Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 258/2020
Sumário: Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no n.º 4 do artigo 222.º-G do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei 53/2004, de 18 de março, quando interpretada no sentido de o parecer do administrador judicial provisório que conclua pela situação de insolvência equivaler, por força do disposto no artigo 28.º do mesmo Diploma - ainda que com as necessárias adaptações -, à apresentação à insolvência por parte do devedor, quando este discorde da sua situação de insolvência.
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I - A Causa
1 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi conferida pela Lei Orgânica 11/2015 de 28 de agosto, doravante LTC), a organização de um processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata e sucessiva da constitucionalidade, com vista à apreciação, pelo Plenário, da constitucionalidade da norma contida no n.º 4 do artigo 222.º-G do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei 53/2004, de 18 de março, quando interpretada no sentido de o parecer do administrador judicial provisório que conclua pela situação de insolvência equivaler, por força do disposto no artigo 28.º do mesmo Diploma - ainda que com as necessárias adaptações -, à apresentação à insolvência por parte do devedor, quando este discorde da sua situação de insolvência.
Indica o Ministério Público que tais normas foram julgadas inconstitucionais pelo Acórdão 388/2019 e pelas Decisões Sumárias n.os 547/2019 e 640/2019, tendo as referidas decisões (todas elas da 1.ª secção) transitado em julgado.
1.1 - Notificado nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, o Primeiro-Ministro ofereceu o merecimento dos autos.
1.2 - As decisões acima referidas pronunciaram-se no sentido da inconstitucionalidade da norma supracitada e transitaram em julgado, pelo que se têm por verificadas as condições previstas no artigo 82.º da LTC.
O Requerente tem legitimidade para deduzir o pedido.
Assim, discutido o memorando, apresentado pelo Exmo. Presidente do Tribunal, documento ao qual se refere o artigo 63.º, n.º 1, da LTC, cumpre elaborar o acórdão em conformidade com o entendimento alcançado em Plenário.
II - Fundamentação
2 - Trata-se, nos presentes autos, de apreciar um pedido de generalização do juízo de inconstitucionalidade que o Tribunal afirmou em três casos concretos relativamente à norma contida no n.º 4 do artigo 222.º-G do CIRE, quando interpretada no sentido de o parecer do administrador judicial provisório que conclua pela situação de insolvência equivaler, por força do disposto no artigo 28.º do mesmo Código - ainda que com as necessárias adaptações -, à apresentação à insolvência por parte do devedor, quando este discorde da sua situação de insolvência.
2.1 - A norma em causa foi objeto de um juízo de inconstitucionalidade no Acórdão 388/2019, no qual se ponderou o seguinte:
«[...]
1 - O artigo 222.º-G do CIRE, em que se integra a norma que o Tribunal recorrido julgou inconstitucional, foi aditado a este código, conjuntamente com os artigos 222.º-A a 222.º-J, pelo Decreto-Lei 79/2017, de 20 de junho. Este diploma legal veio estabelecer o 'processo especial para acordo de pagamento', cujo objetivo é 'permitir ao devedor que, não sendo uma empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com este acordo de pagamento' (artigo 222.º-A, n.º 1, do CIRE).
Comparando o n.º 1 do artigo 222.º-A do CIRE com o n.º 1 do artigo 17.º-A do mesmo código, verifica-se que o processo especial para acordo de pagamento (PEAP), previsto naquela primeira norma legal, tal como o processo especial de revitalização (PER), previsto nesta última, podem ser utilizados por devedores que se encontrem em «situação económica difícil» ou em «situação de insolvência meramente iminente». A diferença entre ambos os processos reside no facto de o PER apenas poder ser intentado por empresas e o PEAP por devedores que o não sejam, refletindo-se esta diferença de base, respeitante à natureza dos sujeitos processuais envolvidos, no tipo de finalidade prosseguida por cada um desses processos - enquanto o PER visa a revitalização de uma empresa em situação económica difícil, sendo as negociações com os credores um meio conducente à sua futura viabilização económico-financeira, o PEAP apenas se destina à obtenção de um acordo de pagamento entre o devedor e os credores.
Porém, no que respeita aos seus pressupostos objetivos e às consequências processuais da não aprovação do plano de revitalização ou do acordo de pagamento, não existe diferença juridicamente relevante entre ambos os processos. Como assinalado, a possibilidade de instauração do PER e do PEAP pressupõe que o devedor esteja em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, quer se trate de uma empresa ou não (artigos 17.º-A, n.º 1, e 222.º-A, n.º 1, do CIRE). Por outro lado, a conclusão do processo negocial sem a aprovação do plano de revitalização, no primeiro processo, e do acordo de pagamento, no segundo, determina, em ambos os casos, o encerramento do processo e, caso o devedor se encontre já em situação de insolvência, a declaração judicial da sua insolvência (artigos 17.º-G, n.º 3, e 222.º-G, n.º 3, do CIRE).
O artigo 222.º-G do CIRE, agora em sindicância, regula nos seus números 1, 3 e 4, o processo pelo qual o tribunal declara a insolvência do devedor na sequência do encerramento de um processo especial para acordo de pagamento por efeito da não aprovação deste último. Determina o citado preceito legal, nessa parte:
'Artigo 222.º-G
Conclusão do processo negocial sem a aprovação de acordo de pagamento
1 - Caso o devedor ou a maioria dos credores prevista no n.º 3 do artigo anterior concluam antecipadamente não ser possível alcançar acordo, ou caso seja ultrapassado o prazo previsto no n.º 5 do artigo 222.º-D, o processo negocial é encerrado, devendo o administrador judicial provisório comunicar tal facto ao processo, se possível, por meios eletrónicos e publicá-lo no portal Citius.
[...]
3 - Estando, porém, o devedor já em situação de insolvência, o encerramento do processo regulado no presente título acarreta a insolvência do devedor, devendo a mesma ser declarada pelo juiz no prazo de três dias úteis, contados a partir do termo do prazo previsto no n.º 5, sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 255.º
4 - Compete ao administrador judicial provisório na comunicação a que se refere o n.º 1 e mediante a informação de que disponha, após ouvir o devedor e os credores, emitir o seu parecer sobre se o devedor se encontra em situação de insolvência e, em caso afirmativo, requerer a insolvência do devedor, aplicando-se o disposto no artigo 28.º, com as necessárias adaptações, e sendo o processo especial para acordo de pagamento apenso ao processo de insolvência.'
O artigo 28.º do CIRE, para o qual remete o transcrito n.º 4 do artigo 222.º-G, determina, por seu lado, o seguinte:
'Artigo 28.º
Declaração imediata da situação de insolvência
A apresentação à insolvência por parte do devedor implica o reconhecimento por este da sua situação de insolvência, que é declarada até ao 3.º dia útil seguinte ao da distribuição da petição inicial ou, existindo vícios corrigíveis, ao do respetivo suprimento.'
Nos termos das citadas normas legais, na hipótese de o acordo de pagamento não ser aprovado, o administrador judicial provisório emite um parecer sobre a situação de insolvência do devedor, após audição deste e dos credores, e, concluindo pela verificação dos respetivos pressupostos legais, requer ao juiz a declaração de insolvência. A remissão para o regime do artigo 28.º do CIRE, constante do n.º 4 do artigo 222.º-G, significa, na interpretação ora sindicada, que o pedido de insolvência apresentado em juízo pelo administrador judicial provisório é juridicamente equiparado à apresentação à insolvência por parte do devedor, mesmo quando este dela discorde.
Analisando comparativamente, também neste ponto, o regime aplicável ao PER, na hipótese de encerramento do processo por efeito da não aprovação do plano de revitalização, verifica-se que as soluções legais adotadas neste âmbito são substancialmente idênticas àquelas que vigoram para o PEAP, em caso de não aprovação do acordo de pagamento. Com efeito, também no âmbito do PER o administrador judicial provisório emite parecer sobre a questão de saber se a empresa devedora está em situação de insolvência, após prévia audição desta e dos credores, e, concluindo em sentido positivo, requer ao juiz a declaração de insolvência, aplicando-se neste caso, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 28.º do CIRE (artigo 17.º-G, n.os 1, 3 e 4, do CIRE).
2 - Como refere a decisão recorrida, o Tribunal Constitucional, no Acórdão 675/2018, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 4 do artigo 17.º-G do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei 53/2004, de 18 de março, quando interpretada no sentido de o parecer do administrador judicial provisório que conclua pela situação de insolvência equivaler, por força do disposto no artigo 28.º - ainda que com as necessárias adaptações -, à apresentação à insolvência por parte do devedor, quando este discorde da sua situação de insolvência, por violação do artigo 20.º, n.os 1 e 4, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (no mesmo sentido, cf. Acórdãos n.os 401/2017, 771/2017, 55/2018, 675/2018 e 331/2019).
Como se demonstrou, também no âmbito do PEAP, a lei faz equiparar o pedido de insolvência formulado pelo administrador judicial provisório à apresentação à insolvência, desconsiderando, na interpretação ora em apreciação, a vontade oposta do devedor que não assume nem detém uma estrutura empresarial. Trata-se, como é evidente, de uma particularidade distintiva que não tem qualquer relevância jurídico-constitucional, atenta a identidade de regimes restritivos vigentes quanto à impossibilidade do exercício prévio do contraditório por parte do devedor que não vê aprovado o plano/acordo que poderia evitar a sua insolvência e é confrontado com o pedido de declaração judicial desta última.
Ora, não se detetando no PEAP qualquer outro elemento normativo diferenciador que pudesse justificar à luz da Constituição a restrição àquele mesmo direito fundamental, cumpre, sem necessidade de mais considerações, julgar também inconstitucional a norma do n.º 4 do artigo 222.º-G do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas [CIRE], aprovado pelo Decreto-Lei 53/2004, de 18 de março, quando interpretada no sentido de o parecer do administrador judicial provisório que conclua pela situação de insolvência equivaler, por força do disposto no artigo 28.º - ainda que com as necessárias adaptações -, à apresentação à insolvência por parte do devedor, quando este discorde da sua situação de insolvência', pelas razões enunciadas no Acórdão 675/2018, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
[...]».
2.1.1 - O juízo de censura jurídico-constitucional constante do Acórdão 388/2019 foi retomado, com idênticos fundamentos, nas Decisões Sumárias n.os 547/2019 e 640/2019. Trata-se, pois, de um entendimento essencialmente uniforme relativamente à desconformidade jurídico-constitucional de uma norma da qual resulta a impossibilidade do exercício do direito ao contraditório por parte do devedor que não vê aprovado o acordo de pagamento que poderia evitar a sua insolvência e é confrontado com o correspondente pedido de declaração judicial (com equivalência à apresentação).
2.2 - O presente pedido de generalização encontra-se, ainda, alinhado com a orientação jurisprudencial relativa a norma paralela do processo especial de revitalização (artigo 17.º-G, n.º 4, do CIRE), iniciada pelo Acórdão 401/2017 e reiterada nas Decisões Sumárias n.os 555/2017, 139/2018 e 374/2018 (e ainda, com pequenas variações na fundamentação e no sentido normativo, pelos Acórdãos n.os 771/2017 e 55/2018 e pela Decisão Sumária n.º 169/2018), que culminou na prolação do Acórdão 675/2018, do Plenário, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no n.º 4 do artigo 17.º-G do CIRE, quando interpretada no sentido de o parecer do administrador judicial provisório que conclua pela situação de insolvência equivaler, por força do disposto no artigo 28.º - ainda que com as necessárias adaptações -, à apresentação à insolvência por parte do devedor, quando este discorde da sua situação de insolvência, por violação do artigo 20.º, n.os 1 e 4, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Como justamente se observa no Acórdão 388/2019, face ao decidido no Acórdão 675/2018, «[...] também no âmbito do PEAP, a lei faz equiparar o pedido de insolvência formulado pelo administrador judicial provisório à apresentação à insolvência, desconsiderando, na interpretação ora em apreciação, a vontade oposta do devedor que não assume nem detém uma estrutura empresarial. Trata-se, como é evidente, de uma particularidade distintiva que não tem qualquer relevância jurídico-constitucional, atenta a identidade de regimes restritivos vigentes quanto à impossibilidade do exercício prévio do contraditório por parte do devedor que não vê aprovado o plano/acordo que poderia evitar a sua insolvência e é confrontado com o pedido de declaração judicial desta última» (sublinhado acrescentado).
É precisamente essa orientação que deve ser retomada, não se prefigurando quaisquer razões para dela subtrair o juízo de generalização peticionado.
Deste modo, reiterando o sentido da jurisprudência supra referida, resta afirmar a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no n.º 4 do artigo 222.º-G do CIRE, quando interpretada no sentido de o parecer do administrador judicial provisório que conclua pela situação de insolvência equivaler, por força do disposto no artigo 28.º do mesmo Diploma - ainda que com as necessárias adaptações -, à apresentação à insolvência por parte do devedor, quando este discorde da sua situação de insolvência.
III - Decisão
3 - Em face do exposto, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no n.º 4 do artigo 222.º-G do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei 53/2004, de 18 de março, quando interpretada no sentido de o parecer do administrador judicial provisório que conclua pela situação de insolvência equivaler, por força do disposto no artigo 28.º do mesmo Diploma - ainda que com as necessárias adaptações -, à apresentação à insolvência por parte do devedor, quando este discorde da sua situação de insolvência, por violação do artigo 20.º, n.os 1 e 4, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Sem custas.
[Atesto o voto de conformidade ao presente Acórdão dos restantes integrantes do Plenário, Conselheiros Fernando Vaz Ventura, Maria de Fátima Mata-Mouros, Gonçalo de Almeida Ribeiro, Lino Rodrigues Ribeiro, Joana Fernandes Costa, Mariana Canotilho, Maria José Rangel de Mesquita, Pedro Machete, João Pedro Caupers e Manuel da Costa Andrade, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei 20/2020, de 1 de maio.]
Lisboa, 5 de maio de 2020. - José Teles Pereira.
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