Acórdão
(processo 3119)
Acordam na Secção de Jurisdição Social do Supremo Tribunal de Justiça:
1 - O Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil, com sede em Lisboa, vem propor acção especial de interpretação de cláusulas de convenções colectivas de trabalho contra TAP - Transportes Aéreos Portugueses, E. P., com sede em Lisboa, em relação às cláusulas 57.ª e 71.ª do acordo de empresa publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, 1.ª série, de 15 de Março de 1985.
O A. alegou a sua interpretação dessas cláusulas e a R., por sua vez, alegou a sua, divergindo da interpretação do A.
No despacho saneador foi proferida decisão, acolhendo a interpretação das cláusulas feita pelo sindicato-autor.
Veio a R. interpor recurso de apelação e a Relação de Lisboa, por douto acórdão, confirmou a decisão da 1.ª instância.
De novo inconformada, vem a R. com recurso de revista para este Supremo Tribunal.
O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto emite douto parecer no sentido de ser negada a revista.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
2 - Vejamos o teor das cláusulas em apreciação:
Cláusula 57.ª
Período de repouso
1 - Salvo o disposto no número seguinte, o período de repouso de um tripulante terá a duração mínima igual ao maior dos dois valores seguintes: 1,5 do período de serviço ou dez horas.
2 - Tratando-se de serviços de voo em que a variação de longitude entre os locais de início e de chegada seja igual ou superior a 60º, o período de repouso terá a duração igual ao maior dos dois valores seguintes: 1,5 do período de serviço de voo ou vinte horas.
3 - No regresso à base após a execução de um serviço de voo abrangido pelo disposto no número anterior, o tripulante beneficiará de quarenta e oito horas de período de repouso, incluindo dois períodos nocturnos de repouso consecutivos.
A dúvida suscitada é na interpretação do n.º 3 da cláusula, sobre o período de repouso a conceder ao tripulante, por haver divergência entre as partes quanto ao que deve entender-se por «regresso à base após a execução de um serviço de voo com variação de longitude igual ou superior a 60º».
Cláusula 71.ª
Regeneração
1 - A empresa deve assegurar a cada tripulante em efectivo serviço de voo, salvo renúncia expressa deste, um período de regeneração de 14 dias por ano, nos quais podem ser englobados quatro períodos de folga semanal acumulados.
2 - O período de regeneração será marcado entre 1 de Maio e 31 de Outubro, salvo conveniência em contrário do tripulante ou se metade das férias desse ano, pelo menos, forem marcadas naquele mesmo período.
A dúvida suscitada é quanto à alteração ou interrupção do período de regeneração pela entidade patronal depois de marcado e se tal pode ser feito sem acordo do tripulante.
3 - Antes de procurarmos interpretar as cláusulas questionadas, recordemos os princípios que devem ser observados na interpretação da lei, como na interpretação de qualquer norma, de acordo com a doutrina:
«A lei deve ser entendida como se atrás dela estivesse não a entidade real histórica - indivíduo ou grupo de indivíduos que a produziu -, mas um certo legislador abstracto, convencional - um legislador razoável, quer na recolha da substância legal, quer na sua formulação técnica», no entender de Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 2.ª ed., p. 103.
«O sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei», como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, 1.º vol., 1967, p. 16.
«No que respeita à interpretação jurídica, dissemos que ela visa também, através de uma exteriorização, apurar um sentido. Há de característico a exteriorização de que se parte sem uma fonte, e o resultado que se procura atingir representar uma norma. Estamos no domínio daquilo que Betti chama interpretação em função normativa», de acordo com José de Oliveira Ascensão, em O Direito - Introdução e Teoria Geral, 2.ª ed., p. 342.
E segundo este último autor, ob. cit., pp. 360 a 367, na interpretação da lei devem considerar-se os seguintes elementos:
1) O elemento gramatical ou literal;
2) Os elementos lógicos, que são:
a) O sistemático, que tem em conta a unidade do sistema jurídico;
b) O histórico, constituído por precedentes normativos, trabalhos preparatórios e occasio legis;
c) O teleológico, que é a justificação social da lei.
4 - Procuraremos agora interpretar as cláusulas em discussão, de acordo com a orientação resultante da doutrina citada.
A) Interpretação da cláusula 57.ª, n.º 3:
Sustenta a ré-recorrente que o período de repouso fixado neste n.º 3 da cláusula 57.ª não tem de ser gozado no regresso à base - Lisboa se o tripulante cessou funções noutra escala e daí regressou à base como passageiro noutro voo posterior.
Sustentam os autores-recorridos que tal período de repouso tem de ser gozado no regresso à base - Lisboa, tenha ou não havido termo de voo noutra escala, donde o tripulante regressou à base como passageiro.
Esta segunda solução foi a adoptada quer na 1.ª instância, quer na Relação.
O problema suscitou-se com o voo, ultimamente criado, Lisboa-Terceira-Los Ângeles-Terceira-Lisboa, em que a recorrente TAP pretendeu que o repouso seria gozado na Terceira, no regresso de Los Ângeles, vindo depois os tripulantes como passageiros para Lisboa, sem direito a novo repouso.
A interpretação feita pela recorrente, com base no elemento gramatical da cláusula, não colhe.
Dizer-se «no regresso à base [...] beneficiará de repouso» não significa o mesmo que dizer-se «após o regresso à base [...] beneficiará de repouso», não será exacto.
Parece ser antes ao contrário, «no regresso à base» pretende antes dizer-se «após o regresso à base», pois não é aceitável interpretar-se no sentido de o repouso ser gozado «durante o regresso à base», como pretende a recorrente.
De resto, a cláusula 56.ª é clara ao distinguir repouso fora da base e repouso na base, sendo esta última a residência do tripulante.
Em defesa da sua tese argumenta ainda a recorrente que com o repouso na Terceira ficam satisfeitas as prescrições médicas sobre as condições físicas dos tripulantes, com base em informação da Direcção-Geral da Aviação Civil junta aos autos.
Só que o problema poderá ficar resolvido quanto às condições físicas dos tripulantes, mas não ficar resolvido quanto às condições psíquicas dos mesmos tripulantes, já que na respectiva residência é que cada um descansa melhor. E aqui entra o elemento interpretativo teleológico.
E a letra da lei (ou da cláusula) leva à conclusão de tal repouso ser devido após o regresso à base e para ser gozado nessa base.
Concordamos, assim, com a interpretação feita, tanto na 1.ª instância como na Relação, quanto a esta cláusula 57.ª, n.º 3.
B) Interpretação da cláusula 71.ª:
Refere-se esta cláusula a concessão de um período normal de regeneração, que é um período de descanso, de dispensa de trabalho.
Logo daí resulta que se poderá considerar outro período de férias, ainda que diferente das férias, por ser mera concessão e ser renunciável.
Entende a recorrente que esse período de regeneração é um período de férias complementares, não impostas obrigatoriamente pela lei, e se esta prevê a sua alteração e interrupção, por interesses da empresa, quanto às férias obrigatórias, não se compreenderia que tal alteração e interrupção não fossem possíveis, nas mesmas condições, quanto ao período de regeneração.
Continua a argumentar a recorrente que, se o período de regeneração é férias, por analogia deve aplicar-se o regime de alteração e interrupção das férias por este não estar previsto quanto à regeneração, e a inclusão do período de regeneração na mesma secção em que se incluíram as férias reforça esta argumentação.
Se o período de regeneração não é de férias, tem menor categoria e não se vê razão para que não seja alterado por interesses da empresa, quando as férias o podem ser.
Esta argumentação é sólida e parece-nos de acordo com a lógica e as regras da interpretação, recorrendo aqui ao elemento sistemático, que tem em conta a unidade do sistema jurídico.
Em contrário, argumentam os autores-recorridos (o Sindicato) que constava de anterior acordo de empresa disposição expressa quanto ao período de regeneração, prevendo se lhe aplicasse o regime das férias, e tal disposição foi eliminada. Entendem os recorridos que tal significou não se pretender aplicar ao período de regeneração as regras das férias.
Mas pode ter sido outra a razão. Ser desnecessário tal disposição, por se entender que, como férias complementares, se lhe aplicaria o regime das férias.
Não fornecem os autos elementos para concluir qual a razão da supressão dessa disposição.
Inclinamo-nos para crer que a razão foi a sua desnecessidade, pois tudo leva a concluir que o período de regeneração é um período de férias complementar, não obrigatório por lei, não determinado por interesses de ordem pública, como as férias, e que, por isso, deverá seguir o regime das férias nos casos não previstos expressamente, e não ter um regime menos rigoroso do que as férias.
Aqui, na interpretação da cláusula 71.ª, discordamos da posição tomada pelas instâncias, por nos parecer mais lógica e mais adequada a posição da recorrente.
5 - Em conclusão:
Face aos fundamentos expostos, concede-se em parte a revista, revoga-se o douto acórdão recorrido quanto à interpretação da cláusula 71.ª, por se entender que o período de regeneração pode ser alterado ou interrompido nas mesmas condições em que o podem ser as férias, e mantém-se o decidido no acórdão quanto à interpretação da cláusula 57.ª, por também se entender que o período de repouso ali referido deve ser gozado após o regresso à base.
Custas em partes iguais por recorrente e recorrido.
Cumpra-se o disposto no artigo 180.º do Código de Processo do Trabalho.
Lisboa, 22 de Janeiro de 1992. - Roberto Ferreira Valente - Jaime Ribeiro de Oliveira - Octávio Castelo Paulo - Alfredo Barbieri Cardoso - Pedro Sousa Macedo.