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Acórdão 53/88, de 28 de Março

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Sumário

Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 1, alínea b), do artigo 113.º do Regulamento dos Registos e do Notariado, aprovado pelo Decreto Regulamentar n.º 55/80, de 8 de Outubro, enquanto componente do sistema normativo de acesso à função pública em que se insere, por violação do princípio da igualdade de acesso, previsto no artigo 47.º da Constituição, e restringe temporalmente a produção de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, que só ocorrerá com a publicação oficial da presente decisão.

Texto do documento

Acórdão 53/88
Processo 21/86
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional (T. Const.):
1 - Relatório
O Provedor de Justiça (adiante abreviadamente designado por Provedor) requer ao T. Const. a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da alínea b) do n.º 1 do artigo 113.º do Regulamento dos Serviços dos Registos e do Notariado, aprovado pelo Decreto Regulamentar 55/80, de 8 de Outubro.

Fundamenta esse pedido nas seguintes considerações:
1.º O referido artigo 113.º do Decreto Regulamentar 55/80 configura como condição de preferência no preenchimento das vagas de escriturário estarem os candidatos, com estágio válido feito em serviços da mesma espécie da do lugar vago, a estagiar ou terem estagiado na própria repartição onde a vaga existe.

2.º Sucede que do artigo 119.º, n.º 1, do mesmo diploma se infere que a possibilidade de estagiar numa determinada conservatória ou um cartório notarial depende de autorização do respectivo conservador ou notário, tratando-se, assim, de objecto de um poder discricionário.

3.º A conjugação dos dois preceitos referidos torna legítima a conclusão de que, em relação ao preenchimento das aludidas vagas de escriturário, o actual regime de preferência não respeita o princípio da liberdade e igualdade de acesso à função pública, consignado no artigo 47.º, n.º 2, da Constituição da República.

Isto tanto mais quanto é certo ter tal condição de preferência sempre aplicação, dado que, na actual crise de emprego que o País atravessa, o número de candidatos aos diversos concursos excede sempre, em larga medida, o número de vagas a ocupar.

4.º Em reforço da inconstitucionalidade apontada ainda se pode alegar que está em causa um regime de recrutamento de pessoal que incorre no risco de, por um lado, dar cobertura a eventuais compadrios e, por outro lado, não constituir uma garantia segura de selecção dos mais competentes, aspectos que se quiseram afastar com o n.º 2 do artigo 47.º da Constituição (v. Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 103, de 16 de Junho de 1982, p. 4263).

5.º A norma constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 113.º do Decreto Regulamentar 55/80 ofende, pois, o princípio da igualdade e liberdade de acesso à função pública, constante do artigo 47.º, n.º 2, da Constituição da República, o que deverá ser declarado para todos os efeitos legais por esse venerando Tribunal.

Acompanha o requerimento do Provedor uma «informação» do respectivo Serviço, donde se colhe que o processo foi desencadeado por uma petição de um cidadão que, tendo efectuado o estágio numa conservatória de registo civil e tendo-se posteriormente candidatado em diversos concursos para provimento de vagas em outras conservatórias, se viu sempre preterido, por efeito da «preferência legal» constante da referida norma, a favor dos candidatos que tinham estagiado ou se encontravam a estagiar na própria repartição onde se verificava a vaga a preencher.

Convidado a pronunciar-se sobre o pedido, nos termos do artigo 54.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), o Primeiro-Ministro remeteu ao T. Const. um parecer da Auditoria Jurídica da Presidência do Conselho de Ministros, o qual, apesar de enviado fora do prazo, foi mandado juntar ao processo.

Nesse parecer sustenta-se que o preceito cuja declaração de inconstitucionalidade o Provedor requer não padece de inconstitucionalidade. Fundamenta-se tal opinião essencialmente nas seguintes considerações:

Com efeito, o artigo 113.º do Regulamento, e, mormente, a alínea b) do n.º 1, limita-se a fixar regras de preferência para o preenchimento das vagas postas a concurso, não existindo na legislação geral sobre recrutamento e concursos na função pública qualquer proibição genérica impeditiva do estabelecimento de critérios de preferência a aplicar em caso de empate nas classificações obtidas no decurso do concurso.

Por outro lado, a regra de preferência do artigo 113.º, n.º 1, alínea b), do já várias vezes citado Regulamento é uma emanação do princípio fixado no artigo 112.º, n.º 1, segundo o qual constitui requisito especial para admissão ao concurso de ingresso na carreira de escriturário a frequência de estágio de pelo menos seis meses em serviços de registo e do notariado.

Assim, será este preceito, conjugado com a norma do artigo 119.º, n.º 1 (e, acrescente-se, com o artigo 89.º, n.º 2), que poderá suscitar dúvidas acerca da sua conformidade constitucional, ou seja, da violação do princípio de igualdade de acesso às funções públicas, ínsito ao artigo 47.º, n.º 2, da Constituição.

E isto na exacta medida em que o acesso ao estágio nos serviços de registo e do notariado assenta na livre escolha dos conservadores e notários, sujeitos embora ao requisito habilitacional, previsto na parte final do n.º 2 do artigo 119.º

No fundo, em tal sistema de recrutamento e selecção, o acesso ao estágio funciona como verdadeiro processo pré-selectivo, não sendo a respectiva escolha assente em concurso, mas determinada pelo livre critério do conservador ou notário.

E será nessa medida que o referido princípio constitucional poderá ser violado.

Porém, a regra do artigo 113.º, n.º 1, alínea b), em si mesma e enquanto emanação do requisito especial de admissão ao concurso contido no citado artigo 112.º, n.º 1, não nos parece violar o apontado princípio, pois, como se disse, limita-se a fixar critérios de preferência legalmente admissíveis.

Assim, quer-nos parecer que as normas eventualmente ofensivas do artigo 47.º, n.º 2, da Constituição serão as dos artigos 112.º, n.º 1, e 119.º, n.º 1, do citado Regulamento.

Sucede, porém, que as mesmas não foram objecto do pedido de impugnação de constitucionalidade por parte do ora requerente.

Ora, como é sabido, o Tribunal Constitucional está objectivamente limitado ao conhecimento da questão da constitucionalidade das normas invocadas no pedido, por força do n.º 5 do artigo 51.º da sua lei orgânica.

2 - Fundamentação
2.1 - Sentido e alcance da norma em causa
A norma em causa é a do n.º 1, alínea b), do artigo 113.º do Regulamento dos Serviços dos Registos e do Notariado (doravante referido como Regulamento), constante do Decreto Regulamentar 55/80, que regula a organização desses serviços, bem como o seu pessoal. Integrada na subsecção dedicada ao provimento de escriturários, ela estabelece uma preferência no provimento das vagas do respectivo quadro, que é a categoria de ingresso na carreira. A fim de compreender cabalmente o alcance dessa norma torna-se necessário enquadra-la no respectivo contexto normativo. Importa, por isso, registar aqui alguns outros preceitos do mesmo diploma com ela relacionados:

Art. 98.º Podem ser admitidos nos quadros como ajudantes e escriturários os indivíduos de maior idade que satisfaçam não só as condições gerais fixadas na lei para o ingresso na carreira do funcionalismo do Estado, como as exigências especiais estabelecidas no presente diploma.

Art. 101.º - 1 - A vacatura de lugares de ajudante e escriturário deve ser comunicada pelo respectivo conservador ou notário à Direcção-Geral dos Registos e do Notariado no prazo de dez dias a contar da data em que haja ocorrido.

2 - A comunicação deve ser acompanhada de informação fundamentada sobre a necessidade ou desnecessidade de provimento do lugar.

3 - Se o lugar resultar de aumento de quadro, igualmente deverá ser pedida à Direcção-Geral a abertura de concurso logo que o chefe dos serviços o entenda conveniente.

Art. 102.º - 1 - Os lugares de ajudante e escriturário são providos mediante concurso documental, que a Direcção-Geral dos Registos e do Notariado abrirá por aviso publicado no Diário da República.

...
Art. 112.º - 1 - O ingresso na carreira de escriturário far-se-á na categoria de escriturário de 2.ª classe e a ela são admitidos os indivíduos que tenham como habilitação mínima o curso geral do ensino secundário ou equivalente e possuam, pelo menos, seis meses de estágio em serviços de registo e do notariado.

...
Art. 113.º - 1 - Para preenchimento de vagas de escriturário é reconhecida preferência legal:

a) Aos estagiários em serviço da mesma espécie da do lugar vago com boa informação sobre os estagiários em serviço de espécie diferente;

b) Aos concorrentes que, possuindo estágio válido feito em serviços da mesma espécie da do lugar vago, tenham estagiado ou estejam a estagiar na própria repartição onde a vaga exista, com boa informação de serviço prestada pelo respectivo chefe sobre os concorrentes nas condições referidas na alínea anterior;

c) Aos que, encontrando-se nas condições previstas na alínea antecedente, possuam maiores habilitações literárias.

2 - Os concorrentes já pertencentes aos quadros têm preferência sobre os demais concorrentes desde que tenham o serviço classificado de Muito bom.

Art. 119.º - 1 - Podem ser autorizados a estagiar nos serviços de registo e do notariado sob a responsabilidade dos respectivos conservadores e notários indivíduos que possuam como habilitação mínima o curso geral dos liceus.

...
Não é difícil esquematizar os princípios fundamentais do regime de provimento dos escriturários dos serviços dos registos e do notariado, decorrente deste conjunto de normas. São requisitos de provimento os referidos nos artigos 98.º e 112.º, entre os quais se conta um estágio de pelo menos seis meses numa repartição; a obtenção desse estágio depende de autorização do conservador ou do notário (artigo 119.º, confirmado pelo artigo 89.º, n.º 2, não transcrito acima); o provimento das vagas é efectuado mediante concurso documental (artigo 102.º, n.º 1); gozam de preferência os candidatos com estágio efectuado em serviço da mesma espécie do lugar vago (registo civil, registo predial e notariado) [artigo 113.º, n.º 1, alínea a)]; e dentro desses gozam de preferência os que tenham efectuado o estágio, ou estejam a estagiar, na própria repartição onde a vaga exista [artigo 113.º, n.º 1, alínea b)].

É justamente esta última «preferência legal» que é atacada pelo Provedor, que a argúi de inconstitucional por violação do princípio da igualdade e da liberdade de acesso à função pública, enunciado no artigo 47.º, n.º 2, da Constituição.

2.2 - A questão constitucional
2.2.1 - O parâmetro constitucional
Dispõe o mencionado preceito constitucional:
Artigo 47.º
Liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública
1 - ...
2 - Todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso.

Como decorre do seu próprio enunciado, este preceito compreende três elementos:

a) O direito à função pública, não podendo nenhum cidadão ser excluído da possibilidade de acesso, seja à função pública em geral, seja a uma determinada função em particular, por outros motivos que não sejam a falta dos requisitos adequados à função (v. g., idade, habilitações académicas e profissionais);

b) A regra da igualdade e da liberdade, não podendo haver discriminações nem diferenciações de tratamento baseadas em factores irrelevantes, nem, por outro lado, regimes de constrição atentatórios da liberdade;

c) Regra do concurso como forma normal de provimento de lugares, desde logo dos de ingresso, devendo ser devidamente justificados os casos de provimento de lugares sem concurso.

É claro que na hipótese em apreço não está em causa uma violação directa do direito à função pública, na sua primeira componente, visto que a norma sob exame não veda a nenhuma categoria de cidadãos o acesso aos lugares de escriturário dos serviços dos registos e do notariado. Já quanto à regra da igualdade, é na violação dela que se fundamenta o pedido do Provedor - como se viu acima -, pelo que se tem de começar por examinar esse ponto. Finalmente, a regra do concurso não está aparentemente posta em causa pela norma sob exame - nem sequer tal questão é suscitada pelo Provedor -, mas cumpre averiguar se isto é realmente assim.

2.2.2 - A «preferência legal» e o princípio da igualdade de acesso à função pública

Lida isoladamente, a norma sob exame limita-se a estabelecer uma «preferência legal» entre os candidatos que, preenchendo os requisitos gerais e especiais de provimento (artigos 98.º e 112.º), gozem também da primeira preferência, ou seja, possuam estágio efectuado em serviço da mesma espécie da do serviço a que pertence o lugar vago [alínea a) do n.º 1 do artigo 113.º]; nos termos daquela outra preferência legal - que é a que aqui importa -, são providos os candidatos que tenham estagiado, ou estejam a estagiar, na própria repartição onde existe a vaga a preencher.

É de sublinhar, à partida, que as preferências legais não colocam, em abstracto, nenhum problema de constitucionalidade; estes só surgem quando a preferência se fundamenta em factores insusceptíveis de justificarem tal preferência à luz do princípio da igualdade de acesso à função pública.

Transposto o problema para o caso concreto, a questão consiste no seguinte: o factor enunciado - ou seja, o ter-se estagiado ou estar-se a estagiar no serviço em que existe a vaga a preencher - é fundamento razoável para conferir preferência a esses candidatos, em prejuízo dos demais candidatos (isto é, dos que tenham feito estágio noutros serviços, embora da mesma espécie)?

Sublinhe-se que o factor «estágio naquele serviço» não é a ultima ratio no processo de selecção dos candidatos, visto que não é o último factor a ser considerado depois de esgotados os outros, coeteris paribus. Com efeito, nos factores de preferência enunciados no artigo 113.º do Regulamento aparecem em último lugar as habilitações literárias [alínea c) do n.º 1]. Isto significa que entre dois candidatos ao lugar num certo serviço, um que tenha estágio nesse serviço e outro que tenha maiores habilitações literárias, é preferido o primeiro, pois que o factor «estágio no serviço» precede o factor «maiores habilitações literárias».

Comece por negar-se procedência a um possível argumento segundo o qual não existiria aqui nenhuma violação do princípio da igualdade pela simples razão de que todos os possuidores de estágio têm preferência no provimento dos lugares das respectivas repartições (isto é, daquelas em que efectuaram o estágio ou onde se encontram a estagiar). É que, por um lado, como se vê do mapa VI anexo ao Regulamento, as repartições são muito desiguais quanto ao quadro de pessoal e, portanto, quanto à possibilidade de abertura de vagas (ficando, por isso, sempre beneficiados os estagiários das repartições maiores); por outro lado - e sobretudo -, a igualdade no acesso à função pública não pode consistir em todos terem uma preferência em relação às vagas de determinado serviço, mas sim na possibilidade de concorrer em pé de igualdade às vagas de todos os serviços para as quais se possuam os necessários requisitos.

A favor da legitimidade da solução aqui questionada poderiam arrolar-se os seguintes argumentos: a vantagem decorrente do conhecimento do serviço por parte de quem lá tenha estagiado ou esteja a estagiar (no plano das relações e ambiente de trabalho, no conhecimento do tipo e natureza das tarefas do serviço, etc.); a vantagem da continuidade do serviço sobre a solução de continuidade que o provimento de um estranho traria; a vantagem do emprego de residentes locais, naturalmente integrados na respectiva comunidade, em vez da vinda de forasteiros, normalmente carecidos de um período de adaptação.

Todavia, há que aprofundar dois pontos: por um lado, verificar se tais argumentos correspondem à realidade de facto; por outro lado, avaliar se e em que medida é que eles são fundamento adequado da preferência em causa.

Quanto ao primeiro ponto, não é difícil concluir que nem sempre se verificarão aquelas situações. O facto de um candidato ter estagiado ou estar a estagiar no serviço não significa necessariamente que o conheça bem, que resida na localidade respectiva, que o seu provimento não cause soluções de continuidade. Com efeito, o estágio pode ter sido efectuado já há muito tempo ou o candidato pode estar a estagiar nesse serviço há muito pouco (tendo-o iniciado noutro serviço); os estagiários não têm, obviamente, de residir na localidade do serviço e, em qualquer caso, nas grandes aglomerações urbanas, com uma multiplicidade de serviços da mesma espécie, tal factor é naturalmente irrelevante. Será inegável, porém, que em muitos casos se verificará uma ou mais das circunstâncias acima arroladas.

Mas, mesmo que na generalidade dos casos as aludidas vantagens correspondam à realidade, sempre restaria saber se elas poderiam ser consideradas pertinentes e adequadas para fundamentar a diferença de tratamento ou se, pelo contrário, essa diferença de situação é totalmente irrelevante para efeitos de justificação de tal diferença no regime de selecção dos candidatos.

Simplesmente, uma tal questão não pode ser considerada como se a única coisa que importasse fosse a de saber se entre os estagiários - e abstraindo de saber como é que estes o são - é ou não razoável preferir os que tenham estágio ou estejam a fazer estágio no serviço a que o concurso diz respeito. Na verdade, do que se trata é também de saber se essa preferência legal, quando associada ao regime de nomeação dos estagiários, não cria um privilégio constitucionalmente ilícito a favor de uma categoria de pessoas no acesso à carreira dos funcionários dos serviços dos registos e do notariado.

O ponto consiste em que, mesmo a haver de concluir-se que, quando considerada isoladamente e com abstracção do seu contexto, a preferência legal em causa não é constitucionalmente ilegítima (nem mesmo quando ela precede a preferência decorrente das maiores habilitações literárias), sempre haverá de entrar-se em linha de conta com o facto de que, a dar preferência aos que tenham estágio ou estejam a estagiar no serviço em que se verifica a vaga a preencher, a norma legal em causa está afinal a dar preferência em geral às pessoas que tenham sido discricionariamente escolhidas pelo próprio conservador (ou notário) da conservatória (ou cartório) em causa.

É essa perspectiva que cumpre agora considerar.
2.2.3 - A livre nomeação dos estagiários e a preferência legal em função do estágio

Como se viu acima (n.º 2.1), a norma em causa integra o regime jurídico do recrutamento dos escriturários, que constituem a categoria de ingresso na carreira do pessoal dos serviços dos registos e do notariado. Nos termos desse regime, os concursos de ingresso não estão abertos a todos os cidadãos. Para além dos requisitos gerais de acesso à função pública e do requisito de habilitação literária, exige-se, em princípio, um estágio prévio de pelo menos seis meses em serviços de registo e do notariado (artigo 112.º). É a este requisito do estágio em qualquer serviço que acresce a preferência do estágio no próprio serviço em que se verifica a vaga posta a concurso, segundo a norma aqui em exame.

É neste contexto, enquanto simples componente do regime de recrutamento dos escriturários dos serviços dos registos e do notariado, que tem de ser considerada a norma em apreço. O seu conteúdo normativo só se apreende integralmente quando o preceito for conjugado com os demais elementos do sistema normativo de que faz parte.

Ora, a essa luz, verifica-se que tal preceito completa um regime normativo segundo o qual o provimento dos escriturários dos serviços dos registos e do notariado depende decisivamente de uma situação criada por uma decisão discricionária do próprio chefe do serviço que promove o concurso.

É este o ponto que importa analisar.
Retome-se o regime decorrente das normas acima transcritas. Primeiro, a entrada no estágio em qualquer repartição dos serviços dos registos ou do notariado depende do livre critério do conservador ou do notário: faz estágio quem obtenha autorização ou consentimento do conservador ou do notário, sem precedência de qualquer forma de concurso (artigo 119.º); não existe também nenhum concurso de saída do estágio, havendo apenas uma informação de estágio do próprio conservador ou notário [cf. o artigo 113.º, n.º 1, alíneas a) e b)]. Depois, são os conservadores e notários que desencadeiam o processo de preenchimento de vagas e de abertura do respectivo concurso (a qual compete à Direcção-Geral dos Serviços dos Registos e do Notariado), cabendo-lhes, em primeira linha, pronunciar-se sobre a necessidade e a oportunidade do provimento do lugar vago (artigos 101.º e 102.º). Finalmente, aberto o concurso, os estagiários do serviço em que se verifica a vaga têm preferência absoluta sobre os demais candidatos (preceito aqui em exame).

A conclusão salta à vista: através da «preferência legal» prevista nessa norma, dá-se aos chefes dos serviços (conservadores e notários), se não o poder de directamente escolherem os candidatos a prover, pelo menos o poder de escolherem antecipadamente os candidatos com fortíssima possibilidade de virem a ser providos em caso de abertura de vaga, com exclusão de todos os demais. Através desse mecanismo de preferência, proporciona-se que só possa ser provido como escriturário de cada repartição (conservatória, secretaria ou cartório, etc.) quem o respectivo chefe escolha ou pré-seleccione como estagiário. A única excepção é a constante do n.º 2 do preceito em exame, que dá preferência absoluta no preenchimento de vagas aos concorrentes já pertencentes aos quadros se tiverem classificação de serviço de Muito bom.

Não é possível deixar de ver aqui um manifesto atentado ao princípio da igualdade no acesso à função pública e à regra do concurso. Afigura-se que não existe nenhuma garantia de igualdade quando o provimento depende decisivamente de uma escolha discricionária do serviço, e não existe nenhum verdadeiro concurso quando o resultado está, na maior parte dos casos, de antemão determinado por efeito de uma «pré-nomeação» discricionária por parte do serviço cuja vaga o concurso se destina a preencher.

Contra isto não pode argumentar-se - como se faz no parecer junto pelo Primeiro-Ministro - que este raciocínio conduz não à inconstitucionalidade da norma em causa, mas sim à das normas que prevêem a livre nomeação dos estagiários (designadamente o artigo 119.º). É evidente que, se assim fosse, não poderia aqui conhecer-se de tal inconstitucionalidade, pois tais normas não foram directamente questionadas. Mas, sejam ou não inconstitucionais essas outras normas, quando consideradas só por si ou quando conjugadas com a que considera o estágio como um requisito de provimento (artigo 112.º, n.º 1) e com a que define as preferências legais (artigo 113.º), a verdade é que a norma aqui em apreço não deixa de ser, ela mesma, inconstitucional. Com efeito, essa norma não pode ser lida isoladamente, abstraindo do regime de nomeação dos estagiários. E, de qualquer modo, mesmo que a inconstitucionalidade só decorresse da conjugação das duas normas, ainda assim não poderia deixar de avaliar-se a parte que nessa inconstitucionalidade é imputável à norma em apreço.

É que essa norma não se limita a ser um «reflexo» ou «emanação» das normas que regem a escolha dos estagiários e que consideram o estágio como requisito de provimento. Neste plano, deve dizer-se, aliás, que todos os candidatos estão em pé de igualdade entre si (e em igual situação de eventual privilégio perante os demais cidadãos que não puderam ter acesso ao estágio); todos eles ingressaram no estágio por via da preferência que mereceram a um conservador ou um notário. Simplesmente, abstraindo da norma aqui em exame, o estágio não confere direito ao provimento; apenas constitui um requisito dele. Mas, quando entra em campo essa norma, então o estágio passa a ser não apenas um requisito de provimento em geral, mas sim um título de preferência absoluta no provimento de vagas no respectivo serviço (com a ressalva acima referida). Então, a escolha de estagiários é também, em certo sentido, um pré-provimento nas vagas que vierem a ser postas a concurso.

É esse o alcance autónomo da norma aqui em exame. Ela introduz uma alteração radical no sistema. Com ela cria-se uma espécie de reserva de lugar para os estagiários escolhidos pelo chefe do próprio serviço em que a vaga se verifica. No fundo, aquilo em que este regime se traduz é em dar aos conservadores e notários uma espécie de direito de escolherem livremente o pessoal dos quadros das respectivas repartições, pois, com a ressalva acima mencionada, só poderá haver provimento de estranhos se não houver nenhum estagiário do próprio serviço ou se este não estiver interessado no lugar.

Mas é precisamente contra o poder de os serviços escolherem livremente o seu pessoal que se dirigem os princípios constitucionais da igualdade e do concurso no acesso à função pública.

2.3 - Efeitos da inconstitucionalidade
Nos termos do artigo 282.º da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional, salvo se o T. Const. determinar coisa diferente, por razões de segurança jurídica ou de equidade ou por motivo de interesse público de excepcional relevo.

Qualquer que seja, em geral, o alcance da regra da eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade (nomeadamente quanto à possibilidade de afectar, e em que termos, mesmo as situações juridicamente consolidadas ao abrigo da norma declarada inconstitucional), a verdade é que, no caso concreto, basta a simples admissão de que a declaração da inconstitucionalidade poderia fazer questionar a legitimidade das situações funcionais entretanto constituídas para se justificar a invocação da segurança jurídica para diferir a produção dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade até à publicação do presente acórdão.

Exceptuam-se, naturalmente, aquelas situações que estejam pendentes de impugnação contenciosa ou que ainda podem vir a sê-lo entretanto. É que, de outro modo, a salvaguarda de todos os efeitos produzidos prejudicaria indevidamente quem tenha impugnado atempadamente os provimentos feitos ao abrigo dessa norma (e que pode até ter baseado o seu recurso contencioso justamente na inconstitucionalidade da mesma). A limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade não pode impedir os efeitos do juízo de inconstitucionalidade nas situações ainda em aberto.

3 - Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se:
a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 1, alínea b), do artigo 113.º do Regulamento dos Registos e do Notariado, aprovado pelo Decreto Regulamentar 55/80, de 8 de Outubro, enquanto componente do sistema normativo de acesso à função pública em que se insere, por violação do princípio da igualdade de acesso, previsto no artigo 47.º da Constituição;

b) Restringir temporalmente a produção de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, que só ocorrerá com a publicação oficial da presente decisão.

Lisboa, 8 de Março de 1988. - Vital Moreira (relator) - Messias Bento - Luís Nunes de Almeida - Mário de Brito - Antero Alves Monteiro Dinis - José Martins da Fonseca - José Manuel Cardoso da Costa - Raul Mateus - José Magalhães Godinho.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/42480.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1980-10-08 - Decreto Regulamentar 55/80 - Ministério da Justiça

    Aprova o Regulamento dos Serviços de Registo e Notariado.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2002-07-08 - Acórdão 208/2002 - Tribunal Constitucional

    Declara inconstitucionais, com força obrigatória geral, as normas dos artigos 9.º, n.º 1, e 16.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 184/98, de 6 de Julho, que aprova a Lei Orgânica do Centro de Gestão da Rede Informática do Governo, e, em consequência, as normas constantes dos n.ºs 2, 3 e 4 do referido artigo 9.º, limitando parcialmente os efeitos da inconstitucionalidade (Proc.º 111/2000, tem incorporado o Proc.º 523/2000).

  • Tem documento Em vigor 2003-10-24 - Acórdão 406/2003 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 21.º, enquanto conjugada com o preceituado na alínea l) do n.º 2 do artigo 13.º, dos Estatutos do Instituto Nacional de Aviação Civil, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 133/98, de 15 de Maio (Proc.º 470/2001).

  • Tem documento Em vigor 2004-02-27 - Acórdão 61/2004 - Tribunal Constitucional

    Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 342/99, de 25 de Agosto, que cria o Instituto Português de Conservação e Restauro, na medida em que admite a possibilidade de contratação do pessoal técnico superior e do pessoal técnico especializado em conservação e restauro mediante contrato individual de trabalho, sem que preveja qualquer procedimento de recrutamento e selecção dos candidatos à contratação que garanta o acesso em condições (...)

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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