 373.º e 374.º do Código Penal;

k) Dos crimes previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, na sua redação atual;

l) De crime enquanto membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas ou funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das suas funções, envolvendo violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena;

m) De crime enquanto titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas;

n) Dos crimes previstos nos artigos 144.º, 145.º, n.º 1, alínea c), e 147.º do Código Penal.

7 - O perdão a que se referem os n.os 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.

8 - Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respetivos mandados com caráter urgente.

9 - O perdão a que se referem os n.os 1 e 2 só pode ser aplicado uma vez por cada condenado."

C. Do Direito de Graça e afins

6 - Ora, o direito de graça, em que se integra o perdão de penas, consubstancia a "contraface do direito de punir estadual", consubstanciando um caminho "para obviar incorrecções legislativas ou a erros judiciários [...] como para propiciar condições favoráveis a modificações profundas da legislação de carácter penal, ou [...] à socialização do condenado"(3).

Assim, as medidas de graça ou de clemência são uma "reminiscência do direito de graça que o soberano detinha quando concentrava em si todos os poderes estatais, incluindo os de castigar e de perdoar", subvertendo os "princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça"(4).

Os atos de graça abrangem, assim, a amnistia, o perdão genérico e o perdão individual ou particular, em que se integram o indulto e a comutação(5). A distinção entre as várias medidas de graça efetua-se conforme o ato respeite ao facto praticado ou à pena concretamente aplicada, bem como consoante abranja um caso concreto ou um grupo de situações, em função das características do facto praticado ou do agente(6).

Assim, "[...] o Estado-de-Direito metamorfoseou o direito de graça, passando a encará-lo através de outro prisma, e aproveitou-o como instrumento útil na realização de uma autêntica justiça. Criteriosamente administrado, o direito de graça pode servir para a realização da justiça nos casos em que a aplicação da lei, na sua generalidade a abstracção, dá lugar a decisões concretas materialmente injustas ou político-criminalmente inadequadas"(7).

Tais medidas de graça não estão expressamente previstas a se no âmbito da Constituição da República Portuguesa, encontrando-se apenas mencionadas aquando da referência aos poderes do Presidente da República (indulto e comutação da pena, nos termos do artigo 134.º, alínea f) da Constituição da República Portuguesa) e do Parlamento (amnistia e perdão genérico, previstos no artigo 161.º, alínea f) da Constituição da República Portuguesa).

"O que verdadeiramente distingue os institutos é o carácter geral da amnistia (dirigido [...] a grupos de factos ou de agentes, em contraposição ao carácter individual do indulto (dirigido a pessoas concretas)"(8).

"A amnistia é, pois, uma instituição de clemência da competência da Assembleia da República. Os seus efeitos podem ser a extinção do processo penal ou, no caso de já existir uma condenação, a extinção da pena e dos respectivos efeitos. No primeiro caso estamos perante uma amnistia própria (em sentido próprio), e no segundo caso perante uma amnistia imprópria (em sentido impróprio).

O perdão genérico é uma figura próxima da amnistia. Trata-se de uma medida de carácter geral, que tem como efeito a extinção de certas penas (pelo que a doutrina o qualifica como verdadeira amnistia imprópria).

Designa-se por amnistia a medida de graça, de carácter geral, aplicada em função do tipo de crime, e perdão genérico a medida de graça geral aplicada em função da pena.

Visto que o perdão genérico é, como se disse, aplicado em função da pena, ele tem a particularidade de poder ser total ou parcial, conforme seja perdoada a totalidade ou apenas uma parte da pena"(9).

Nesta medida, enquanto a amnistia respeita às infrações abstratamente consideradas, "apagando" a natureza criminal do facto, o perdão implica que a pena ou a medida de segurança não sejam, total ou parcialmente, cumpridas.

"A amnistia serve para libertar o agente de um processo penal ainda em curso ou do cumprimento de uma pena, devida à prática de determinado crime. Significa isto que alguns bens jurídicos, protegidos pela legislação penal, são considerados menos importantes, em determinados contextos (por exemplo, em caso de necessidade de pacificação social), razão pela qual a sua protecção pode ser sacrificada reotractivamente. Contudo, tal não significa que a amnistia implique a ausência de dignidade punitiva do acto ilícito.

No caso do perdão genérico, atenta-se apenas na gravidade da pena e no sacrifício que o seu cumprimento implica para o condenado, podendo aquela ser total ou parcialmente perdoada"(10).

Assim, e nos termos do artigo 127.º do Código Penal, "a responsabilidade criminal extingue-se ainda pela morte, pela amnistia, pelo perdão genérico e pelo indulto".

Por sua vez, o artigo 128.º, n.º 2 do Código Penal preceitua que "a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança" e, no n.º 3, que "o perdão genérico extingue a pena, no todo ou em parte".

D. Excecionalidade da norma e suas questões hermenêuticas

7 - O direito de graça assume uma natureza excecional que, como tal, não comporta aplicação analógica, interpretação extensiva ou restritiva, devendo as normas que o enformam "ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas"(11). Nesta medida, "insusceptíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa [...]"(12).

Como tal, atendendo à excecionalidade que caracteriza as leis de amnistia e de perdão, a interpretação das mesmas deverá, pura e simplesmente, conter-se no texto da respetiva lei(13), adotando-se uma interpretação declarativa em que "não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo"(14).

Vale aqui, plenamente, o brocardo e princípio exceptio strictissimae interpretationis. E não se afigura como sendo um escolho nesta senda hermenêutica a expressa determinação do artigo 11.º do Código Civil, proscrevendo a analogia mas permitindo a interpretação extensiva(15). É que operar um salto de aplicação como o que está em causa cairia sob a alçada da analogia, não da simples interpretação/aplicação extensiva.

Como bem se sabe, a interpretação extensiva apenas procura retirar da norma o que nela já se encontra, ainda que imperfeitamente expresso. Trata-se apenas do alargamento, por via hermenêutica, do que já se encontrava em latência ou potência (mas não expressamente, ou em ato) na vontade e razão legislativas. Pelo contrário, a analogia estende a casos similares o previsto para o caso que se tem como modelo, e se "exporta" para situação tida como similar, mas não a mesma, e não visada pela lei analogicamente aplicada. Ora, no caso, está patente, e mais se tornará ainda, no final das considerações a fazer, que não se trata de aplicar a mesma vontade do legislador como que "imperfeitamente expressa". Pelo contrário: bem ponderadas as coisas, este alargamento analógico, nem por essa via poderia ser feito, porquanto, faleceriam argumentos substanciais. Podendo até dizer-se que a ratio da lei, ponderada, equilibradora de bens jurídicos em presença só alcança precisamente os seus fins numa interpretação declarativa ou enunciativa, próxima da denotação literal da lei, sendo os seus fins subvertidos se se pretender alargar demasiadamente a previsão respetiva. Donde, em conclusão deste aspeto, não apenas se estaria perante uma forma de interpretação proscrita pela lei, no caso (artigo 11.º do Código Civil desde logo), como mesmo que o não estivesse não se poderia (no plano lógico e teleológico) aplicar, in casu, por atentar contra a ratio legis, contra esse "pensamento legislativo" que tem de ter na lei um mínimo de correspondência (artigo 9.º, n.º 2). A lei não disse, no caso, não por deficiente ou lacunosa expressão, mas porque não desejou dizer mais nem menos.

A interpretação extensiva (única em tese admissível, neste tipo de situações) acaba por ser, retomando o horizonte doutrinal de Pires de Lima e Antunes Varela(16), um resgatar do pensamento legislativo, porque as palavras concretamente usadas na lei haviam "atraiçoado" a sua intenção, ao formular a norma. E por isso se afirma que ela minus dixit quam voluit. Mas é uma mera questão de grau, de "quantidade" hoc sensu. Enquanto nas situações de analogia se trata não de mais ou menos, mas de algo já diverso, de um salto qualitativo. Como ocorre na situação presente, não se trata de acrescentar meramente uma classe homóloga de situações que poderiam ter ficado esquecidas, e, assim, recuperar o sentido total e cabal da voluntas legis. De modo algum, e pelo contrário: o salto é tão grande e levaria a tutelar situações tão diversas que feriria, realmente, o cerne da vontade da lei. Sendo até, pelo menos em certa medida, o oposto do que se pretendeu, na clave da ponderação e moderação.

Acresce que o perdão de penas é uma providência que tem apenas efeitos para o passado e nunca para o futuro. Nesta medida, o perdão "não pode aplicar-se como fórmula normativa para o futuro, mas incidir sobre o passado. Neste âmbito, não há uma espécie de indulgência plenária de que se pudessem prevalecer os potenciais infratores. O perdão, uma modalidade do chamado Direito de graça ou de clemência, sendo uma das formas de extinção da responsabilidade criminal (art. 127 CP), quando haja de aplicar-se, não é um salvo-conduto, uma carta que livre da prisão para o futuro, um privilégio de imunidade. Exerce-se sobre factos passados"(17).

E. Do Perdão em causa. Interpretação da Lei

8 - Ora, regressando à Lei de que nos ocupamos, e de acordo com o n.º 1 do citado artigo, "são perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos", esclarecendo o n.º 7 desse normativo que o perdão é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei.

É manifesto que, de acordo com a letra da Lei, o perdão só poderá beneficiar as condenações que já haviam transitado em julgado antes da data da sua entrada em vigor (11.04.2020). Como tal, mesmo que a decisão condenatória tivesse sido proferida antes dessa data, e todos os demais requisitos estivessem preenchidos, não se poderá aplicar o perdão a qualquer condenação cujo trânsito em julgado seja posterior à mesma, tal como resulta de forma inequívoca do citado n.º 7.

Decorre, ainda, da sua interpretação literal que o perdão só se poderá aplicar a quem seja recluso, ou seja, se encontra preso, e não quem é ainda ou apenas suscetível de ser preso, abrangendo, assim, apenas os condenados que se encontram a cumprir pena no interior do estabelecimento prisional, sendo essa circunstância pressuposto imperativo para a aplicação do perdão.

Ademais, tal entendimento encontra-se em absoluta consonância com os objetivos prosseguidos pela presente Lei (a respetiva ratio legis, pelo menos na sua dimensão teleológica e de fundamento), porquanto apenas quem seja recluso sofre do risco acrescido que resulta da concentração de pessoas no interior dos equipamentos prisionais.

Em face disso, afigura-se ser totalmente compreensível e adequado, atendendo ao propósito claro da adoção destas medidas de flexibilização - a diminuição da população prisional - que o condenado tenha de ter a qualidade de recluso. Nem de outra forma se concebe, ao menos prima facie, que possa ser...

No que respeita ao seu período de aplicação, de acordo com o artigo 10.º da Lei em causa, a mesma cessará "a sua vigência na data fixada pelo decreto-lei previsto no n.º 2 do artigo 7.º da Lei 1-A/2020, de 19 de março, o qual declara o termo da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS -CoV-2 e da doença COVID -19".

Nesta medida, a Lei 9/2020 apenas foi revogada pela Lei 86/2021, de 15 de dezembro, tendo, assim, estado em vigor de 11 de abril de 2020 até ao dia 16 de dezembro de 2021.

Ora, inexistem dúvidas de que o perdão em causa se aplica aos condenados que, à data da entrada em vigor desta Lei, se encontrem presos, a cumprir pena em decorrência de uma decisão transitada em julgado anteriormente.

Sucede, contudo, que se pode entender que a Lei não esclarece, de forma direta e expressa, se o perdão se aplica, ou não, aos condenados que, após a entrada em vigor da Lei, vierem a ser detidos para cumprimento de pena, durante o período em que vigorar essa "situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19" [artigo 10.º], não tendo a jurisprudência, quer na 1.ª Instância, quer nos Tribunais da Relação(18), dado uma resposta uniforme à questão.

Aquando da entrada em vigor da Lei em causa, a questão não se colocava com a mesma pertinência atendendo a que, simultaneamente, com a Lei 1-A/2020, de 19 março, e suas ulteriores alterações, foi determinada a suspensão de todos os prazos para a prática de atos processuais não urgentes, o que conduziu, indireta e inevitavelmente, à suspensão da emissão/paralisação do cumprimento dos mandados de detenção para execução da pena, nos casos em que os processos não assumiam natureza urgente.

Em face disso, se, por um lado, com a entrada em vigor da Lei 9/2020, assistiríamos a uma diminuição significativa da população prisional, existiria, a par disso, um número residual de novos reclusos a entrar nos estabelecimentos prisionais.

Sucede, contudo, que, no dia 30 de maio, a referida suspensão dos prazos cessou, tendo o serviço dos tribunais regressado à normalidade, não obstante ainda se manter em vigor a Lei 9/2020.

Nesta medida, foram vários os condenados que vieram a entrar em estabelecimento prisional, dando início ao cumprimento das penas de prisão em que haviam sido condenados, por decisão transitada em julgado antes do dia 11 de abril de 2020, tornando-se, por isso, naturalmente, e para todos os efeitos, "reclusos".

O elemento literal da Lei em causa poderá - pelo menos à primeira vista - ser ambíguo, podendo sustentar-se as duas conceções adotadas pela jurisprudência que se encontram em oposição.

Ora, nos termos do artigo 9.º do Código Civil:

"1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados."

Assim, em conformidade com tal normativo, a letra é não só o ponto de partida da interpretação, mas, também, o seu limite (n.º 2).

Ora, desde logo, atentando no artigo 1.º, n.º 1, alínea a) da Lei 9/2020, o mesmo refere que aquele diploma estabelece, excecionalmente, um perdão parcial ou total de penas de prisão, e não um perdão total, resultando assim expressamente da letra da Lei que este perdão apenas se aplica a parte da pena de prisão e não à sua totalidade.

Ademais, devemos ter presente que, como se referiu, as leis de perdão não admitem qualquer tipo de interpretação moduladora (tal como a extensiva, restritiva, ou analógica), as palavras de tais leis mantêm o chamado "código forte", ou seja, denotativo e não conotativo. Além disso, consubstanciam sempre providências futuras, a par da sua inserção sistemática. Assim sendo, outra não poderá ser a conclusão que não a de que os requisitos determinados no artigo 2.º têm que se encontrar todos verificados no momento da sua entrada em vigor.

De facto, a Lei estabelece de forma clara o marco para aferir do preenchimento dos pressupostos do perdão: o dia 11 de abril de 2020, momento em que produz os seus efeitos.

Assim, e afastado o elenco de crimes que se encontram excluídos da concessão do perdão, a Lei estabelece, sob condição resolutiva, que sejam perdoadas as seguintes penas dos reclusos que, em 11 de abril de 2020, estavam a cumprir pena de prisão:

i) a totalidade da pena fixada na decisão condenatória, em medida igual ou inferior a 2 anos de prisão (artigo 2.º, n.º 1);

ii) o remanescente da pena de duração superior a dois anos de prisão fixada na decisão condenatória, mediante a verificação de dois requisitos cumulativos (art. 2.º, n.º 2): estar já cumprida metade da referida pena fixada na decisão condenatória e desde que o tempo que faltar para o seu cumprimento integral seja igual ou inferior a dois anos de prisão.

Tal significa, necessariamente, que os condenados que não estejam em cumprimento de pena, à data da entrada em vigor da referida Lei, não poderão beneficiar do perdão aí previsto, mesmo que a sua condenação decorra de decisão já transitada em julgado nessa data e que essa Lei ainda se encontre em vigor (em decorrência da "situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19").

Se assim não fosse, qualquer condenado evadido que preenchesse os demais requisitos, apresentar-se-ia no estabelecimento prisional, com vista a beneficiar da concessão do perdão, "o que, para além de absurdo, até porque não haveria aqui expectativas que merecessem ser tuteladas, constituiria uma interpretação da lei contra a sua teleologia e a sua funcionalidade específica"(19).

Aliás, no caso do acórdão recorrido, o condenado apresentou-se voluntariamente para cumprimento da pena, para logo de seguida apresentar um requerimento ao Tribunal de Execução das Penas, com vista a ser declarado o perdão, o que consubstancia uma subversão absoluta dos princípios que subjazem à lei ora em análise.

Ademais, não podemos ignorar que o legislador estabeleceu, de forma totalmente expressa, qual o Tribunal competente para conceder o perdão - o Tribunal de Execução das Penas. Assim, e porque estamos perante um perdão de penas de condenados que já se encontram em reclusão, será este o Tribunal que se encontra em melhores condições para aferir se estão preenchidos os pressupostos legalmente previstos.

Ora, sendo este o tribunal competente para conceder o perdão, e estando assente que para beneficiar do mesmo o condenado teria de estar já em reclusão, então não faria o menor sentido que pudessem ser perdoadas as penas dos condenados que viessem, ulteriormente, a ser presos, pois que seria necessária a emissão e o cumprimento dos mandados de detenção (ou a apresentação voluntária dos condenados no estabelecimento prisional, a qual poderia ser meramente "oportunista"), que o condenado desse entrada nesse local, que a documentação respetiva fosse remetida ao Tribunal de Execução das Penas, tudo simplesmente para que este Tribunal perdoasse a pena e colocasse o recluso em liberdade.

Consubstanciaria, pois, um conjunto absolutamente inútil de atos, do Tribunal da condenação, do órgão de polícia criminal, do estabelecimento prisional e do Tribunal de Execução das Penas. Tal procedimento, aliás, seria totalmente incompatível com a intenção do legislador e que consta da exposição de motivos da Proposta de Lei, já que estaríamos perante uma inaceitável e desnecessária circulação de pessoas.

Se a intenção legislativa fosse que não se desse início ao cumprimento de qualquer pena, perdoando-se as condenações que se integrassem no normativo em causa, então tal estaria expressamente previsto. Legis quo volet dixit, quod non volet tacet.

Nesse caso, teria sido instituído, a par deste regime, uma competência paralela, atribuindo ao Tribunal da condenação competência para conceder um perdão total de penas, impedindo assim a entrada no estabelecimento prisional de novos reclusos, o que, obviamente, não sucedeu. Como tal, o propósito legislativo não foi, em nenhum momento, o de conceder um perdão de penas generalizado, nem impedir a execução de penas de prisão que, ulteriormente, viessem a ser decretadas.

Acresce que, da discussão na generalidade do projeto de Lei apresentado, decorre uma previsão da quantidade de reclusos abrangido por esta medida (projeção aproximada atendendo a que, naturalmente, esse número sempre dependeria do tempo em que a referida Lei estivesse a vigor), conjetura que nunca poderia sequer ser feita se visasse incluir novas reclusões, por ser impossível prever o número de mandados cumpridos positivamente ou apresentações voluntárias que teriam lugar durante esse período temporal.

O equilíbrio adotado entre a proteção da saúde e da vida de todos aqueles que se encontram no interior do estabelecimento prisional e o respeito pelas vítimas e a segurança e manutenção da ordem pública foi alcançado mediante o estabelecimento desses mesmos requisitos, naquele marco relevante - a sua entrada em vigor, em 11 de abril de 2020. A inclusão de reclusões posteriores vai claramente muito além dos objetivos legais, de tal forma que também a alteração ao projeto de Lei apresentado pelo PAN (no sentido de serem abrangidas as decisões que viessem a transitar em julgado enquanto vigorasse o estado de emergência) foi rejeitado, por se haver certamente entendido comprometer o mencionado equilíbrio.

Nesta medida, é imperativo concluir que a Lei 9/2020 pressupõe, sempre, a qualidade de reclusos dos destinatários, que tem de estar já verificada no momento da sua entrada em vigor, partindo desse pressuposto prévio, não podendo o intérprete recorrer a qualquer tipo de interpretação extensiva.

Assim, das razões que conduziram à sua adoção e da forma como a referida Lei foi "arquitetada", resulta indispensável que a execução da pena se encontre já em curso, a fim de poderem ser aplicadas as medidas que aí estão previstas. Assim, "de fora deste perdão ficarão ainda aqueles que hajam sido condenados por decisão já transitada em julgado aquando do início de vigência da Lei 9/2020, 11.04.2020, mas que nessa data ainda não haviam ingressado num estabelecimento penitenciário para iniciar a execução da pena de prisão que lhes foi aplicada."(20)

Uma interpretação contrária a esta seria totalmente incompatível com o seu espírito, indo além daquilo que o legislador pretendeu e do que seria necessário para "minimizar o risco decorrente da concentração de pessoas no interior dos equipamentos prisionais, assegurar o afastamento social e promover a reinserção social dos reclusos condenados"(21).

De referir, ainda, que no artigo 6.º da Lei 9/2020 consta que "em qualquer das circunstâncias que, nos termos da presente lei, ditam o regresso do condenado ao meio prisional, há lugar ao cumprimento prévio de um período de quarentena de 14 dias, nos termos que tenham sido determinados pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais" (destaque nosso).

Ora, tal normativo pressupõe de forma nítida que o condenado já havia estado recluído pelo que, se assim não fosse, se falaria de ingresso e não de regresso.

Por outro lado, não exclui este entendimento a necessidade legal de se esclarecer que apenas poderia ser aplicado o perdão às decisões transitadas em julgado à data da entrada em vigor da Lei, referência que poderia ser desnecessária atendendo a que o condenado seria sempre já recluso. Contudo, caso tal menção não fosse feita, o perdão abrangeria quem, aquando da entrada em vigor da Lei, estivesse em prisão preventiva, situação que o legislador quis claramente afastar.

Ademais, o disposto no artigo 10.º não impõe uma diferente interpretação, concordando-se com o entendimento no sentido que "esta lei cessa a sua vigência com a declaração do termo da "situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19" (artigo 10-º da Lei). Mas, no que aqui nos interessa, as situações que podem ocorrer na sua vigência são situações relativas ao cumprimento da pena por parte dos reclusos que venham a impor a aplicação do perdão, como o caso de na vigência desta lei o recluso ter atingido o marco de dois anos de prisão por cumprir que lhe permite beneficiar do perdão concedido pelo n.º 2 do artigo 2.º desta lei. O recluso deve, naturalmente, beneficiar do perdão e ser libertado no dia em que atingir tal marco»(22), pelo que o perdão continuará a ser concedido, enquanto a presente Lei se mantiver em vigor, aos condenados que já se encontravam presos em 11 de abril de 2020, no momento em que estiverem verificados os pressupostos de natureza temporal previstos no artigo 2.º, n.º 2.

Em face desta diferença de tratamento, entre quem era recluso à data da entrada em vigor da Lei 9/2020 e de quem apenas foi preso ulteriormente a esse momento, pode questionar-se a existência de uma violação do princípio da igualdade. Prevê, assim, o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa que:

"1 - Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

2 - Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual."

"O princípio da igualdade é um corolário da igual dignidade de todas as pessoas, sobre a qual gira, como em seu gonzo, o Estado de Direito democrático (cf. artigos 1.º e 2.º da Constituição).

A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado [...] O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado, quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante"(23).

Ora, qualquer medida de amnistia, entendida em sentido amplo, pode remeter, necessariamente, para uma certa derrogação do princípio da igualdade (ao menos num seu entendimento não complexivo, que abranja ou integre já essas exceções, aliás clássicas), uma vez que há sempre um grupo limitado de delitos que deixa de ser punido, ou um conjunto de penas que deixam de ser cumpridas, mantendo-se os demais.

"Todavia, no domínio das medidas de clemência, o princípio da igualdade deverá ser entendido num sentido específico: ele não impede a lei de aprovar regras especiais, dirigidas a certas categorias de ilícitos e de penas, mas sim de aprovar regras diferentes para situações objectivamente iguais. O problema consiste, pois, em avaliar as situações que poderão ser consideradas especiais"(24).

Assim, e como tem sido entendido pelo Tribunal Constitucional, «a diversidade de tratamento que se exprime em leis especiais e excepcionais é admissível se, e enquanto, seja possível afirmar, objectiva e racionalmente, que a sua previsão, ainda que em via concreta, surja como um carácter de tal modo próprio que a permita destacar "da disciplina geral"»(25).

Desta forma, «a jurisprudência do Tribunal Constitucional afirma que o princípio da igualdade nas leis de amnistia e de perdão genérico "só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis" (Acórdão 42/95), entendendo que as diferenças de tratamento legal traduzem uma diferenciação arbitrária apenas quando não sejam concretamente compreensíveis ou quando não seja possível encontrar uma justificação razoável para a diferenciação, ligada à natureza das coisas (Acórdão 152/95)"». Nesta medida, "a proibição de discriminação nos termos do artigo 13, n.º 2, da Constituição da República, não significa uma igualdade absoluta em todas as situações, mas apenas exige que as diferenciações de tratamento sejam materialmente fundadas e não tenham por base qualquer motivo constitucionalmente improprio. As diferenciações de tratamento podem ser legitimas quando se fundamentarem numa distinção objectiva e se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas a realização da respectiva finalidade"(26).

Como tal, e nesta linha de entendimento, "embora a concessão do perdão genérico [...] seja efeito de um acto político, que pode ter por causa as mais diversas motivações [...], como sejam a magnimidade por occasio publicae laetitia excepcional, razões de política geral de apaziguamento ou outras, de correcção de determinadas ponderações anteriores efectuadas pelo direito ou do modo da sua aplicação pela jurisprudência ou pela administração, ela expressa-se através de uma lei em sentido material.

Ora, cabendo a sua edição na competência do legislador ordinário, tomada no campo da política criminal, não pode deixar de se lhe reconhecer discricionariedade normativo-constitutiva na conformação do seu conteúdo."(27)

Nesta medida, "o Tribunal Constitucional vem entendendo, com significativa reiteração, que, nos óbvios parâmetros do Estado de direito democrático, a liberdade de conformação legislativa goza de alargado espaço onde têm lugar preponderantes considerações não necessariamente restritas aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado, mas também outras ditadas pela conveniência pública que, em última instância, entroncam na raison d'Etat"(28).

Assim, o legislador da clemência tem liberdade de estabelecer os critérios e a forma de determinar o perdão, mantendo uma significativa margem de discricionariedade, de forma a cumprir os objetivos que lhe estão subjacentes. Como tal, "cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger, quer a medida do perdão de penas - o quantum do perdão -, quer, em princípio, as espécies de crimes ou infracções a que diga respeito a pena aplicada e perdoada, quer a sujeição ou não a condições, desde que o faça de forma geral e abstracta, para todas as pessoas e situações nela enquadráveis"(29).

No caso de que nos ocupamos, o perdão abrange todas as pessoas que são condenadas pela prática de determinados tipos de crime, fixando a Lei, de forma geral e abstrata, qual o momento temporalmente relevante para aferição dos pressupostos fixados.

Como tal, todos os reclusos, a cumprir uma pena até 2 anos de prisão, ou cujo termo da pena ocorra dentro desse universo temporal, desde que não tenham praticado determinados tipos criminais que são excluídos, cuja decisão tenha transitado em julgado antes do dia 11 de abril de 2020, encontram-se numa situação totalmente semelhante quanto ao benefício da clemência. E essa identidade fáctica vem a ser coberta pelo mesmo manto de clemência, não constituindo um bloco de legalidade avesso ao geral da ordem jurídica. Importa, evidentemente, entender a igualdade não de forma mecânica (não no hodierno sentido de Garbellini, mas no tradicional anglo-saxónico, desde Roscoe Pound) antes em termos hábeis e geométricos, com geometria variável de acordo com racionalidades presentes de há séculos na ordem jurídica, como as formas de "graça".

Assim, inexiste qualquer critério que possa ser arbitrário e irrazoável. Com o objetivo de diminuir a população prisional - e assim diminuir o risco de contágio - o legislador estabeleceu um critério geral e abstratamente aplicável a todos os reclusos que se encontravam na mesma situação.

Naturalmente que, tal como em todas as leis que estabeleçam amnistia ou perdão, haverá quem deixe de ser abrangido por não preencher, apenas, alguma ou algumas das circunstâncias legalmente estabelecidas, eventualmente apenas por não cumprir os pressupostos em termos temporais, o que pode gerar um sentimento de incompreensão.

Contudo, tal não é violador do princípio da igualdade. É estabelecido um critério, geral e abstrato, em que todas as pessoas que reúnem as condições legalmente previstas podem ser abrangidas, sendo que a diferenciação operada se justifica pelo motivo subjacente à aprovação do referido diploma legal.

De facto, pretendeu-se encontrar um equilíbrio entre as necessidades de saúde pública e as de prevenção, especial e geral, que subjazem ao cumprimento das penas, pelo que o legislador determinou que apenas quem já estivesse no interior do estabelecimento prisional (e, por isso, que já tivesse cumprido parte da pena em que foi condenado) fosse abrangido. É, pelo simples senso comum, um requisito absolutamente lógico, compreensível, razoável.

As medidas adotadas são pautadas por critérios de equidade e proporcionalidade sendo que, necessariamente, deixarão de fora da sua aplicação condenados apenas em virtude do elemento temporal, seja porque a sua decisão apenas transitou em julgado após o dia 11 de abril de 2020, seja porque apenas foram presos depois dessa data. Se tais critérios apertados não fossem estabelecidos, tal conduziria a situações em que a aplicação da pena desapareceria totalmente - condenações absolutamente esvaziadas de aplicação ou prisões com o único objetivo da libertação - hipóteses que, claramente, foram postas de lado pelo legislador, que entendeu não ser necessário adotar medidas tão intensas para eliminar os riscos de contágio.

Desta forma, a Lei aprovada, nos termos em que o foi, revela-se adequada ao objetivo que visava, sendo razoável a sua circunscrição apenas a quem já se encontrava detido em cumprimento de pena de prisão definitiva, não havendo qualquer distinção entre quem se encontrava dentro das mesmas categorias essenciais - presos em cumprimento de pena em 11 de abril de 2020 e condenados ainda em liberdade nessa data. A Lei estabelece os pressupostos de que depende a aplicação da medida de graça do perdão, sendo aplicável a todos quantos os preencham. Inexiste qualquer "desigualdade de tratamento arbitrária por materialmente infundada, desprovida de fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional"(30).

Como tal, "sempre se poderá dizer que o legislador previu esta situação e que, com o alívio que o perdão provocou na lotação dos estabelecimentos prisionais, será possível acomodar aqueles que, excecionalmente, iniciem o cumprimento da sua pena, sem colocar em risco a sua saúde ou a saúde dos que lá já se encontram. A situação dos que entram depois nunca será igual à situação que preexistia a aplicação do perdão"(31).

Não se verifica, por isso, qualquer violação do princípio da igualdade.

Assim, não tendo o legislador optado pela via de perdão de pena dos condenados, não poderá o intérprete alargar esse regime, concedendo o perdão a quem foi preso após o dia 11 de abril de 2020.

IV

Dispositivo

Em face do exposto, o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, confirmando o acórdão recorrido, fixa a seguinte jurisprudência:

«O perdão de penas de prisão previsto no artigo 2.º da Lei 9/2020, de 10 de abril, verificados que sejam os demais requisitos legais, só pode ser aplicado a condenados que sejam reclusos à data da sua entrada em vigor.»

Oportunamente, cumpra-se o disposto no artigo 444.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Sem custas.

(1) Apud CUNHA LIMA, Ronaldo/LIMA DE OLIVEIRA, Leonardo Cunha, Princípios e Teorias Criminais (Verbetes), Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 17.

(2) Recomendação 4/B/2020.

(3) FIGUEIREDO DIAS, Jorge de, Direito Penal Português, Parte Geral, As consequências jurídicas do crime, Aequitas Editorial Notícias, 1993, p. 685.

(4) Assento 2/2001, de 25 de outubro de 2001, proferido no âmbito do processo 3209/00-3.

(5) GONÇALVES, Maia, As medidas de graça no Código Penal e no projecto de revisão, "Revista Portuguesa de Ciência Criminal", Aequitas/Editorial Notícias, Ano 4, Fasc. 1, janeiro-março 1994, p. 7.

(6) Neste sentido, FIGUEIREDO DIAS, Jorge de, Op. cit., p. 687.

(7) GONÇALVES, Maia, Op. cit., p. 10.

(8) FIGUEIREDO DIAS, Jorge de, Op. loc. cit..

(9) CANOTILHO, Mariana e PINTO, Ana Luísa, As medidas de clemência na ordem jurídica portuguesa, Estudos em Memória do Conselheiro Luís Nunes de Almeida, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 336 e 337.

(10) Idem, Ibidem, p. 338.

(11) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de dezembro de 1977, in "Boletim do Ministério da Justiça", n.º 272, citado no Assento 2/2001, de 25 de outubro de 2001, proferido no âmbito do processo 3209/00-3.

(12) Assento 2/2001, de 25 de outubro de 2001, proferido no âmbito do processo 3209/00-3.

(13) AGUILAR, Francisco, Amnistia e Constituição, Coimbra, Almedina, 2004, p. 119, n. 557.

(14) FERRARA, Francesco, Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, Arménio Amado, 3.ª edição, 1978, p. 147.

(15) FERREIRA DA CUNHA, Paulo, Teoria Geral do Direito. Uma Síntese Crítica, Oeiras, A Causa das Regras, 2018, p. 367.

(16) Cf. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, João de Matos, Código Civil Anotado, reimp. da 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2010, nota ao artigo 21.º

(17) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de abril de 2021, processo 628/17.0PYLSBA.S1, disponível em www.dgsi.pt.

(18) Entendem que se aplica a uma situação de reclusão ulterior, nomeadamente, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7 de outubro de 2020, processo 719/16.4TXPRT-F.C1, de 28 de outubro de 2020, processo 10/18.1TXCBR-C.C1, de 16 de dezembro de 2020, processo 430/20.1TXCBR-A.C1, de 9 de junho de 2021, processo 880/20.3TXPRT-A.C1, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 1 de junho de 2021, processo 465/21.7TXLSB-B.L1-5, Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 28 de junho de 2021, processo 311/15.0GAARC.P2, e de 21 de outubro de 202, processo 150/14.6GBILH.P2, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Contrariamente, decidiram que o perdão era inaplicável aos condenados presos após a entrada em vigor da Lei 9/2020, nomeadamente, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, de 24 de novembro de 2020, processo 13/15.8PTEVR.E1, de 9 de Fevereiro de 2021, processo 1346/10.5TXCBR-T.E1, de 22 de junho de 2021, processo 299/21.9TXLSB-C.E1, de 21 de setembro de 2021, processo 6144/10.3TXLSB-T.E1, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14 de outubro de 2020, processo 259/18.7GLSNT.L1-3, 9 de dezembro de 2020, processo 690/16.2PFAMD.L3-3, de 26 de janeiro de 2021, processo 1665/13.9TXLSB-O.L1-5 e de 28 de junho de 2021, processo 836/14.5PASNT-B.L1-9, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

(19) PEREIRA PINTO, Vítor, O perdão previsto no artigo 2.º da Lei 9/2020 (Com sugestão de promoções a efectuar e o ensaio de algumas notas interpretativas), "SIMP - Actualidade" - 13 de abril de 2020, p. 5.

(20) BRANDÃO, Nuno, A libertação de reclusos em tempos de COVID-19. Um primeiro olhar sobre a Lei 9/2020, de 10/4, "Julgar online", abril de 2020, 1, pp. 6 e 7. Neste sentido, também, ARAÚJO, Sara, A Modificação da Execução da Pena de Prisão, à luz do art. 118.º e seguintes do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade: Um benefício encapotado pela reclusão, Dissertação de Mestrado na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, referindo que "[...] estas medidas surgem com o objetivo claro de evitar focos e riscos de contágio na população prisional e, por isso, o enfoque das mesmas aponta para execuções de pena já em curso, à data da entrada em vigor da presente lei. Assim, afigura-se que a aplicação da Lei 9/2020, de 10 de Abril exige duas premissas: i) o trânsito em julgado da decisão condenatória e ii) que a execução da pena já se encontre em curso".

(21) Exposição de Motivos da Proposta de Lei 23/XIV, página 2.

(22) PEREIRA PINTO, Vítor, Op. cit., p. 5.

(23) Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 39/88, de 9 de fevereiro de 1988, processo 136/85, 2.ª Secção, Relatado pelo Conselheiro Messias Bento. No mesmo sentido, o Acórdão Tribunal Constitucional n.º 149/93, de 28 de janeiro de 1993, processo 75/89, 1.ª Secção, Relatado pelo Conselheiro António Vitorino, onde se escreveu que "da assinalada jurisprudência decorre que, vistas as coisas na óptica da igualdade em sentido material, e enquanto princípio vinculador do próprio legislador, se exige que a lei dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e trate de forma distinta o que for dissemelhante. O princípio da igualdade não comporta, pois, uma proibição absoluta de discriminações no tratamento legal de uma dada matéria, mas tão somente que essas discriminações sejam arbitrárias ou irrazoáveis, isto é, desprovidas de fundamento material bastante".

(24) CANOTILHO, Mariana/PINTO, Ana Luísa, Op. cit., p. 340.

(25) AGUILAR, Francisco, Op. cit., p. 115.

(26) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de julho de 1987, processo 038984, disponível em www.dgsi.pt.

(27) Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 488/2008, de 7 de outubro de 2008, processo 35/08, 2.ª Secção, Relatado pelo Conselheiro Benjamim Rodrigues.

(28) Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/02, de 31 de Janeiro de 2002, processo 725/01, 3.ª Secção, Relatado pelo Conselheiro Tavares da Costa.

(29) Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 488/2008, de 7 de Outubro de 2008, processo 35/08, 2.ª Secção, Relatado pelo Conselheiro Benjamim Rodrigues.

(30) Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 3 de fevereiro de 2021, processo 190/20.6TXCBR-B.C1, disponível em www.dgsi.pt.

(31) Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 10/20.

Supremo Tribunal de Justiça, 15 de dezembro de 2022. - Paulo Ferreira da Cunha (relator) - Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida - Eduardo Loureiro - António Gama - Sénio Alves - João Guerra - Ana Maria Barata de Brito - Orlando M. J. Gonçalves - Maria do Carmo Silva Dias - Pedro B. Ferreira Dias - Leonor Furtado - Teresa Almeida - Ernesto Carlos dos Reis Vaz Pereira - Helena Moniz - José Luís Lopes da Mota - Maria da Conceição Simão Gomes - Nuno António Gonçalves.

116101977

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/5219791.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1993-01-22 - Decreto-Lei 15/93 - Ministério da Justiça

    Revê a legislação do combate à droga, definindo o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas.

  • Tem documento Em vigor 1995-03-15 - Decreto-Lei 48/95 - Ministério da Justiça

    Revê o Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, e procede à sua republicação.

  • Tem documento Em vigor 2001-11-14 - Assento 2/2001 - Supremo Tribunal de Justiça

    Fixa a seguinte jurisprudência: a alínea d) do artigo 7º da Lei nº 29/99, de 12 de Maio, abrange os crimes puníveis com pena de prisão não superior a 1 ano, com ou sem multa complementar, com exclusão dos cometidos através da comunicação social.(Proc. nº 3209/00-3)

  • Tem documento Em vigor 2020-03-19 - Lei 1-A/2020 - Assembleia da República

    Medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19

  • Tem documento Em vigor 2020-04-10 - Lei 9/2020 - Assembleia da República

    Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19

  • Tem documento Em vigor 2020-05-29 - Lei 16/2020 - Assembleia da República

    Altera as medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia da doença COVID-19, procedendo à quarta alteração à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, à primeira alteração à Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, e à décima segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março

  • Tem documento Em vigor 2021-12-15 - Lei 86/2021 - Assembleia da República

    Cessação de vigência do regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia COVID-19, aprovado pela Lei n.º 9/2020, de 10 de abril

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