Os progressos técnicos e científicos registados nas últimas décadas na área da medicina permitiram melhorar a forma de colheita, preservação e transplante de órgãos, contribuindo para o aumento do número global de transplantes.
Contudo, o número de órgãos colhidos em doentes em morte cerebral é insuficiente para responder às necessidades crescentes de candidatos a transplante. Daí que, muitos países da Europa, América do Norte e Oceânia, tivessem recuperado a possibilidade de colheita de órgãos em doentes que tiveram uma paragem cardiocirculatória. Neste grupo de doentes é cientificamente demonstrável a viabilidade dos órgãos para transplante, desde que no cadáver se possam aplicar técnicas de preservação. Este conceito não é novo, nos primórdios da transplantação todos os órgãos doados foram colhidos em doentes que morreram em paragem cardíaca. Só mais tarde, em 1960, quando se formalizou a definição legal de morte cerebral é que a maioria dos centros substituiu os programas de colheita de órgãos em doentes em paragem cardiocirculatória pelos de morte cerebral.
Em Portugal, desde 1993, a legislação admite a possibilidade de colheita de órgãos em doentes em morte cerebral, conforme previsto na Lei 12/93, de 22 de abril, republicada em anexo à Lei 22/2007, de 29 de junho, tendo a Declaração da Ordem dos Médicos, publicada no Diário da República, 1.ª série-B, n.º 235, de 11 de outubro de 1994, fixado os critérios e regras de semiologia médico-legal de verificação da morte cerebral.
Neste momento, urge por isso, atualizar os critérios de verificação da morte para efeitos de doação, associando ao conjunto de critérios e regras semiológicas médico-legais para a verificação da morte cerebral, outros cientificamente irrefutáveis que permitam reger a colheita de órgãos em doentes em paragem cardiocirculatória irreversível.
Na Conferência Internacional de Maastricht em 1995, sobre dadores em paragem cardiocirculatória, foram identificadas 4 Categorias de doentes, sendo adicionada a classe V em 2000, pelo grupo de Madrid:
Categoria I - Morte à chegada - vítimas de acidente ou de paragem cardiocirculatória, encontradas mortas no local pela equipa de ressuscitação, não se sabendo em regra o tempo de isquemia quente, e transportadas para o hospital.
Categoria II - Ressuscitação infrutífera - dadores que tiveram morte cardíaca súbita ou que apresentam lesões cerebrais catastróficas seguida de paragem cardiocirculatória, ocorridas no hospital ou no exterior deste. Sujeitos a manobras de ressuscitação sem êxito, declarada a morte cardíaca, sendo depois mantidas as manobras de ressuscitação e transportados até ao hospital.
Categoria III - Doentes irreversíveis que aguardam paragem cardíaca - doentes em regra internados em Serviço de Medicina Intensiva, com doença de evolução irreversível. É suspenso o suporte de funções vitais e o doente é transportado para o bloco operatório, onde se aguarda que a paragem cardíaca ocorra nos 90 minutos seguintes.
Categoria IV - Paragem após diagnóstico de morte cerebral - doentes que sofrem paragem cardíaca inesperada após ou durante o diagnóstico de morte cerebral.
Categoria V - Morte por paragem cardíaca inesperada de doentes internados em serviços de medicina intensiva - Período de isquemia quente - definido como o período entre a paragem cardíaca e o início da ressuscitação cardiocirculatória. Este é descrito como o período de isquemia quente absoluta, porque durante o processo de ressuscitação há um somatório de outros períodos de isquemia quente designados como relativos, cuja importância na viabilidade final do órgão será em função da forma melhor ou pior como foi realizada a ressuscitação.
As duas primeiras categorias são designadas como não controladas em termos de isquemia quente e esta é determinante para o êxito da recuperação funcional do órgão transplantado. A maioria dos protocolos de doação em paragem cardiocirculatória para transplante renal excluem órgãos com períodos prolongados de isquemia quente, situando-se o "cut-off» habitual entre 30 a 45 minutos. Por isso é fundamental a canulação do doente, para manobras de preservação "in situ» dos órgãos a transplantar, através de circulação extracorpórea ou da perfusão dos órgãos abdominais (fígado, e sobretudo rins) com líquidos de arrefecimento administrados por cateteres de dupla via. Por cada 10º de arrefecimento, reduz-se o metabolismo celular a 50 %, diminuindo a velocidade de progressão das lesões.
Em Portugal, à semelhança de outros países do sul da Europa em que não existe uma tradição de limitação do esforço terapêutico aceite socialmente e em que a maioria das colheitas se faz por consentimento presumido, vai optar-se por colher órgãos de dadores em paragem cardiocirculatória para transplante só na Categoria II de Maastricht.
À Ordem dos Médicos compete, ouvido o Conselho Nacional da Ética para as Ciências da Vida (CNECV), definir, manter atualizados e divulgar os critérios médicos, técnicos e científicos de verificação da morte, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 3.º da Lei 141/99, de 28 de agosto.
Nos termos do artigo 5.º da Lei 141/99, de 28 de agosto, os documentos elaborados pela Ordem dos Médicos fixando os critérios para a verificação da morte estão sujeitos à aprovação do membro do Governo responsável pela saúde.
Assim, em cumprimento do disposto no artigo 5.º da Lei 141/99, de 28 de agosto, e ouvido o Conselho Nacional da Ética para as Ciências da Vida, determino o seguinte:
1 - Os requisitos necessários para a colheita de órgãos em dadores falecidos em paragem cardiocirculatória são os seguintes:
a) A pessoa falecida a quem se pretende extrair órgãos não esteja inscrita no Registo Nacional de Não Dadores (RENNDA);
b) O diagnóstico da paragem irreversível das funções cardiocirculatórias tenha sido feito mediante exame clínico adequado, após um período apropriado de observação, de acordo com o disposto no anexo ao presente despacho e do qual faz parte integrante;
c) A extração de órgãos a dadores falecidos só pode fazer-se após comprovação e certificação da morte (ausência irreversível das funções cardiocirculatórias e cerebrais), realizada de forma e com os requisitos que constam no anexo ao presente despacho por médicos com qualificação ou especialização adequadas a este fim, independentes daqueles que realizam colheitas ou transplantes;
d) Ser registada como hora legal de falecimento a hora em que se completou o diagnóstico de morte;
e) Após o diagnóstico de morte do indivíduo para efeitos de doação, procede-se a técnicas de preservação, com vista à colheita de órgãos, tal como previsto no anexo ao presente despacho.
2 - O presente despacho produz efeitos à data da sua publicação.
29 de outubro de 2013. - O Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde, Fernando Serra Leal da Costa.
ANEXO
Diagnóstico e certificação da morte por paragem cardiocirculatória
O diagnóstico e certificação da morte por paragem cardiocirculatória requer a demonstração da cessação irreversível das funções cardíaca e circulatória.
1 - Diagnóstico
Para o estabelecimento do diagnóstico de morte por paragem cardiocirculatória é necessário que se verifiquem as seguintes condições:
a) Ausência inequívoca de batimentos cardíacos, traduzida por ausência de pulso central, de traçado eletrocardiográfico compatível com atividade ventricular eficaz, midríase arreflexiva;
b) Ausência de movimentos respiratórios espontâneos por período não inferior a 10 minutos;
c) Realização, durante um período não inferior a 30 minutos, de manobras de suporte avançado de vida, ajustadas à idade e às circunstâncias que determinaram a paragem cardiocirculatória;
d) Nos casos de hipotermia (temperatura corporal (menor que)32º), as manobras de ressuscitação deverão ser prolongadas até à normalização térmica (36º) antes de se proceder ao diagnóstico de morte por paragem cardiocirculatória.
2 - Metodologia
a) O diagnóstico da morte por paragem cardiocirculatória é feito pelo médico que procedeu às manobras de suporte avançado de vida por período não inferior a 30 minutos e por um médico intensivista que na sequência do processo anterior verifica a ausência inequívoca de pulso central, de traçado electrocardiogáfico compatível com atividade ventricular eficaz, midríase arreflexiva e ausência de movimentos respiratórios espontâneos por período não inferior a 10 minutos, confirma a morte e passa a certidão.
b) Nos casos em que a paragem cardiocirculatória ocorra fora do hospital ou o médico da equipa de ressuscitação seja diferente daquele que atesta o óbito, o diagnóstico de morte tem de ser comprovado por dois médicos. Os primeiros confirmam que se procederam a manobras de suporte avançado de vida durante um período não inferior a 30 minutos, enquanto os segundos confirmam na sequência do processo anterior a ausência de pulso central, de traçado eletrocardiográfico compatível com atividade ventricular eficaz, midríase arreflexiva e ausência de movimentos respiratórios espontâneos por período não inferior a 10 minutos.
c) Nenhum dos médicos que intervêm no diagnóstico e certificação da morte podem pertencer a equipas envolvidas na colheita ou transplante de órgãos ou tecidos.
d) O coordenador hospitalar de doação e o gabinete coordenador de colheita e transplantação devem ser contactados de imediato para os procedimentos adequados de acordo com validação do dador e consulta ao RENNDA.
3 - Manobras de manutenção de viabilidade e de preservação
a) A equipa encarregue da preservação dos órgãos só iniciará as suas funções após ser passada a certidão de óbito ou preenchidos os formulários da área da medicina legal.
b) A equipa encarregue da preservação deve zelar para que todos os procedimentos tendentes à preservação dos órgãos sejam desenvolvidos.
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