Resolução da Assembleia Regional n.º 20/85/A
Na decorrência da pronúncia sobre o projecto de lei 438/III, pendente na Assembleia da República, a Assembleia Regional dos Açores resolve apresentar, como iniciativa legislativa a ser apreciada conjuntamente com o referido projecto de lei, a proposta de lei que apresentou à Assembleia da República em 1981, e que ali recebeu o n.º 25/II:
Proposta de lei
1 - O artigo 231.º, n.º 1, da Constituição diz o seguinte:
Os órgãos de soberania asseguram, em cooperação com os órgãos de Governo Regional, o desenvolvimento económico e social das regiões autónomas, visando, em especial, a correcção das desigualdades derivadas da insularidade.
Os raros comentários feitos por constitucionalistas a este preceito põem em relevo que se trata de uma directiva constitucional relativamente à qual a inércia do Estado pode configurar inconstitucionalidades por omissão, nos termos do artigo 279.º («quando a Constituição não estiver a ser cumprida por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequível as normas constitucionais»): cf. G. Canotilho e V. Moreira, Constituição Anotada, p. 426, nota II.
O teor deste artigo 231.º, n.º 1, foi reproduzido, ipsis verbis, no Estatuto Provisório dos Açores e da Madeira.
Mas esta reprodução literal exprimia uma vontade política negativa: ela significava apenas que o VI Governo Provisório afastara o texto proposto nesta matéria pela Junta Regional dos Açores, mesmo depois de retocado pela chamada «comissão de análise».
Este texto dizia o seguinte:
Art. 58.º A unidade da comunidade nacional obriga esta a suportar as desigualdades dos custos derivados da insularidade, em especial no que toca a comunicações, transportes, educação, cultura e saúde, incentivando-se a circulação de pessoas e bens e a progressiva inserção da Região em espaços económicos amplos de dimensão nacional e internacional.
...
Art. 66.º De harmonia com o princípio da solidariedade nacional, a Região receberá apoio financeiro do Estado ou para o mesmo contribuirá com parte das suas receitas, conforme anualmente for acordado entre ambos (cf. Uma Autonomia para os Açores, pp. 185-186 e 443-445).
2 - Ora, se em 1976 - e apesar da Constituição - houve uma vontade política no sentido de não concretizar minimamente os deveres financeiros do Estado com esta Região, está fora de dúvida que tal vontade política mudou em 1980.
A Lei 39/80, de 5 de Agosto, reproduziu, sem quaisquer emendas, o projecto do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, que fora proposto por esta Assembleia Regional.
O novo Estatuto inclui justamente dois artigos que se filiam naqueles acima reproduzidos, e que o VI Governo Provisório rejeitara.
Ambos se inserem no título VI «Regime económico e financeiro» e são os seguintes:
Artigo 80.º (incluído no capítulo I - «Princípios gerais»):
A solidariedade nacional vincula o Estado a suportar os custos das desigualdades derivadas da insularidade, designadamente no respeitante a comunicações, transportes, educação, cultura, segurança social e saúde, incentivando a progressiva inserção da Região em espaços económicos amplos, de dimensão nacional e internacional.
Artigo 85.º (incluído no capítulo II - «Finanças» - secção I - «Receitas e despesas»):
De harmonia com o princípio da solidariedade nacional, o Estado dotará a Região dos meios financeiros necessários à realização dos incentivos constantes do Plano regional que excederem a capacidade de financiamento dela, de acordo com um programa de transferência de fundos a acordar entre o Governo da República e o Governo Regional.
O confronto destes dois artigos permite distinguir dois deveres do Estado para com a Região: o dever de suportar o custo das desigualdades derivadas da insularidade; e o dever de dotar a Região com os meios necessários à realização dos investimentos constantes do seu Plano que excederam a capacidade do financiamento desta, de acordo com um programa de transferência de fundos a acordar entre o Governo da República e o Governo Regional.
3 - Não pode deixar de entender-se que estes deveres têm diferente objecto e até diferente natureza.
Diferente objecto, porque o primeiro trata da cobertura - integral, diga-se de passagem - dos sobrecustos derivados da insularidade, realidade iniludível como consequência da descontinuidade territorial, seja até qual for o desenvolvimento da Região, e o segundo trata de garantir a realização de investimentos necessários ao desenvolvimento regional.
Diferente natureza, porque os sobrecustos da insularidade existirão sempre enquanto as ilhas forem ilhas e a ultrapassagem das distâncias e dos obstáculos marítimos tiverem características próprias de uma actividade económica - além de que constituem um encargo absoluto do Estado. Enquanto o segundo exprime obrigações de carácter eventual e relativo, o Estado só deve se o défice respeitar a investimentos do Plano, só deve se, para esse fim, a Região tiver excedido a sua capacidade de financiamento, só deve finalmente se (por uma questão de justiça distributiva) a capitação de despesa pública na Região for inferior à média nacional.
4 - Do exposto decorre que o artigo 85.º do Estatuto confere à Região um direito relativo, e por isso deixada à concretização periódica através de acordos entre o Executivo nacional e o regional, acordos que dependerão, inclusivamente, dos meios financeiros disponíveis. É matéria política conjuntural e tem que ver - só ela - com a eventual necessidade de cobertura do défice regional.
Pelo contrário, o artigo 80.º criou um autêntico encargo geral da Nação, inteiramente equiparável às despesas próprias dos órgãos de soberania, porquanto se destina, em nome da solidariedade nacional - mas no interesse nacional também, e até principalmente -, a assegurar condições de vida que garantam a continuidade da presença portuguesa na Região. Por isso é que os custos da insularidade são equiparáveis a outros custos de soberania - como, por exemplo, os que sustentam a administração da justiça, as Forças Armadas, a representação diplomática.
Por isso sucede também que os custos da insularidade não podem ser tomados em consideração para os fins do artigo 85.º do Estatuto. O seu montante não pode entender-se como agravando o défice da Região, porque o dever de cobrir e suportar tais custos não incumbe à mesma Região (seja como pessoa colectiva de direito público, seja como conjunto dos seus residentes), nem é encargo meramente subsidiário do Estado. Cabe só a este por lei expressa e por razões de interesse nacional.
5 - A presente anteproposta visa estabelecer o quadro normativo dos deveres do Estado para com as regiões autónomas no que respeita aos custos da insularidade, fixando a moldura legal mínima a que esses deveres terão de sujeitar-se.
Para já, o artigo 80.º do Estatuto dos Açores indica (aliás não taxativamente) as áreas em que esses custos se fazem mais agudamente sentir: comunicações, transportes, educação, cultura, segurança social e saúde.
Depois, traça o horizonte dos encargos a vencer.
Esse horizonte começa por ser intra-regional, e resulta da dispersão por 9 ilhas, que, só por si, exige sobrequipamento e sobrecustos de deslocação que não existiriam se o território insular se reduzisse a uma ilha só.
Continua-se com a descontinuidade territorial em relação ao resto do País - o que é dizer: continente e a outra região autónoma.
Mas não se queda por aí.
Num compromisso normativo expresso, visa a criação de condições que permitam a inserção das regiões em espaços económicos de dimensão mesmo internacional, pelo que não se limita ao mero espaço português. Quer dizer que será também financiado o suprimento do isolamento em relação ao estrangeiro, em condições pelo menos equiparáveis às dos residentes na faixa continental europeia.
6 - À face do texto do artigo 80.º do Estatuto, a assunção nacional dos custos da insularidade deverá desenvolver-se em três planos:
O dos investimentos públicos, na medida em que estes excederem o que seria normalmente necessário para comunidades com igual dimensão humana: logo, e para já, a sobrenecessidade de infra-estruturas de transportes e comunicações (um porto e uma pista para aviação em cada ilha, multiplicidade de centrais eléctricas, de serviços hospitalares mínimos, de estabelecimentos escolares que incluam o ensino secundário);
O das despesas correntes adicionais, em consequência do desdobramento dos serviços originada na dispersão territorial;
O das tarifas de transportes (marítimos e aéreos), bem como os demais custos que afectam o preço das mercadorias (quebras, seguros, baldeações, armazenagem por necessidade de aprovisionamento) no que toca a pessoas ou empresas residentes, bem como àqueles que se deslocam às regiões em serviço público ou no interesse dela - tanto económico como cultural ou administrativo.
7 - Em desenvolvimento da letra e do espírito do Estatuto, avançam-se nesta proposta duas ordens de critérios.
Uma, para os beneficiários, como já se indicou: entidades de direito público, residentes, naturais da Região (mitigadamente) e técnicos ao serviço de interesses públicos regionais.
Outra, para a base de comparação e de correcção. Ela parte do princípio de continuidade territorial corrigida (no caso das tarifas de transporte marítimo e aéreo) e no da capitação média de uma comunidade do litoral português em matéria de custos de investimentos em equipamentos colectivos, despesas correntes e subsídios a deslocações.
Os critérios avançados são, naturalmente, imperfeitos. Todo o processo de produção legislativa que agora se inicia os trabalhará e, eventualmente, virá a completar.
8 - A presente proposta é mais um passo visando concretizar, para além de afirmações verbais, uma integração real da Região Autónoma na comunidade portuguesa a que naturalmente pertence, pela história e pela cultura.
Esta integração constitui uma condição prévia relativamente a qualquer programa de desenvolvimento regional. Na verdade, este pressupõe a ultrapassagem dos handaps, ou desigualdades negativas nascidas da insularidade. E, logicamente, só depois se estará em condições de participar num esforço nacional.
Por isso, assenta numa exigência de justiça distributiva - aqui agudamente posta como uma condição de unidade portuguesa efectiva e coerente.
A Assembleia Regional dos Açores, usando da competência prevista na alínea c) do artigo 229.º da Constituição, apresenta à Assembleia da República, para ser apreciada conjuntamente com o projecto de lei 438/III, a seguinte proposta de lei:
Proposta de lei
Suporte nacional dos custos da insularidade
ARTIGO 1.º
1 - Serão inscritas no Orçamento do Estado, como Encargos Gerais da Nação, em capítulo próprio, as verbas que devem ser suportadas pelo Estado, como custo das desigualdades derivadas da insularidade, relativamente às regiões autónomas.
2 - As verbas consideradas no número anterior não poderão ser consideradas para efeitos da determinação da cobertura, pelo Estado, do défice orçamental daquela Região, tal como previsto no artigo 85.º da mesma lei.
ARTIGO 2.º
1 - Os custos da insularidade em matéria da construção, instalação e manutenção de equipamentos colectivos, bem como de despesas públicas correntes respeitantes aos mesmos, serão determinados por comparação com as despesas públicas, de capital e correntes, necessárias para servir uma comunidade com idêntica dimensão humana e situada na faixa litoral do continente português.
2 - Na comparação referida no número anterior ter-se-á necessariamente em conta a multiplicação de infra-estruturas e serviços, bem como a correlativa retracção em economias de escala.
ARTIGO 3.º
1 - Os custos de insularidade em matéria de transporte aéreo de passageiros entre qualquer ilha dos Açores ou da Madeira e o aeroporto de entrada ou de saída no continente português ou na outra região autónoma serão os que excederem a tarifa de transportes colectivos terrestres entre as duas cidades mais distantes entre si no continente português.
2 - Os referidos custos, considerados entre cada uma das ilhas de cada região autónoma, serão calculados sobre o excesso relativamente às tarifas passageiro/quilómetro vigentes para o transporte aéreo no continente português para uma distância de 60 milhas náuticas.
ARTIGO 4.º
1 - Sem prejuízo de uma política de preços nacionais, os custos da insularidade em matéria de transportes, entre cada uma das regiões autónomas e outros pontos do território português, de cargas por via marítima serão os que excederem o dispêndio máximo e completo referente ao percurso, em território continental português, entre as duas cidades mais distantes entre si, considerando o uso de transportes colectivos terrestres.
2 - Os referidos custos, considerados entre cada uma das ilhas de cada região autónoma, serão calculados nos termos do número anterior, mas com referência ao percurso normalmente percorrido entre a origem e o destino.
ARTIGO 5.º
Os custos da insularidade, no que toca a ligações com o estrangeiro, tanto de carga como de passageiros, serão os que excederem, em idêntico meio de transporte, os gastos máximos com transporte colectivo de ou para uma cidade do litoral continental português.
ARTIGO 6.º
1 - Os custos da insularidade em matéria de aprovisionamento traduzem-se no dispêndio ocasionado pela construção e manutenção de equipamentos, bem como pela imobilidade financeira, impostos pela necessidade de constituição, em cada ilha, de stocks de mercadorias consideradas essenciais.
2 - Os custos referidos no número anterior serão compensados através de bonificações ao crédito.
ARTIGO 7.º
Sem prejuízo do disposto no artigo 2.º, os custos da insularidade em matéria de educação, cultura, segurança social e saúde computar-se-ão segundo o excesso sobre a capitação média nacional de subsídios em serviços sociais e deslocações de estudantes, doentes e seus acompanhantes, grupos desportivos e artistas destinados a espectáculos públicos.
ARTIGO 8.º
Os custos da insularidade em matéria de telecomunicações incidirão apenas sobre os respectivos investimentos, despesas de manutenção e correntes, nos termos do artigo 2.º
ARTIGO 9.º
Beneficiarão das tarifas regionais para transporte de passageiros:
a) As entidades de direito público, para os seus órgãos e funcionários, quando em serviço;
b) Os residentes em cada região autónoma;
c) Os naturais da Região e nela residentes, à razão de uma vez por ano, em sentido de ida e volta;
d) Os técnicos ao serviço de quaisquer organismos públicos regionais, qualquer que seja a natureza do seu vínculo jurídico à Região.
ARTIGO 10.º
Beneficiarão das tarifas regionais para transporte de cargas:
a) As entidades de direito público;
b) Os importadores e exportadores individuais ou colectivos com sede e actividade principal na Região;
c) Os beneficiários de tarifas regionais para passageiros, quanto a cargas que pessoalmente lhes pertençam ou se lhes destinem.
ARTIGO 11.º
Beneficiarão das bonificações previstas no artigo 6.º as entidades que tenham instalações adequadas para fins em vista, ou se proponham tê-las.
ARTIGO 12.º
As verbas referidas no n.º 1 do artigo 1.º serão atribuídas:
a) Aos serviços do Estado não regionalizados que operem em cada uma das regiões autónomas;
b) Às empresas de transporte colectivo marítimo e aéreo que sirvam a Região mas não tenham nela a sua sede;
c) Respectivamente aos Governos Regionais, que as administrarão globalmente como receita própria, em todos os restantes casos.
ARTIGO 13.º
1 - A verba referida na alínea (c) do artigo anterior será estimada anualmente pelos Governos Regionais, nos termos deste diploma, e proposta pelo Governo, para efeitos de dotação orçamental.
2 - A verba atribuída nos termos do número anterior pode ser reforçada sob proposta do Governo Regional.
ARTIGO 14.º
O presente diploma será objecto de revisão após três anos de efectiva vigência.
Aprovada pela Assembleia Regional dos Açores, na Horta, em 18 de Junho de 1985.
O Presidente da Assembleia Regional dos Açores, José Guilherme Reis Leite.