Parecer (extrato) n.º 31/2019
Sumário: Regime de Segurança Social da Pesca Artesanal e da Pesca Local.
1.ª A atividade da pesca sempre gozou de um peculiar regime de segurança social, devido à sua especificidade, associada aos inerentes riscos para os seus profissionais, à sazonalidade da pescaria e ao consequente espetro da pobreza, que ensombrava os pescadores e as suas famílias;
2.ª No Estado Novo, sob a égide da Junta Central das Casas dos Pescadores, os armadores e proprietários singulares de embarcações de pesca, assim como os detentores de quotas ou, a qualquer título, participantes do capital de empresas ou sociedades de pesca, que exercessem, pessoal e efetivamente, a profissão de pescador, seriam inscritos como sócios efetivos, sem prejuízo de a respetiva empresa, ou eles próprios individualmente considerados, estarem, também, inscritos como sócios contribuintes e de efetuarem o pagamento das correspetivas e distintas contribuições, seja para a Casa dos Pescadores, seja para a Junta Central;
3.ª Com a publicação do Decreto 420/71, de 30 de setembro, as contribuições, a cargo dos trabalhadores que exercessem a sua atividade na profissão de pesca artesanal, resultavam da aplicação de uma taxa sobre o produto bruto da pesca realizada pelas companhas, sendo cobradas, no ato da venda do pescado, pelos serviços de vendagem;
4.ª A base de incidência contributiva destes trabalhadores da pesca local e costeira é, desde a instituição do regime, uma remuneração convencional, por ser fixada administrativamente, apenas para efeitos de obrigação contributiva da segurança social e, qua tale, não se mostra associada à remuneração efetivamente paga ao trabalhador pela sua entidade empregadora como contrapartida do exercício da atividade profissional;
5.ª Efetivamente, com a revogação do citado Decreto 420/71, pela Lei 110/2009, de 16 de setembro, que aprovou o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, o legislador manteve o regime anterior e consagrou o peculiar sistema contributivo que fora implementado pelo Decreto 420/71, em que a base de incidência contributiva se reportava ao valor bruto do pescado vendido em lota;
6.ª A "Regulamentação de Trabalho da Pesca Artesanal na Póvoa de Varzim e Vila do Conde" editada pelo Governo da República Portuguesa, em 8 de fevereiro de 1975 e, posteriormente, o contrato coletivo de trabalho, celebrado em 14 de maio de 1979, entre a Associação do Norte dos Armadores da Pesca Artesanal e os Sindicatos dos Pescadores da Póvoa de Varzim e de Vila do Conde, publicada no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 31/79, de 22 de agosto, vieram reconhecer as categorias profissionais de mestre e de pescador e fixar a remuneração do mestre-armador, sucessivamente, em duas e em três partes da receita líquida;
7.ª No regime pretérito, incumbia à Caixa de Previdência e Abono de Família dos Profissionais de Pesca e, após, aos ex-Centros Regionais de Segurança Social a aplicação do regime, designadamente, proceder ao registo das "partes" atribuídas a cada pescador e, só no caso de não terem sido indicadas, o valor deveria então ser igualmente distribuído por todos os trabalhadores da embarcação que tivessem prestado atividade nesse mês;
8.ª Por razões não concretamente apuradas, ocorreram erros e omissões na elaboração dos Boletins P3, com base nos quais era preenchido o modelo P4, correspondente à Folha de remunerações respeitante aos profissionais da pesca local e costeira, erros que obstaram a que os respetivos registos de remunerações tivessem sido corretamente efetuados, de acordo com as leis em vigor, as convenções coletivas vinculativas aplicáveis e os usos locais sedimentados, nas localidades referidas na conclusão 6.ª e no âmbito da referida atividade piscatória;
9.ª De acordo com os elementos disponibilizados, não padece do vício de violação de lei a deliberação do Conselho Diretivo do Instituto da Segurança Social, I. P., tomada em 12 de abril de 2016, que determinou a correção dos registos existentes nos históricos dos beneficiários aí identificados, de acordo com a Convenção Coletiva de Trabalho do Setor e mais ordenou o consequente recálculo do montante das pensões que lhes tinham sido atribuídas, retroagindo a data da reavaliação a maio de 2014;
10.ª À luz da posição que foi sufragada, relativamente à primeira questão formulada, impõe-se a asserção de que o Instituto da Segurança Social, I. P. poderá anular oficiosamente a Deliberação 243/2018, de 6 de dezembro, do respetivo Conselho Diretivo, que revogou a deliberação referida na conclusão antecedente, por se mostrar ferida de ilegalidade, independentemente do eventual términus dos respetivos prazos de anulação administrativa ou de impugnação judicial, por banda dos beneficiários interessados, conforme permitido pelo artigo 168.º, n.º 5, do Código do Procedimento Administrativo de 2015;
11.ª A lei põe ao alcance do Instituto da Segurança Social, I. P. uma amálgama de opções de atuação que poderão ser por si, casuisticamente, selecionadas e adotadas para melhor prosseguir o interesse público na reposição da legalidade, mormente, dos princípios, valores e normas jurídicas violadas;
12.ª O que traduz a necessidade de o Instituto da Segurança Social, I. P. adotar as concretas medidas que mais adequadamente, não só realizem o interesse público, como também permitam alterar favoravelmente a esfera jurídica dos interessados atingidos pela Deliberação 243/2018, ora reputada inválida;
13.ª Assim, com esse objetivo, incumbe-lhe, v.g., proceder à anulação dos atos consequentes, eventualmente praticados, e, como decorrência, repor a situação dos beneficiários inseridos nesse universo, de modo a colocá-los na situação que existiria se a mesma Deliberação não tivesse sido praticada, atuação essa a materializar através da prática de novos atos de sentido diverso ou contrário aos atos antecedentes, porque lesivos dos seus direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos;
14.ª E, em consequência, poderá e deverá repristinar a Deliberação anterior, de 12 de abril de 2016, por si revogada, conforme prescreve a norma do n.º 4 do artigo 171.º do Código do Procedimento Administrativo;
15.ª Todavia, se acaso se mostrarem pendentes ações administrativas de impugnação dessa Deliberação 243/2018 e/ou ações de condenação à prática do ato devido, o Instituto da Segurança Social, I. P. deverá ter em conta e observar o concreto prazo limite, previsto para a anulação administrativa, consagrado no n.º 3 do artigo 168.º, reportado ao momento processual do encerramento da discussão da causa em 1.ª instância;
16.ª Se a anulação administrativa dos atos inquinados com a invalidade se revelar, ainda, tempestiva e se, além disso, concorrerem os demais condicionalismos exigidos pela lei, a acrescer à anulação administrativa desses atos, deverá o Instituto da Segurança Social, I. P., em obediência ao imperativo inserto no n.º 1 do artigo 172.º, anular os hipotéticos atos administrativos consequentes e, obviamente, reconstituir a situação que existiria se a deliberação anulada não tivesse sido praticada, bem como, sendo caso disso, dar cumprimento aos deveres que, com fundamento nesse ato, não tenha observado, por referência à situação jurídica e de facto existente no momento em que deveria ter atuado;
17.ª Em ordem ao cumprimento desse dever legal, ao abrigo do preceituado no n.º 2 do mesmo preceito, o ISS, I. P. está legalmente legitimado a praticar atos com efeitos ex tunc, assistindo-lhe, outrossim, o dever de anular, reformar ou substituir os atos consequentes, sem dependência de prazo, e alterar as situações de facto entretanto constituídas, se se revelarem inconciliáveis com a necessidade de reconstituir a situação hipotética que supostamente existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado.
https://www.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/pp2019031.pdf
Este parecer foi votado na sessão do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 27 de fevereiro de 2020.
João Alberto de Figueiredo Monteiro - Maria da Conceição Silva Fernandes Santos Pires Esteves (Relatora) - Maria de Fátima da Graça Carvalho - Eduardo André Folque da Costa Ferreira - João Eduardo Cura Mariano Esteves - Maria Isabel Fernandes da Costa - João Conde Correia dos Santos.
Este parecer foi homologado por despacho de 4 de outubro de 2021, de Sua Excelência a Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social.
21 de outubro de 2021. - O Secretário da Procuradoria-Geral da República, Carlos Adérito da Silva Teixeira.
314667768