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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 3/2017, de 11 de Abril

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Sumário

A partir do encerramento do inquérito com dedução de acusação, o arguido, até ao termo dos prazos referidos no n.º 8 do artigo 188.º do Código de Processo Penal, tem o direito de examinar todo o conteúdo dos suportes técnicos referentes a conversações ou comunicações escutadas e de obter, à sua custa, cópia das partes que pretenda transcrever para juntar ao processo, mesmo das que já tiverem sido transcritas, desde que a transcrição destas se mostre justificada

Texto do documento

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2017

Processo 50/14.0SLLSB-U.L1.S1

Recurso para fixação de jurisprudência

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

O Ministério Público junto da Relação de Lisboa interpôs, em 01/07/2016, recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão desse tribunal de 08/06/2016, proferido no processo 50/14.0SLLSB-U.L1, transitado em julgado em 27/06/2016, alegando que se encontra em oposição com o acórdão da mesma Relação de 27/04/2016, também transitado em julgado, proferido no processo 50/14.0SLLSB-V.L1.

Por acórdão de 29/09/2016, o Supremo Tribunal de Justiça, considerando não ocorrer motivo de inadmissibilidade e haver oposição de julgados, ordenou o prosseguimento do recurso.

Foram notificados os sujeitos processuais interessados, nos termos e para os efeitos do artigo 442.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, tendo sido apresentadas alegações pelo Ministério Público, que concluiu nos termos que se transcrevem:

«1 - O artigo 188.º, n.º 8, do C.P.P. regula distintamente dois direitos: o direito de exame dos suportes técnicos, e o direito a obtenção de cópia dos mesmos suportes;

2 - O direito de exame constante da primeira parte do preceito, autoriza o arguido e o assistente a examinarem os suportes técnicos das conversações ou comunicações, independentemente de estes se encontrarem ou não transcritos.

3 - O direito de o arguido e assistente obterem cópia dos suportes técnicos foi limitado pelo legislador à cópia das partes que pretendam transcrever para juntar ao processo como prova, e

4 - De forma expressa, às partes (sessões) que contenham conversações ou comunicações que não se encontram transcritas.

5 - Se a intenção do legislador fosse a de permitir que o arguido e o assistente pudessem obter cópias dos suportes técnicos das conversações ou comunicações que foram consideradas relevantes e que já se encontram transcritas, bastaria expressar tal propósito, sem necessidade de distinguir as que se encontram transcritas das que não se encontram.

6 - Com esta possibilidade conferida ao arguido e ao assistente de examinarem os suportes técnicos na secção encontra-se assegurada a ampla defesa dos seus direitos e interesses, bem como acautelado o princípio da igualdade de armas, que decorre da estrutura acusatória do processo criminal.

7 - Esta opção do legislador de não permitir a entrega de cópia ao arguido dos suportes técnicos das conversações que foram consideradas relevantes e se encontram transcritas, permitindo tão só o seu exame na secretaria, visou acautelar o seu direito a um processo justo e ao contraditório,

8 - Conciliando-o com outros direitos fundamentais, como o da reserva da intimidade da vida privada e familiar, do direito à palavra e da inviolabilidade das comunicações (arts. 26.º e 34.º, n.os 1 e 4, da CRP).

9 - Da leitura do disposto nos artigos 86.º, 89.º e 188.º do Código de Processo Penal, resulta que o legislador consagrou, no artigo 188.º do Código de Processo Penal, um regime especial em relação ao exame, pelo arguido e pelo assistente, dos suportes técnicos das conversações e comunicações.

10 - Com efeito, o artigo 188.º, n.º 8, do C.P.P só permite o exame, pelo arguido e assistente, dos suportes técnicos a partir do encerramento do inquérito, enquanto em relação aos demais meios de prova, o legislador permite que o arguido, o assistente, o ofendido, o lesado e o responsável civil, possam proceder ao exame do processo e seus elementos, quando nos termos do artigo 86.º, n.º 9, do Código de Processo Penal, tenha sido atingido o prazo máximo de duração do inquérito, isto é, mesmo não se encontrando findo o inquérito.

11 - Ao fixar este regime especial no que se refere à possibilidade de exame e obtenção de cópias dos suportes técnicos o legislador visou, por um lado, regular expressamente esta matéria, e, por outro, afastar a aplicação do regime geral previsto nos artigos 86.º e 89.º do C.P.P., ao que seguramente não foi alheia a natureza intrusiva das escutas e necessidade de controlo da sua reprodução.

Pelas razões expostas acompanhamos a solução do acórdão recorrido.

Propõe-se, pois, que o Conflito de Jurisprudência existente entre os acórdãos da Relação de Lisboa, de 8 de Junho de 2016 (recorrido) e de 27 de Abril de 2016 (fundamento), seja resolvido nos seguintes termos:

"Nos termos do artigo 188.º, n.os 8 e 9, alínea b), do Código de Processo Penal, após a dedução da acusação, o arguido pode examinar na secção todas as conversações telefónicas gravadas, transcritas ou não, podendo obter cópia, apenas, das não transcritas, com vista à sua transcrição para junção ao processo como prova"».

Colhidos os vistos, o processo foi apresentado à conferência do pleno das secções criminais, cumprindo decidir.

Fundamentação:

I. A conferência considerou estarem verificados os pressupostos do recurso, designadamente a oposição de julgados. Este pleno pode decidir em sentido contrário, como resulta do n.º 4 do artigo 692.º do Código de Processo Civil, aqui aplicável por força do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal.

Mas não é caso disso.

Os pressupostos formais estão verificados, à luz dos artigos 437.º, n.os 1, 2, 4 e 5, e 438.º, n.º 1, do Código de Processo Penal: o recorrente tem legitimidade, os acórdãos em conflito são de tribunal de Relação, transitaram em julgado, não eram passíveis de recurso ordinário, e o recurso para fixação de jurisprudência foi interposto do acórdão proferido em último lugar, dentro do prazo de 30 dias a contar do seu trânsito em julgado.

E ver-se-á que existe também oposição de julgados.

O caso apreciado pelo acórdão indicado como fundamento tem os seguintes contornos: Após o encerramento do inquérito com dedução de acusação, o arguido requereu ao Ministério Público que lhe fosse entregue cópia em suporte digital de todas as conversações telefónicas gravadas e transcritas no processo. Tendo o Ministério Público indeferido esse pedido, com fundamento no n.º 8 do artigo 188.º do Código de Processo Penal, o requerente solicitou a intervenção do juiz de instrução, que ordenou a entrega de cópia em CD de todas aquelas conversações ao arguido. Conhecendo de recurso dela interposto, a Relação de Lisboa decidiu confirmar essa decisão do juiz de instrução, argumentando:

"Não resulta de nenhuma norma nem do elemento sistemático que o arguido não possa, deduzida que esteja a acusação, ter acesso aos elementos constantes dos autos que levaram à sua sujeição a julgamento", pelo que é afirmativa a resposta à questão de saber se, "após a acusação pode o arguido ter direito a que lhe seja entregue cópia, em suporte digital, de todas as sessões telefónicas que foram consideradas relevantes e que estão transcritas", o que será feito "à sua custa".

No caso do acórdão recorrido, encerrado o inquérito também com dedução de acusação, o arguido requereu ao Ministério Público a entrega de cópia de várias sessões de gravações de conversações telefónicas transcritas no processo. O Ministério Público indeferiu o pedido, com o fundamento de que as gravações pretendidas já se encontravam transcritas, invocando aquele artigo 188.º, n.º 8. Requerida pelo arguido a sua intervenção, o juiz de instrução ordenou a entrega ao requerente de cópia de todas as gravações pedidas. Julgando recurso dela interposto, a Relação de Lisboa revogou essa decisão do juiz de instrução, considerando:

"Com excepção das situações em que o arguido pretenda transcrever de novo determinadas sessões que invoque em requerimento, para impugnar a transcrição feita pelo OPC e apresentar uma outra, resulta do disposto no artigo 188.º do CPP que, após o encerramento do inquérito, o arguido não tem direito a cópia dos CD onde estão gravadas tais sessões já transcritas. O que não impede que o arguido possa consultar todas as sessões gravadas; tem é de o fazer na secretaria. [...] ao poderem ser examinadas na secção todas as sessões está garantido o pleno exercício do direito de defesa e do contraditório, designadamente para a invocada aferição da veracidade da transcrição ou da identificação das vozes".

Enquanto o acórdão fundamento decidiu que, encerrado o inquérito com dedução de acusação, o arguido tem o direito, até ao termo dos prazos previstos no n.º 8 do artigo 188.º do Código de Processo Penal, de obter cópia de todas as gravações de conversações telefónicas realizadas, mesmo das que já houverem sido transcritas no processo, o acórdão recorrido decidiu que, nessa fase, o arguido apenas pode obter cópia das gravações de conversações telefónicas não transcritas e das transcritas em relação às quais pretenda apresentar nova transcrição por discordar da transcrição já feita. Ou seja: ambos os acórdãos decidiram a mesma questão de direito, que é a de saber de quais das gravações das conversações telefónicas realizadas o arguido pode obter cópia, após o encerramento do inquérito com dedução de acusação e até ao termo dos prazos previstos no n.º 8 do artigo 188.º do Código de Processo Penal. E, no domínio da mesma legislação, visto não ter havido modificação legislativa relevante entre a prolação de um e de outro, divergiram na resposta a essa questão, afirmando o acórdão fundamento que o arguido pode obter cópia de todas as gravações, transcritas ou não, e decidindo o acórdão recorrido que o arguido só tem o direito de obter cópia das gravações das conversações não transcritas e das transcritas cuja transcrição pretenda impugnar.

II. Os acórdãos em conflito divergem, pois, na interpretação do n.º 8 do artigo 188.º do Código de Processo Penal, cujo texto é o seguinte:

«A partir do encerramento do inquérito, o assistente e o arguido podem examinar os suportes técnicos das conversações ou comunicações e obter, à sua custa, cópia das partes que pretendam transcrever para juntar ao processo, bem como dos relatórios previstos no n.º 1, até ao termo dos prazos previstos para requerer a abertura de instrução ou apresentar a contestação, respectivamente».

Esta disposição, introduzida pela reforma operada pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto, representa uma inovação importante em relação ao regime anterior, permitindo-se agora, no que ao arguido importa, em nome do direito de defesa, a sua efectiva participação no processo de selecção dos elementos recolhidos através das conversações ou comunicações telefónicas gravadas que hão-de valer como prova no processo. A partir do encerramento do inquérito, o arguido tem acesso aos suportes técnicos das conversações ou comunicações, podendo examiná-los, de modo a inteirar-se do seu conteúdo, e obter, à sua custa, cópia das partes que pretenda transcrever para juntar ao processo, até ao termo dos prazos ali referidos, com vista a poderem ser utilizadas como meio de prova na instrução, se requerida, ou na audiência de julgamento, uma vez que, como resulta dos n.os 9 e 10, só as partes das conversações ou comunicações transcritas, por ele, pelo assistente, por determinação do juiz de instrução (n.º 7), do Ministério Público ou do tribunal do julgamento, podem valer como prova.

Damião da Cunha considera que este regime legal se justifica "por um princípio (ou garantia) de justo processo ou de justo tratamento, no sentido de que aquele que foi objecto de uma investigação (e, no caso, por via directa ou indirecta, de escutas telefónicas) deve poder 'aproveitar', em seu benefício, de eventuais elementos que possam ser úteis à sua defesa (incluindo o contraditório)" [O Regime Legal das Escutas Telefónicas, Algumas Breves Reflexões, revista do CEJ, 1.º semestre 2008, n.º 9, página 214]. E André Lamas Leite diz ter-se pretendido "que a conformação processual do material probatório resultante das escutas a levar em conta na aferição da responsabilidade criminal do arguido se constitua pelas apresentadas por este, pelo MP, ou pelo assistente", porque o "legislador terá entendido inexistir outrem melhor que os directamente interessados na defesa da sua posição - o arguido e o assistente - e o MP, para introduzir nos autos a prova obtida através das escutas" [Entre Péricles e Sísifo: O Novo Regime Legal das Escutas Telefónicas, RPCC, Ano 17, página 651].

O texto do n.º 8 do artigo 188.º é claro, comportando um só sentido: após o encerramento do inquérito com dedução de acusação, o arguido tem o direito de examinar todo o conteúdo dos suportes técnicos e de obter cópia das partes que pretenda transcrever para juntar ao processo. E não resulta de qualquer outra disposição legal que a redacção daquela norma atraiçoou o pensamento do legislador, dizendo menos ou mais do que aquilo que pretendia dizer.

Nomeadamente, não tem esse alcance a alínea c) do n.º 6 do artigo 86.º do Código de Processo Penal, no qual o acórdão fundamento se baseia para responder afirmativamente à questão de saber se, "após a acusação pode o arguido ter direito a que lhe seja entregue cópia, em suporte digital, de todas as sessões telefónicas que foram consideradas relevantes e que estão transcritas".

Efectivamente, o que a alínea c) do n.º 6 do artigo 86.º prevê é a obtenção de cópias do auto relativo a acto processual ao qual o público em geral pode assistir, como resulta da sua necessária conjugação com a alínea a). E os suportes técnicos das conversações ou comunicações gravadas não constituem sequer auto, que nos termos do n.º 1 do artigo 99.º é o registo escrito dos actos processuais que devam ser documentados e das ocorrências relevantes verificadas durante a sua realização. Auto, na matéria em discussão, é o relato escrito da operação de intercepção e gravação das conversações ou comunicações, nos termos do n.º 1 do artigo 188.º Fica assim claro que a alínea c) do n.º 6 do artigo 86.º não implica outra interpretação do n.º 8 do artigo 188.º que não seja declarativa e no sentido apontado: o arguido só pode obter cópia dos suportes técnicos das conversações ou comunicações que pretenda transcrever para juntar ao processo.

Nem o n.º 4 do artigo 89.º

De acordo com esta última disposição, quando o processo se torna público, como sempre acontece com o encerramento do inquérito, o arguido, o assistente, o ofendido, o lesado e o responsável civil podem obter a confiança dos autos para os examinarem fora da secretaria. Não obstante referir o exame dos autos fora da secretaria, a norma terá em vista o processo e não apenas as suas peças que constituem autos na acepção do falado artigo 99.º

Devendo embora ser assim, a confiança do processo para o seu exame fora da secretaria não abrange os suportes técnicos das conversações ou comunicações gravadas, na medida em que não fazem parte do processo. Dizem-lhe respeito, mas não o integram. São instrumentos que se encontram à guarda da autoridade judiciária e dos quais se pode obter prova, na forma de transcrições. Estas, sim, fazem parte do processo a partir do momento em que lhe sejam juntas.

Como se estabelece nos n.os 12 e 13 do artigo 188.º, os suportes técnicos referentes a conversações ou comunicações que não forem transcritas para servirem como meio de prova nem chegam a ser juntos ao processo, sendo guardados em envelope lacrado à ordem do tribunal e destruídos após o trânsito em julgado da decisão que puser termo à causa, e aqueles que não forem destruídos - respeitantes a conversações ou comunicações transcritas e juntas para valerem como prova - só ficam junto ao processo após o trânsito em julgado da decisão que lhe puser termo, sem que verdadeiramente o integrem, pois ficam guardados em envelope lacrado, indisponíveis, só podendo ser utilizados em caso de interposição de recurso extraordinário.

Ainda que assim não fosse, não seria o n.º 4 do artigo 89.º que implicaria uma interpretação não declarativa do n.º 8 do artigo 188.º, mas o contrário. Na verdade, se os suportes técnicos das escutas fizessem parte do processo, impor-se-ia concluir que a norma genérica do n.º 4 do artigo 89.º não abrangeria tais suportes, visto que o acesso a estes e a sua disponibilidade são objecto de uma regulamentação especial: a contida no n.º 8 do artigo 188.º Esta norma, por um lado, fixa o encerramento do inquérito como o momento a partir do qual o assistente e o arguido podem aceder aos suportes técnicos das escutas e, por outro, apenas permite que se entreguem a esses sujeitos processuais cópias desses suportes e não os originais, e apenas para o efeito de fazerem a transcrição do seu conteúdo para ser junta ao processo. Se ao assistente e ao arguido apenas se entregam cópias dos suportes técnicos e não os originais, que por isso não são levados para fora da secretaria, só pode concluir-se que o seu exame é feito nas instalações judiciárias.

Sendo assim, a interpretação do n.º 4 do artigo 89.º no sentido de contemplar a possibilidade do exame desses suportes em momento anterior àquele e fora da secretaria, sem qualquer vinculação, nomeadamente por quem nem é sujeito processual, seria incoerente, por não ter em conta a «unidade do sistema jurídico», como manda o n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil, e ilógica, por desconsiderar a regra do n.º 3 do mesmo preceito, segundo a qual deve presumir-se «que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados». Deste modo, na hipótese colocada - a de os suportes técnicos das escutas fazerem parte do processo -, haveria que fazer uma interpretação restritiva do n.º 4 do artigo 89.º, no sentido de o exame do processo não abranger esses suportes.

A exigência de que o exame dos suportes técnicos pelo assistente e pelo arguido seja feito na secretaria e de que só lhes sejam entregues cópias das partes que pretendam transcrever para juntar ao processo visa minimizar o risco de divulgação de dados relativos a matéria reservada, como observa Paulo Pinto de Albuquerque: "[...] o exame é feito sempre na secretaria, seja ele pedido pelo arguido, pelo assistente ou pelas pessoas cujas conversações tiverem sido escutadas. Por isso, o legislador permite apenas a obtenção de cópias em condições muito restritas (as do artigo 188.º, n.º 8) e sob controlo do tribunal. A confiança dos suportes técnicos das escutas permitiria a reprodução descontrolada dos mesmos, o que o legislador não quis" [Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição actualizada, página 539].

Deve ainda notar-se que o não acesso do arguido (e do assistente) aos suportes técnicos das escutas antes do encerramento do inquérito foi tido como assente pelo acórdão de fixação de jurisprudência 13/2009 do Supremo Tribunal de Justiça, onde, a propósito da actividade atribuída ao Ministério Público durante o inquérito pelo n.º 7 do artigo 188.º, se afirma que, nessa fase, haja ou não segredo de justiça, "não há ainda acesso aos suportes técnicos por parte do arguido e do assistente, como decorre do n.º 8 do artigo 188.º" [Diário da República, 1.ª série, de 6 de Novembro de 2009, página 8371].

Reafirma-se, pois, que, relativamente aos suportes técnicos, o arguido só tem direito a que lhe sejam entregues cópias das partes das gravações que pretenda transcrever para juntar ao processo, em concordância com André Lamas Leite, que não vê neste ponto razão para controvérsia: "estabelece-se agora que a obtenção de cópias apenas pode ter por fito a transcrição de partes tidas por relevantes para serem juntas aos autos até ao termo do prazo para requerer a abertura da instrução ou para deduzir contestação" [ob. cit., página 652].

Isso não significa, porém, que não possa obter cópias de partes já transcritas por iniciativa de outro sujeito processual. Mas, porque «não é lícito realizar no processo actos inúteis», nos termos do artigo 130.º do Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal por força do artigo 4.º do Código de Processo Penal, só poderá obter essas cópias se apresentar motivos que o justifiquem. Um desses motivos, admitido pelo acórdão recorrido, pode ser o da eventual desconformidade entre aquilo que consta dos suportes técnicos e aquilo que foi transcrito. Haverá também razão para transcrever conversações ou comunicações já transcritas no caso de o arguido pretender justificadamente que estas não se encontram suficientemente contextualizadas, como admite Carlos Adérito Teixeira [Escutas telefónicas: a mudança de paradigma e os velhos e os novos problemas, revista do CEJ, 1.º semestre 2008, n.º 9, página 268].

Esta solução traduz uma ponderação equilibrada dos interesses em jogo: por um lado, garante o direito de defesa do arguido, permitindo-lhe o exame de todas as conversações ou comunicações gravadas e a obtenção de cópia das partes que pretenda transcrever e juntar ao processo para aí poderem valer como prova, mesmo das já transcritas, desde que a transcrição destas se mostre justificada, e, por outro, ao vedar a saída da secretaria de cópia dos suportes técnicos das conversações ou comunicações que não se destinem a ser transcritas para efeitos de prova, diminuindo a possibilidade de divulgação do seu conteúdo, salvaguarda os direitos de sigilo das comunicações, à palavra e à privacidade nos casos em que os fins do processo penal não impõem o seu sacrifício.

É claro que o arguido ou o assistente podem não transcrever todas as partes das gravações de que pediram cópias, ou por que já não o pretendiam fazer no momento em que apresentaram o pedido ou por outra razão, como falta de tempo ou mudança de opinião sobre a relevância de determinadas partes. Mas esse é um risco que o regime estabelecido decidiu suportar, em vista dos interesses que pretende servir, e, como se disse, será minimizado com a entrega apenas das cópias das partes das gravações ainda não transcritas no processo, só lhe sendo disponibilizadas cópias de partes já transcritas, se quanto a estas se mostrar justificada uma nova transcrição.

O acórdão recorrido, negando o direito de o arguido obter cópia dos suportes técnicos referentes a conversações ou comunicações que não se proponha transcrever para juntar ao processo, não contraria a interpretação que aqui se faz do n.º 8 do artigo 188.º do Código de Processo Penal.

Decisão:

Em face do exposto, os juízes que constituem o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça decidem:

a) Confirmar o acórdão recorrido;

b) Fixar a seguinte jurisprudência: «A partir do encerramento do inquérito com dedução de acusação, o arguido, até ao termo dos prazos referidos no n.º 8 do artigo 188.º do Código de Processo Penal, tem o direito de examinar todo o conteúdo dos suportes técnicos referentes a conversações ou comunicações escutadas e de obter, à sua custa, cópia das partes que pretenda transcrever para juntar ao processo, mesmo das que já tiverem sido transcritas, desde que a transcrição destas se mostre justificada.

Não há lugar a condenação no pagamento de custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 9 de Março de 2017. - Manuel Joaquim Braz (Relator) - Isabel Francisca Repsina Aleluia São Marcos - Helena Isabel Gonçalves Moniz Falcão de Oliveira - Nuno de Melo Gomes da Silva - Francisco Manuel Caetano - Manuel Pereira Augusto de Matos - Maria Rosa Oliveira Tching - José Vaz Santos Carvalho - José António Henriques dos Santos Cabral - António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes - José Adriano Machado Souto de Moura - António Pires Henriques da Graça - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges - Isabel Celeste Alves Pais Martins - António Silva Henriques Gaspar (Presidente).

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2940638.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga ao seguinte documento (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2007-08-29 - Lei 48/2007 - Assembleia da República

    Altera (15.º alteração) e republica o Código de Processo Penal.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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