Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 3/2017
Acórdão do STA de 29-03-2017, no Processo 1521/15 - Pleno da 2.ª Secção
Acordam no Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1 - A... e B..., com os demais sinais dos autos, dirigiram ao Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 25.º do Dec. Lei 10/2011, de 20 de Janeiro, recurso da decisão arbitral proferida no processo 200/2015-T do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), que teve por objeto duas liquidações de Imposto Sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT) relativas à aquisição conjunta de uma fracção autónoma, nos montantes de 5.184,25 (euro) e de 8.856,43 (euro).
Invocam, para o efeito, a oposição dessa decisão arbitral com o acórdão proferido pela Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em 30/05/2012, no recurso n.º 0949/11, tendo rematado as alegações do recurso com as seguintes conclusões:
1.ª A aquisição de um imóvel, ainda que isoladamente, na venda realizada no processo de insolvência na fase de liquidação da massa insolvente, não pode deixar de estar isento de Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Bens Imóveis (IMT), ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 270.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
2.ª Embora a redacção do preceito possa ser considerada ambígua, propiciando a interpretação de que tanto a "venda" como a "permuta", conjuntamente com a "cessão", estejam reportadas à empresa ou a estabelecimentos desta, tal interpretação deve ser postergada sob pena de se concluir que a ser assim, haveria uma tautologia inexplicável, pois a "cessão" da empresa (ou do estabelecimento) mais não é do que a sua "venda".
3.ª Assim, a única interpretação plausível do referido preceito é a que o entende como, reportando a isenção aos actos de venda e permuta dos próprios imóveis, incluindo os actos abrangidos pela cessão da empresa ou de estabelecimentos desta.
4.ª Esta é também a interpretação para que aponta a interpretação histórica do preceito, pois que no correspondente preceito do CPEREF, que o CIRE substituiu, o artigo 121.º isentava da sisa as transmissões de imóveis, integradas em qualquer providência, que decorressem «da autonomização jurídica de estabelecimentos comerciais ou industriais, da venda, permuta ou cessão de elementos do activo da empresa», e no n.º 49 do Preâmbulo do DL n.º 132/93, de 23 de Abril, que aprovou o CIRE e revogou o CPEREF, se fez questão de frisar expressamente que se "mantêm, no essencial, os regimes existentes no CPEREF quanto à isenção de emolumentos e benefícios fiscais".
5.ª Por outro lado, a interpretação de que a isenção está limitada à venda da "empresa ou estabelecimentos desta" choca com o sentido e extensão da autorização legislativa concedida ao Governo ao abrigo da qual foi aprovado o CIRE, fixado nos artigos 2.º e seguintes da Lei 39/2003, de 22 de Agosto, pois que, no que se refere às isenções de imposto municipal de sisa (hoje IMT), dispunha o n.º 3 do artigo 9.º daquela lei de autorização legislativa que: «Fica, finalmente, o Governo autorizado a isentar de imposto municipal de sisa as seguintes transmissões de bens imóveis, integradas em qualquer plano de insolvência ou de pagamentos ou realizadas no âmbito da liquidação da massa insolvente: c) [...] da venda, permuta ou cessão da empresa, estabelecimento ou elementos dos seus activos [...]».
6.ª Aliás, a concluir-se que o governo teria legislado de modo diverso da autorização legislativa quanto a benefícios fiscais previsto no CIRE, então não teria respeitado o sentido e extensão da autorização legislativa que lhe foi concedida, tendo legislado em matéria reservada à Assembleia da República (cf. o n.º 2 do artigo 103.º e a alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição) em desrespeito da credencial parlamentar que lhe foi conferida - o preceito seria inconstitucional.
7.ª E o certo é que, independentemente da questão da inconstitucionalidade da lei, no que respeita à mera interpretação da mesma, entre dois sentidos da lei, ambos com apoio - pelo menos mínimo - na respectiva letra, deve o intérprete optar por aquele que o compatibilize com o texto constitucional (interpretação conforme à Constituição), em detrimento da interpretação que o vicie de inconstitucionalidade.
8.ª Acresce que, a interpretação do artigo 270.º do CIRE no sentido de não isentar de IMT a venda pura e simples de um imóvel, praticada no âmbito da liquidação da massa insolvente de uma sociedade, porque, alegadamente, não se trata de uma transmissão onerosa de bens que integram a universalidade de empresa ou estabelecimento vendido, permutados ou cedidos no âmbito do plano de insolvência ou de pagamentos ou da liquidação da massa insolvente, mas sim de uma transmissão onerosa de um bem imóvel, sem qualquer relação com uma empresa ou estabelecimento, tem subjacente a possibilidade de, num processo de insolvência de uma sociedade se poder proceder à liquidação da massa insolvente com venda de bens imóveis sem qualquer relação com essa empresa ou estabelecimento, identificando aí a ausência do requisito legal para que beneficie essa venda de um bem digamos que exterior à empresa - de isenção fiscal.
9.ª Porém, a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo e ainda aqueles cuja impenhorabilidade não seja absoluta e sejam voluntariamente apresentados pelo devedor - artigo 46.º do CIRE - pelo que se não consegue conceber que haja bens que integrando a massa insolvente de uma empresa declarada insolvente possam ser integrados numa categoria de bens sem qualquer relação com essa empresa ou estabelecimento.
10.ª Por último, o fim que o legislador pretende alcançar com a concessão de isenção de IMT - fomentar e apoiar a venda rápida dos bens que integram a massa insolvente por óbvias razões de interesse dos credores, mas, também do interesse público de retoma do normal funcionamento do mundo empresarial em que cada processo de insolvência se apresenta como elemento perturbador, dando «um bónus» a quem adquirir os bens imóveis que integram a massa insolvente e que serão vendidos em fase de liquidação - permite uma leitura clara e sem sequer necessidade de interpretação extensiva do ambíguo texto do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE.
11.ª Com efeito, para se alcançar o fim antes definido não faz qualquer diferença que se esteja a vender globalmente a empresa com todo o seu activo e o seu passivo, que se esteja a vender um ou mais dos estabelecimentos comerciais que a integravam, que se esteja a vender um ou outro activo da empresa, inclusive que se esteja a vender bens que integravam o seu património mas não eram utilizados no seu giro comercial.
12.ª Em conclusão, o n.º 2 do artigo 270.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas deverá ser interpretado, tendo em conta o que acaba de expor-se, sem necessidade de qualquer interpretação extensiva, respeitando o seu texto, o fim que visa alcançar, as diversas variantes do processo de insolvência constantes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e a lógica sistemática deste diploma, como conferindo isenção de IMT, aos seguintes actos:
1. Venda
2. Permuta
3. Cessão (da empresa ou do estabelecimento)
Desde que qualquer um desses actos esteja integrado no âmbito de um plano de insolvência, de um plano de pagamentos ou de um plano de recuperação ou seja praticado no âmbito da liquidação da massa insolvente.
13.ª E na decisão arbitral recorrida nada se diz que faça concluir noutro sentido.
TERMOS em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida e anuladas as liquidações de IMT 160915017986030 e 160915017977031, fixando-se jurisprudência no sentido que a aquisição de um imóvel, ainda que isoladamente, na venda realizada no processo de insolvência na fase de liquidação da massa insolvente, está isento de Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Bens Imóveis (IMT), ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 270.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
1.2 - A Autoridade Tributária apresentou contra-alegações, que finalizou com as seguintes conclusões:
A) A decisão arbitral sob recurso procedeu a uma correcta interpretação e aplicação do n.º 2 do art. 270.º do CIRE, tendo analisado, de forma rigorosa, exaustiva e séria dos arestos do STA que convocam como fundamentam das suas alegações de recurso, bem como a evolução legislativa da isenção de IMT prevista naquele preceito legal.
B) Razão por que deve ser mantida.
C) O teor literal do art. 270.º, n.º 2, do CIRE é inequívoco no sentido de a isenção de IMT aí referida não suscitar qualquer tipo de dúvida, já que foi intenção do legislador limitar a isenção de IMT às transmissões onerosas de bens imóveis integradas na universalidade do estabelecimento ou empresa, com exclusão da alienação separada dos seus activos, independentemente de a transmissão ser efectuada no âmbito de plano de insolvência ou pagamentos ou da liquidação da empresa.
D) A vinculação do legislador ordinário à autorização legislativa abrange apenas o seu limite temporal de duração, não podendo consequentemente o Governo proceder à utilização da autorização legislativa após a sua caducidade, e o sentido e alcance da norma legal autorizante, que o Governo não pode respectivamente adulterar ou ultrapassar.
E) O Governo pode, assim, utilizar apenas parcialmente as autorizações legislativas concedidas, salvo quando delas conste a incindibilidade das diferentes normas que a compõem.
F) Essa é uma solução pacífica que jamais seria posta em causa pela vasta jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a matéria, citando-se, a título de exemplo, o Acórdão 556/2003, proferido no processo 188/2003, de 12/11/2003, (DR, 2.ª S., n.º5, de 7/01/2004), em que se decidiu que ficando aquém da autorização legislativa, mas legislando dentro do conteúdo e sentido desta, o diploma autorizado não padece de invalidade normativa.
G) Por outro lado, de referir que o regime de isenções previsto no CPEREF foi, no essencial, mantido no CIRE, com a única excepção de não estar prevista a isenção de IMT para o caso de venda, permuta ou cessão dos "elementos dos activos" da empresa ou estabelecimento.
H) Assim, esta obrigatoriedade de manutenção do regime, no essencial, não pode querer significar uma obrigatoriedade de manutenção integral do regime, pois, se assim fosse, o Preâmbulo haveria de constar que "mantêm-se integralmente os regimes existentes no CPEREF quanto à isenção de emolumentos e benefícios fiscais" ou outra equivalente, o que manifestamente não sucedeu.
I) Como refere a decisão recorrida, o art. 234.º da Lei 66-B/2012, conferiu nova redacção ao art. 270.º, n.º 2, do CIRE, no sentido novamente de a isenção de IMT abranger apenas a venda da empresa ou estabelecimento efectuada no âmbito da liquidação da massa insolvente.
J) A nova redacção já vigorava aquando da transmissão que originou o presente pedido de pronúncia arbitral, como, também, nota a decisão recorrida.
L) Assim, a venda de um imóvel não está isenta de IMT conforme estipula o n.º 2, do art. 270.º do CIRE, visto que não se trata de uma transmissão onerosa de bens que integram a universalidade da empresa ou do estabelecimento vendidos, permutados ou cedidos no âmbito do plano de insolvência ou de pagamentos ou da liquidação da massa insolvente, mas sim de uma transmissão onerosa de um bem imóvel, sem qualquer relação com uma empresa ou estabelecimento, já que, com a venda, foi destacado da universalidade a que inicialmente pertencia.
M) A interpretação propugnada pela decisão recorrida apresenta-se como a mais adequada e conforme a letra, a ratio, a integração sistemática e a evolução histórica do n.º 2 do art. 270.º do CIRE, como eloquentemente foi demonstrado pela decisão recorrida.
N) Em conformidade, deve acolher-se a interpretação do n.º 2 do art. 270.º do CIRE constante da decisão arbitral sob recurso, com a consequente manutenção dos actos de liquidação de IMT impugnados.
1.3 - O Excelentíssimo Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer no sentido de que devia ser adoptada e uniformizada a seguinte posição jurisprudencial: «A venda de um imóvel de uma empresa insolvente, efetuada no âmbito da sua liquidação a pessoas singulares não beneficia de isenção de IMT prevista no art. 270.º n.º 2 do CIRE, por esta depender de se continuar a prosseguir uma atividade económica de forma estável, através de instalações estáveis e por período indefinido.».
1.4 - Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre decidir em conferência do Pleno da Secção.
2 - Na decisão arbitral recorrida julgaram-se como provados os seguintes factos(1):
1. A transmissão que deu origem às liquidações impugnadas foi titulada por escritura pública celebrada no dia 29 de Janeiro de 2015, fls. 34 a 37, Livro..., Cartório Notarial..., a qual teve por objeto a compra conjunta da fração autónoma designada pela letra G, 3.º andar direito, do prédio urbano situado..., n.º..., inscrito sob o artigo... da matriz predial urbana da freguesia de..., concelho de Lisboa.
2. A referida fração autónoma foi adquirida no âmbito da liquidação da massa insolvente da empresa "C..., Lda.", declarada insolvente conforme processo n.º .../13..., que correu termos no tribunal da Comarca de Lisboa, tendo a escritura sido outorgada, do lado da venda, pela administradora da insolvência daquela sociedade comercial.
3. Os requerentes juntaram cópia de uma exposição escrita, datada de 26 de Janeiro de 2015, que terão apresentado junto dos serviços da AT a solicitar a isenção de IMT pela aquisição supra identificada, invocando já a jurisprudência do STA, tendo terminado essa exposição a dizer que "caso se entenda não estarem isentos de IMT por esta aquisição, requerem a liquidação do respetivo imposto, conforme modelo 1 agora também entregue, sem prejuízo do pedido de reembolso do imposto que venha a ser pago".
4. As Declarações modelo 1 foram apresentadas pelos requerentes em 2015-01-27, data em que foram emitidas as liquidações de IMT ora impugnadas as quais foram pagas voluntariamente nessa mesma data pelos requerentes.
3 - No acórdão fundamento consta como provada a seguinte matéria de facto:
1. No âmbito do processo de insolvência n.º 2096/08.8TBPDL, a correr no 5.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Ponta Delgada, o impugnante comprou, em fase de liquidação do activo, o prédio inscrito sob o artigo 379 da matriz predial urbana da freguesia de ..., Ponta Delgada.
2. Requereu isenção de imposto municipal sobre transacções (sic), o que foi indeferido por despacho proferido a 21 de Fevereiro de 2011.
3. A liquidação impugnada é relativa a essa aquisição e foi efectuada em obediência a esse despacho.
4 - Face ao disposto no artigo 25.º do Decreto-Lei 10/2011, de 20 de Janeiro (regime jurídico da arbitragem em matéria tributária), a decisão proferida na sequência de pedido de pronúncia arbitral é susceptível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo (n.º 2), sendo aplicável a tal recurso, com as necessárias adaptações, o regime do recurso para uniformização de jurisprudência regulado no artigo 152.º do CPTA (n.º 3).
Razão por que importa, desde logo, apreciar se existe contradição entre a decisão arbitral recorrida e o acórdão fundamento quanto à mesma questão fundamental de direito.
Como é consabido, para apurar a existência da referida oposição é exigível que (i) se trate do mesmo fundamento de direito, (ii) que não tenha havido alteração substancial da regulamentação jurídica e (iii) que se tenha perfilhado solução oposta nos dois arestos: o que, como óbvio, pressupõe a identidade de situações de facto, já que sem ela não tem sentido a discussão dos referidos pressupostos.
Daí que este tipo de recurso tenha por pressuposto necessário a identidade dos factos subjacentes (que terão de ser essencialmente os mesmos do ponto de vista do seu significado jurídico) e uma identidade do regime jurídico aplicado (ainda que em invólucros legislativos diferentes), já que sem essa identidade não será possível vislumbrar a emissão de proposições jurídicas opostas sobre a mesma questão fundamental de direito, que careça de uniformização jurisprudencial.
Vejamos, então, se, no caso, ocorrem os enunciados requisitos legais.
Nas decisões em confronto estão em causa atos de liquidação de Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), efetuados por força da alienação de um imóvel na fase de liquidação do ativo de sociedade comercial em processo de insolvência. E a questão que em ambos se colocava era a de saber se a isenção de IMT prevista no artigo 270.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), é aplicável à alienação isolada de um elemento do ativo da sociedade insolvente, ou se, pelo contrário, é aplicável exclusivamente à alienação da própria empresa insolvente ou de qualquer estabelecimento desta, enquanto universalidade de bens.
O acórdão fundamento, confirmando a sentença da 1.ª instância, julgou que a aludida isenção é aplicável não apenas à venda/permuta da empresa insolvente ou dos seus estabelecimentos, mas também à venda/permuta isolada de ativos imobiliários da sociedade insolvente, desde que as transmissões se enquadrem no âmbito de um plano de insolvência ou de pagamento, ou sejam praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.
Já a decisão arbitral recorrida, em clara e expressa discordância com a jurisprudência contida no acórdão fundamento - e que os ora recorrentes haviam invocado em prol da sua tese - julgou que a alienação isolada dos elementos do ativo de empresa insolvente não beneficia da referida isenção de IMT, porquanto esta se aplica apenas à transmissão da empresa em si ou dos seus estabelecimentos, enquanto universalidade de bens.
É, pois, notório que em face de situações de facto substancialmente idênticas e enquadradas no mesmo panorama jurídico, as decisões em confronto, divergindo na interpretação do artigo 270.º, n.º 2, do CIRE, ditaram soluções opostas quanto à mesma questão fundamental de direito.
Razão por que se passará, de imediato, ao conhecimento do objecto do recurso.
4.1 - A questão fundamental de direito que se coloca é, como se viu, a de saber se a isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE opera apenas na transmissão da própria empresa insolvente ou de um seu estabelecimento, ou se opera igualmente na transmissão isolada de ativos imobiliários dessa empresa.
Adiante-se, desde já, que a orientação jurisprudencial contida no acórdão fundamento, prolatado em 30/05/2012, se encontra atualmente consolidada neste Supremo Tribunal, estando definitivamente afastada a posição que vinha sendo sustentada pela Administração Tributária e que foi acolhida na decisão arbitral recorrida.
Com efeito, a questão foi já exaustiva e repetidamente tratada pelo Supremo Tribunal Administrativo em inúmeros acórdãos, como se pode ver pela leitura, entre outros, dos arestos da Secção de Contencioso Tributário proferidos nos seguintes processos: n.º 01508/12, de 05-11-2014, n.º 01085/13, de 17-12-2014, n.º 0575/15, de 18-11-2015, n.º 0968/13, de 11-11-2015, n.º 01345/15, de 16-12-2015, n.º 01067/15, de 18-11-2015, n.º 01350/15, de 20-01-2016, n.º 0788/14, de 16-03-2016, n.º 0788/14, de 25-01-2017, 01159/16, de 01-02-2017, recurso n.º 0724/16, de 15-02-2017, no n.º 0793/16, todos no sentido de que a isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE se aplica não apenas às vendas ou permutas de empresas ou estabelecimentos enquanto universalidade de bens, mas, também, às vendas e permutas de imóveis, enquanto elementos do ativo de sociedade insolvente, desde que enquadradas no âmbito de um plano de insolvência ou de pagamento, ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.
O que levou a Administração Tributária, numa louvável e importante iniciativa inaugural de dar cumprimento ao disposto no n.º 4 do artigo 68.º-A da Lei Geral Tributária(2), a publicar, em 10/02/2017, a Circular n.º 4/2017, através da qual reviu a sua anterior interpretação no que toca a esta isenção de IMT, adotando uma nova interpretação que reflete a jurisprudência reiterada e uniforme do Supremo Tribunal Administrativo.
Com efeito, é o seguinte o teor da Circular n.º 4/2017, emitida em face do Despacho do Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais n.º 14/2017-XXI, de 26/01/2017:
«1 - Pelo Despacho 14/2017-XXI, de 26 de janeiro, do Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, com fundamento na recente jurisprudência do Supremo tribunal Administrativo (STA), bem como no disposto no n.º 4 do artigo 68.º-A, da lei geral tributária (LGT), que prevê que a administração tributária deve rever as suas posições face à jurisprudência dos tribunais superiores, foi determinado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) que procedesse à revisão da interpretação do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, expresso no ponto III do anexo à Circular n.º 10/2015, na parte relativa à isenção de IMT na aquisição de imóveis.
2 - Deste modo, os dois primeiros parágrafos do ponto III do "GUIA PARA O CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES FISCAIS DE PESSOAS COLECTIVAS EM SITUAÇÃO DE INSOLVÊNCIA", anexo à Circular n.º 10/2015, de 9 de setembro, são substituídos pelo seguinte entendimento:
«A aplicação dos benefícios fiscais previstos no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE não depende da coisa vendida, permutada ou cedida abranger a universalidade da empresa insolvente ou um seu estabelecimento.
Assim, os atos de venda, permuta ou cessão, de forma isolada, de imóveis da empresa ou de estabelecimentos desta estão isentos de IMT, desde que integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.»
Razão por que se mostra ultrapassada, até pela própria Administração Tributária, a tese sufragada na decisão arbitral recorrida, bastando deixar aqui enunciada a motivação jurídica que sustenta a posição que, de forma reiterada e uniforme, tem sido sufragada por este Tribunal, através da reprodução do acórdão de 16-03-2016, no recurso n.º 0788/14.
«A sentença do TAF de Aveiro, perante a questão que lhe era proposta e que se prendia com a interpretação do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, no que respeita ao âmbito da isenção aí consignada, concluiu, sufragando a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo - Acórdão de 30.05.2012, no processo 0949/11 (in www.dgsi.pt) - que «ao contrário da interpretação restritiva do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE defendido pela Administração Tributária, no sentido do benefício fiscal desta norma apenas abranger a transmissão onerosa de bens que integram a universalidade de empresa ou estabelecimento vendido, permutado ou cedido no âmbito do plano de insolvência, conclui-se, como no acórdão supra transcrito, que o mais adequado ao sentido e alcance da lei de autorização legislativa para aprovação do CIRE que integram o património da empresa insolvente».
No prosseguimento deste discurso argumentativo concluiu que «deverá entender-se estarem isentas de IMT as vendas de elementos do activo da empresa, desde que integradas no âmbito de plano de insolvência ou de pagamento ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente e não apenas as vendas da empresa ou estabelecimento desta, enquanto universalidades de bens».
Não conformada a Fazenda Pública argumenta que o CIRE não manteve, apesar da lei de autorização legislativa assim o permitir, a isenção do IMT à transmissão dos elementos do activo de empresa falida, tal como previa o CPEREF (artigos 120.º e 121.º), mas restringe essa isenção à transmissão da empresa ou de estabelecimento desta (artigos 269.º e 270.º do CIRE).
[...]
7 - Apreciando e decidindo:
Este Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou por várias vezes sobre a questão da interpretação deste normativo e no sentido propugnado pela decisão recorrida.
Assim constitui já jurisprudência consolidada desta secção que, não sendo clara a redacção do n.º 2 do art. 270.º do CIRE, deverá entender-se estarem isentas de IMT «não apenas as vendas da empresa ou estabelecimentos desta, enquanto universalidades de bens, mas também as vendas de elementos do seu activo, desde que integradas no âmbito de plano de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente» (cf., entre outros, para além do já citado Acórdão 949/11, os Acs. de 03-07-2013, recurso 0765/13, de 17.12.2014, recurso 01085/13, de 11.11.2015, recurso 968/13, de 18.11.2015, recursos 01067/15 e 0575/15, respectivamente, de 16 de Dezembro de 2015, recurso 1345/15, e de 20 de janeiro de 2016, recurso 1350/15, todos in www.dgsi.pt).
Concordamos com esta jurisprudência cuja fundamentação jurídica tem plena aplicação também no caso vertente e, pese embora o esforço argumentativo da recorrente, não vemos razões para a alterar.
Com efeito a questão suscitada é, sobretudo, uma questão de interpretação da lei fiscal, havendo que fazer apelo à ratio legis e tendo sempre presente que a captação do sentido de uma norma não pode fazer-se de uma forma isolada.
Ora, como se evidenciou no já referido acórdão 1085/13, haverá que ter em conta o fim que o legislador pretende alcançar com a concessão de tal isenção, - «fomentar e apoiar a venda rápida dos bens que integram a massa insolvente por óbvias razões de interesse dos credores, mas, também do interesse público de retoma do normal funcionamento do mundo empresarial em que cada processo de insolvência se apresenta como elemento perturbador», dando incentivos fiscais a quem adquirir os bens imóveis que integram a massa insolvente e que serão vendidos em fase de liquidação.
Não havendo que diferenciar, para tal fim, as situações em que se esteja a vender globalmente a empresa com todo o seu activo e o seu passivo, das situações em que se esteja a vender um ou mais dos estabelecimentos comerciais que a integravam, ou em que se estejam a vender bens imóveis que integravam o seu activo.
O objectivo que preside à teleologia da norma será igualmente prosseguido quando a aquisição tem por objecto elementos do activo da empresa, não se tomando necessário que o objecto seja a empresa ou estabelecimentos desta integrados no âmbito de plano de insolvência.
Por isso mesmo não procede também a argumentação da recorrente quando invoca o exemplo da isenção de Imposto de Selo a que alude o artigo 269.º alínea e) do CIRE.
Não há qualquer razão válida para proceder a uma interpretação mais restritiva no que se refere à isenção de IMT prevista no artigo 270.º, n.º 2 do CIRE.
Acresce que, como também se deixou dito no supra citado Acórdão 949/11, o n.º 3 do artigo 9.º da Lei de autorização legislativa n.º 39/2003, dispunha, no que se refere às isenções de Sisa (hoje IMT) que: «Fica, finalmente, o Governo autorizado a isentar de imposto municipal de sisa as seguintes transmissões de bens imóveis, integradas em qualquer plano de insolvência ou de pagamentos ou realizadas no âmbito da liquidação da massa insolvente: c) [...] da venda, permuta ou cessão da empresa, estabelecimento ou elementos dos seus activos [...]».
Ora a sentença não considerou inconstitucional a interpretação que a AT fez do art. 270.º, n.º 2, do CIRE, mas antes considerou, de acordo com a jurisprudência que citou, que entre dois sentidos da lei, ambos com apoio - pelo menos mínimo - na respectiva letra, deve o intérprete optar por aquele que melhor se compatibilize com o texto constitucional (interpretação conforme à Constituição).
Acresce ainda que, como explicitado no acórdão de 25-01-2017, no proc. n.º 01159/16, «da eventual não utilização pelo legislador ordinário da lei de autorização legislativa na sua plenitude não resulta inconstitucionalidade alguma, ou seja, nada obriga o legislador ordinário a esgotar o conteúdo da autorização, podendo, sem que incorra em invalidade normativa, decidir não fazer uso integral da mesma e ficar aquém da autorização legislativa, desde que dentro do sentido e conteúdo desta (alicerçando essa alegação na jurisprudência do Tribunal Constitucional, designadamente no Acórdão 556/2003, proferido no processo 188/2003, de 12/11/2003 [...].
Na tese que subscrevemos (por remissão para o acórdão proferido no processo 1345/15 acima citado e contrariamente ao que foi inicialmente decidido no acórdão proferido no processo 949/11), não se sustenta a inconstitucionalidade da interpretação defendida pela Fazenda Pública, mas apenas que entre dois sentidos da lei, ambos com apoio mínimo na respectiva letra, deve o intérprete optar por aquele que melhor se adequa ao sentido e extensão da autorização legislativa ao abrigo da qual a norma foi emanada pelo Governo em matéria reservada à Assembleia da República. Sobretudo, quando é esse o que melhor serve a teleologia (ratio legis) da norma, tal como acima a entendemos e quando colhe também o apoio do elemento histórico, como bem se refere no acórdão proferido no processo com o n.º 949/11.».
Por todo o exposto, uniformiza-se a jurisprudência conflituante nos seguintes termos: a isenção de IMT prevista pelo n.º 2 do artigo 270.º do CIRE aplica-se, não apenas às vendas ou permutas de empresas ou estabelecimentos enquanto universalidade de bens, mas também às vendas e permutas de imóveis, enquanto elementos do seu ativo, desde que enquadradas no âmbito de um plano de insolvência ou de pagamento, ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.
E assim sendo, há que anular a decisão arbitral recorrida (cf. n.º 6 do artigo 152.º do CPTA), por errada interpretação do supra citado preceito legal, e julgar procedente o pedido de anulação da liquidação de IMT formulado no processo 200/2015-T do CAAD, com todas as legais consequências.
5 - Pelo exposto, acordam os juízes do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, anular a decisão arbitral recorrida, e julgar procedente o pedido de anulação dos atos de liquidação de IMT impugnados no processo que correu no CAAD sob n.º 200/2015-T, com todas as devidas e legais consequências.
Custas pela Autoridade Tributária, que contra-alegou neste Supremo Tribunal.
Publique-se (artigo 152.º, n.º 4, do CPTA).
(1) A numeração indicada foi introduzida pela ora Relatora.
(2) Preceito introduzido pela Lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro, segundo o qual «A administração tributária deve rever as orientações genéricas referidas no n.º 1 atendendo, nomeadamente, à jurisprudência dos tribunais superiores».
Lisboa, 29 de Março de 2017. - Dulce Manuel da Conceição Neto (relatora) - Joaquim Casimiro Gonçalves - Isabel Cristina Mota Marques da Silva - José da Ascensão Nunes Lopes - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes - Pedro Manuel Dias Delgado - Ana Paula Fonseca Lobo - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia.