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Parecer 14/2012-C, de 14 de Setembro

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Sumário

Emite parecer sobre a contagem do prazo de mora na entrega do primeiro submarino a que se refere o contrato de aquisição celebrado entre o Estado português e o German Submarine Consortium (GSC).

Texto do documento

Parecer 14/2012-C

Contrato de aquisição de equipamento militar.

Contrato administrativo. Penalidades contratuais.

Mora do credor. Acordo endocontratual.

Processo 14/2012-C

1 - A não receção do primeiro submarino por parte do Estado português na data em que o mesmo ficou disponível para entrega pelo Fornecedor pode configurar mora do credor, prevista no artigo 813.º do Código Civil.

2 - A verificação de uma situação de mora do credor depende da inexistência de um motivo justificado para a não receção do bem, pelo que no caso concreto:

i) Ou não existe um motivo justificado e há mora do credor, o que implica que os 7 dias de diferença (decorridos entre 10 e 17 de junho de 2010) não possam ser contabilizados no período de mora, o qual deixaria, por isso, de ser de 59 dias para passar a ser de 52 dias;

ii) Ou existe um motivo justificado não imputável ao Fornecedor e, apesar de não haver mora do credor, o devedor não pode ser prejudicado pelo atraso na entrega da coisa, pelo que o prazo de mora será, igualmente, de 52 dias;

iii) Ou existe um motivo justificado imputável ao Fornecedor e, nesse caso, o período de mora é de 59 dias.

3 - A eventual existência de um acordo entre as partes contratantes - que não consubstancia um acordo endocontratual nos termos do artigo 310.º do Código dos Contratos Públicos -, no sentido de diferir a data da receção do submarino não altera nenhuma das conclusões anteriores.

Senhor Ministro da Defesa Nacional Excelência:

I. Apresentação da Consulta

Solicitou V. Ex.ª ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República a emissão de um parecer complementar cujo objetivo é obter um "esclarecimento urgente relativo ao ponto 6. das conclusões do Parecer 14/2012, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, votado na sessão de 1 de junho de 2012" (1).

A Consulta prossegue nos seguintes termos:

"Lamentavelmente não foi levado ao conhecimento deste Gabinete, e por conseguinte do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, o despacho em anexo, datado de 15 de junho de 2010, do então Ministro da Defesa Nacional.

Perante o teor do referido despacho, que reflete o acordo existente entre o Estado português e o German Submarine Consortium, para a receção provisória do primeiro submarino apenas no dia 17 de junho de 2010, ao invés do dia 10 de junho de 2010, data em que o bem se encontrava disponível para entrega por parte do fornecedor, questiona-se, se, para efeitos do preenchimento da fórmula de cálculo constante do n.º 1 da cláusula 44.ª, o período de mora a ter em consideração na aplicação das penalidades se deve reportar a 52 ou a 59 dias de atraso."

Este pedido de parecer complementar surge na sequência do parecer solicitado ao Conselho Consultivo, em 20 de abril de 2012, no qual se colocavam diversas questões relativas ao cumprimento do contrato de aquisição de dois submarinos diesel elétricos com sistema AIP celebrado entre o Estado português e o German Submarine Consortium (adiante designado GSC) celebrado em 21 de abril de 2004 (adiante designado Contrato), sobretudo quanto à fórmula de cálculo aplicável à aplicação de penalidades por mora na entrega dos dois submarinos.

Nesse Parecer, ao qual foi atribuído o n.º 14/2012 e que foi votado na sessão do Conselho Consultivo de 1 de junho de 2012, refere-se na 6.ª conclusão, relativamente à qual é solicitado agora o presente parecer complementar, o seguinte:

"6. Para efeitos do preenchimento da fórmula de cálculo constante do n.º 1 da Cláusula 44.ª, o período de mora é de 59 (cinquenta e nove) dias de atraso no caso do primeiro submarino e 19 (dezanove) dias de atraso no caso do segundo."

Cumpre, então, emitir o pretendido parecer complementar, com a urgência solicitada, nos termos das disposições conjugadas da alínea a) do artigo 37.º do Estatuto do Ministério Público e dos artigos 3.º e 14.º, n.º 1, do Regimento do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República.

Saliente-se que, não competindo a este Conselho fazer indagação da matéria de facto, o Parecer debruçar-se-á exclusivamente sobre os factos trazidos ao nosso conhecimento pelo Consulente.

II. Colocação do problema e razão de ordem

1 - Como resulta claro da apresentação acima efetuada o que está em causa neste parecer complementar é uma questão circunscrita que se prende apenas com a contagem do período de mora na entrega do 1.º submarino, em virtude do surgimento de uma informação nova, a saber: que este submarino estaria pronto para entrega em 10 de junho de 2010, mas apenas foi recebido a 17 de junho de 2010 por acordo entre as partes contratantes, sem que, no entanto, seja esclarecido quais as causas que motivaram este acordo.

Sendo assim, haveria uma diferença de 7 dias - período que decorre entre 10 de junho de 2010 e 17 de junho de 2010 - da qual resultaria um período de mora de 52 dias em vez do 59 dias que constam do Parecer 14/2012.

Deve, antes de mais, reproduzir-se o raciocínio formulado no Parecer 14/2012.

2 - No ponto 6. do pedido de parecer enviado pelo MDN em 20 de abril de 2012, era referido, quanto aos prazos de entrega do primeiro submarino, a informação que se transcreve de seguida:

"Em concreto, a receção provisória do primeiro submarino e respetivo fornecimento complementar de bordo teve lugar em 17 de junho de 2010, quando contratualmente estava prevista a data de 3 de janeiro do mesmo ano, sendo certo que o GSC informou o estado português, em 10 de junho do mesmo ano, de que o submarino estaria em condições de ser recebido provisoriamente. Entretanto, foi reconhecida entre as partes a verificação de um caso de força maior num período relativamente curto de 16 (dezasseis) dias."

Com base nestes elementos, a contagem que é efetuada no parecer é a seguinte:

"No primeiro submarino o atraso só se começa a contar a partir de 19 de abril de 2010 (3 de janeiro de 2010 + 3 meses = 3 de abril de 2010 + 16 dias = 19 de abril de 2010). Trata-se, portanto, de 59 (cinquenta e nove) dias de atraso, que corresponde à diferença entre 19 de abril de 2010 e 17 de junho de 2010".

Os 3 meses resultam da moratória constante do n.º 1 da Cláusula 44.ª do Contrato, nos termos da qual as penalidades por mora na entrega dos submarinos só seriam aplicadas se o atraso excedesse os três meses.

Por sua vez, os 16 dias resultam da verificação de um caso de força maior por esse período, referido na Consulta inicial.

Assim, o atraso só se começa a contar a partir de 19 de abril de 2010.

Ora, entre 19 de abril de 2010 e 17 de junho de 2010 decorrem 59 dias de mora.

3 - A informação agora trazida a este Conselho esclarece que o Fornecedor poderia ter entregue o submarino no dia 10 de junho de 2010, não o tendo feito por acordo com o MDN para que a receção - que se opera através da assinatura do auto de receção provisória, nos termos da Cláusula 29.ª do Contrato - ocorresse apenas a 17 de junho.

Sendo assim, se se subtraírem ao período de mora os 7 dias que correspondem à diferença entre 10 de junho de 2010 e 17 de junho de 2010, o período de mora na entrega do primeiro submarino seria de 52 dias em vez de 59 dias.

Cumpre no presente parecer complementar analisar se esse período de 7 dias deve, efetivamente, ser deduzido ao período de mora.

Atendendo a que o Contrato nada diz quanto a esta matéria (2), equaciona-se de seguida a possibilidade de se estar perante uma situação de mora do credor ou perante um acordo endocontratual.

III. Da eventual existência de uma situação de mora do credor

4 - Se o Fornecedor informou o MDN de que o primeiro submarino estava pronto para entrega em 10 de junho de 2010, mas o MDN só procedeu à receção do mesmo em 17 de junho de 2010, cumpre analisar, em primeiro lugar, se haverá lugar a uma situação de mora do credor.

4.1 - Este instituto está previsto nos artigos 813.º a 816.º do Código Civil (adiante designado CC).

Nos termos do artigo 813.º do CC, "[O] credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os atos necessários ao cumprimento da obrigação."

Como refere Mário Júlio de Almeida e Costa, "[O] atraso no cumprimento atribui-se ao credor, se este, injustificadamente, omite a cooperação necessária para que o devedor efetue a prestação [...], o que pode traduzir-se em simples ato de aceitar a prestação, mas pode ainda assumir outras expressões: apresentar-se o credor, ele próprio ou um seu representante, no lugar convencionado para a prestação [...], exercer o direito de escolha numa obrigação genérica ou alternativa, passar quitação, restituir o título de dívida, etc" (3).

A constituição do credor em mora não é necessariamente culposa, pelo que a culpa não é requisito da mesma, mas sim a ausência de motivo justificado, quer este se refira ao objeto, quer a qualquer outro aspeto do cumprimento e independentemente de esse motivo ser ou não imputável ao devedor (4).

Na mesma linha, Galvão Telles salienta que a culpa não é um elemento da mora do credor na medida em que o credor não tem uma obrigação propriamente dita de aceitar a prestação, mas sim um ónus, razão pela qual sujeita a efeitos desfavoráveis o credor em mora (5). Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, este "facto não surpreende, pois enquanto o devedor está obrigado a cumprir, o credor não está propriamente obrigado a aceitar a prestação" (itálico no original) (6).

Mas a mora do credor também pressupõe que o devedor tenha realizado tudo o que lhe competia nos termos do contrato - caso contrário, existe um motivo justificado para o credor não aceitar a prestação e, portanto, não há mora do credor - e a sua posição não pode ser agravada por esse facto atribuído ao credor (7).

Quando há, efetivamente, mora do credor, a responsabilidade do devedor limita-se a situações de dolo e a dívida deixa de vencer juros, quer legais, quer convencionados (artigo 814.º do CC), passando a recair sobre o credor a responsabilidade pelo risco da impossibilidade superveniente da prestação, que resulte de facto não imputável a dolo do devedor (artigo 815.º, n.º 1, do CC).

Por sua vez, o artigo 816.º do CC estabelece que "[O] credor em mora indemnizará o devedor das maiores despesas que este seja obrigado a fazer com o oferecimento infrutífero da prestação e a guarda e conservação do respetivo objeto."

4.2 - No caso em apreço, pelas informações enviadas a este Conselho, não se verificou nem a impossibilidade superveniente da prestação (o submarino veio a ser entregue em 17 de junho de 2010), nem o Fornecedor veio pedir ao MDN qualquer indemnização pela guarda e conservação do bem por mais 7 dias.

No entanto, deste normativo resulta, claramente, que a dívida deixa de vencer juros, quer legais, quer convencionados, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 814.º do CC, o que, por identidade de razão - ou até por maioria de razão (8) -, não pode deixar de significar que tão pouco o credor pode aplicar penalidades pelo atraso na entrega do bem ou do pagamento da dívida.

Resta apenas saber se, no caso concreto, houve ou não um motivo justificado para que o credor - no caso, o MDN - não tenha recebido o primeiro submarino logo a 10 de junho de 2010, uma vez que a mora do credor só ocorre se não existir um motivo desse tipo, nos termos do artigo 813.º do CC.

Nada é dito quanto a essa questão na Consulta, pelo que não podemos, neste momento, aquilatar da existência ou não de uma situação de mora do credor.

De qualquer modo, é de salientar que, como salienta João Batista Machado, "[S]e a omissão do credor puder dizer-se justificada no sentido em que ele se vê impedido de praticar o ato necessário ao cumprimento efetivo, mesmo então, não obstante dever porventura dizer-se que não há mora do credor nos termos do artigo 813.º, também não haverá mora do devedor. Em tal caso poderá falar-se de impossibilidade temporária do cumprimento - bem que a hipótese não possa considerar-se de modo algum contemplada pelo artigo 792.º" (9).

E continua: "[S]alta aos olhos, porém, que o devedor não deve continuar sujeito a juros compensatórios a partir do momento em que ofereceu corretamente a prestação e teria efetivamente cumprido, não fora um obstáculo ao cumprimento procedente da esfera do credor" (10).

Por outras palavras: mesmo que o credor tenha um motivo justificado para não aceitar a prestação e, portanto, não haja mora do credor, o devedor não incorre, ele próprio em mora, visto que não lhe é imputável o atraso na realização da prestação.

João Batista Machado conclui que nos casos em que existe um motivo justificado - por exemplo, de força maior - para o credor não aceitar a prestação existe uma lacuna, na medida em que a situação não é, em rigor, coberta nem pelo disposto no artigo 792.º (impossibilidade temporária), nem pelo artigo 813.º (mora do credor).

Contudo, o devedor não pode ser prejudicado pelo atraso na realização de uma prestação quando tal atraso não lhe é imputável (11).

Sendo assim, no caso em apreço na Consulta podem traçar-se, desde já, três cenários:

Ou não existe um motivo justificado e há mora do credor, o que implica que os 7 dias de diferença (decorridos entre 10 e 17 de junho de 2010) não possam ser contabilizados no período de mora, o qual deixaria, por isso, de ser de 59 dias para passar a ser de 52 dias;

Ou existe um motivo justificado não imputável ao Fornecedor e, apesar de não haver mora do credor, o devedor não pode ser prejudicado pelo atraso na entrega da coisa (nos termos que vimos supra), pelo que o prazo de mora será, igualmente, de 52 dias;

Ou existe um motivo justificado imputável ao Fornecedor e, nesse caso, mantém-se o período de mora de 59 dias.

4.3 - No entanto, há um elemento adicional que é fornecido pelo Consulente, que se prende com a existência de um despacho da autoria do então Ministro da Defesa Nacional, datado de 15 de junho de 2010, que, segundo a informação disponibilizada a este Conselho, reflete um acordo entre o Estado português e o GSC para a receção provisória do primeiro submarino apenas no dia 17 de junho de 2010, ao invés do dia 10 de junho de 2010.

Cumpre, por isso, analisar a relevância desse acordo para o problema sub judice.

A mora do credor pode extinguir-se por acordo entre as partes contratantes, do qual resulte que deixa de haver atraso por se diferir o vencimento da obrigação para momento posterior, mas o alcance deste acordo no que respeita aos efeitos para as partes depende de o mesmo ter ou não eficácia retroativa, como refere Galvão Telles (12).

Assim: Se o acordo tiver efeitos ex-tunc, significa que o credor só fica em mora se não aceitar a prestação na nova data acordada pelas partes, pelo que os direitos do devedor resultantes dos artigos 814.º a 816.º do CC só se aplicarão depois dessa data; se, pelo contrário, o acordo tiver efeitos ex-nunc, a nova data não afasta a mora do credor decorrente do incumprimento da data anterior e, consequentemente, o devedor mantém os direitos constantes daquele artigo (13).

O despacho acima referido tem o conteúdo que se transcreve de seguida:

"De acordo com o disposto na cláusula 29.ª do Contrato de Aquisição dos Submarinos, cada um dos submarinos e respetivo fornecimento complementar de bordo são objeto de receção provisória autónoma pelo Estado.

Essa receção provisória é atestada através da assinatura de um protocolo de aceitação que, nos termos do disposto no n.º 4 da supra referida disposição contratual, é, pela parte do Estado assinada pelo Ministro da Defesa Nacional ou por entidade por este designada.

Assim:

a) Determino que a receção provisória do 1.º submarino objeto do contrato de aquisição acima mencionado, o NRP Tridente, e respetivo fornecimento complementar de bordo ocorra, conforme acordado entre as partes, em Kiel, Alemanha, no próximo dia 17 de junho de 2010;

b) Aprovo a minuta do "Protocolo de Aceitação", nos termos em que me foi apresentada e que por mim foi rubricada, e do qual fazem parte integrante dois anexos: a lista dos desvios e deficiências aos desempenhos contratualmente estabelecidos que, apesar de não afetarem as funções vitais do submarino, constam como reservas ao protocolo de aceitação e a lista de sistemas e equipamentos sobre os quais foram acordadas extensões de garantia adicionais;

c) Delego no Chefe de Estado-Maior de Armada, Almirante Fernando José Ribeiro de Melo Gomes, com possibilidade de subdelegação, a competência para assinar o "Protocolo de Aceitação" e respetivos anexos;

d) Determino que o "Protocolo de Aceitação", depois de assinado pelas partes, fique depositado na Direção-Geral de Armamento e Infraestruturas de Defesa."

Da leitura do despacho não se consegue sequer dilucidar se o mesmo reflete, de facto, algum acordo anterior entre as Partes - matéria que se analisará infra no ponto IV. -, mas, mesmo admitindo que sim, o texto não permite concluir com toda a segurança se as partes pretenderam ou não conferir eficácia retroativa ao mesmo.

Existe claramente a intenção de diferir o momento da entrega da coisa para uma data posterior, mas não é líquido se esse diferimento produz efeitos ex-tunc ou apenas ex-nunc.

Mas a verdade é que a questão se afigura despicienda no caso concreto, uma vez que a única relevância de discutir se o acordo tem ou não efeitos retroativos seria para determinar se as regras dos artigos 814.º a 816.º do CC são aplicáveis: se for retroativo, o devedor perde os direitos que lhe são conferidos por estas normas, enquanto que se não for retroativo mantém esses direitos.

Na situação em apreço não são aquelas disposições que estão em causa, mas apenas a eventual aplicação ou não de penalidades ao Fornecedor por mora na realização da sua prestação.

Ora, seja qual for o alcance temporal do acordo, parece claro que o Fornecedor não pode ser penalizado pelo atraso na entrega da coisa quando esse atraso se ficou a dever à não receção da mesma por parte do credor, a não ser que isso tenha sido provocado por motivo imputável ao devedor - elemento que não se pode apurar a partir dos elementos fornecidos a este Conselho.

É verdade que o Fornecedor poderia ter procedido à consignação em depósito da coisa (independentemente da evidente dificuldade em fazê-lo, atendendo ao bem em causa), liberando-se, desse modo, da obrigação, de acordo com o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 841.º do CC. Contudo, este é um meio facultativo, nos termos do n.º 2 do artigo 841.º do CC, cuja não utilização não tem o efeito de agravar a situação do devedor (14).

IV. Da eventual existência de um acordo endocontratual

5 - Existe ainda uma outra perspetiva de análise do problema colocado na Consulta, atendendo à natureza administrativa do Contrato.

Quanto à qualificação deste contrato como administrativo, remete-se para as considerações tecidas quer no Parecer 4/2010, de 4 de maio de 2010 (15), quer no Parecer 14/2012, de 1 de junho de 2012, do qual o presente Parecer é complementar.

5.1 - Refira-se, em primeiro lugar, que as considerações tecidas no ponto anterior do presente Parecer aplicam-se ao Contrato, apesar de se tratar de um contrato administrativo, na medida em que o instituto da mora do credor não está tratado no Código dos Contratos Públicos (adiante designado CCP), aprovado pelo Decreto-Lei 18/2008, de 29 de janeiro (16).

Como se referiu no Parecer 14/2012, apesar de o CCP não se aplicar ao Contrato, atendendo ao disposto no artigo 16.º do respetivo diploma preambular (17), tem um "caráter tendencialmente omnicompreensivo ao nível do regime jurídico dos contratos administrativos", o que justifica uma referência à sua regulamentação nesta matéria.

Efetivamente, não existindo um regime jurídico aplicável à mora do credor no CCP, o mesmo deve procurar-se no CC, de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 280.º do CCP (18).

Nem se pode, tão pouco, objetar que a figura da mora do credor pura e simplesmente não se aplica aos contratos administrativos, visto que a mesma é referida nos artigos 394.º, n.º 6 (19), e 395.º, n.º 7, do CCP, remetendo para o Direito Civil as determinação das consequências da mesma.

Refira-se, aliás, que o artigo 395.º, n.º 7, apesar de se aplicar aos contratos de empreitada de obras públicas, regula, no essencial, uma situação muito próxima da que se analisa no presente parecer, em moldes semelhantes aos que resultam do CC, razão pela qual se transcreve de seguida:

"7 - A recusa injustificada do dono da obra em assinar o auto de receção provisória na sequência da vistoria tem os efeitos previstos no direito civil para a mora do credor."

5.2 - A existência de um eventual acordo entre as partes contratantes quanto ao diferimento da data de entrega do primeiro submarino, que teria sido vertido no despacho acima transcrito, impõe que se traga à colação o disposto no artigo 310.º do CCP a propósito dos acordos endocontratuais.

Antes de mais, justifica-se transcrever o preceito:

"Artigo 310.º

Acordos endocontratuais

1 - Salvo se outra coisa resultar da natureza dos efeitos jurídicos pretendidos, podem as partes no contrato celebrar entre si, sob forma escrita, acordos pelos quais substituam a prática de atos administrativos pelo contraente público em matéria de execução do contrato ou que tenham por objeto a definição consensual de parte ou da totalidade do conteúdo de tais atos administrativos.

2 - Os acordos endocontratuais sobre a modificação do contrato dependem dos pressupostos e estão sujeitos aos limites estatuídos no capítulo seguinte.

3 - Os acordos endocontratuais integram o contrato a que dizem respeito."

Tal como resulta do artigo, estes acordos são contratos através dos quais o contraente público exerce os seus poderes de conformação da relação contratual previstos no artigo 302.º do CCP (que assumem a forma de ato administrativo de acordo com o disposto no artigo 307.º, n.º 2).

Os acordos endocontratuais podem substituir o próprio ato administrativo - caso em que serão contratos substitutivos de atos administrativos ou decisórios - ou apenas condicionar o seu conteúdo, definindo consensualmente o seu objeto, total ou parcialmente - caso em que se devem qualificar como contratos obrigacionais (20). Estes contratos são designados pelo CCP como contratos sobre o exercício de poderes públicos [artigos 1.º, n.º 6, alínea b) e 336.º do CCP].

Cumpre analisar se a figura dos acordos endocontratuais se aplica à situação em apreço e, em caso afirmativo, se isso altera as conclusões a que se chegou no ponto anterior do presente Parecer.

Em primeiro lugar, parte-se do pressuposto - que decorre das informações enviadas a este Conselho - que existiu um acordo entre as partes prévio à elaboração do despacho do Ministro da Defesa Nacional datado de 15 de junho de 2010, que condicionou a data nele fixada para a receção do submarino.

Por sua vez, o despacho é, efetivamente, um ato administrativo, embora este ato não introduza unilateralmente uma modificação ao Contrato.

De facto, o que aquele despacho determina é a data e os termos em que se procederá à assinatura do protocolo de receção e delega a competência para a sua assinatura, mas nenhum destes aspetos consubstancia uma alteração ao Contrato.

Por outras palavras, o despacho não configura o exercício de nenhum dos poderes de conformação da relação contratual previstos no artigo 302.º do CCP designadamente, o poder de modificação unilateral [alínea c) do artigo 302.º] (21).

O que significa, por si só, que, atendendo à definição de acordo endocontratual consagrada no artigo 310.º do CCP, acima citado, o acordo prévio à elaboração daquele despacho não se subsume naquela figura.

Em segundo lugar, mesmo que se concluísse que, do ponto de vista substantivo, existe um acordo endocontratual, a verdade é que estes estão sujeitos à forma escrita e "passam a integrar o contrato a que dizem respeito", nos termos dos n.os 1 e 3 do artigo 310.º do CCP, o que sempre decorreria da necessária existência de um paralelismo de forma entre este contrato e o contrato principal (22).

De facto, enquanto que nos contratos privados o princípio geral em matéria de formalismo negocial é o princípio da liberdade declarativa ou liberdade de forma ou consensualidade, nos termos do artigo 219.º do CC, não é essa a regra nos contratos administrativos, relativamente aos quais a lei impõe a forma escrita, quer nos termos do artigo 94.º do CCP (23), quer, antes de este entrar em vigor, de acordo com o artigo 184.º do Código do Procedimento Administrativo (adiante designado abreviadamente CPA) (24).

No Direito Civil, a consequência legalmente imposta para a falta da forma é a nulidade, nos termos do artigo 220.º do CC (25), sendo que esta é também a solução que resulta do artigo 284.º do CCP.

Efetivamente, o artigo 284.º do CCP determina que, sem prejuízo de a regra geral ser a anulabilidade (n.º 1 do artigo 284.º), "[O]s contratos são, todavia, nulos quando se verifique algum dos fundamentos previstos no artigo 133.º do Código do Procedimento Administrativo ou quando o respetivo vício determine a nulidade por aplicação dos princípios gerais de direito administrativo", nos termos do n.º 2 do mesmo preceito.

Por sua vez, o artigo 133.º, n.º 2, alínea f) do CPA comina com a nulidade os atos que careçam em absoluto de forma legal.

Sendo assim, mesmo que o eventual acordo entre o Estado português e o GSC se pudesse qualificar como um acordo endocontratual, seria nulo por falta de forma, pelo que não produziria nenhum efeito jurídico.

Por isso, tem de se responder negativamente às questões de saber se a figura dos acordos endocontratuais se aplica à situação em apreço e, em caso afirmativo, se isso altera as conclusões a que se chegou no ponto anterior do presente Parecer.

V. Conclusões

Razões pelas quais se extraem as seguintes conclusões:

1 - A não receção do primeiro submarino por parte do Estado português na data em que o mesmo ficou disponível para entrega pelo Fornecedor pode configurar mora do credor, prevista no artigo 813.º do Código Civil.

2 - A verificação de uma situação de mora do credor depende da inexistência de um motivo justificado para a não receção do bem, pelo que no caso concreto:

i) Ou não existe um motivo justificado e há mora do credor, o que implica que os 7 dias de diferença (decorridos entre 10 e 17 de junho de 2010) não possam ser contabilizados no período de mora, o qual deixaria, por isso, de ser de 59 dias para passar a ser de 52 dias;

ii) Ou existe um motivo justificado não imputável ao Fornecedor e, apesar de não haver mora do credor, o devedor não pode ser prejudicado pelo atraso na entrega da coisa, pelo que o prazo de mora será, igualmente, de 52 dias;

iii) Ou existe um motivo justificado imputável ao Fornecedor e, nesse caso, o período de mora é de 59 dias.

3 - A eventual existência de um acordo entre as partes contratantes - que não consubstancia um acordo endocontratual nos termos do artigo 310.º do Código dos Contratos Públicos -, no sentido de diferir a data da receção do submarino não altera nenhuma das conclusões anteriores.

Este parecer foi votado na sessão do conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 28 de junho de 2012. - Fernando José Matos Pinto Monteiro - Alexandra Ludomila Ribeiro Fernandes Leitão, relatora - Maria de Fátima da Graça Carvalho - Manuel Pereira Augusto de Matos - Fernando Bento - Maria Manuela Flores Ferreira - Paulo Joaquim da Mota Osório Dá Mesquita - José Carlos Lopes.

Este parecer foi homologado por Sua Ex.ª o Minstro da Defesa Nacional, de 12 de julho de 2012.

Está conforme.

6 de setembro de 2012. - O Secretário da Procuradoria-Geral da República, Carlos José de Sousa Mendes.

(1) Recebido na Procuradoria-Geral da República em 18 de junho de 2012 e objeto de Despacho de S. Ex.ª o Senhor Procurador-Geral da República em 21 de junho de 2012.

(2) O Contrato apenas prevê, nos n.os 13 a 19 da Cláusula 18.ª as consequências da não emissão, pelo Estado português, do certificado de verificação das metas de progresso no caso de essa não emissão se prolongar por mais de 30 dias após a perícia técnica concluir que a meta respetiva foi cumprida. Não se trata, por isso, da situação em apreço.

(3) V. Mário Júlio de Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 11.º Edição, Almedina, Coimbra, 2008, págs. 1079 e 1080.

(4) V. Mário Júlio de Almeida e Costa, op. cit., pág. 1080.

(5) V. Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, págs. 314 e 315.

(6) V. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume ii, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, pág. 76.

(7) V. Mário Júlio de Almeida e Costa, op. cit., pág. 1081.

(8) Argumentos que justificam a interpretação extensiva. V. Batista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, págs. 165 e 166.

(9) V. João Batista Machado, "Risco Contratual e Mora do Credor (Risco da Perda do Valor-Utilidade ou do Rendimento da Prestação e de Desperdício da Capacidade de Prestar Vinculada)", in Estudos em Homenagem ao Prof.

Doutor Ferrer-Correia, volume ii, Coimbra, 1989, pág. 141.

(10) V. João Batista Machado, op. cit., pág. 142.

(11) Em sentido próximo, Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., pág. 78, também salientam que o devedor não deve ser prejudicado com a mora do credor, mesmo que este não tenha culpa.

(12) Cfr. Galvão Telles, op. cit., pág. 323.

(13) V. Galvão Telles, op. cit., pág. 310. O Autor refere-se, contudo, à mora do devedor, aplicável, nos mesmos termos à mora do credor, por remissão expressa do próprio Autor (pág. 323). Contudo, a situação tem de ser adaptada à diferente posição relativa das partes neste último caso.

(14) Neste sentido, v. Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., pág. 112 e Mário Júlio de Almeida e Costa, op. cit., pág. 1082.

(15) Homologado em 30 de maio de 2011 e publicado no Diário da República, 2.ª série, de 7 de julho de 2011.

(16) Com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.os 34/2009, de 6 de fevereiro, n.º 223/2009, de 11 de setembro, n.º 278/2009, de 2 de outubro, e n.º 131/2010, de 14 de dezembro.

(17) Este preceito estabelece que "[O] Código dos Contratos Públicos só é aplicável aos procedimentos de formação de contratos públicos iniciados após a data da sua entrada em vigor e à execução dos contratos que revistam a natureza de contrato administrativo celebrados na sequência de procedimentos de formação iniciados após essa data, salvo o disposto no n.º 2 do artigo 18.º". Ora, o CCP entrou em vigor em 30 de julho de 2008 e o Contrato foi celebrado em 21 de abril de 2004.

(18) Que estabelece o seguinte: "3 - Em tudo quanto não estiver regulado no presente Código ou em lei especial e não for suficientemente disciplinado por aplicação dos princípios gerais de direito administrativo, são subsidiariamente aplicáveis às relações contratuais jurídicas administrativas, com as necessárias adaptações, as restantes normas de direito administrativo e, na falta destas, o direito civil."

(19) Com o seguinte conteúdo: "6 - O não agendamento ou realização atempada e sem motivo justificado da vistoria por facto imputável ao dono da obra tem os efeitos previstos no direito civil para a mora do credor."

(20) Trata-se de uma distinção de matriz alemã, a propósito da qual, v., por todos, Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Almedina, Coimbra, 1987, pág. 752 e 753.

(21) Acrescente-se que um acordo com vista ao exercício consensualizado do poder de "ius variandi" por parte do contraente público estaria sujeito aos requisitos dos artigos 311.º a 315.º do CCP ex vi o n.º 2 do artigo 310.º do mesmo diploma.

(22) Como salienta Carla Amado Gomes, A Conformação da Relação Contratual no Código dos Contratos Públicos, in Estudos de Contratação Pública - I, obra coletiva, Coimbra, 2008, pág. 562.

(23) Nos termos deste artigo, "... o contrato deve ser reduzido a escrito através da elaboração de um clausulado em suporte papel ou em suporte informático com a aposição de assinaturas eletrónicas", salvo nos casos do artigo 95.º, que afasta a exigência de contrato escrito ou admite a sua dispensa nos casos nele especificados.

(24) Este preceito estabelecia que "[O]s contratos administrativos são sempre celebrados por escrito, salvo se a lei estabelecer outra forma."

(25) Como refere Mário Júlio de Almeida e Costa, op. cit., págs. 283 e 284, isto significa que o regime básico do CC é o de que os requisitos de forma possuem uma natureza "ad substantiam" e não "ad probationem".

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Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2012/09/14/plain-303582.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/303582.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2008-01-29 - Decreto-Lei 18/2008 - Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

    Aprova o Código dos Contratos Públicos, que estabelece a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo.

Aviso

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