Resolução da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira n.º 18/2013/M
JUSTA HOMENAGEM ÀS MULHERES MADEIRENSES PARTICIPANTES NA "REVOLTA DO LEITE" DE 1936
"As mulheres madeirenses deram um amplo e importante contributo ao processo de contestação do modelo organizativo do sector do leite, preconizado e imposto pelo Governo de Salazar, através do Decreto-Lei 26655 de 4 de Junho de 1936.
Em todos os concelhos que aderiram de início à Revolta do Leite, Santana, Machico, Santa Cruz, Funchal, Câmara de Lobos, Ribeira Brava e Ponta do Sol, as mulheres ombrearam com os homens nos protestos e manifestações de rua, enfrentando a polícia.
Embora não se tenha encontrado registo do número exacto de mulheres presas, sobretudo ao nível dos diversos concelhos, sabemos o suficiente para poder dizer que a sua participação foi significativa e vigorosa.
Porém, as suas condições de prisão foram bem mais degradantes que as dos homens. As mulheres presas tanto no Funchal como o grupo das dez jovens enviadas para Lisboa foram alojadas em prisões conjuntas com prostitutas, uma situação que escandalizou a sociedade madeirense de então, pois no Funchal houve conhecimento público deste facto.
Na sua maioria, as presas eram mulheres casadas, pessoas respeitadas, como comentou alguma imprensa da época ou ainda o P.e César Miguel Teixeira da Fonte, na altura pároco do Faial e também um dos presos da Revolta, em documento enviado a Oliveira Salazar e ao Ministro do Interior Pais de Sousa.
Apenas o grupo enviado para Lisboa era constituído por jovens quase todas solteiras e algumas de menor idade (menos de 21 anos), como consta de documento do advogado José d'Albuquerque Rodrigues que, na qualidade de advogado das detidas, intercedeu por elas junto dos órgãos do poder salazarista, designadamente junto do ministério da justiça e da PVDE."
[João Abel de Freitas, As Mulheres na Revolta do Leite (Madeira: 1936), in Islenha n.º 50.]
A "Revolta do Leite", levantamento popular ocorrido na Madeira, em 1936, surge como protesto contra o Decreto-Lei 26.655, de 4 de junho de 1936, que estabelecia o monopólio na indústria dos laticínios, através da criação da Junta Nacional dos Laticínios da Madeira, uma decisão que acarretaria devastadoras consequências, nomeadamente para o mundo rural e para os pequenos produtores, agravando assim as já difíceis condições económicas e sociais em que viviam os habitantes deste arquipélago.
À época, o setor dos laticínios tem um peso muito importante para a economia da Madeira e contribui para uma significativa fatia do rendimento de muitas famílias da Região, o que pode ser comprovado pela existência de mais de um milhar de postos de desnatação espalhados por toda a ilha, os quais serviam diretamente 64 fábricas. O leite que chegava a estes postos provinha do gado criado por pequenos criadores e, como a procura de leite, por parte das unidades produtoras, era largamente superior à oferta, os preços praticados pelo mercado eram francamente compensadores.
A intervenção do Governo Central, materializada através do disposto no Decreto-Lei 26.655, de 4 de junho de 1936, veio alterar tudo isto. Os impactos das medidas preconizadas pelo referido diploma - a redução significativa do valor oferecido pelo leite, o encerramento de muitos posto de desnatação e o consequente aumento do desemprego - tornaram-se assim de tal forma insustentáveis e gravosos que rapidamente despoletaram sublevações populares um pouco por toda a ilha da Madeira.
Ao mobilizar milhares de camponeses - a que se associaram outras camadas sociais madeirenses - ao generalizar-se praticamente a toda a ilha da Madeira, e ainda pela sua combatividade, esta insurreição assumiu o caráter de um levantamento popular no sentido estrito do termo. Um levantamento popular que, tendo embora como causa primeira uma razão económica - a reação contra um decreto governativo que sacrificava os interesses dos pequenos produtores de leite no altar dos grandes interesses económicos -, veio a assumir um caráter vincadamente político ao afrontar o aparelho de Estado fascista e aspetos marcantes da sua política.
Não será despropositado dizer-se que se a "Revolta da Marinha Grande" de 18 de janeiro de 1934 foi a primeira grande ação autónoma da classe operária contra o pacote legislativo institucionalizador do regime corporativo-fascista do Estado Novo e em defesa da liberdade sindical, a "Revolta do Leite" foi a primeira grande ação de camponeses e pequenos produtores contra a política económica do Fascismo, política que visava a concentração e centralização do capital, com recurso à ação coerciva do Estado, ou seja, aquela que foi a matriz condutora da política económica do regime até 1974.
O levantamento popular na Madeira no verão de 1936 não pode ser desligado do quadro da vida nacional e internacional que se vivia na época.
Os meios militares - do Exército e da Marinha - e os meios policiais a que o Estado se viu forçado a mobilizar para esmagar o levantamento popular foram enormes. A brutal repressão, com centenas de presos e vários mortos e feridos, só teve paralelo com a onda repressiva desencadeada contra a "Revolta dos Marinheiros", em setembro de 1936, violência acompanhada ao mais alto nível, incluindo a intervenção direta de Oliveira Salazar.
As ordens do governo quanto à natureza que a repressão devia assumir não deixam dúvidas quanto à importância que o regime atribuía aos acontecimentos e de como avaliava o ambiente político e social na Região, determinando que a "desordem deve ser inexoravelmente reprimida" e declarando que "o governo está resolvido a acabar com a impunidade existente no arquipélago". O Ministro do Interior, que defendia dever a repressão ser de tal forma brutal que acabasse com qualquer vontade de protestos no futuro, ordenava que "qualquer movimento que de novo se esboce como reação contra as medidas tomadas ou a tomar, seja qual for o pretexto, deve ser imediata e severamente reprimido e de tal maneira que a gente da Madeira se convença que é inútil e prejudicial lutar contra um estado que apenas procura o seu bem". Estas palavras demonstram bem até que ponto se temiam quaisquer lutas, presentes e futuras, e a noção de que toda e qualquer revolta poderia desencadear um processo difícil de controlar, caso não fosse sufocada à nascença e não se incutisse nas populações o medo da repressão.
A ação repressiva exercida sobre a população é brutal e implacável. Centenas de pessoas são presas. As freguesias rurais são invadidas pela calada da noite, e os seus habitantes presos e torturados, por vezes diante das próprias famílias; segundo relatos da época, são mortos nove camponeses.
Quando a PVDE - Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (antecessora da PIDE), assessorada pelas forças policiais, não consegue localizar quem procura não tem escrúpulos em aprisionar os familiares diretos dos seus suspeitos que, independentemente da idade ou sexo, são encarcerados na Cadeia do Lazareto, no Funchal, onde as condições eram particularmente atrozes. Os prisioneiros são mantidos num espaço minúsculo, com pouco arejamento, e quase sem luz natural. As dejeções são armazenadas em latas de petróleo. Entre os presos contam-se quatro crianças de onze anos cujo único crime foi serem portadores do mesmo nome que outros familiares.
Em outubro de 1936, alguns dos presos embarcam no navio "Luanda", alguns com destino aos Açores, onde ficam detidos na Fortaleza de S. João Baptista, em Angra do Heroísmo, e outros deportados para Cabo Verde, onde conhecerão o infame Campo de Concentração do Tarrafal.
A par da repressão, o Estado Novo levou ainda mais longe a humilhação ao povo da Madeira (bem exemplificativa do ódio nutrido pelo regime fascista em relação às populações insulares), com o Decreto-Lei 26.982, de 5 de setembro de 1936, o qual estabelecia que as despesas resultantes da insurreição seriam pagas (e a preços especulativos...) pelos habitantes da ilha da Madeira, principalmente pelos residentes nos concelhos onde a revolta havia registado maior adesão e expressão.
Nesta revolta popular, as mulheres lutaram ao lado dos homens na defesa dos seus justos direitos, contra o autoritarismo do regime e as medidas lesivas que este procurava impor, sofrendo de igual maneira as consequências da repressão que se abateu sobre quem ousou levantar a voz contra a Ditadura. Estiveram na primeira linha da insurreição, atuando com combatividade e determinação. Dezenas foram presas e sujeitas a tratamento degradante, nos interrogatórios e na detenção, das quais se destacam, entre outras, Augusta Mendes, Conceição Freitas Caldeira, Josefina de Freitas Caldeira, Virgínia de Freitas Caldeira, Carolina Fernandes Caniço, Isabel Castro, Maria Cezária, Rosa da Conceição, Perpétua da Conceição, Maria da Corte, Teresa da Corte, Maria Gomes Duarte, Augusta da Encarnação, Carolina Gonçalves Farinha, Rosa Fernandes, Agostinha de Freitas, Rosa de Freitas, Georgina Franco de Freitas, Maria Gomes, Ana de Gouveia, Maria Gonçalves Jardim, Luísa de Jesus, Luzia de Jesus, Maria de Jesus, Maria José, Virgínia Gomes Luís, Maria Marques, Maria Mendonça, Libânia Nunes, Sofia Nunes, Rosa Pereira, Matilde da Ponte, Maria do Sacramento, Maria da Silva, Iria de Sousa e Cristina Teixeira; presas, constituídas arguidas e, embora não condenadas, algumas passaram cerca de um ano na Cadeia do Funchal.
E dez delas foram alvo de "tratamento especial" por parte do regime fascista, com transferência para o Continente, julgamento e condenação em Tribunal Militar Especial e posterior cumprimento de pena de prisão na "Cadeia das Mónicas", em Lisboa: Ludovina de Jesus da Corte, Agostinha da Câmara, Francisca Andrade, Maria de Jesus Silva, Maria Rosa de Abreu, Maria de Jesus Andrade, Conceição da Câmara Rodrigues, Tereza da Corte, Virgínia de Jesus e Maria de Souza.
Pela sua coragem, pela sua luta por melhores condições de vida e contra a prepotência do Fascismo e pelo sofrimento e degradação a que foram submetidas, estas mulheres merecem, assim, a justa homenagem e reconhecimento que lhes é devido pela Região Autónoma da Madeira.
Assim, em conformidade com a Constituição da República Portuguesa e com o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, e de acordo com o Regimento, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira delibera homenagear publicamente as mulheres madeirenses participantes na "Revolta do Leite" de 1936, que estiveram na primeira linha da combatividade e determinação, que foram presas e torturadas, vexadas e sujeitas a regime prisional degradante, prestando-se, assim, um tributo público em nome desta Região às mulheres madeirenses que, na "Revolta do Leite", mais sofreram a dura repressão e, em especial, as dez mulheres enviadas para o Continente, julgadas e condenadas em Tribunal Militar Especial, e, que cumpriram pena na "Cadeia das Mónicas", em Lisboa.
Aprovada em sessão plenária da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira em 4 de julho de 2013.
O Presidente da Assembleia Legislativa, José Miguel Jardim Olival de Mendonça.